1. Introdução
A suspensão das aulas presenciais durante o período pandêmico colocou-nos perante a necessidade de retomar as atividades escolares e acadêmicas com a mediação de tecnologias digitais e utilizando-se de estratégias e ferramentas típicas da Educação a Distância (EaD). Nesse ínterim, tornou-se comum a distinção entre a experiência vivenciada em meio à pandemia e outras tantas anteriores à eclosão da crise mundial. Apesar de legítima a demarcação das circunstâncias que particularizam as práticas adotadas emergencialmente, vê-se, de modo recorrente, esforços inclusive teóricos para estabelecer uma cisão entre aquilo que se convencionou chamar de Ensino Remoto (ER) e a EaD. Mesmo que entendamos as intenções que subjazem a essa separação, questionamos o rigor teórico e conceitual que subsidia algumas das proposições de estudiosos da área educacional. Mais do que isso, indagamos se a distinção que tem sido feita não traz, na verdade, problemas num cenário em que a EaD - e, de maneira mais abrangente, a educação mediada por tecnologias digitais - se coloca no cerne dos debates e demanda reflexões importantes a respeito das consequências que serão percebidas para além da pandemia.
Posicionando-nos na contramão de alguns dos principais embates, neste artigo temos como objetivo avaliar as aparentes distinções entre ER e EaD, problematizando-as. A análise tem, como pano de fundo, a pesquisa de doutorado do primeiro autor, que versa sobre o processo de institucionalização da EaD nas universidades públicas brasileiras (estaduais e federais). Tendo isso em vista, afirmamos que o esclarecimento sobre as aproximações e distanciamentos, mais do que simples proposição teórica, contribui para sobrepujar visões equivocadas que, mesmo depois da pandemia, tendem a se manter se não nos debruçarmos sobre reflexões importantes e necessárias no que concerne ao futuro da educação e às avaliações que podemos fazer a partir das experiências vivenciadas em meio à pandemia.
O texto está dividido de modo a melhor articular os esforços analíticos que fazemos no ensaio. Começamos, assim, com a definição da EaD, chegando a uma perspectiva conceitual mais pura com aqueles predicados que consideramos universais e realmente necessários. Depois, definimos também o ER ao mesmo tempo em que problematizamos essa definição que tenta separá-lo da EaD. Mais à frente, retomamos alguns dos principais argumentos recentes, desconstruindo-os para propor a nossa visão. Para finalizar o texto, demonstramos como a inversão entre meios e fins pode ser contraproducente, culminando em inquietações e proposição de nortes para outros estudos na seção dedicada às considerações finais.
2. Definições conceituais sobre educação a distância
Avaliamos como legítima a tentativa de separação feita por diversos profissionais e pesquisadores que atuam na EaD ou estudam a modalidade, colimando evidenciar que as ações emergenciais, sem o devido preparo e infraestrutura, devem ser separadas daquilo que, há décadas, se defende como cursos a distância de qualidade. No entanto, a discussão tem tomado grandes proporções e gerado muitos equívocos. Para aclarar as coisas e delinear nosso argumento, comecemos com definições conceituais que, ao longo destas páginas, serão sempre acompanhadas de comentários e problematizações. Vejamos que, na legislação brasileira mais atual (Ministério da Educação do Brasil, 2017), a EaD é definida como:
modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos. (Art. 1º)
No contexto português, o novo Regime Jurídico do Ensino Superior Ministrado a Distância (RJEaD) (Diário da República de Portugal, 2019), define a EaD como:
a) “Ciclo de estudos ministrado a distância”, os ciclos de estudo conferentes de grau académico em que as unidades curriculares lecionadas na modalidade de ensino a distância correspondam a um mínimo de 75 % do total de créditos do respetivo plano de estudos; b) “Ensino a distância”, o ensino predominantemente ministrado com separação física entre os participantes no processo educativo, designadamente docentes e estudantes, em que:
(p. 51)
i) A interação e participação são tecnologicamente mediadas e apoiadas por equipas online de suporte académico e tecnológico;
ii) O desenho curricular é orientado para permitir o acesso sem limites de tempo e lugar aos conteúdos, processos e contextos de ensino e aprendizagem;
iii) O modelo pedagógico é especialmente concebido para o ensino e a aprendizagem em ambientes virtuais.
Desde logo é preciso deslindar que, para nós, o fato de ser concebida, em ambas as legislações, como modalidade ou forma de organização do processo educacional regulamentada já circunscreve a EaD dentro de uma concepção mais específica. A exigência de pessoal qualificado e políticas de acesso, acompanhamento e avaliação compatíveis, mínimo de 75% de créditos a distância do total do plano de estudos, modelo pedagógico específico etc. determina uma configuração de cursos a distância que, como a história nos mostra, desenvolveu-se sobretudo pelas experiências que foram acontecendo nas últimas décadas no Brasil e em Portugal. No contexto português o RJEaD surge, por exemplo, como forma de suprir uma lacuna da legislação anterior que gerava barreiras legais para a acreditação de cursos na EaD dada a indefinição de critérios específicos para tal (Veloso, 2022).
No Brasil, o Decreto nº 5.622 (Câmara dos Deputados do Brasil, 2005), a título de exemplificação, prepara a legislação para o que viriam a ser, posteriormente, os editais de financiamento no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Mas como podemos observar em Moore e Kearsley (2007), as primeiras propostas educacionais mais robustas na história da EaD surgem por correspondência e se direcionam, dentre outras coisas, a cursos profissionalizantes. Isso significa que a definição enquanto modalidade na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (Ministério da Educação do Brasil, 1996) é, no caso brasileiro, uma construção histórica e tem que ver com o desejo de organizar uma universidade aberta, nos moldes daquelas europeias, para oferecer acesso a grupos socialmente excluídos da educação presencial (Costa & Pimentel, 2009; Costa, 2012). No caso português, os critérios mais recentes para a acreditação que surgem no RJEaD são fruto, também e sobretudo, das experiências da Universidade Aberta de Portugal (UAb-Portugal). Em ambos os países as legislações se apresentam, pois, como materializações mais recentes que não definem a EaD em seu formato universal e necessário - porque se originaram justamente doutras experiências anteriores, distintas em muitos aspectos.
Na tentativa de retomar aquilo que pode definir a EaD, sem desvios valorativos e enquanto conceito, ou seja, a priori, reconhecemos que a literatura nos apresenta multifacetadas acepções que dão maior ou menor importância a alguma característica. Porém, subtraindo as interferências decorrentes da materialização do uso à delimitação teórica o mais universal e necessária possível, chegamos, sobretudo com base em Moore e Kearlsey (2007), àquelas especificidades que definem a EaD, independentemente de sua aplicação ou da experiência em que é adotada: docentes e discentes distantes no tempo e/ou no espaço, dependendo de tecnologias que viabilizem a interação pedagógica.
Não podemos ignorar que esses autores, noutro momento, advogam uma definição para a modalidade na qual se encistam especificidades que, assim como compreendemos, pertinem à educação formal propriamente dita, a saber: EaD como aprendizado planejado que ocorre, por via de regra, em local diferente de ensino; requer, assim, técnicas específicas de elaboração de cursos, técnicas instrucionais adequadas, arranjos organizacionais e administrativos especiais, além de métodos próprios de comunicação por meio de tecnologias (Moore & Kearsley, 2007). Percebe-se como tal definição complementa os elementos basais que, para nós, definem a organização peculiar da EaD. Esse complemento, contudo, diz respeito ao que é próprio - ou ao menos deveria ser - de uma educação institucionalizada e, por isso mesmo, burocrática: planejamento, organização e adequação dos recursos às condições e finalidades educacionais - ora, preceitos basilares de qualquer reflexão didática. Com isso, chegamos à ilação de que a necessidade de planejamento, bem como de adequação entre meios e fins, não é algo exclusivo da EaD, mas sim de qualquer educação formal institucionalizada.
Aliás, vê-se, na definição da EaD, a importância do aparato tecnológico como mediador do processo. Sabemos que o ensino-aprendizagem, em qualquer modalidade, conta, historicamente, com mediação de tecnologias, se entendemos estas num sentido amplo, o que inclui, por exemplo, o quadro negro, o livro, o caderno, a escrita e outros. Assim, para que exista educação - e, aqui, limitamo-nos à análise daquela formal -, pressupõe-se, por praxe, recursos tecnológicos - analógicos e/ou digitais - que medeiam o processo. Por dedução, resta à EaD, como característica sui generis, a separação no tempo e/ou no espaço entre os sujeitos envolvidos na interação pedagógica - uma vez que planejamento, uso de tecnologias, organização, adequação entre meios e fins etc. dizem respeito à educação formal, em qualquer que seja a modalidade dentro de uma sociedade burocrática e organizada à luz da racionalidade técnica, como discute Weber (2013; 2015).
Na medida em que estamos tratando, como dito, do processo educacional com organização e intencionalidade - educação formal ou até não-formal -, excluir-se-ia dessa definição aquela educação que, apesar de realizada a distância, prescinde de objetivos pedagógicos e de um agente (que ensina e/ou media) que, em sua ação, intenciona incidir sobre outro agente (que aprende) - características que, reiteramos, equalizam EaD e outras formas de educação institucionalizada que sempre irão demandar, em alguma medida, adequado planejamento e compatibilização entre meios e fins. Ser democrática, possuir qualidade, contar com infraestrutura adequada, ter profissionais devidamente preparados, resultar de equipe multidisciplinar etc. são características cientificamente mensuráveis a posteriori, isto é, depois da materialização da prática. Assumir que a EaD, a título de exemplo, necessariamente democratiza o acesso, significa defendê-la numa perspectiva já delimitada e, por isso mesmo, esquecer-se das variações que ocorrem quando da experiência empiricamente observável.
A definição supradita é, em certo sentido, polêmica, porque retoma a centralidade naquilo que, como Saldanha (2020) destaca, seria o problema e não a solução; quer dizer, a distância geográfica - mas também temporal. Hoje, por exemplo, existem possibilidades tecnológicas que permitem superar muitas das limitações que a EaD possuía há décadas ou séculos. Autores como Tori (2017) problematizam, inclusive, o termo “a distância”, demonstrando as imprecisões e os enfoques equivocados que ele supõe. Moore e Kearsley (2007), por seu turno, demonstram, por meio da teoria da distância transacional, que cursos a distância envolvem preocupação com a estrutura, a autonomia e o diálogo do processo educacional, colimando mitigar os ruídos que eventualmente existem entre emissão e recepção no contexto da EaD. Isso significa que enfatizar, no conceito, a separação espacial e temporal parece retroceder e se olvidar de muitos dos debates estabelecidos até então - de certa forma, nosso ensaio se interessa por isso mesmo. Defendemos nosso argumento ao evocar a distinção que, para nós, deve ser feita entre “presença” e “proximidade”. O fato de estarem geográfica e temporalmente dispersos nada tem que ver com ausência no ensino-aprendizagem. Da mesma forma que compartilhar um mesmo espaço físico na sala de aula tradicional não garante, per se, proximidade entre os envolvidos1.
3. Definições conceituais sobre ensino remoto
Seguindo na discussão conceitual, Moreira e Schlemmer (2020) desenvolvem uma reflexão teórica que distingue algumas das principais terminologias usadas hodiernamente. Os autores separam Ensino a Distância de Educação a Distância. A diferença precípua estaria no caráter conteudista do primeiro, centrado na transmissão e na comunicação unidirecional; enquanto a segunda, com proeminência no fim da década de 1990 e apoiando-se especialmente nas tecnologias digitais, orienta-se pela centralização na aprendizagem, proporcionando autonomia aos estudantes e lançando mão de recursos tecnológicos de comunicação e interação em rede que viabilizam o trabalho colaborativo e a interatividade. Com efeito, os termos “ensino” e “educação” denotam enfoques dessemelhantes, que têm implicações significativas. Só que o problema dessa análise diz respeito a atribuir toda a crítica ao processo educacional conteudista e unidirecional às limitações sobretudo tecnológicas das primeiras experiências de EaD que inviabilizavam uma aprendizagem em rede. Se assim o fosse, a educação, independentemente da modalidade, ainda não estaria enredada em diatribes voltados precisamente a sobrepujar seu caráter tradicionalista, que persiste malgrado as concepções filosóficas e epistemológicas, além das tecnologias e metodologias que instrumentalizam a prática docente e vislumbram caminhos possíveis para um ensino-aprendizagem mais alinhado às práticas humanistas, construtivistas, interacionistas, ativas etc. Os desenvolvimentos tecnológico e filosófico se apresentam como possibilidade, e nunca como determinação. Moreira e Schlemmer (2020) reconhecem que, ainda hoje, existem práticas de instituições que reproduzem o que chamam de Ensino a Distância, no qual recursos como os Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) se tornam repositórios, e o processo educacional se assenta na transmissão e na comunicação unidirecional.
Como já se discute na área, o problema do conteudismo não tem que ver tão somente com o emprego de alguma tecnologia ou com o uso - ou não - da internet. A educação bancária, tão criticada por Freire (1987), relaciona-se, para além doutras coisas, à estrutura social opressora que visa à manutenção do status quo. O desafio de superação de uma prática centrada nos conteúdos, com foco nas informações, unidirecional e transmissiva é algo que tanto concerne à EaD como à educação presencial. A transposição daquilo que, filosoficamente, é considerado equivocado na sala de aula física para outro modelo mediado pelas tecnologias não é exclusividade do que se chama de ER. Da mesma forma que o rompimento de uma educação conteudista não é possibilidade somente de um ensino-aprendizagem a distância. As práticas podem ser opressoras ou emancipatórias; arcaicas ou inovadoras, independentemente do espaço em que se realizem.
Para aprofundar na acepção do que, neste ensaio, estamos entendendo como aquilo que se convencionou chamar ER, recorremos ao texto de Hodges et al. (2020, Seção Emergency Remote Teaching):
In contrast to experiences that are planned from the beginning and designed to be online, emergency remote teaching (ERT) is a temporary shift of instructional delivery to an alternate delivery mode due to crisis circumstances. It involves the use of fully remote teaching solutions for instruction or education that would otherwise be delivered face-to-face or as blended or hybrid courses and that will return to that format once the crisis or emergency has abated. The primary objective in these circumstances is not to re-create a robust educational ecosystem but rather to provide temporary access to instruction and instructional supports in a manner that is quick to set up and is reliably available during an emergency or crisis. When we understand ERT in this manner, we can start to divorce it from "online learning”.
Apesar de “Ensino Remoto” não ser a única expressão usada para definir as respostas educacionais ao período de crise, ela tem sido muito recorrente (Saldanha, 2020), com especial atenção na literatura brasileira. Para Moreira e Schlemmer (2020), o termo “remoto” representa distanciamento geográfico. O ER constitui-se, então, como ensino ou aula em que há distância no espaço entre professores e alunos. Ele tem sido adotado “nos diferentes níveis de ensino, por instituições educacionais no mundo todo, em função das restrições impostas pela Covid-19, que impossibilita a presença física de estudantes e professores nos espaços geográficos das instituições educacionais” (Moreira & Schlemmer, 2020, p. 8). No entendimento de Saviani (2020, p. 5), o ER é posto como “substituto do ensino presencial excepcionalmente nesse período da pandemia em que a educação presencial se encontra interditada”. Basicamente, a ideia defendida é a de que, durante um período de crise, faz-se a transposição de processos educacionais não concebidos para serem integralmente a distância para o formato remoto, mediado por tecnologias. Não há o mesmo preparo ou planejamento que haveria na EaD ou na aprendizagem online (Moreira & Schlemmer, 2020; Hodges et al., 2020; Buniotti & Gomes, 2021; Castro & Queiroz, 2020; Saldanha, 2020; Alves, 2020). Como citam Hodges et al. (2020), existem outras experiências em países cujas situações políticas, sanitárias ou outras compeliram à interrupção das aulas presenciais que foram retomadas emergencialmente de maneira remota. Trata-se, pois, de um formato assumidamente temporário, uma vez que o processo educacional voltaria, em tese, às suas condições anteriores assim que terminada a crise.
Não obstante, numa perspectiva antropológica e sociológica, será mesmo que podemos falar em volta à “normalidade”? As experiências humanas, principalmente em períodos de crise, ressignificam práticas, visões de mundo, preconceitos, valores, símbolos etc. E nossa crítica ao texto de Hodges et al. (2020) atinge precisamente a cisão que os autores fazem ao definirem que as vivências durante o ER, supostamente distintas da EaD ou da aprendizagem online, devem servir especialmente ao preparo para as instituições reagirem de forma adequada a outras crises que porventura podem - e muito provavelmente devem - acontecer nas próximas décadas. Se tudo o que nós, educadores, pesquisadores, alunos e profissionais da educação no geral aprendemos durante o período pandêmico se resumiu ao preparo para a espera de novas crises, muito provavelmente foi porque não nos debruçamos de forma crítica perante problemas sobretudo estruturais da sociedade. Devemos, para além disso, refletir sobre nossas práticas do cotidiano; sobre o nosso fazer pedagógico. Ora, preocupa-nos, nessa tentativa de diferenciar ER e EaD, como se fossem coisas diametralmente distintas, o fato de que as experiências podem não promover reflexões, fazendo com que, retornada a “normalidade”, voltemos aos mesmos equívocos, circunscritos pelos mesmos problemas sociais de outrora. Não é possível, em face de uma crise tão grave e profunda, que tenhamos saído incólumes.
Em todo o caso, e sem perder de vista a proposta de definição conceitual desta parte do texto, concordamos que o teor emergencial das atividades exercidas durante a pandemia é importante. Como Moreira e Schlemmer (2020) evidenciam, a educação em tempos de crise inclui outros exemplos apoiados em tecnologias diversas, como o rádio, a TV e a correspondência. Ora, o que é fundamental, na forma como analisamos, é que a observação atenta do que se tem chamado de ER constata que há distanciamento geográfico e uso de recursos tecnológicos que medeiam a interação pedagógica. Com a internet, a distância no tempo também acontece, porque, ao menos no Brasil, várias instituições adotaram plataformas como Moodle e Classroom para interação assíncrona.
Evidentemente, o que se chama de ER fez com que profissionais, talvez sem experiência, preparo e infraestrutura, adequassem emergencialmente suas atividades presenciais ao modelo virtual. Tem-se, portanto, uma série de consequências que foram prejudiciais, uma vez que não houve, muitas vezes, a criação de todo um ecossistema pensado e desenvolvido especificamente para explorar as potencialidades da EaD. Mas isso é algo que só pode ser observado cientificamente após a materialização do uso em cada experiência. Nada impede que um professor, ante as exigências impostas pela pandemia, tenha recorrido à formação, utilizado recursos mais acessíveis e procurado alinhar suas atividades às características de uma educação mais ativa, online, participativa etc. Da mesma forma que um docente da EaD, atuando num curso reconhecido legalmente como modalidade, pode repetir o que se considera como problemas da sala de aula presencial. Uma educação, repetimos, pode ser boa ou ruim, opressora ou libertadora, conteudista ou interacionista.
Os ideais que conduzem as práticas não modificam o fato de que estamos sempre falando de educação. Até porque a orientação que define o processo educacional, levando-nos à reflexão filosófica, incorre em antinomias. Quer dizer, a ciência pode demonstrar as consequências, mas avaliar se estas estão ou não adequadas àquilo tido como bom ou ruim é processo de atribuição de juízo de valor, inextrincável se nos ativermos unicamente ao debate científico. Portanto, entendemos que, partindo daquilo que é realmente universal e necessário na definição do conceito, o ER nada mais é do que uma das configurações possíveis para tudo aquilo que chamamos de EaD, com o qualificativo “emergencial” que, quiçá, justificaria sua peculiaridade em razão de circunstâncias histórico-sociais bem específicas.
4. Problematizando a distinção entre educação a distância e ensino remoto
Partindo-nos do que precede, problematizamos a distinção que foi feita em tempos de pandemia. Nesta seção, recorremos a algumas das principais teses defendidas com vistas a apresentar antíteses que perfazem nosso ponto de vista, qual seja, que o ER nada mais é do que uma das configurações possíveis para tudo aquilo que chamamos de EaD. Bozkurt e Sharma (2020, como citado em Schwetz et al. 2021) afirmam que uma das diferenças fundamentais refere-se ao envolvimento dos alunos. No caso da EaD, os estudantes optam por essa modalidade, considerando-a como alternativa flexível para a educação presencial, enquanto no ER tem-se uma imposição devido às circunstâncias emergenciais. Essa característica como fator de distinção é, em nosso entendimento, bastante frágil, pois desconsidera toda a contribuição crítica da sociologia bourdieusiana.
Analisando o caso francês, Bourdieu (2014) mostra que a democratização da educação básica não extingue a autoeliminação, haja vista a desigualdade de acesso ao ensino superior a depender do estabelecimento escolar ou do estrato social de origem. Isso quer dizer que a ampliação do acesso à escola apenas adia aquele tipo de exclusão que se baseia num fator também subjetivo, qual seja, a violência simbólica introjetada que se transfigura numa sensação de incapacidade. O aluno oriundo de classes sociais mais baixas, relegado a um tipo bem específico de instituição escolar - no caso brasileiro, à educação pública por vezes precária -, vê-se em face de opções socialmente preestabelecidas que limitam suas escolhas, mas que ele interpreta como se fossem possibilidades correlacionadas às suas capacidades individuais. Embora faltem, neste ensaio, comprovações empíricas que sustentem nossas hipóteses, uma dedução lógica da teoria bourdieusiana nos permite conjecturar que a já conhecida disseminação de uma EaD de qualidade duvidosa presta seu papel na ordem das coisas ao contribuir para delimitar a distribuição dos estudantes que concluem o ensino médio a depender da instituição e classe social de origem2. Isto é, assumir uma definição que, como um dos predicados fundantes, afirma que a EaD representa oportunidade de escolha, ao contrário do ER, é basear-se numa visão acrítica da realidade, em que os alunos teriam total autonomia para escolherem seus cursos e suas universidades. Na prática, elementos como prestígio da profissão escolhida, concorrência entre as vagas, valor da mensalidade, tempo do curso, características do modelo educacional adotado etc. são os pilares que, frequentemente, impõem as opções - sempre limitadas - que um candidato possui ao cogitar o ingresso no ensino superior. Opções estas que, como dito, relacionam-se à classe social e, por conseguinte, à instituição escolar de origem.
Além disso, as qualidades que são tidas como inerentes à EaD, motivo pelo qual ela se distanciaria do que se chama de ER, têm forte relação com modelos como aqueles que o Sistema UAB e a UAb-Portugal contribuíram para instaurar. Existem, é claro, outros tantos fatores que influem na construção de uma visão bem específica de cursos a distância. Em todo o caso, afirmamos que isso gera uma interpretação equivocada que assume a modalidade, enquanto organização do processo educacional e uso de tecnologias, como carregada de um conteúdo valorativo intrínseco, como se fosse, por si mesma e sem a ação humana, boa ou ruim. Queremos dizer com isso que a educação, presencial ou a distância, pode envolver maior ou menor planejamento; contar com infraestrutura robusta ou precária; orientar-se pelo rompimento ou pela manutenção do status quo; servir aos ideais dos dominantes ou dos dominados; ser democrática ou excludente; contar com pessoal qualificado ou sem formação adequada; etc. Tudo isso tem que ver com a sua materialização, saindo-se do plano conceitual a fim de culminar numa proposta histórica e socialmente circunscrita. Não estamos, obviamente, advogando uma neutralidade que invalide a filosofia ou quaisquer que sejam as concepções que sustentam as práticas educacionais. Todavia, o fato de possuir variadas intenções que entreveem e balizam objetivos a serem atingidos não desfigura aquilo que, nestas páginas, estamos chamando de educação ou, especificamente, de EaD. Esta apreendida como conceito, com as especificidades sui generis que vinculam, necessária e universalmente, predicado e objeto sem o que advém unicamente da empiria.
Que fique clara a nossa defesa, nestas páginas, de uma apreensão mais conceitual e em oposição às finalidades últimas que se manifestam empiricamente. O que não quer dizer, certamente, que estejamos desconsiderando a importância das intenções políticas, éticas, filosóficas e outras que subjazem à prática educacional. Nosso argumento, a bem dizer, direciona-se a demonstrar que assumir a EaD como intrinsecamente estruturada, com pessoal capacitado, com infraestrutura adequada, com ideais democráticos, dentre outras qualidades é pretender um juízo apriorístico que, em verdade, não concerne à definição conceitual tomada isoladamente sem a ação ou a relação com o humano e com a sociedade; ou seja, sem a materialização no processo de agência, posto que se trata de um juízo que só é possível a posteriori. Não ignoramos que, no desenvolvimento histórico, há uma confluência entre meios e fins. Também não estamos afirmando que inexista, na agência dos sujeitos, uma associação bastante estreita entre conceito de EaD e sua efetiva materialização. Pois se não houvesse esse equívoco conceitual este ensaio seria irrelevante.
Porém, acreditamos que é fundamental resgatar uma definição teórico-conceitual mais rigorosa. Isso tende a evitar confusões recorrentes, como tomar a EaD como inerentemente boa ou ruim, democrática ou opressora. Também pode auxiliar na reflexão aprofundada e crítica entre os profissionais e sujeitos que vivenciaram experiências no que se chama de ER, com vistas a romper paradigmas, diminuir preconceitos e refletir sobre a importância, o papel, os limites e os desafios que perfilam as propostas de cursos a distância no Brasil e em Portugal, ao longo especialmente das últimas décadas. Essa visão mais rigorosa e, em certo sentido, radical do conceito, pode ser justificada pela teoria da curvatura da vara. Ao citar Lênin, Saviani (1989, p. 48-49) afirma que “quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e se você quiser endireitá-la, não basta colocá-la na posição correta. É preciso curvá-la para o lado oposto”. Retomamos uma definição teórico-conceitual mais abstrata e “pura”, retirando, tanto quanto possível, as interferências valorativas no sentido de evidenciar que as distinções entre as realidades feitas durante o período pandêmico podem ser contraproducentes. Ensinar de maneira remota é, em nossa percepção, uma forma de fazer EaD. O fundamento que define o conceito é sempre o mesmo: sujeitos separados no tempo e/ou no espaço, conectados por tecnologias que viabilizam a interação pedagógica.
5. O problema da inversão entre meios e fins
A partir da definição que, como compreendemos, contém o que é universal e necessário na EaD, percebemos a modalidade, enquanto organização do processo educacional, muito mais como meio do que como finalidade em si mesma - o fim de um processo educacional formal seria a concretização de objetivos pedagógicos, e o modo de se chegar a isso pode variar. Decerto, as características inerentes tornam-na mais propícia a determinado uso - o que não desconsideramos em nenhuma hipótese. Entretanto, nada é capaz de garantir, a priori, que a EaD, como organização do processo e uso de técnica e tecnologia, leve a resultados invariáveis e predefinidos, ou seja, leve necessariamente a uma educação boa ou ruim, independentemente da conexão com a realidade histórico-social e do próprio juízo de valor que submete a experiência à valoração. No intuito de sustentar essa proposição, recorremos às discussões weberianas. De acordo com Sell (2011), toda ação humana, na sociologia de Weber, pressupõe alguma técnica. Esta sendo entendida como a soma dos meios empregados na consecução de uma atividade qualquer.
A técnica, em Weber, diz respeito aos meios empregados na ação socialmente orientada, opondo-se às finalidades que determinam o seu uso. O que a define é, portanto, sua especificidade enquanto “meio”. Só que o artefato deve ser cientificamente analisado mediante o sentido que o agir proporciona à sua produção e utilização (Weber, 2015). Percebe-se, assim sendo, uma relação importante entre meio e fim. Porque este torna aquele compreensível ao pesquisador, que busca, no sentido subjetivo da ação socialmente orientada, apreender o próprio sentido da técnica para o agente. Entendemos, com isso, que o artefato tecnológico, em si mesmo, não produz efeito empiricamente observável quando tomado isoladamente sem qualquer relação com o ser humano numa situação histórica e socialmente circunscrita. Logo, a técnica é também - mas não somente isso - a soma dos meios empregados para que se atinja uma determinada finalidade. Mas ela não age sozinha, sem interferência ou relação com o humano. Essa análise se estende à EaD. Enquanto organização do processo educacional ela pode atender a múltiplos objetivos. Tomada única e exclusivamente sob um olhar conceitual, a EaD não produz esses efeitos que viabilizam a compreensão científica maior capazes de gerar elementos para atribuição de juízo de valor. Diferenciá-la do que se chama de ER, alicerçando-se na materialização do uso, a saber, na empiria, é, precisamente, ir além do conceito em sua abstração e analisar casos particulares, que não são invariáveis. Como dissemos, se se deduz dessas manifestações empíricas aquilo que é necessário e universal tanto ao ER quanto à EaD, enquanto conceitos puros, resta: separação no tempo e/ou no espaço entre os sujeitos.
Em que pesem essas considerações, existe, nessa análise, um aspecto complexo que precisa ser destacado. Se a técnica, para Weber (2015), concerne à soma dos meios usados na ação humana, não quer dizer que meios e fins estejam invariavelmente separados na materialização do agir. Sell (2011) afirma que, num sentido amplo, a racionalização técnica também é compreendida por Weber como contínuo processo de tecnificação da vida social. A modernidade é, então, marcada por um incessante processo de racionalização das condutas, em que se exclui, por exemplo, o caráter mais humano e imprevisível das relações em sociedade. Exemplo cabal disso é a organização técnica do trabalho, que divide as atividades e determina as funções dos trabalhadores de maneira bastante rígida e cientificamente orientada, visando à persecução de lucro e à diminuição dos gastos. Na escola essa racionalidade também se materializa muitas vezes numa lógica instrumental. Essa constante tecnificação da vida subverte a ordem social e tem, com corolário, uma espécie de inversão entre meios e fins. Na análise sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber (2013) nos mostra que, inicialmente, a conduta religiosa determinava um modo de viver ascético, em que a busca pelo sucesso no trabalho intramundano se alinhava à teologia da predestinação. O protestante, implicado na empresa capitalista moderna, via em seu sucesso a maior prova de que era um predestinado. Entretanto, “no processo de deslocamento das motivações religiosas, o trabalho ordenado deixou de ser um instrumento a serviço de metas religiosas para converter-se em fim imanente, que existe e subsiste por si mesmo” (Sell, 2011, p. 579). Torna-se, portanto, uma gaiola ou jaula de ferro, que pesa sobre todos aqueles que nascem dentro da ordem econômica capitalista orientada pela racionalização sobretudo técnica da vida.
Tal fenômeno é, por excelência, social e histórico, estando fortemente presente no contexto da EaD. Inicialmente vista como meio para atingir finalidades diversas, ela vai se coagulando dentro de um modelo mais específico e passa a inverter a ordem das coisas. Ao cristalizar-se devido, também, à interpretação que os sujeitos dela fazem, a EaD ganha vida própria e um modo de funcionamento particular que coloca os indivíduos a seu serviço, e não o contrário. São as pessoas que devem se ajustar às suas especificidades a fim de satisfazê-las. Existem condições fixas e predeterminadas que definem a modalidade dentro de um modo de organização que tem um invólucro supostamente universal e necessário, uma vez que, se a experiência não se enquadra nessa forma, torna-se uma variante como o que se tem chamado de ER. Se, em vez disso, os sujeitos acomodam-se a tais exigências, então podemos falar, de fato, em EaD. O principal problema, para nós, é a confusão que se estabelece na aparente vinculação a priori de certos predicados ao objeto que, na realidade, somente se unem a ele a posteriori - confundindo, em termos kantianos, juízo sintético e juízo analítico.
Outrora, a prevalência de um agir racionalmente orientado sujeitava a técnica à persecução de fins definidos pelo agente. Tendo em vista que a modernidade prima pela “tecnificação”, em que a seleção dos meios mais adequados para atingir resultados previamente definidos no menor prazo e com máxima eficiência torna-se um imperativo, são os sujeitos que ficam à mercê da técnica. Como dissemos, a “tecnificação” da vida social passa a definir a lógica de funcionamento do mundo moderno (Sell, 2011). Noutras palavras, a tecnologia prevalece sobre o indivíduo, porque este se vê condicionado à racionalização técnica da existência. Em Marx & Engels (2007), isso poderia ser compreendido na relação entre humano-máquina. O capitalismo aliena o trabalhador, haja vista a dependência da maquinaria que o subjuga. A própria condição humana e, designadamente, o trabalho se tornam reificados. Tornam-se coisas, quer dizer, objetos esvaziados de seu caráter histórico.
6. Educação a distância e ensino remoto: faces da mesma moeda
O apogeu do nosso argumento chega à clara visualização de que o ER e a EaD têm uma oposição pelo vértice: são aparentemente opostos, mas unidos pelo mesmo fundamento; ademais, numa análise pormenorizada constatamos que possuem as mesmas condições universais e necessárias. Nas vivências durante o período pandêmico, como afirmam Schwetz et al. (2021), convencionou-se propor diferenciações devido a aspectos como planejamento, infraestrutura, capacitação de pessoal etc. No entanto, os autores, discutindo sobre o caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirmam que, entre a paralisação das aulas presenciais e a retomada de forma remota, teve-se um hiato de 4 meses destinado especificamente ao preparo, que incluiu formação docente, adequação de propostas pedagógicas, elaboração de materiais e conteúdos, dentre outras coisas. Outro relato pode ser obtido a partir das experiências da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), cujo “processo de organização institucional para a adequação das aulas ao modelo remoto durou cerca de um semestre” (Pereira et al., 2022, p. 71939). No caso da Universidade Federal de Lavras (UFLA), o período de organização e planejamento foi menor devido à abertura da Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) à EaD, bem como às experiências anteriores da Instituição na modalidade:
o plano de retomada das atividades de forma remota não tardou a ser pensado [...] este período foi destinado ainda para realizar formações junto aos docentes, para orientar sobre os usos dos meios digitais e para a adaptação dos materiais didáticos, bem como junto aos estudantes, buscar apresentar estratégias de organização dos tempos e espaços e de estudos individuais (Silva et al., 2021, p. 414).
Depreende-se, da citação acima, que, embora o período de preparação tenha sido curto quando comparado a outras instituições, o planejamento para o ER demandou formação, adaptação de materiais didáticos, organização de estratégias etc. Certamente, tais processos não contaram com o tempo ideal, dada a urgência que o cenário imprimia à época. No entanto, não se pode falar que houve um total despreparo, nem tampouco é possível dizer que o ER, no contexto da UFLA, se caracterizou essencialmente pela falta de planejamento e organização; características que, como tem se afirmado, seriam aparentemente exclusivas da EaD. O mesmo argumento é válido para as outras instituições supramencionadas, bem como para outras universidades que, durante a paralisação das aulas presenciais até a retomada no formato do ER, dedicaram alguns meses para discussão/planejamento e/ou empreenderam ações de formação, desenvolvimento de materiais didáticos, criação de canais de comunicação, estruturação de salas virtuais, dentre outros (Rech et al., 2021; Santos et al., 2023; Stringhini et al., 2023).
Em se tratando da experiência portuguesa, certamente houve um distanciamento, inclusive advogado pelos docentes e pesquisadores da área, entre o ER e as propostas levadas a cabo pela UAb-Portugal. Entretanto, a pesquisa de Veloso (2022) demonstra que as vivências no período pandêmico foram importantes para diminuir o preconceito com relação à EaD no País. Enalteceu-se o trabalho da UAb-Portugal desenvolvido com seriedade e qualidade há décadas, uma vez que muitos profissionais puderam comprovar que ofertar boas propostas educacionais a distância não é simples e demanda investimento de tempo, capital humano, recursos tecnológicos etc. - não porque se trata especificamente de EaD, mas porque a educação formal a distância, se se pretende de qualidade, necessita de um planejamento didático e um modelo pedagógico assim como a educação presencial.
Pois bem, em face do que precede, qual seria esse elemento que, detalhadamente, determina a experiência como EaD ou ER? Poderíamos falar em algum número específico de horas de formação, de recursos humanos, de financiamento disponível etc. para que as mudanças quantitativas no ER alcancem um salto qualitativo para se tornarem EaD? Será mesmo que o que define o ER é o fato de ter sido ofertado também na educação básica enquanto a EaD tem predileção pelo ensino superior? Será que toda EaD é planejada, ou que essa modalidade, diferentemente de outras, demanda planejamento e organização? Parece-nos que essas distinções todas, nos moldes como têm sido feitas, são em demasia imprecisas. Tem-se, a bem da verdade, faces da mesma moeda. Ou, noutros termos, o ER nada mais é do que uma forma de se fazer EaD. E o caráter emergencial, ainda que sirva como fator de distinção para demarcar o período histórico-social da pandemia, não nos parece suficiente para criar uma cisão, como tem sido feito, que rompa a conexão fundamental que existe entre as coisas.
É claro que, por serem ações adotadas por vezes sem o devido preparo, tem-se consequências diversas que podem destoar substancialmente doutras práticas de EaD feitas com seriedade, preparo, pessoal capacitado e infraestrutura adequada. Isso, porém, não altera a realidade de que sujeitos estão dispersos no tempo e/ou no espaço, conectando-se por meio de tecnologias - sobretudo digitais - para garantir o trabalho pedagógico. A qualidade das propostas, assim como as críticas que a elas se direcionam, resultam de análises empíricas, posteriormente à materialização do uso - ora, não existem propostas de EaD regulamentadas que também possam ser consideradas aligeiradas em comparação com outras tidas como de maior qualidade? Defendemos que tudo o que os profissionais experienciaram em tempos de pandemia é, na verdade, uma forma de EaD - mesmo que possamos falar de uma EaD emergencial. E é mister que não se perca isso de vista, tanto para superar preconceitos, como para melhor compreender a possibilidade de uso de tecnologias e novas formas de organização do processo educacional que podem emancipar, mas também oprimir e precarizar.
Aliás, reforçamos que, conquanto o que se chama de ER se constitua, de fato, como configuração possível para a EaD, devido às características conceituais que o determinam, ele não é, de acordo com a legislação pertinente, uma modalidade regulamentada pela atual LDB - ou pelo RJEaD -, e nisso concordamos com Saviani (2020). Houve um esforço, mais especificamente em normativas, de diferenciar, no ensino superior, as atividades ditas não presenciais dos cursos a distância que compreendem especificidades regulatórias e didático-pedagógicas (Saldanha, 2020). Entra aí outro aspecto fundamental na discussão: as tentativas de distinguir as coisas não apenas envolvem preocupação com a qualidade, mas buscam contornar, por exemplo, questões trabalhistas e legais.
Também é preciso considerar que muitas das propostas de ER foram direcionadas à educação básica, ou seja, para crianças e adolescentes. A EaD, ao contrário, tem-se expandido, em propostas educacionais formais, mormente no ensino superior - graduação e pós-graduação. Ora, conquanto essa característica seja importante, não acreditamos que ela, por si só, seja capaz de separar as coisas. Isso porque não é impossível propor ou levar a cabo experiências de EaD para a educação básica - existem, inclusive, investidas de setores privados que caminham nesse sentido, como é o caso do Novo Ensino Médio no Brasil. O fato de a EaD não ser adequada para sujeitos que ainda não desenvolveram a autonomia pedagógica necessária, ou que não podem prescindir do ambiente de socialização formatado pela escola, não se trata, a nosso ver, de uma discussão meramente conceitual. Mas sim de um debate científico e filosófico amplo que, aliás, pode se beneficiar do que estamos propondo. Evidenciar que existem experiências de EaD boas e ruins nos ajuda a rechaçar interesses escusos que associam a modalidade a distância invariavelmente a algo planejado, adequado, bem feito e outros predicados que, na verdade, só podem existir a posteriori.
Por fim, concordamos que há uma diferença entre aquela EaD, conceitualmente entendida, e outra enquanto modalidade ou forma de organização regulamentada. De qualquer modo, a regulamentação, a equalização entre meios e fins, o planejamento, o uso de técnicas instrucionais adequadas às condições materiais etc. são características atreladas mais precisamente à educação formal burocrática. A educação presencial e a EaD, quando concebidas enquanto educação formal, envolvem intencionalidade, demandando planejamento e organização. Noutros termos, todo processo educacional que se direciona à formação institucionalizada vai exigir - ao menos idealmente - planejamento didático. Não é a racionalidade técnica que separa a EaD da educação presencial, nem tampouco a EaD do ER. Até porque existem experiências educacionais a distância que não são institucionalizadas, nem por isso deixam de ser educação. Outrossim, a educação não se resume à educação escolar ou universitária. A mudança radical no debate da área, que implica chegar efetivamente às raízes, é imprescindível para superar equívocos e construir visões maduras e críticas da realidade. É isso que defendemos nestas páginas.
7. Considerações finais
Em razão das acaloradas discussões sobre as experiências vividas durante a pandemia, acreditamos ser de fundamental importância retomar o debate fundamentado teórica e conceitualmente. Entendemos que a separação no tempo e/ou no espaço entre os sujeitos do ensino-aprendizagem e o uso de tecnologias que viabilizam a mediação pedagógica são as características basilares que fazem com que o ER seja uma configuração possível para tudo aquilo que chamamos de EaD. O caráter emergencial tem sua importância, porque ele precisa a situação histórico-social da pandemia. Mas apenas esse elemento não é, para nós, suficiente para defender uma cisão entre EaD e ER, como foi feito na pandemia. Sob esse prisma, a materialização do uso é, acreditamos, o elemento central que não pode ser retirado do debate acadêmico. Deve-se evitar imbuir os conceitos de predicados tidos como universais e necessários quando estes são, ao contrário, empíricos e, por isso mesmo, contingenciais. Visões idealizadas tendem a ser contraproducentes, gerando problemas como a inversão entre meios e fins que discutimos no texto.
Afinal, consideramos que, passada a pandemia e retomadas as aulas presenciais, tornou-se necessária uma ampla e profunda reflexão sobre o que foi experienciado. Quais problemas foram escancarados e precisam de atenção urgente? Que ferramentas tiveram efeitos produtivos e podem ser adotadas nas escolas depois do retorno à “normalidade”? Quais mudanças a educação precisa considerar nos próximos anos, tendo em vista o contexto social da contemporaneidade? Como a EaD pode contribuir para pensarmos numa educação mais híbrida, que sobrepuja dualidades? Que limitações existem no uso das tecnologias digitais e em que contextos elas devem ser rechaçadas? Que tipo de educação queremos para o futuro? Que experiências vivenciadas por professores que nunca haviam atuado na EaD servem, agora, para estabelecermos outros olhares para aqueles sujeitos que já enfrentam tantas dificuldades nessa modalidade - incluindo preconceito? Enfim, são questões complexas e que estão para além destas páginas.