1. Introdução
A proposta que se apresenta neste trabalho resultou do contato com a abordagem do professor Newton Duarte (2019) sobre a catarse, um processo que promove:
Um salto qualitativo na ampliação e no enriquecimento das relações entre a subjetividade individual e a objetividade sociocultural. Trata-se de uma transformação, ao mesmo tempo, intelectual, emocional, educacional, política e ética, que modifica a visão de mundo do indivíduo e suas relações com sua própria vida, com a sociedade e com o gênero humano. (p. 3)
Pelas palavras de Duarte (2019), observa-se que a catarse pode promover uma transformação no indivíduo em vários aspectos, dando-lhe condições para intervir na realidade, reconhecendo-se como parte dela.
Considerando os pressupostos da pedagogia histórico-crítica, “a catarse é o momento culminante do processo educativo” (Duarte, 2019, p. 2; Saviani, 1999, pp. 81-82). Assim, o modelo de ensino dessa pedagogia segue o seguinte esquema: observação da prática social; problematização dessa prática; instrumentalização dos estudantes com os conhecimentos mais elaborados produzidos pela sociedade; catarse. Na última etapa, o discente retorna ao ponto de início, mas a sua compreensão da prática social terá dado um salto qualitativo, visto “que o modo de nos situarmos em seu interior se alterou qualitativamente pela ação da mediação pedagógica” (Saviani, 1999, p. 82).
Por conseguinte, como elementos dessa prática social, os estudantes passam a agir sobre ela, transformando-a e elevando-a qualitativamente (Saviani, 1999, p. 82).
O indivíduo a que este artigo se volta é o docente, e surge uma questão: como pode o docente conduzir o aluno a processos catárticos, se ele próprio não os experimenta?
Assim, para promover o processo catártico no docente (não apenas da área de Letras), a Literatura tem um papel primordial, pela relação entre a obra, o contexto, o autor e o receptor, que envolve a sua produção, considerando que “a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio” (Candido, 2000, p. 20). O artista, no caso, é o escritor, na abordagem sobre literatura e a vida social, proposta por Antonio Candido, que destaca “o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas” (Candido, 2000, p. 22). A percepção da inter-relação que permeia os elementos contexto, obra, autor e público, como este autor apresenta, é fundamental para uma análise da obra literária que contribua para a atribuição de sentido ao todo do objeto de estudo e para a sua aplicabilidade na realidade do sujeito.
É nesse ponto que se destaca a importância da Literatura na formação docente e se reforça o pensamento de Mazzeu (1998): para que o professor possa conduzir o processo de ensino-aprendizagem na escola, na formação de um cidadão crítico e preparado para transformar a realidade com a qual não concorda, é preciso que ele próprio - o professor - tenha passado por processos catárticos, como descrito por Duarte (2019), preparando-o para transformar, por sua vez, o cenário social, político, econômico e cultural onde está inserido.
Na sequência, fundamenta-se o papel da Literatura na preparação do docente e a sua respectiva participação na concretização da escola como o local ideal para a educação escolar. Até ao momento, em pleno século XXI, a escola segue implementando o “saber compromissado com as instituições oficiais do sistema capitalista”, empenhando-se na manutenção do modelo capitalista de exploração e dificultando que os indivíduos adotem atitudes “revolucionárias” que ameacem esse status quo (Costa, 2017, pp. 944-945).
A “tarefa a que se propõe a pedagogia histórico-crítica em relação à educação escolar” (Saviani, 2013, p. 8) poderia se realizar na catarse descrita no parágrafo anterior, porque supõe:
a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações, bem como as tendências atuais de transformação; b) conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares; c) provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produção, bem como as tendências de sua transformação (Saviani, 2013, pp. 8-9)
A obra literária, se utilizada na preparação do docente da forma adequada, empregando métodos que não se restringem aos aspectos linguísticos do texto, pode fornecer o corpus, o embasamento, as ferramentas, os instrumentos necessários para que a tarefa da qual fala Saviani seja efetivada, especialmente quanto ao item C. O que se pretende atingir no processo educacional não é apenas a apropriação do conhecimento mais elaborado produzido pela humanidade, mas sim “o quê” se vai fazer com ele.
Numa conferência proferida no dia 30 de novembro de 2006 no anfiteatro do Collège de France, intitulada Literatura para quê?, Antoine Compagnon (2009) discorre sobre o “poder da literatura” em algumas “explicações” (p. 30).
Na primeira, recorda aquela registrada por Aristóteles, na qual se vinca que, através da imitação, o ser humano adquire conhecimento. Então, a literatura - enquanto ficção, representação - “deleita e instrui”, “detém um poder moral” (Compagnon, 2009, p. 30), ou seja, enquanto o leitor faz a recepção do texto, entra em contato com valores, ideias e outros elementos que o autor imprime na sua criação, podendo concordar com eles ou rejeitar o que lê. Numa relação dialógica, a obra literária pode “inspirar” no leitor “uma conduta [ou pensamento] em conformidade” (Compagnon, 2009, p. 33) com aquela inscrita nas suas linhas.
Na segunda, destaca que “a literatura é de oposição: ela tem o poder de contestar a submissão ao poder” (Compagnon, 2009, p. 34), o que contribui para a desalienação e para a libertação do oprimido.
Com a explicação seguinte, Compagnon (2009) valoriza a literatura como uma linguagem que tem o poder “de desvelar uma verdade que não seja transcendente mas latente, potencialmente presente, escondida fora da consciência, imanente, singular e, até aí, inexprimível”, ou seja, que ultrapassa as “limitações da língua” (pp. 38-39).
Se o docente tem consciência desses “poderes da literatura”, como escreve Compagnon (2009, p. 40), e os aplica a si mesmo, desde o período em que está na condição de discente na universidade, poderá experimentar o processo catártico com os conhecimentos que vai adquirindo, preparando-se, por sua vez, para conduzir os seus alunos por essa experiência.
Destacamos as palavras de Compagnon, citadas a seguir, para que se possa perceber como, através da literatura, se pode levar um indivíduo à reflexão sobre problemáticas existentes na sociedade. Muitas vezes, estas adversidades são provocadas por esse sujeito, ou afetam-no, tais como o desrespeito à diversidade, a falta de alteridade, os preconceitos (de cor, de crença religiosa, de condição social, de características físicas, entre outros), os comportamentos de violência física, e tantas outras.
A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio - alguns dirão até mesmo o único - de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos (Compagnon, 2009, p. 47)
Para exemplificar, imagine-se uma aula na qual se problematiza a questão do racismo a partir das ideias defendidas pelo determinismo e tendo como base o texto de Os sertões, de Euclides da Cunha, ou, paralelamente, a manutenção do racismo e dos preconceitos de credo e posição social em obras como o Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus, e O Quinze, de Rachel de Queiroz. Quantos discentes não praticam racismo, e quantos não são vítimas dele? Tendo como ponto de partida a presença dessas práticas discriminatórias na sociedade, problematizá-las em sala de aula possibilita aos estudantes o acesso ao conhecimento elaborado produzido pela humanidade. Ao retornar ao ponto de partida, a forma como esse discente perceberá e tratará tais situações se dará num nível mais elevado, podendo, inclusive, intervir para transformar tal realidade. Para isso, o educando experimentou a catarse, visto que identificou e associou o que via com o que aprendeu, tendo, posteriormente, condições para refletir e intervir no que presenciou (ou vivencia). Trata-se, portanto, de uma experiência viabilizada através da literatura: “A literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os discursos filosófico, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às emoções e à empatia” e adentra “regiões da experiência que os outros discursos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes” (Compagnon, 2009, p. 50).
Não restringimos o alcance dessa experiência libertadora proporcionada pela literatura, pois amplia a visão de mundo dos indivíduos e possibilita outros pontos de vista e formas de “ver” a realidade, através da ficção. Neste sentido, outros gêneros, como a poesia, ou a letra de uma música, por exemplo, poderiam conduzir o discente ao processo catártico. Com efeito, propor reflexões sobre a ditadura militar no Brasil a partir das letras das músicas de Chico Buarque, como Cálice ou Roda Viva, ilustra a nossa afirmativa.
No final do período da ditadura militar, Antonio Candido foi convidado a discursar sobre Direitos Humanos e Literatura, para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, diante de um público que não era especialista no assunto. O estudioso utilizou um texto palatável, no qual defendeu o direito à Literatura, sem deixar de transitar por temas como a redemocratização e os Direitos Humanos, e comentou, também, de forma crítica, o comportamento irracional do ser humano, a contradição entre o avanço tecnológico e o aumento da pobreza, lembrando, ainda, a desconsideração da igualdade de direitos entre as classes. Desta forma, conduziu o pensamento do público para a defesa do direito de todos aos bens incompressíveis, entre eles, a Literatura, a Arte e a Cultura (Candido, 2011).
Candido descreve como bárbaro o comportamento da sociedade dita “civilizada”, que tem um posicionamento discriminatório diante do pobre e do negro, mas que, temendo atitudes que rompam com o modelo instituído - ou, até, um sentimento de débito histórico para com esses sujeitos - vem tentando adotar atitudes que corrijam o desrespeito aos direitos humanos fundamentais e liberdades que eram consideradas apenas para alguns indivíduos. Isto exigiria “um grande esforço de educação e autoeducação” para que se passasse a perceber que os direitos devem ser iguais para todos, visto que “inclusive a educação pode ser instrumento para convencer as pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não o é para outra” (Candido, 2011, pp. 174-175).
Segundo Candido (2011), todos devem ter assegurado o direito aos “bens incompressíveis”, ou seja, aqueles que são fundamentais para que o ser humano não sofra uma “desorganização pessoal” ou uma “frustração mutiladora” (p. 176). Nesse seguimento, incluem-se “o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura”? Como, para alguns indivíduos, os dois últimos são dispensáveis, poderiam questionar: a literatura e a arte fazem falta? Nos currículos escolares e universitários, é reconhecida a importância que algumas disciplinas e cursos têm em relação a outros. No caso da Literatura, destaca-se a questão proposta por Dalvi (2018):
A quem ou que interessa que a Literatura na escola seja reduzida a um simples momento de deleite, de lazer, de fruição gratuita - ou, noutra feita, ao reino dos equívocos e delírios individuais não como ponto de partida, mas como ponto de chegada? (p. 30)
Qual a razão de considerar determinadas disciplinas como menores na formação do indivíduo?
Candido (2011) define a literatura como:
Todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (pp. 176-177)
Este conceito leva à conclusão de que, em variados períodos da história, a produção literária existiu, em todas as classes sociais. Candido continua reforçando a ideia de que todos os indivíduos a procuraram para satisfazer as suas necessidades de acessar o “universo fabulado”, mantendo seu “equilíbrio psíquico” e contribuindo com o “equilíbrio social”, que não existiria sem a literatura (Candido, 2011, pp. 176-177).
Com efeito, é irrefutável que todos os sujeitos procuram a literatura, seja na “anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco [...] a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance” (Candido, 2011, p. 177), sendo estes apenas alguns exemplos da presença da literatura na vida do ser humano ao longo da sua história.
2. Inversão de papéis: O docente enquanto discente
Ao concluir o ensino médio, o jovem chega à etapa da escolha da futura carreira, preparando-se (ou assim deveria sê-lo) para exercê-la, a princípio, por um curso de graduação. Destaca-se a este respeito que chegam a esse estágio formativo sujeitos de faixas etárias diversas e de classes sociais variadas, oriundos de diferentes escolas de ensino básico, com bagagens de conhecimentos e de experiências distintas e, ainda, alguns procurando uma nova graduação, que complemente a primeira ou ofereça novas oportunidades para o mercado de trabalho. Partindo desse princípio, antes de ser docente, o sujeito é aluno, seja em cursos presenciais, semipresenciais ou no formato EaD (Educação a Distância), e, sob essa perspectiva, é, também, uma das personagens do processo educacional. Geralmente, quando se fala em aluno, a referência imediata são os estudantes das escolas de ensino básico, mas, no caso deste trabalho, o aluno é o professor em formação.
A educação pressupõe a produção e a apropriação do saber, numa relação dialógica, em que o ato de ministrar a aula faz parte de um círculo que é retroalimentado pelas reflexões a partir da aula realizada e onde alunos e professores desempenham um papel igualmente significativo. Ainda a salientar, o saber produzido deve encontrar aplicabilidade na realidade, considerando-se que não se trata de um processo externo e isolado dela (Saviani, 2013).
Neste sentido, a escola é o espaço ideal para que se efetue a “mediação do saber espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular à cultura erudita”, ambos contribuindo para que as situações vivenciadas pelo sujeito sejam enfrentadas e superadas (Della Fonte & Marsiglia, 2016, p. 22). À vista disso, através de estudos que promovam o debate, a pluralidade de interpretações, os diálogos e a análise crítica das obras clássicas literárias, é possível enriquecer e potencializar os momentos formativos que permeiam os espaços escolares. Assim, a abordagem contextualizada, a relação entre a obra, o autor e o meio, a atribuição de sentido e a identificação do estudante como parte da realidade que o circunda - proporcionada por esse tipo de utilização dos estudos com clássicos da literatura - propiciam uma nova visão de mundo e do próprio indivíduo.
Podem propor-se duas questões: o que é considerado um clássico literário, e como um clássico pode contribuir para o desenvolvimento do sujeito que o estuda?
Por mais que seja atravessada pela sua datação histórica e localização espacial, a obra clássica permite diálogos entre as diferentes obras ao longo da história. Assim, ela supera a sua temporalidade e seu espaço (sem deixar de trazer junto suas marcas históricas e locais) e carrega junto a si as leituras realizadas por cada geração de leitores. No contexto desse diálogo, quanto mais se lê um clássico, mais ele apresenta algo de inédito e inesperado. É clássico aquilo que passou a ter lugar de impacto na vida de uma sociedade ou de uma geração inteira, coloca em diálogo o nosso tempo (presente) e o tempo passado (tempo de criação da obra clássica), impactando os sujeitos, a pessoa e as gerações. Dessa maneira, o contato com o clássico aguça o nosso sentido de humanidade, pois nos permite ter referências da constituição das individualidades e da coletividade; enfim, é clássico aquilo que é mais essencial para a liberdade do ser humano. (Della Fonte & Marsiglia, 2016, p. 24)
Della Fonte e Marsiglia (2016) respondem, de forma esclarecedora, pontuando que o clássico ultrapassa as fronteiras temporais, convida à reflexão sobre questões que já ocorreram e, como impactaram as gerações passadas, e servem de base para problematizar e propor soluções para situações presentes; o clássico humaniza, ao relacionar o individual ao coletivo, ao promover a liberdade de escolha, pois possibilita o acesso às obras mais variadas e disponibiliza fontes para a seleção dos saberes necessários “para a compreensão do mundo e do sujeito contemporâneo” (p. 25). Deste modo, podem fornecer-se subsídios para que o docente selecione, para trabalhar com seus alunos, “conteúdos que contenham os melhores elementos, que sejam os mais representativos do patrimônio humano-genérico” (Della Fonte & Marsiglia, 2016, p. 25).
Clássica é a obra que permanece no decorrer dos tempos e que é referência quando se pretende abordar determinada temática, oferecendo elementos para reflexões e discussões. É, portanto, uma fonte de produção de conhecimento, referendada por indivíduos competentes nos respectivos campos de estudo. Poderíamos citar, a título de exemplo, clássicos literários para abordagens sobre o sertão nordestino brasileiro e as suas problemáticas, tais como Os sertões, de Euclides da Cunha, e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, mas também O Quinze, de Rachel de Queiroz, e A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Nessa mesma temática, no conceito de clássico, insere-se o estudo sociológico Nordeste, de Gilberto Freyre, ou o estudo científico de Josué de Castro, Geografia da fome, que inclui a primeira e as últimas três obras entre as referências que utiliza. Todas essas obras ultrapassam as barreiras do tempo e ainda têm muito a dizer.
O estudo fundamentado em obras clássicas pode ser uma forma de lidar com a igualdade diante das diferenças - de experiências, de formação, de conhecimento e de culturas que se reúnem numa sala de aula de um curso de graduação -, rompendo, inclusive, com o paradigma de que “clássico” está relacionado com a “elite”.
Tomando por base as diferenças elencadas acima, poderia surgir um questionamento sobre o êxito no trabalho com um clássico diante de uma sala de aula com sujeitos em diferentes condições de recepção do conteúdo a ser desenvolvido. No entanto, Della Fonte e Marsiglia (2016) afirmam a necessidade de promover o desenvolvimento humano, oferecendo acesso a saberes diversos, especialmente “conteúdos clássicos, entre os quais, a literatura da mais alta qualidade” (pp. 28-32), garantindo “a cada ser humano aquilo que a humanidade já conquistou, a apropriação dos elementos culturais mais avançados (conteúdos)” (pp. 28-32), permitindo que o indivíduo assuma uma postura ativa “na história humana”, transformando-a, “porque compreende sua unidade na diversidade” (pp. 28-32). Sobre a importância da seleção dos conteúdos, na formação de um indivíduo que se perceba como parte da realidade e, portanto, responsável pela continuidade, ou não, da sociedade do capital, Dalvi (2019) afirma que “a apropriação da cultura humana organizada na forma de conteúdos escolares” (p. 226) deve fazer parte de um processo educacional que vise à humanização dos indivíduos, e que “compete à escola assegurar o ensino-aprendizagem dos saberes sobre as múltiplas e complexas dimensões da vida humana” (p. 226), para além das situações cotidianas, ampliando a visão de mundo do sujeito para a efetiva “compreensão e transformação da realidade” (p. 226). Para uma seleção de conteúdos mais apropriados à consecução do objetivo apresentado, sugere-se a opção pelos clássicos da literatura:
Porque a apropriação dos conhecimentos e conteúdos clássicos participa do processo de instrumentalização de cada indivíduo para a compreensão da realidade por meio do domínio e manejo do pensamento complexo, elaborado e sistemático, que viabilizaria um entendimento crítico das contradições de nossa atual organização social, em que toda a vida está lastreada na desigualdade (cultural, econômica, educacional, política, social etc.). (Dalvi, 2019, pp. 226-227)
Como se depreende das palavras de Dalvi (2019), é importante oferecer aos estudantes um acervo com suporte de qualidade que possa conduzir ao êxito do processo pedagógico da formação de um sujeito crítico, reflexivo e ativo, que estruture o pensamento de forma a que ele saiba o que fazer com o conhecimento adquirido, instrumentalizando-se para intervir e modificar um cenário fundado sobre a desigualdade e os interesses das classes dominantes.
A formação docente alicerçada nos clássicos literários poderia contribuir para uma abordagem dos conteúdos escolares de forma multidisciplinar, ou seja, sob aspectos sociais, filosóficos, históricos, culturais, políticos e econômicos, o que diminuiria o formato de caixinhas de conhecimento sem conexão entre os saberes, que prevalece nas instituições de ensino. Como exemplo, pode citar-se o estudo da Revolução Industrial e os seus reflexos para a sociedade, de forma intertextual. Será que esse conteúdo é exclusivo da disciplina de História? Ou será que uma abordagem simultânea em Artes Visuais, Língua Portuguesa, Literatura, Geografia, Sociologia e Filosofia não faria muito mais sentido para o estudante? Uma abordagem através dos clássicos permitiria construir esse olhar ampliado sobre um conteúdo, estabelecendo relações significativas sob diferentes aspectos, e abriria oportunidades para o debate, para a reflexão e para a construção do conhecimento de forma ativa.
Jaime Ginzburg (2012) promoveu uma avaliação sobre a qualidade do ensino de Literatura, e as conclusões indicam que as obras literárias não são utilizadas da forma mais proveitosa. Apesar do estudo realizado por esse autor se referir à área da formação em Letras, é possível reconhecer que as suas críticas poderiam estender-se a outras áreas de formação universitária e, como os alunos desses cursos receberam uma orientação que não explorou as obras literárias da forma adequada - de acordo com Ginzburg -, quando se tornam professores, passam a repetir o mesmo modelo equivocado.
A manutenção de um modelo educacional alienante interessa o poder constituído, exercendo controle sobre “a produção do conhecimento e quanto ele possa e deva ser difundido à grande parte da população, a fim de mantê-la em níveis de consciência que possibilitem sua manipulação ideológica” (Costa, 2017, p. 946). Isto observa-se no comportamento dos sujeitos que se deixam influenciar pelas ideias difundidas nos meios de comunicação de massa, especialmente nas redes sociais, apenas sendo conduzidos pelo que se divulga, sem qualquer filtro de uma análise crítica sobre o que devem ou não considerar. Tal aspecto torna-se, inclusive, uma das forças que permitem que as fake news sejam veiculadas e circulem com tanta facilidade.
Segundo Ginzburg (2012), os “estudantes poderiam estar sendo preparados para a reflexão crítica, sendo capazes de ler livros dos mais diversos gêneros e realizar atividades de paráfrase, análise e interpretação, incluindo examinar sua contextualização, e também indicar relações intertextuais com outros livros” (p. 211), mas, na realidade, as práticas pedagógicas adotadas, tanto no ensino médio como na formação docente, mantêm o status quo: textos interpretados sob uma única perspectiva - em questões objetivas que diminuem (ou eliminando) o debate - e utilizados de forma fragmentada (como ocorre nas pastas de xerox das universidades, segundo o autor), estando voltados à classificação para aprovação (seja em provas, vestibulares, ENEM, obtenção de bolsas de estudos ou noutros processos seletivos), que apenas contribuem para acirrar a competitividade entre os indivíduos e desumanizar as relações, caracterizadas pela frieza e pelo distanciamento entre os seres humanos que ocupam os espaços escolares (Ginzburg, 2012).
Para que o docente fosse preparado para intervir na realidade e estivesse capacitado para conduzir o aluno ao mesmo caminho, seria necessário acrescentar:
Elementos como a reflexão crítica, o debate sobre livros, a constante possibilidade de pensar em problemas complexos, e a discussão de perspectivas individuais e coletivas de entendimento desses problemas [...] um ensino qualificado, voltado para a transformação intelectual e as mudanças sociais (Ginzburg, 2012, p. 219)
Como, infelizmente, essa ainda não é a realidade na maioria - ou na totalidade - das salas de aula, “o debate sobre livros”, “a reflexão crítica” (p. 219), a problematização de situações que ocorrem na sociedade e as diferentes opiniões sobre como tratar as questões não são expostas, o que pode gerar circunstâncias complicadas nas escolas e universidades. De facto, nestes ambientes, o professor não é bem-visto se sugere o trabalho com um livro inteiro, uma vez que “não convence como defensor da importância do debate do que se apresenta no livro” e espera-se empenhar o “mínimo esforço” para “obter aprovação lendo pouco ou nada” (Ginzburg, 2012, p. 221). Posto isto, mantém-se “a realidade reificada” (Ginzburg, 2012, p. 221) e dá-se continuidade ao processo educacional que enfatiza a “formação da capacidade adaptativa dos indivíduos” (Costa, 2017, p. 948), desmotivando-os a enfrentar as barreiras para romper o modelo capitalista, no qual são apenas peças conduzidas e exploradas pela classe dominante.
Alterar esse cenário depende de vários fatores, segundo Ginzburg (2012), entre os quais, “políticas em níveis diversos, mudanças de atitudes, elaboração de materiais didáticos, debates amplos e continuados e, antes de mais nada, uma reavaliação do próprio papel da universidade, consideradas as suas contradições” (p. 221). Assim, é no que respeita à formação docente - o aluno de graduação - que se sugere pensar para promover mudanças.
3. A catarse: Fundamental na pedagogia histórico-crítica e no processo da formação docente
Segundo Newton Duarte (2019), o processo catártico é fundamental, porque implica alterar a forma como os sujeitos se posicionam diante da realidade, começando pela “mudança de concepção de mundo, quando os indivíduos passam a considerar o ser humano como artífice da própria humanidade e, portanto, da própria desumanidade, no processo histórico de permanente produção e reprodução da realidade social” (p. 6), e isso, segundo Duarte (2019), resulta em que os sujeitos compreendam que podem “forjar seus próprios destinos”, o que significaria que “reconhecem as determinações objetivas que delimitam o campo de possibilidades de ação, fazem escolhas a partir dessas possibilidades, tomam atitudes e lidam com as consequências” (p. 6) e, portanto, têm condições para intervir na realidade, individual ou coletivamente, transformando-a.
Mazzeu (1998) afirma que, para que o professor obtenha êxito na condução da apropriação do saber sistematizado pelos alunos e de forma a que estes se tornem cidadãos críticos, independentes e atuantes na transformação social, é preciso, antes, que ele já esteja realizando o processo em si mesmo. A escola tem de ser um espaço de relações de formação e de transformação de caráter dialético, onde professores e alunos adquirem autonomia, conhecimentos, valores, cultura e habilidades para intervir e modificar a situação de manutenção do status quo, ditadas pela classe hegemônica. Para que isso possa ocorrer, o autor propõe que a formação continuada de docentes deve desenvolver três requisitos: o domínio do conteúdo escolar e das melhores e mais adequadas práticas pedagógicas para realizar a mediação para o aluno; a adoção de uma prática dialética e embasada na ação/reflexão/ação que resulte numa postura autônoma e crítica dos sujeitos envolvidos no processo educativo; a humanização dos sujeitos, pelo desenvolvimento de comportamento ético-político fundamentado em sentimentos e valores que regulam as relações sociais. Para viabilizar a concretização desses requisitos, um dos passos seria a catarse (Mazzeu, 1998).
A catarse provocaria “transformações na visão do mundo” dos indivíduos ao concretizar-se neles a apropriação do conhecimento sistematizado, o que potencializaria o “processo de transformação social em direção a uma nova forma ético-política, ou seja, uma sociedade não alienada”, passando pela “transformação das consciências” (Duarte, 2019, p. 13) e, como consequência, por uma transformação da sociedade. O papel mediador do professor é fundamental no processo de apropriação do conhecimento, considerando que:
O conhecimento que é ensinado sistematicamente ao aluno pelo processo educativo escolar não se agrega mecanicamente à sua consciência, mas a transforma em graus maiores ou menores. O aluno passa, então, a ser capaz de compreender o mundo de forma relativamente mais elaborada, superando, ainda que parcialmente, o nível do pensamento cotidiano, ou, em termos gramscianos, o nível do senso comum. (Duarte, 2019, p. 15)
Lavoura e Marsiglia (2015) afirmam que apropriar-se do conhecimento não é reproduzir o que se vê, ou seja, o imediato, o dado, mas antes, através do pensamento elaborado - da abstração - estabelecer relações entre o historicamente construído e os elementos observados na realidade e considerar as suas múltiplas interpretações e aplicações. O professor é o responsável por “transmitir o conhecimento socialmente existente ao aluno, para que este possa apreender a realidade social, também, como síntese de múltiplas relações (totalidade), atuando conscientemente e portando instrumentos necessários para a transformação da realidade” (Lavoura & Marsiglia, 2015, p. 358). Sem se apropriar desse conhecimento, o indivíduo é impotente para intervir e efetivar essa transformação, tornando-se um mero espectador da realidade instituída. Como pode o docente em formação, que ainda não se apropriou do conhecimento sistematizado nem experimentou processos catárticos que o transformam em sujeito ativo e não passivo na sociedade, conduzir o aluno por esse caminho?
Tem a catarse, ainda, implicações de caráter “individual e coletivo, pois o posicionamento ético-político envolve, necessariamente a organização coletiva dos indivíduos para o enfrentamento de lutas e a efetivação de mudanças em direção a uma profunda transformação da sociedade e da vida humana” (Duarte, 2019, p. 15). Portanto, se o processo educacional visa preparar sujeitos críticos, independentes e preparados para intervir na realidade, percebe-se que a catarse é um momento crucial dessa formação e, para a pedagogia histórico-crítica, “é reconhecida como o momento decisivo do processo educativo” (Duarte, 2019, p. 16).
Newton Duarte (2019) afirma que há “relações entre a catarse e a produção intencional de novas necessidades” e que, ao produzir necessidades ocorre “a ampliação do universo das relações sociais nas quais o indivíduo está inserido” e, por isso, “um novo posicionamento” desse “indivíduo perante a realidade da qual ele faz parte” (p. 18), o que significaria a aptidão desse sujeito em agir, modificando aquilo com o qual não concorda.
É importante destacar que a formação adequada de professores que promove “a socialização da ciência, da arte e da filosofia em suas mais ricas expressões” (Duarte, 2019, p. 19) e alerta para as lacunas na utilização da Literatura como uma das formas de proporcionar a catarse nos docentes de modo a prepará-los para a efetivar nos alunos ainda está por se desenvolver. Através de propostas como a de Mazzeu (1998), a de Duarte (2019) e a que se apresenta neste trabalho, pretende-se contribuir para a implementar nos espaços de formação docente. Como explica Duarte (2019):
A formação de professores, seria, dessa maneira, entendida como um processo no qual os indivíduos são levados a dominar os conteúdos escolares e as formas de ensino, tendo por objetivo a transformação da visão de mundo dos seus futuros alunos. (p. 19)
Saviani (1999) explica que o processo educacional deve ser conduzido de forma dialogada (dialética) entre professor, aluno e conhecimento e cultura que a humanidade já conquistou e produziu. Este autor propõe cinco passos para um processo pedagógico que considera os sujeitos interessados na escolarização: 1) prática social - abrange a dos alunos e professores; 2) problematização - quais conhecimentos são necessários, com aplicabilidade na realidade, para possível intervenção e transformação da realidade; 3) instrumentalização ou “apropriação pelas camadas populares das ferramentas culturais necessárias à luta social que travam diuturnamente para se libertar das condições de exploração em que vivem” (Saviani, 1999, p. 81); 4) catarse - internalização do conhecimento, que passa a fornecer os elementos para que o sujeito possa assumir uma postura ativa e intervir na realidade, transformando-a; 5) retorno ao ponto de partida, a prática social, mas muito mais enriquecida.
O contato com “os clássicos da ciência, da arte e da filosofia” proporcionaria, numa relação dialógica, que “a riqueza da experiência humana acumulada nas produções científicas, artísticas e filosóficas” fosse apropriada pelos “indivíduos no mesmo processo pelo qual eles se apropriam dessa riqueza” (Duarte, 2019, p. 20). Durante essa permuta, a reflexão sobre a ação, a percepção e a compreensão sobre “o conteúdo ensinado e a forma pela qual ele é ensinado” vão-se modificando, como consequência na transformação da visão de mundo que existia, antes do processo catártico se iniciar (Duarte, 2019, p. 20). Essa modificação no trabalho educacional em busca da melhor forma de transmitir os conteúdos significativos - viabilizando a sua apropriação pelo aluno - implica um círculo em constante movimento de ação/reflexão/ação/reflexão docente, visto que o objetivo é que, “percorrendo o caminho de volta”, de acordo com a pedagogia histórico-crítica, o estudante possa perceber “o objeto de estudo como um todo articulado enriquecido de determinações numerosas”. Por sua vez, tal significa “o enriquecimento do pensamento teórico dos alunos”, através de novas concepções sobre o “objeto de estudo e da própria prática social, permitindo aos indivíduos intervirem nesta última de maneira qualificada, visando sua transformação” (Lavoura & Marsiglia, 2015, pp. 367-368). No entanto, torna-se necessário ao docente/aluno passar por esse processo antes de assumir a tarefa de o executar com os estudantes que vier a encontrar no exercício da docência, porque, como não se pode desconsiderar, só se pode ensinar aquilo que já foi apropriado.
Deste modo, para que o processo educacional cumpra o seu objetivo na formação do sujeito de o preparar para a própria transformação e, também, para a da sociedade, há um requisito a ser preenchido: “a apropriação do patrimônio cultural da humanidade, nas suas formas mais desenvolvidas, enriquecendo o universo de significações” (Lavoura & Marsiglia, 2015, p. 369). Na consecução desse objetivo, Candido (2011), Marsiglia e Della Fonte (2016), Duarte (2019), Dalvi (2018), Costa (2017) e outros destacam a Literatura como possibilidade de o concretizar, especialmente os clássicos. Esta última autora alerta que “o poder da ideologia dominante contemporâneo é imenso, ainda mais aliado ao arsenal político cultural à disposição da classe dominante”, e, para enfrentar tal situação, o processo educacional (Costa, 2017, p. 949) pode contribuir, introduzindo:
O ensino de Literatura, que, privilegiando o conhecimento clássico - aquele que integra o patrimônio cultural da humanidade e diz respeito à própria identidade do homem que se desenvolve historicamente - e, portanto o acesso a textos cuja forma e conteúdo representem as máximas conquistas da humanidade, pode colaborar de modo significativo para a supressão dos empecilhos que a forma social capitalista vem impondo ao desenvolvimento livre e universal do homem. (Costa, 2017, p. 949)
Como se deduz das palavras de Costa, apenas oferecendo instrumentos para a humanização, como define Antonio Candido (2011), o docente em formação poderá encontrar meios para superar o modelo hegemônico da produção do saber, que, no panorama educacional atual, ocorre de forma limitada aos padrões ditados pela sociedade fundada nos interesses dos detentores do poder político e econômico.
4. A força da literatura a favor da formação docente
O termo literatura é abrangente. De fato, “até o século XVIII” significava o “conhecimento relativo às técnicas de escrever e ler, cultura do homem letrado, instrução”, “da segunda metade do século XVIII em diante, o vocábulo passa a significar produto da atividade do homem de letras, conjunto de obras escritas” (Souza, 2007, p. 44) e, em tempos modernos, interpreta-se como:
1. conjunto da produção escrita de uma época ou país (donde expressões do tipo "literatura clássica", "literatura oitocentista", "literatura brasileira", etc); 2. conjunto de obras distinto pela temática, origem ou público visado (donde expressões do tipo "literatura infanto-juvenil", "literatura de massa", "literatura feminina", "literatura de ficção científica", etc); 3. bibliografia sobre determinado campo especializado do conhecimento (donde expressões do tipo "literatura médica", "literatura jurídica", "literatura sociológica", etc); 4. expressão afetada, ficção, irrealidade, frivolidade (donde empregos do tipo: "Depois de tanto palavrório, tanta literatura, nada se resolveu"); 5. disciplina que procede ao estudo sistemático da produção literária (donde expressões do tipo "literatura geral", "literatura comparada", "literatura brasileira", etc.). (Souza, 2007, p. 44)
Segundo Souza (2007), apenas as três primeiras se referem à literatura como um “conjunto de obras escritas” (p. 45), o que reforça a sua importância no processo educacional, porque esse conjunto de obras traz as marcas do contexto em que foi produzido: “cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas, dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles” (Candido, 2011, p. 177). Por essa razão, devem ser exploradas, contribuindo para que o sujeito possa desenvolver um pensamento mais elevado e elaborado, de forma a atribuir significações ao objeto de estudo. Esse conjunto de obras “é um sistema vivo” numa relação dialética de movimento constante entre as mesmas e os leitores, “na medida em que estes a[s] vivem, decifrando-a[s], aceitando-a[s], deformando-a[s]” (Candido, 2000, p. 68). Como afirma Candido (2000, p. 68), “a obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito”. Completando esse movimento dialético entre obra e leitor, está o autor, que também se encontra em constante transformação, já que a realidade de onde retira a matéria para a criação da sua obra não está paralisada num espaço temporal.
A força da literatura na formação docente justifica-se, “porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente” (Candido, 2011, p. 177), contribuindo para a humanização do homem, que, para Antonio Candido (2011), implica o desenvolvimento do:
Exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (p. 182)
Após esse processo de humanização, o sujeito estaria preparado para interagir, de forma adequada, com “a natureza, a sociedade, o semelhante” (Candido, 2011, p. 182).
Como instrumento potencial para promover a catarse, tal como a descreveu Duarte (2019), a literatura tem servido:
Como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. (Candido, 2011, p. 177)
Candido (2011) destaca que “tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita” (p. 177) devem ser utilizadas para que se possa alcançar essa humanização e alerta que a experiência literária não é:
Inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções [...] Por isso, nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. (Candido, 2011, p. 178)
O “risco” a que Candido se refere como “perturbação” não seria a transformação no modo de ver o mundo, provocando uma ação ou intervenção na realidade instituída? E não é justamente essa capacidade de intervir na realidade, transformando-a em benefício da grande massa de pessoas que são vítimas da desigualdade social, que enfrentam a pobreza e dificuldades no acesso à escola ou à universidade e que são peças exploradas pelo sistema capitalista de produção que se procura concretizar?
O papel da literatura na humanização dos indivíduos age em três âmbitos: na disposição do próprio pensamento que conduz à organização das informações externas (o processo é contínuo - organização/desorganização/organização/desorganização); como “forma de expressão” das “emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos”; e como “forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente” que “enriquece a nossa percepção e a nossa visão de mundo” (Candido, 2011, pp. 178-182).
A obra literária traz, nos seus meandros, a opinião e a visão de mundo do autor, que pode corresponder à do leitor ou provocar uma reação contrária. No entanto, não se pode olvidar o fato de que ela interfere no conhecimento anterior que o indivíduo acumulava, na sua experiência e nas suas emoções, ampliando o seu olhar sobre problemas sociais que, antes desse contato, talvez não incomodassem. Considerando que “a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual”, pode revelar-se, também, uma ferramenta de “luta pelos direitos humanos” (Candido, 2011, p. 188). Por sua vez, reforça-se a proposta de que a literatura pode contribuir para a formação docente que oferece ao professor condições de provocar a catarse em si mesmo e - no processo educacional - no aluno. Costa (2017, p. 956) corrobora o papel mediador “do professor no processo educacional” que, caso não seja efetivo, contribui para que “a concepção de mundo do aluno” permaneça destituída de sentido. Simultaneamente, “o conteúdo histórico no ensino de literatura pode contribuir efetivamente para que o aluno tenha uma visão totalizadora do que antes era visto de modo fragmentado” (Costa, 2017, p. 956).
A forma como a abordagem da obra literária deve ocorrer não deve restringir-se apenas aos aspectos linguísticos mas expandir-se às “suas análises às conexões entre o texto literário e outros processos sociais - ideológicos, históricos, culturais, econômicos, etc.”, de forma que a “investigação” inclua métodos “de base sociológica, antropológica, psicanalítica e histórica” (Souza, 2007, pp. 54-56). Assim, espera-se atingir níveis mais profundos e complexos de interpretação de um texto. Por isso, abordagens sob perspectivas que ultrapassam o método linguístico são importantes, porque apresentam aos:
Alunos conceitos e informações que os ajudem a compreender o contexto discursivo em que um determinado texto foi escrito para, dessa forma, terem condições de atribuir sentido ao que leem, mesmo que séculos separem o momento de leitura do momento de criação de um texto. (Costa, 2017, p. 960)
A título de exemplo de uma interpelação - como a que foi sugerida por Souza (2007) e Costa (2017) - que embase a proposta que se defende neste artigo, pode pensar-se num estudo sobre o Romantismo brasileiro e optar por uma obra literária de José de Alencar, como O Guarani2(1857). De qualquer modo, a compreensão sobre o cenário onde se desenrolam as cenas, a estrutura da obra e a forma como o enredo é desenvolvido, bem como as características físicas e psicológicas do índio Peri e as das personagens principais, só podem ser entendidas a partir do conhecimento a respeito do contexto histórico, sociológico, econômico e cultural do período romântico brasileiro e europeu. Neste sentido, é necessário, ainda, considerar as influências europeias às quais se submetiam não apenas os escritores mas também os pintores, os músicos, os críticos, os empresários, os responsáveis pela imprensa e outros sujeitos que produziam o que era consumido no Brasil daquele momento histórico (Ceribeli, 2019). Essa proposta de abordagem interdisciplinar pode ser apresentada às áreas e graduações em História, Artes Visuais, Música, Artes Cênicas, Arquitetura, Letras, Filosofia e Sociologia, só para citar alguns exemplos em que o estudo do texto literário pode ampliar a visão de mundo do sujeito, enriquecer os seus conhecimentos e estabelecer uma rede de relações que possibilita novas concepções sobre as obras literárias, as criações artísticas, os autores, o público e, inclusive, a inter-relação que existe entre estes quatro elementos, que contribui para a atribuição de sentido, e a catarse que antecede a apropriação e a sistematização do conhecimento (Costa, 2017).
A literatura clássica, sobretudo, pode embasar tais estudos e reflexões, porque “busca compreender do modo mais fiel possível a realidade em sua totalidade dinâmica e contraditória e, por isso, objetiva realizar as mediações entre o destino de seus personagens e os grandes conflitos sociais nos quais eles estão inseridos” (Costa, 2017, p. 958). Trata-se, por isso, de um processo catártico em que o sujeito parte da sua individualidade para uma associação à coletividade, numa interiorização da problemática que envolve a sociedade, e, em processo reverso, aponta possibilidades de intervenção na realidade, de forma consciente em relação ao todo (Costa, 2017, p. 958).
5. Considerações finais
Não se pretende afirmar, no presente artigo, que o docente com os estudos literários adequados, tendo contato com os clássicos e aprofundando, sob os diferentes métodos, a sua análise das obras sozinho, é capaz de acabar com as injustiças sociais e tornar a realidade numa sociedade justa e igualitária, eliminando a pobreza, a fome, a desestrutura de muitas escolas e outras marcas lastimáveis que caracterizam a sociedade brasileira - e também as de outros países. Ainda assim, como a escola é o lugar onde o processo educacional deve ser efetivado, para a humanização dos sujeitos, a preparação do docente, de forma a conduzir esse procedimento com êxito, é um dos pontos que precisa ser atendido. Quanto mais rápido outras ações forem implementadas para viabilizar a sociedade que, ainda utopicamente, se deseja, mais imediato será torná-la real. Escolas sem uma estrutura adequada, com salários indignos, falta de políticas públicas voltadas à resolução das desigualdades sociais e falta de investimentos - ou cortes deles - em educação, entre outras, ainda contribuem para a manutenção da preponderância dos interesses capitalistas, que mantêm as diferenças dos direitos que cabem a cada um, de acordo com a classe social a que pertence.
Antonio Candido (2011) fala do:
Poder universal dos grandes clássicos, que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois têm a capacidade de interessar a todos e, portanto, devem ser levados ao maior número. (pp. 192-193)
Afinal, como afirma este autor, o direito à “fruição da arte e da literatura” é “inalienável” de todo ser humano (Candido, 2011, pp. 192-193).
Já afirmava Roland Barthes (1978), na sua Aula, que, se “todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário” (p. 16), revelando a força da literatura e o caráter inter e multidisciplinar da obra literária. Logo, reforça-se, também, a proposta deste artigo de que, através dos estudos que ultrapassem os aspectos linguísticos, é possível uma formação docente que promova processos catárticos que possam ser também experimentados pelos discentes, quando contatados com obras literárias clássicas - portadoras do conhecimento e das experiências mais elaboradas produzidas pela sociedade.