1. NOTAS INICIAIS
A expansão do ensino superior tem vindo a marcar as últimas décadas em todo o mundo, implicando um conjunto alargado de mudanças curriculares e pedagógicas no trabalho dos professores. Desde logo, o aumento do número de estudantes implica a sua progressiva diversificação em termos de perfis sociais, económicos e culturais, bem como no plano das expectativas e aspirações relativamente à formação académica. Por isso, novos desafios curriculares e pedagógicos têm de ser enfrentados, de forma a promover a inclusão educativa e a assegurar o sucesso académico para todos (Daddow, 2016).
Em simultâneo, o trabalho dos docentes é afetado por processos políticos recentes, como a construção da Área Europeia do Ensino Superior e a implementação do Processo de Bolonha, no quadro dos quais se preconizam mudanças paradigmáticas. Mais especificamente, advogam-se reformas curriculares associadas à mudança das práticas pedagógicas, visando a transição de um modelo centrado na transmissão de conhecimento para um outro focado no estudante e na sua aprendizagem.
Efetivamente, a concentração nos resultados de aprendizagem vai progressivamente ganhando protagonismo quando se analisam os documentos orientadores do Processo de Bolonha (Trindade, 2010), impondo aos académicos um determinado modo de estruturar o ensino tanto no que respeita aos conteúdos e à respetiva organização quanto no que se refere aos processos de ensino.
Neste contexto, no plano internacional, reforçaram-se as iniciativas e os incentivos à formação pedagógica dos professores do ensino superior (Sluis & Huet, 2021), visando facilitar a mudança de práticas no sentido de afirmar e consolidar um modelo de ensino focado no estudante e na sua aprendizagem. De resto, é provável que a recente crise pandémica tenha contribuído para acentuar a relevância da formação pedagógica, considerando as exigências e os desafios que implicou nos modos de ensinar e aprender, bem como as consequências - algumas não-intencionais -, que ainda poderão estar a emergir, tal como se conclui numa reflexão focada no caso do Reino Unido (Deem, 2021). Assim, é cada vez mais premente aprofundar a compreensão sobre os efeitos da formação pedagógica no modo como os professores do ensino superior reconfiguram o trabalho docente e enfrentam mudanças e desafios não apenas curriculares mas também pedagógicos (Alves, 2020).
Procurando contribuir para esse desiderato, neste artigo, apresenta-se uma pesquisa que visa explorar a relação que os professores do ensino superior estabelecem com a formação pedagógica e com o ensino superior enquanto instituição. A pertinência desta pesquisa é reforçada pela intenção de aprofundar a compreensão sobre a vertente de ensino com base em metodologias qualitativas e em níveis de análise mais micro, pois os estudos sobre académicos que têm vindo a ser desenvolvidos na última década tendem, na maior parte dos casos, a adotar abordagens quantitativas e/ou de comparação europeia, privilegiando o conhecimento sobre atividades de investigação (Kwiek, 2019). Deste modo, no presente artigo, mobilizam-se dados empíricos recolhidos a partir de um conjunto de 14 professores que participaram numa Pós-graduação em Pedagogia do Ensino Superior - em funcionamento desde 2019/20 numa universidade portuguesa.
2. PROFISSÃO ACADÉMICA, TRABALHO DOCENTE E FORMAÇÃO PEDAGÓGICA: UMA TRÍADE EM RECONFIGURAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
Nas últimas décadas, a profissão académica tem sido objeto de mudanças profundas, em função de alterações das orientações políticas nacionais e institucionais no ensino superior, que, consequentemente, têm implicações nos contextos de trabalho dos académicos. Pesquisas realizadas com académicos revelam que estes experienciam, desde a década de 1980, um sentimento de enfraquecimento da autonomia profissional e da autorregulação, o qual se associa à tendência para os processos de decisão coletiva terem vindo a dar lugar a um empoderamento crescente dos órgãos de topo na governação (Carvalho & Santiago, 2015).
De acordo com esta perspetiva, as orientações políticas têm privilegiado a transformação do setor estatal em prol de modelos gestionários e orientados para o mercado, o que significa que as narrativas sobre a centralidade do ensino superior, na atual economia e sociedade do conhecimento, são acompanhadas de movimentos de privatização e de comercialização desse mesmo conhecimento. Emerge, assim, um ideal de académico enformado pela performatividade, despersonalizado e descontextualizado, cujo trabalho é um bem privado e comercializável (Borelli et al., 2019) numa lógica de capitalismo académico (Kwiek, 2019).
Neste enquadramento, é notória a tendência para dissociar as vertentes de investigação e ensino no trabalho dos académicos. Em alguns países, essa predisposição resulta, até, na atribuição de responsabilidades pelas atividades de ensino a professores contratados, cada vez mais frequentemente, por períodos transitórios e não integrados nas carreiras académicas (Teichler, 2017). De resto, de acordo com Masschelein e Simons (2018), esta dissociação parece poder corresponder a uma estratégia que instrumentaliza a educação, protegendo a produtividade da pesquisa, mas minando a oportunidade da universidade se afirmar enquanto lugar de práticas de estudo coletivo e público.
Ainda que as tendências que identificamos sejam transnacionais - no sentido em que são observáveis em várias regiões e países -, as lógicas de mercantilização e de dissociação entre ensino e investigação parecem ser particularmente incisivas nos países anglo-saxónicos e menos acentuadas noutras regiões. Assim, numa pesquisa focada nos casos inglês e português, evidencia-se a importância de desenvolver instrumentos analíticos que consideram os modelos mercantilizados, divergindo dos centrados no entendimento do ensino superior como tendo um valor de bem público e, por isso, num continuum que antecipa múltiplas configurações mais ou menos próximas de cada um destes dois polos contrastantes (Alves & Tomlinson, 2021).
Independentemente dessas variações, importa sublinhar que um estreito laço entre ensino e investigação é típico da universidade moderna, e as respetivas virtudes foram enfatizadas por Von Humbolt, em Berlim, sendo que este elemento distintivo da universidade moderna se disseminou por todo o mundo como uma característica principal do ensino superior (Ó, 2019; Teichler, 2017). Essa disseminação implicou que a profissão académica ficasse marcada pela tensão entre estes dois tipos de atividades bem como pelas dificuldades em gerir essa mesma pressão.
A este propósito, sublinhe-se que, no acesso à profissão académica, são as atividades e as produções científicas que prevalecem como critério de seleção individual, ou seja, o ensino tende a ser menos valorizado no quadro dos mecanismos de progressão nas carreiras académicas e científicas (Kwiek, 2019; Nóvoa & Amante, 2015). Esta constatação é mobilizada para fundamentar recomendações sobre a importância de incluir competências de ensino como uma das exigências nos perfis profissionais, nos níveis salariais e nos critérios de ingresso ou progressão nas carreiras nos sistemas de ensino superior europeus (Inamorato dos Santos et al., 2019).
Ora, na maioria dos países europeus não é exigida uma formação pedagógica formal para se ser professor no ensino superior, nem os académicos são expostos à mesma (Inamorato dos Santos et al., 2019), pelo que se reconhece e reforça a importância de existirem iniciativas neste domínio, designadamente considerando as mudanças curriculares e pedagógicas das últimas décadas. Nesse sentido, o desenvolvimento de estratégias baseadas na relação dialógica entre ensino e investigação, bem como a respetiva prática (Cochran-Smith et al., 2020), tem sido apontado como promotor de ambientes de aprendizagem muito relevantes (Entwistle & Peterson, 2004). Trata-se, portanto, de valorizar a formação pedagógica como uma estratégia para promover práticas e conceções dos professores do ensino superior que beneficiem a qualidade do ensino e da aprendizagem (Kwiek, 2019; Daniels, 2017; Nóvoa & Amante, 2015).
Se o ensino pode ser entendido como uma responsabilidade coletiva das instituições de ensino superior, e não simplesmente como um dom do indivíduo, torna-se fundamental favorecer contextos para a auto e hetero observação, para a prática reflexiva e para o conhecimento sistemático sobre ensino e aprendizagem (Sachs, 2016). A este propósito, defende-se que, no ensino superior, é expectável que os professores desenvolvam as suas práticas e conceções docentes, além de aprofundarem o conhecimento disciplinar específico (Daniels, 2017).
Diversas unidades e cursos de desenvolvimento profissional docente têm surgido desde a década de 1960, sobretudo em regiões anglo-saxónicas, tais como a Austrália, o Reino Unido ou a América do Norte. Em Portugal, estas iniciativas emergiram mais recentemente, podendo ter sido estimuladas, em grande medida, pelas mudanças associadas ao Processo de Bolonha. De facto, neste contexto observa-se uma significativa heterogeneidade em termos de modalidades de formação e de reflexão pedagógica (cursos de durações variáveis, programas de observação de aulas, congressos, ...), sendo muitas ações promovidas por grupos de académicos num registo de indagação sobre as suas próprias práticas (Alves, 2020). Também em muitos outros países europeus, a importância da formação pedagógica de professores não parece ser amplamente reconhecida nas instituições de ensino superior, prejudicando as oportunidades de desenvolvimento profissional docente dos académicos (Inamorato dos Santos et al., 2019).
Assim sendo, os académicos protagonizam, maioritariamente, processos informais de aprender a ensinar com base quer na experimentação e na observação (como estudantes e como professores) quer na cooperação entre pares numa dada instituição (Almeida et al., 2022). Tal contrasta com os que estão frequentemente expostos a oportunidades de aprendizagem profissional para professores relativamente estandardizadas, particularmente no Reino Unido, na Austrália e na América do Norte (Daniels, 2017).
A este propósito, é de assinalar a diversidade de conceções, de práticas, de barreiras e de fatores que interferem no desenvolvimento profissional docente, sendo que os sistemas de ensino superior mais avançados neste domínio tendem a ser os que mais valorizam abordagens centradas nos estudantes (Inamorato dos Santos et al., 2019). Designadamente, neste conjunto de sistemas, incluem-se os mais mercantilizados (por exemplo, nos países anglo-saxónicos) mas também aqueles em que as abordagens centradas nos estudantes estão ligadas à sua importância para o desenvolvimento social e económico (por exemplo, nos países escandinavos).
3. UM ESTUDO NO CONTEXTO DE UM CURSO DE FORMAÇÃO PEDAGÓGICA
Tendo em conta o panorama contemporâneo de reconfiguração da tríade entre trabalho docente, profissão académica e formação pedagógica, no quadro de implementação do Processo de Bolonha, adotamos uma perspetiva de análise micro. Partindo de uma oferta formativa específica, pretendemos trazer contributos para pensar em que medida a formação pedagógica de professores do ensino superior pode ajudar a lidar com as tensões e com os desafios contemporâneos, promovendo e favorecendo a experimentação de outros modos de relação com a docência e a profissão.
A oferta formativa em causa é uma pós-graduação em pedagogia do ensino superior, em funcionamento numa universidade portuguesa e cuja frequência é facultativa e aberta a todos os interessados. Esta pós-graduação foi criada em resultado do reconhecimento da relevância da formação pedagógica dos professores das universidades e dos politécnicos. Trata-se de um curso pioneiro com características particulares no contexto das iniciativas orientadas para o desenvolvimento profissional docente em Portugal, considerando, por um lado, que corresponde a um plano curricular longo com a duração de um ano letivo e, por outro, ao conferir um diploma de especialização/pós-graduação. Já depois da conclusão do estudo que se apresenta neste artigo, foi criada, em 2023, uma oferta formativa similar numa instituição de ensino superior politécnico portuguesa.
O desenho curricular da pós-graduação, bem como a diversidade de tarefas e de atividades propostas aos formandos, visa estimular a problematização e o questionamento de crenças, de teorias e de práticas pedagógicas dos professores. Pretende-se promover a reflexão sobre convicções e condutas em articulação com o aprofundamento de conhecimento já estabelecido sobre ensinar e aprender no ensino superior, permitindo o surgimento e/ou o reforço de modos de ser, de pensar e de agir enquanto professor.
A frequência da oferta formativa inclui sessões presenciais que decorrem entre outubro e julho em cada ano letivo, as quais são preenchidas com atividades de várias unidades curriculares focadas em questões e temáticas relativas à avaliação e à supervisão de estudantes, a estratégias de aprendizagem ativa e a opções curriculares. Em paralelo, promove-se a auto e a hetero observação de aulas durante o ano letivo, complementadas pela respetiva análise e debate.
Os dados que apresentamos neste artigo foram reunidos através da análise de trabalhos desenvolvidos pelos formandos que frequentaram a pós-graduação, nomeadamente mobilizando o que consta dos respetivos portefólios finais. Os portefólios como modalidade de trabalho e de avaliação visam, globalmente, reforçar a interligação entre a prática de cada docente e os contributos das unidades curriculares do curso que abrangem resultados de investigação educativa e perspetivas pedagógicas. Deste modo, procura-se instigar a reflexão que deverá ancorar o reforço e/ou mudança de crenças e de práticas dos professores.
Assim, este artigo resulta de uma leitura exaustiva dos portefólios elaborados por 14 formandos que frequentaram as duas primeiras edições desta oferta formativa (em 2019/20 e em 2020/21), os quais são todos professores ou investigadores com experiência docente em universidades ou politécnicos e provenientes de uma diversidade de áreas científicas. No início da frequência do curso, oito formandos tinham 5 anos ou menos de experiência docente, enquanto quatro tinham entre 6 e 10 anos e dois lecionavam há 20 ou mais anos. Uma clara maioria são mulheres (dez) e lecionam em universidades (12). Acresce que seis são professores em cursos de Farmácia, Ciências, Medicina Veterinária e Enfermagem, seis em cursos de Psicologia, Direito, Educação e Geografia, um em Artes e um em Agronomia. Ainda a salientar, este grupo de 14 não corresponde à totalidade dos que frequentaram a oferta formativa em 2019/20 e 2020/2, mas sim àqueles que, no final do ano letivo, autorizaram - assinando uma declaração de consentimento informado e com garantia de confidencialidade e anonimato - a análise dos respetivos portefólios por membros da equipa docente do curso visando o desenvolvimento de investigação educacional.
Importa, também, esclarecer que os portefólios são elaborados individualmente pelos formandos no decorrer da frequência da pós-graduação, sendo apresentados no final do ano letivo numa sessão em que participam todos os docentes e todos os formandos. Cada formando é instigado a reunir, no respetivo portefólio, os materiais que considera mais relevantes em resultado de leituras, de exercícios, de observações, de debates e de outras tarefas realizadas no decorrer do ano letivo. Note-se que não existe um formato pré-definido para o portefólio, seja em termos de suporte (uma grande parte compila textos e imagens num único documento, alguns organizam um Prezi, slides PowerPoint ou um website e, em casos excecionais, foi apresentado um curto filme), seja no que respeita à estruturação dos materiais (muitos optam por destacar o que consideram mais significativo em cada uma das unidades curriculares, enquanto outros identificam temas e/ou questões que conjeturam como orientadoras do percurso formativo ao longo do curso).
Na primeira fase da análise dos portefólios, a leitura exaustiva permitiu identificar temáticas abordadas pelos formandos nas suas escritas, que sugerem possibilidades abertas a partir desta experiência de formação para a pedagogia do ensino superior, no que respeita a aspetos apresentados na secção anterior deste artigo sobre a profissão académica, o trabalho docente e a relação com a formação pedagógica. Dessa primeira leitura, emergiram três eixos centrais para explorar os portefólios que, em conjunto, nos permitem pensar movimentos desencadeados pela pós-graduação: a) motivação para a formação (em que analisamos as razões apresentadas pelos professores envolvidos para a frequência do curso); b) formação pedagógica e relação com a docência (de modo a acompanharmos as transformações suscitadas pela frequência do curso no que diz respeito à relação destes participantes com a docência e as reverberações posteriores nas suas práticas e conceções); c) formação pedagógica e relação com o ensino superior enquanto instituição atual (considerando a forma como a frequência da pós-graduação suscita reconfigurações nos entendimentos dos professores sobre a formação e profissão académicas).
4. MOTIVAÇÕES PARA A PARTICIPAÇÃO NA PÓS-GRADUAÇÃO
Nas escritas dos professores participantes da pós-graduação, aparecem, com frequência, referências aos seus percursos como docentes ligadas à ausência de formação e a um certo conformismo face aos formalismos institucionais e a modus operandi estabelecidos, assim como à insatisfação relativa às práticas e às relações pedagógicas desenvolvidas. Assim, a necessidade de colmatar essas lacunas - assumindo o trabalho docente de modo mais consistente e produzindo alguma transformação nas práticas - surge como motivação mais frequente para a participação na pós-graduação.
Na perspetiva dos participantes, a acomodação pode ser atribuída à ausência de formação que induz a que:
Nos acomodamos nas nossas práticas habituais, sem motivação para fazer diferente, transferindo o ónus do (in)sucesso da aprendizagem para os alunos. (Port. 1)
Pode ser, ainda, associada à reprodução de práticas:
No entanto, não tinha qualquer formação na área da pedagogia, ou seja, não tinha experiência no exercício docente. Assim, as minhas primeiras aulas foram reproduções criadas a partir da vivência e da assistência das aulas dos professores mais antigos e com mais experiência. Optava por fazer imitações a partir das experiências que o docente e os alunos viviam na sala de aula, fossem elas positivas ou negativas. (Port. 4)
Também os sentimentos de insatisfação profissional e de insegurança tendem a ser relacionados com a lacuna que concerne à formação pedagógica:
Refletindo agora sobre o porquê da minha participação na pós-graduação, parece-me evidente que a mesma resulta de uma insatisfação profissional. Por um lado, o ensino tradicional não me motiva e, do meu ponto de vista, não leva aos melhores resultados […]. Por outro lado, não sentia ter as ferramentas necessárias para tornar os meus objetivos realizáveis de uma forma que motive os alunos e facilite a adaptação a um percurso mais exigente. (Port. 2)
As lacunas e as insatisfações não parecem ser colmatadas nem através da própria experiência de docência no ensino superior nem com outro tipo de prática profissional anterior que não a de professor:
Passavam oito anos da licenciatura quando comecei a atividade docente: tinha-me sido recomendado que exercesse durante algum tempo, para perceber bem e ganhar segurança na atividade veterinária, antes de começar a ensinar. De facto, reconheço hoje que isso foi uma mais-valia, pois tirou-me todas as inseguranças técnicas que a atividade docente poderia despoletar. Contudo, outras inseguranças foram surgindo, daí a procura por este curso de pós-graduação em Pedagogia no Ensino Superior. (Port. 7)
Tenho uma dificuldade particular em separar o ser docente de ser psicóloga, não só porque grande parte do que leciono implica essa experiência profissional, mas porque não tendo grandes bases de treino em pedagogia - para além da formação de formadores - acho que me baseei nessa outra parte da minha identidade profissional. Acredito que para ensinar é importante criar relação com os alunos. (Port. 8)
Perante o sentimento de insegurança e a inexperiência na docência no ensino superior, a formação aparece como uma possibilidade de colmatar e enfrentar tais insatisfações:
Resumidamente […], vejo-me como inseguro e inexperiente mas com vontade de questionar e melhorar o processo de docência, com várias oportunidades a aproveitar, tais como a presente pós-graduação ou mesmo as condicionantes impostas pela situação de pandemia que nos obrigam a reinventar processos de docência e avaliação, correndo sempre o risco de poder perder (ou não adquirir) uma dinâmica de postura crítica sobre a docência, ou até de, no final do curso, me sentir suficiente e definitivamente “encartado” em relação ao processo pedagógico. (Port. 10)
Ensinar no Ensino Superior e agora? Perante estes desafios, senti que a Pós-Graduação em Pedagogia do Ensino Superior era a oportunidade ideal para adquirir competências! (Port. 11)
Não obstante, nem sempre a adesão a uma formação pedagógica é apoiada pelos colegas:
A noção de que é preciso aprender a ensinar foi-se então desenvolvendo, aprofundada por uma constatação de que essa capacidade é frequentemente parca nos docentes do Ensino Superior e desafiada por comentários de alguns colegas mais velhos do género “isso ou se tem jeito ou não se tem. (Port. 10)
Aliás, o enquadramento institucional e a relação com a instituição são fatores que podem gerar, também, alguma tensão e ansiedade. Assim, denota-se a procura de um espaço de formação no qual a partilha de experiências com colegas de diferentes universidades e politécnicos, bem como de várias áreas disciplinares, possa ajudar a ultrapassar estes atritos ou a encontrar estratégias para lidar com questões profissionais e institucionais.
Neste âmbito, a insatisfação com os métodos de ensino que são mais comuns ou mais valorizados institucionalmente e/ou em determinadas áreas específicas é um dos fatores apontados:
As minhas práticas pedagógicas são parcialmente moldadas pelo contexto do ensino do direito - tipicamente formal e tradicionalista, com um grande peso de métodos expositivos nas aulas teóricas (e por vezes replicado pelos assistentes nas aulas práticas). (Port. 2)
É, também, mencionado o valor e o reconhecimento do trabalho docente desenvolvido na instituição de pertença:
É-me também difícil (impossível?) refletir sobre o meu papel enquanto docente e não pensar no contexto envolvente, a Universidade onde atualmente leciono, as disciplinas, estágios e orientações de mestrado e doutoramento. Sinto-me muitas vezes ambivalente face ao valor que tenho enquanto docente, na sociedade em geral, e na comunidade Universidade em particular. (Port. 8)
Ainda, a relação com as próprias dinâmicas institucionais:
A experiência na investigação mostrou-me que existem ciclos alargados que dependem de múltiplas dinâmicas, tanto as estritamente científicas (algumas temáticas de investigação não duram para sempre), como as de enquadramento profissional (o tema de doutoramento, o tema de pós-doc, dum contrato precário, do outro pós-doc), ciclos esses que se alimentam uns aos outros. A passagem para a docência é também um desses saltos de ciclo, que seguramente também terá as suas dinâmicas, sejam de ordem organizacional (reformas curriculares, alterações no corpo docente) sejam pedagógicas, progredindo ao longo do processo de apropriação da persona docente. (Port. 10)
Importa salientar, ainda, que muitos percursos profissionais dos participantes na pós-graduação são marcados pela passagem da investigação à docência. O contacto com o ensino superior - ou mesmo as primeiras experiências de docência - surge no âmbito das atividades de investigação desenvolvidas anteriormente. Por isso, em muitos portefólios, esta tensão entre investigação e docência é enfatizada mostrando que tal passagem não se concretiza sem ansiedades, dúvidas e contradições, que justificam, então, o processo de formação pedagógica:
A questão da importância da formação pedagógica foi, no entanto, relativizada durante muitos anos na medida em que o meu foco principal era a investigação, com horizontes temporais de quatro a seis anos (doutoramento, pós-doc, contratos a termo, mais pós-docs), não sendo portanto a docência prioritária. (Port. 10)
De investigadora a professora? Como afirma o filósofo Paul Ricoeur: “Agir em circunstâncias que são impostas é a condição fundamental do trabalho” (2020, p. 74). Seja por imposição de um horário de trabalho suficientemente difuso por estar sempre em atividade, seja ainda por uma decisão vertical sobre o seu próprio currículo, a passagem de investigador a professor pode implicar uma perda substancial de liberdade de decisão sobre os seus temas de estudo. (Port. 13)
Foi possível ver que estou atualmente bastante confortável em contexto de sala de aula e que embora aquele fosse o meu primeiro contacto com os alunos, não me senti intimidado por isso. Houve por isso uma evolução no sentido positivo em que assumi o papel de docente como meu. (Port. 1)
Estes movimentos e argumentos parecem-nos estar estreitamente relacionados com as ideias, por um lado, de uma certa falta de preparação para o exercício da profissão e, por outro, de um desejo de tomar posse da profissão (Ó, 2019), que são indissociáveis da possibilidade de transformação.
5. FORMAÇÃO PEDAGÓGICA E RELAÇÃO COM A DOCÊNCIA
A valorização da pós-graduação está intimamente relacionada com os aspetos que referimos no ponto anterior e extremamente patente na forma como os participantes referem a relevância desta experiência de formação para a mudança na conexão com a docência. A importância reconhecida da formação como espaço de reflexão, de questionamento, de aprendizagem e de partilha parece fomentar uma ligação com a profissão mais aberta e mais atenta aos dilemas e às tensões que a constituem; à sua dimensão de imprevisibilidade no plano da relação pedagógica; às tarefas e aos resultados; assim como ao carácter singular e complexo da relação com o conhecimento, com os estudantes, com a profissão e com a instituição.
Além de modelos, de respostas prontas ou de receitas fáceis, o tomar posse da profissão que referimos anteriormente parece estar estreitamente ligado com o abraçar da complexidade, da singularidade e da pluralidade das relações que, com ela e através dela, cada um vai estabelecendo, tendo em conta as suas circunstâncias, inquietações, anseios e encontros:
Ter um espaço de aprendizagem e reflexão acerca da pedagogia do ensino superior, nomeadamente da gestão curricular, que é algo que faz parte do meu dia-a-dia (o ensino), mas para o qual não fui propriamente preparada - parece-me um privilégio. Por um lado, validei algumas das conceções e práticas já realizadas, por outro aprofundei e alterei outras. (Port. 8)
Claramente que agora não me sinto “encartado”, muito pelo contrário, as dúvidas são mais volumosas e o tal desassossego em relação às dinâmicas pedagógicas é maior, mas mais informado, espero. […] Como a vida há muito ensinou, também este ponto de finalização da pós-graduação não é um fim, mas um início. Mas um início de quê? Desde logo, o início de um permanente questionar do porquê e para quê de todas as ações e eventos que interferem no processo pedagógico, na perspetiva da melhoria do processo de ensino/aprendizagem. A importância de aprender com os outros e de trocar experiências, tanto entre colegas da mesma área como entre áreas distintas, impele a procura de ferramentas para prosseguir essas interações. […] A manutenção das dinâmicas entre os colegas da pós-graduação é certamente uma forma adicional de prosseguir essas trocas de experiências, alicerçadas no relacionamento e confiança pessoal que se estabeleceu e nas bases teóricas que adquirimos em conjunto. Estas bases teóricas (insuficientemente aprofundadas neste portefólio) serão aliás fundamentais para apoiar o questionamento e a melhoria do processo de ensino/aprendizagem. (Port. 10)
As referências a mudanças produzidas pela frequência da pós-graduação enfatizam, quer a partilha de experiências com outros formandos e com os docentes, quer a consequente criação de uma comunidade académica ao longo do curso como elementos cruciais da formação. Nesse sentido, a observação de práticas pedagógicas tanto dos colegas como dos docentes ou a experimentação de atividades e estratégias propostas nas unidades curriculares do curso são muito relevantes, assim como a possibilidade de:
Revisitar as experiências anteriores com os conhecimentos adquiridos na pós-graduação. (Port. 12)
Estes aspetos indicam que existe um trânsito entre a experiência de formação e a docência, sugerindo que a primeira possibilita a transformação e o fortalecimento da relação com a segunda, ao fornecer sustentação teórica e prática para a mudança:
A pós-graduação, durante a fase presencial, proporcionou-me um contexto privilegiado, pela qualidade dos docentes, pela diversidade de perfis dos colegas e pelo bom espírito de grupo que se gerou, para consolidar, ampliar e enriquecer o leque de saberes, conhecimentos e competências que tenho à minha disposição. (Port. 6)
A partilha e a reflexão coletivas no quadro do curso emergem, também, como elementos fundamentais para estimular reconfigurações na relação com a docência, tal como destacam vários participantes:
Sob o ponto de vista coletivo, penso que a pós-graduação foi fundamental pela partilha e reflexão entre pares que proporcionou. Permitiu-me tomar consciência que, afinal, as minhas inquietações não são só minhas e que existem muitas formas de fazer o caminho, mas com o apoio do outro é sempre melhor. (Port. 7)
Foi um privilégio poder discutir com os colegas da pós-graduação, e muitos da Universidade de Lisboa, questões associadas ao ensino. Ver pessoas de escolas tão diferentes, com percursos, idades, anos de experiências tão distintos foi algo muito gratificante. Perceber que havia tantos colegas com vontade de saber mais, focados nas necessidades dos alunos e tão abertos a novas aprendizagens foi algo que em parte me surpreendeu e mostrou-me o quão interessantes são alguns colegas. Fazia-me falta passar por um lugar destes. A palavra final é Gratidão! (Port. 8)
Assim sendo, as questões de relação com a docência merecem destaque por envolverem processos de subjetivação - que produzem interrogações e inquietações relativamente à forma como os participantes se relacionam com a profissão - e por permitirem uma reconfiguração desses mesmos vínculos. Ou seja, mostram como a pós-graduação cria um espaço favorável à apropriação da profissão, através da interrogação e da reconfiguração dos modos de entender o trabalho docente. Essa mudança não passa pela imposição de modelos e perfis ou pelo domínio de um conjunto de técnicas mas antes por encontrar uma forma de habitar o ensino superior mais aberta à imprevisibilidade dos processos e dos resultados; às incertezas e inquietações que constituem o fazer docente; e à singularidade das relações que se estabelecem nesse espaço (com os alunos, com os colegas, com o conhecimento e com a instituição):
O professor universitário tem, cada vez mais, que procurar reinventar-se e otimizar o caminho que conduz ao sucesso dos seus discentes e a uma melhor qualidade do ensino. (Port. 4)
Mudou a minha perceção de mim própria, das minhas capacidades e competências. (Port. 11)
Viver o meu lugar. Não nasci para ser professora. Alguém nasce? Viver este processo é encontrar o meu estilo próprio, construído paulatinamente. E isso fazer sentido, globalmente. […] E à medida que me interrogo e vou dando respostas provisórias, à medida que os desafios vão sendo vencidos e outros surgem no horizonte, mais e mais se vai cimentando a importância de, pelo menos, atender às questões pedagógicas. (Port. 13)
Uma das principais implicações da formação relativamente às angústias, às ansiedades, às inseguranças, ou, até mesmo, aos sentimentos de impotência, presentes tanto na relação com a profissão como com a instituição, aparenta ser o de restituir alguma confiança e autonomia aos professores participantes. Assim, de acordo com as suas afirmações, os efeitos da formação parecem estender-se além do seu tempo de duração. Pelo menos, é essa a vontade expressa por estes professores quando projetam atividades, estratégias e modos de fazer e de se relacionar com a profissão num futuro próximo. Alguns dos exemplos de propostas a desenvolver ou posturas e perspetivas a adotar demonstram essa vontade ou disposição:
O meu objetivo é construir um site chamado “Ensinar Direito”, em formato blog, para criar um espaço de disseminação de literatura sobre temas gerais e especializados sobre pedagogia com relevância para o ensino do direito e aí dar conta das minhas experiências, com porta aberta aos colegas de faculdades nacionais e estrangeiras. É um projeto ambicioso, mas que pode fazer jus ao espírito desta pós-graduação. (Port. 2)
Uma prática que planeio introduzir na referida UC de primeiro ano é um trabalho em moldes de portfolio. […] A ideia que irei propor procura explorar e potenciar os interesses diferenciados dos alunos (não por curso, mas individualmente) sem que tal promova incoerência na avaliação, antes pelo contrário. […] Sendo a proposta eminentemente individual, já que pretende que acompanhe o aluno para além do limite temporal desta UC, procurarei que a sua implementação se possa também apoiar em trabalho coletivo em torno de áreas de interesse comum, potenciando uma aprendizagem co-construtivista e dialógica (Klenowski et al., 2006). O objetivo é mostrar aos alunos o interesse prático dos aspetos teóricos abordados, permitindo-lhes um trabalho autónomo apoiado (tenhamos nós tempo para esse apoio…), reflexivo, mas de alguma forma mensurável. (Port. 10)
Futuro - UC seminário de mestrado - Criação de Seminários de Supervisão Coletiva. (Port. 12)
Pondero introduzir as seguintes modificações (…) Avaliação: Introduzir critérios e descritores para todos os exercícios de avaliação sumativa; aliviar alguns dos exercícios e assumir a avaliação formativa; não ter medo de não classificar tudo; Design: Introduzir mais exercícios práticos em algumas UC, mas equilibrar também com mais conteúdos de apoio e explicitação acompanhada de algumas matérias; Orientação: Manter os dois grupos de orientação, mas tornar também mais claros os objetivos de cada um dos trabalhos, dos passos e das metas. (Port. 13)
Neste sentido julgo que poderei tentar transportar algumas destas ideias e metodologias para a minha prática. Não sendo responsável de nenhuma UC, para já tentarei sugerir que se implementem algumas formas de avaliação contínua e aplicar algumas metodologias de active learning para promover as interações aluno-professor e aluno-aluno. (Port. 14)
Nestes movimentos propositivos dos participantes na pós-graduação, relativamente às suas práticas no futuro, encontramos ecos das experiências vividas neste curso, seja do ponto de vista das estratégias de ensino e do desenho curricular, seja nos planos da relação pedagógica ou da avaliação de aprendizagens. A disposição para a mudança e para um outro modo de relação com a profissão surge, nos portefólios, como decorrente da experiência de formação vivida na pós-graduação.
6. FORMAÇÃO PEDAGÓGICA E RELAÇÃO COM O ENSINO SUPERIOR ENQUANTO INSTITUIÇÃO
Neste terceiro, e último, eixo, destacam-se as questões relacionadas com as mudanças no ensino superior como instituição, principalmente no que diz respeito às transformações associadas à implementação do Processo de Bolonha e às lógicas de funcionamento institucional. A pós-graduação terá contribuído, neste âmbito, para um certo assumir de um sentido para o trabalho dos académicos na atualidade:
Para além de uma reflexão pessoal enquanto docente universitário, importa refletir sobre a organização de que fazemos parte, a Universidade. (Port. 4)
Pôs-me, antes de mais, em contacto com visões macro sobre a pedagogia no contexto da reflexão sobre o que é a Universidade e qual o seu papel numa sociedade globalizada e digitalizada. (Port. 2)
De facto, alguns excertos referem-se às tendências de mercantilização do ensino superior e às pressões crescentes para a obtenção de resultados mensuráveis seja na formação académica dos estudantes seja no plano da investigação. Nesse sentido, a formação pedagógica procura suscitar a reflexão crítica, que se interliga com a afirmação de maior autonomia na ação docente, intensificando a tensão com as políticas e com as dinâmicas vigentes na universidade atual. Tal é sugerido, também, em afirmações dos formandos:
Referir a importância de uma visão de comunidade e individualidade no contexto académico. Estas abordagens foram muito importantes para a definição de um enquadramento geral da minha presença no Ensino Superior (Port. 9)
Senti que não devo, não posso e não irei continuar a avançar neste ofício do professorado numa postura de funcionária ao serviço do negotium do ensino superior (Nóvoa, 2018), ordeiramente funcionando, esmagada nos seus quatro eixos fundamentais (Empregabilidade, Excelência, Empresarialização e Empreendedorismo). Não é essa a Universidade que me “venderam”, não é essa a Universidade onde cresci, e sobretudo não é esse o legado que alguns nos deixam, é-o sim um legado de reflexão ancorada em pensamento original, ação política (da/na UniverCidade) e investigação crítica. Assim, surge aqui um tema que se vai revelar muito importante no meu futuro próximo: transgressão. (Port. 3)
O que então aprendi […] foi o quão distantes estamos no nosso quotidiano das razões que ditam regras e procedimentos, aplicando-os mecanicamente. (Port. 2)
A autonomia na ação docente tende a ser indissociável, para estes professores, do reconhecimento sobre a importância e a necessidade de questionar e valorizar os assuntos pedagógicos no ensino superior:
O ensino superior tende a relegar para segundo plano o investimento pedagógico com os estudantes. O desequilíbrio entre ensino e investigação, faz pender o prato da balança para o produtivismo académico dos “escritores de papers” (Nóvoa, 2018). A universidade tem vindo a empurrar a pedagogia para um lugar menor, ou de secundarização e desinteresse face ao esplendor da ciência, da investigação e da tecnologia. “Se não mudarmos o ambiente universitário, de pouco nos servirão as melhores intenções pedagógicas” (Nóvoa, 2018, p. 20). (Port. 5)
Ora, as questões pedagógicas, na atualidade, são necessariamente marcadas pelas mudanças preconizadas no quadro do Processo de Bolonha que importa questionar:
Destaco a importância de perceber o contexto em que vivemos: mudanças decorrentes do Processo de Bolonha, níveis de decisão curricular, diferentes teorias do currículo. Considero uma mais-valia a realização de um trabalho comparativo, que me ajudou a compreender o meu lugar como docente de algumas das UC no universo dos cursos congéneres. (Port. 13)
De resto, o currículo é um dos temas muito referidos, principalmente no que respeita a níveis de participação e de intervenção na construção curricular no ensino superior atual. O currículo parece funcionar como um campo de tensão paradoxal, no qual, por um lado - principalmente ao nível macro -, se dão os grandes embates entre os seus decisores e executores, ainda que, por outro - ao nível micro -, pareça existir algum espaço de autonomia para os professores.
Ao fomentar a reflexão em torno do currículo, a formação desencadeia um conjunto de constatações e indagações que permitem aos professores participantes construir uma relação com estas questões, tendo como ponto de partida as suas experiências singulares e os seus contextos particulares. Perspetiva-se, então, a participação e a intervenção tanto ao nível do currículo em ação, no quadro da interação com os estudantes, quanto na construção e na definição de currículos prescritos, ou seja, planos de estudo e estratégias de ensino-aprendizagem.
Sobre estas questões, os formandos refletem, num plano mais macro:
O que eu destaco que me proporcionou é um enquadramento estruturado do currículo não só como ponto focal das reformas educativas operadas a partir de iniciativas internacionais e supranacionais, como também enquanto arena onde se manifestam diferentes teorias do currículo que espelham forças conflituantes numa luta pela própria conceção de universidade. (Port. 2)
As conceções que eu tinha eram sobretudo baseadas numa noção técnica de currículo, orientada para a operacionalização de um conjunto de objetivos e conteúdos definidos em função de um entendimento prévio do saber necessário na área em questão (Morgado, 2009). Ora, por muito informada que possa ser, essa vertente técnica pela mudança para um paradigma centrado na aprendizagem, há claramente espaço para uma dimensão crítica do pensamento sobre o currículo, sem entrar aqui na discussão entre a teoria crítica e a teoria pós-crítica de que fala José Augusto Pacheco (2001). (Port. 2)
Paralelamente, os formandos mencionam, a um nível mais micro:
A pós-graduação permitiu adquirir auto-consciência de que a estrutura curricular interfere no modo de aprendizagem dos alunos e no modo de intervir e pensar do professor, não só como profissional, mas também enquanto pessoa. Assim, a organização e a oferta formativa “nacional” obriga a que os objetivos de ensino do docente se reduzam à aplicação de objetivos traçados a nível nacional, que em muitos dos casos se sobrepõe ao supranacional, normalizando a ação do docente e consequentemente a aprendizagem do aluno. (Port. 4)
Consequentemente, entre os participantes na pós-graduação, parece emergir o reconhecimento da construção curricular como um espaço possível e impactante de intervenção dos docentes, seja através da revisão de programas e de objetivos de disciplinas ou da proposta de novas unidades curriculares/cursos, seja ao nível das estratégias de ensino-aprendizagem e da relação pedagógica. Estes tipos de intervenções surgem nas escritas dos formandos:
Onde eu posso de facto ter alguma intervenção é junto dos colegas que têm essas responsabilidades, propondo alterações ao currículo das UC onde leciono, seja pela introdução ou eliminação de temáticas ou alteração dos trabalhos práticos e laboratoriais realizados. […] Há ainda o contexto da sala de aula, em particular nas aulas teóricas da minha responsabilidade, onde eu defino o currículo posto em prática. (Port. 1)
Ou seja, é e será através da minha influência no currículo atual que eu posso corporizar a minha visão preferida da função docente, uma que visa contribuir positivamente para a formação de cidadão, e não uma que me menoriza como máquina competente de conteúdos. [...] Desta forma, posso estrategicamente ultrapassar a barreira de impacto nulo no currículo explícito - cujas alterações me são vedadas explicita ou implicitamente - fazendo pontes diretas entre partes relevante do currículo prescrito (Oliva, 1993) a nível macro e o (meu) currículo (ou contra-currículo) oculto, que incluí, de diversas maneiras, a inclusão de uma visão globalizada, progressista, humanista do estado da arte nesta área científica, e especialmente de áreas ou temas sistematicamente excluídos da discussão e socialmente relevantes. (Port. 3)
Apesar de sentir que não sou 100% autónoma na articulação das diferentes unidades curriculares do novo currículo do mestrado, sinto, a par daquilo que tem sido a minha experiência nos últimos anos, que posso ser ativa na gestão pedagógica que faço nas aulas que leciono. E passo a explicar. Em termos da gestão curricular das unidades curriculares que lecionei ao longo do curso, nos últimos anos, sinto que não fui muito autónoma daquilo que são os programas das unidades curriculares, até porque já estavam definidos quando comecei a lecionar, mas senti-me muito autónoma na forma de os transmitir e aí sinto algum espaço de manobra. (Port. 8)
Globalmente, este conjunto de excertos sugere que, ao longo da formação, se terão produzido algumas transformações na relação com o ensino superior enquanto instituição, de certo modo reforçando a autonomia dos académicos. Neste âmbito, identificamos aspetos de natureza contextual decorrentes do Processo de Bolonha e o seu impacto no plano pedagógico, assim como a assunção de espaços de intervenção docente, nomeadamente no que respeita à gestão e à construção curriculares associadas ao questionamento sobre intenções e finalidades da formação académica no ensino superior atual.
7. NOTAS FINAIS
A tensão entre investigação e ensino - sobrevalorizando-se a primeira - é uma marca da profissão académica, em particular, desde a emergência da universidade moderna segundo o modelo humboltiano (Ó, 2019; Teichler, 2017). As mudanças curriculares e pedagógicas que vêm sendo preconizadas, designadamente no quadro do Processo de Bolonha, correspondem a desafios para o trabalho docente dos académicos que conferem maior visibilidade e importância à docência e à formação pedagógica (Alves, 2020; Nóvoa & Amante, 2015). Acresce que a recente crise pandémica poderá ter reforçado o reconhecimento da relevância da formação pedagógica, considerando que exigiu adaptações profundas nos modos de ensinar, o que pode ter estimulado a multiplicação de questionamentos e de reflexões sobre o trabalho docente no ensino superior (Deem, 2021).
Num estudo anterior sobre a mesma pós-graduação, reuniram-se evidências de que a formação pedagógica pode apoiar mudanças nas crenças e nas práticas dos professores, com efeitos na qualidade da aprendizagem dos estudantes (Almeida et al., 2022). Já a pesquisa apresentada neste artigo, além de oferecer algumas pistas sobre as motivações para procurar formação pedagógica, explora possibilidades abertas pela participação neste curso específico de formação em pedagogia do ensino superior no que respeita às perspetivas dos académicos sobre a docência, a profissão e o próprio ensino superior. Neste sentido, a análise dos portefólios dos participantes no curso sugere possibilidades de transformação, induzidas pela frequência do mesmo, que ajudam a lidar com as condições do exercício da profissão. Nas escritas destes professores, a formação aparece como um elemento-chave na construção de sentidos para a docência e para a profissão académica no ensino superior atual.
Os movimentos e argumentos apresentados pelos participantes, neste curso, parecem-nos estar estreitamente relacionados, por um lado, com a ideia de uma certa falta de preparação para o exercício da docência e, por outro, com um desejo de tomar posse da profissão como possibilidade de transformação. De certo modo:
Trata-se aqui de tomar posse de uma profissão, a de universitário, na qual se entra a partir do mérito científico, mas para a qual ninguém foi efetivamente preparado. Sendo assim, é natural que o lugar de docente nos ocupe a nós universitários ao invés de nós o ocuparmos; e daí a manutenção e reprodução inquestionada de tantas práticas de ensino e de trabalho anacrónicas e sem o menor sentido. (Ó, 2019, p. 26)
A tomada de posse da profissão académica é percetível em diferentes vertentes. Desde logo, no que respeita às estratégias de ensino-aprendizagem, à participação na construção do currículo e também à abertura para questionar modelos e finalidades do ensino superior na atualidade. Neste sentido, se a grande maioria dos académicos acede à docência a partir da investigação, a formação pedagógica pode contribuir para tomarem posse da docência como elemento constitutivo da profissão académica, reequilibrando a tensão entre investigação e docência.
Os instrumentos que a formação pedagógica permite construir e desenvolver, tanto do ponto de vista das questões curriculares e pedagógicas que passam a conhecer como no plano das práticas de questionamento, reflexão e partilha que se promovem, parecem resultar numa relação mais sólida e consistente com a docência e com a universidade. A intencionalidade geral da oferta formativa analisada prioriza a problematização e a pluralização de modos de exercer a docência como parte da profissão académica, mais do que promover a interiorização de modelos de atuação, o que parece reforçar a autonomia docente ao constituir-se como um espaço de encontro, de partilha e de construção conjunta de conhecimento que pode moldar uma comunidade de professores.
A tomada de consciência da participação dos docentes na construção curricular ilustra perfeitamente este novo horizonte de possibilidades de intervenção na universidade, quer alargando os sentidos da docência além da aplicação de técnicas de ensino ou de normativos em sala de aula, quer veiculando um entendimento sobre currículo como algo que não está previamente estabelecido e que depende da ação docente (Trindade, 2010). Deste modo, afirma-se a possibilidade de a formação pedagógica contribuir para a reflexão sobre finalidades e conteúdos da docência no ensino superior, contrariando a lógica do trabalho académico como um bem privado que tende a ser predominante atualmente (Borelli et al., 2019) e beneficiando do respetivo entendimento enquanto bem público construído coletivamente.
É expectável, por isso, que propostas de formação pedagógica de professores do ensino superior com as características e intencionalidades, como a que, aqui, foi pesquisada, permitam que os docentes enfrentem, com maior segurança e criatividade, os desafios curriculares e pedagógicos atuais. De facto, o estudo realizado sugere que este modelo de formação pedagógica pode contribuir para reequilibrar a tensão entre docência e investigação que marca a profissão académica. Simultaneamente, pode reforçar a autonomia docente e potenciar o surgimento de comunidades de professores do ensino superior.
Ainda considerando a atual expansão de ofertas formativas na área da pedagogia do ensino superior, designadamente em Portugal, os resultados deste estudo podem, no plano pragmático, contribuir para apoiar o planeamento de iniciativas neste domínio, bem como a escolha entre diferentes modalidades de formação pedagógica dirigida a professores do ensino superior. Em paralelo, a análise também permitiu explorar efeitos de uma modalidade particular de formação pedagógica, enriquecendo o conhecimento sobre as possibilidades existentes em matéria de ofertas formativas e as respetivas implicações nos modos de ser e de agir dos professores do ensino superior. Não obstante, importa continuar a desenvolver pesquisas sobre o trabalho docente e a formação pedagógica destes professores, aprofundando a compreensão sobre possíveis efeitos de diversas modalidades formativas, pois a profissionalização do ensino e o reconhecimento da respetiva qualidade são, cada vez mais, destacados nos planos nacional e internacional (Sluis & Huet, 2021).