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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.31 no.4 Lisboa dez. 2023  Epub 30-Dez-2023

https://doi.org/10.32932/rpia.2023.12.125 

ARTIGO ORIGINAL

Qualidade da prescrição de terapêutica de alívio na asma em cuidados de saúde primários

Quality of asthma relief therapy prescription in primary health care

1 Unidade de Saúde Familiar São Martinho de Alcabideche, ACeS, Cascais, Portugal


RESUMO

A atualização de 2020 da Global Initiative for Asthma (GINA) trouxe mudanças relativamente à gestão farmacológica dos doentes asmáticos, que perduram até à atualidade. Destaca-se a recomendação universal, em indivíduos com idade superior a 12 anos, da utilização de corticosteroide inalado (ICS) como terapêutica de controlo para uma redução do risco de agudizações, bem como a advertência para os riscos inerentes à utilização isolada de agonista beta2 de curta ação de duração (SABA) como terapêutica de alívio, sendo fortemente aconselhada a sua substituição ou associação com ICS desde os estádios mais precoces de doença. Objetivos: Avaliar a qualidade da prescrição de terapêutica de alívio na asma ligeira-moderada numa unidade de cuidados de saúde primários (CSP). Paralelamente, procedeu-se à análise demográfica dos fatores de risco e provas de função respiratória nestes doentes. Métodos: Estudo transversal descritivo que incluiu todos os utentes inscritos com seguimento na unidade de estudo, com idade igual ou superior a 12 anos, codificados com asma como problema ativo e com terapêutica inalatória de alívio prescrita nos dois anos prévios. Resultados: Foram incluídos 271 utentes depois de aplicados os critérios mencionados. A maioria não tinha ICS incluído na terapêutica de alívio (72,5%), estando 87,9% medicados apenas com SABA. Não havia registo de qualquer espirometria em 45,8% dos doentes. Os fatores de risco mais prevalentes eram a rinite alérgica, obesidade e tabagismo. Conclusões: A prescrição de terapêutica de alívio da maioria dos utentes não vai ao encontro das recomendações internacionais atuais, aumentando o risco de agudizações, hospitalizações e mortalidade associadas à asma. Também foi possível aferir a reduzida codificação de asma, a escassa avaliação e/ou reavaliação da função pulmonar com espirometria e a elevada prevalência de fatores de risco modificáveis bem conhecidos, onde a intervenção médica precoce tem um papel preponderante.

Palavras-chave: Asma; cuidados de saúde primários; função pulmonar; terapêutica

ABSTRACT

The 2020 update of the Global Initiative for Asthma (GINA) brought some updates regarding the pharmacological management of asthmatic patients. Noteworthy is the recommendation of inhaled corticosteroids (ICS) as a control therapy to reduce the exacerbation risk for ages above 12 years old, as well as the caution about the inherent risk concerning the isolated use of short-acting beta-agonists (SABA) as reliever medication, which should be replaced or associated with ICS from the earliest stages of the disease. Objectives: The aim of this study was to assess the quality of the prescription of reliever medication for mild-to-moderate asthma in a Primary Health Care unit. Simultaneously, the analysis of demographic data, risk factors and pulmonary function tests was carried out for the same sampled population. Methods: Descriptive cross-sectional study of internal evaluation that included all users enrolled in a healthcare unit, aged 12 years old and above, coded with asthma as an active problem and with reliever medication prescribed in the last 2 years. Results: 271 patients were included in the study after applying the above criteria. Most had no ICS included in reliever medication (72.5%), of which 87.9% were prescribed with SABA alone. Almost half (45.8%) had no record of any previous spirometry. The most prevalente risk factors observed were allergic rhinitis, obesity and smoking. Conclusions: The prescription of reliever medication for most users does not meet current international recommendations, increasing the risk of associated exacerbations, hospitalizations and mortality. It was also possible to assess the reduced codification of asthma, the poor assessment and/or reassessment of lung function with spirometry and the high prevalence of well-known modifiable risk factors, in which early medical intervention plays a major role.

Keywords: Asthma; lung function; primary health care; therapeutics

INTRODUÇÃO

A asma é um problema de saúde pública que afeta, em todo o mundo, pessoas de todas as faixas etárias e cuja prevalência tem vindo a aumentar nos últimos anos, principalmente na população infantil. Estima-se uma prevalência de 6,8% em Portugal 1,2.

A ausência de controlo sintomático adequado é um importante fator de risco para o desenvolvimento de agudizações futuras. Adicionalmente, são conhecidos vários fatores de risco (FR) potencialmente reversíveis para agudizações, nomeadamente utilização regular de agonista beta2 de curta ação de duração (SABA), terapêutica inadequada com corticosteroides inalados (ICS) (seja por não prescrição, má técnica inalatória ou fraca adesão terapêutica), obesidade, rinossinusite crónica, refluxo gastroesofágico (RGE), tabagismo, entre outros 1. A utilização regular de SABA, isto é, superior a 6 inalações por dia ou a um inalador de 200 doses por mês, é um sinal de alerta de que a atividade da doença subjacente está inadequadamente controlada e um indicador de risco de agudizações graves futuras e de morte associada à asma 3.

Foi na década de 90 que surgiram as primeiras preocupações de que o uso regular de beta-agonistas estivesse associado a uma maior mortalidade associada à asma, apesar da sua clara eficácia no alívio agudo da broncoconstrição4. A utilização de beta-agonistas está associada a vários efeitos adversos que, embora sejam menos frequentes com a utilização de inaladores beta2-seletivos, incluem tremores, taquicardia, palpitações, distúrbios metabólicos (hiperglicemia, hipocaliemia) e, mais raramente, miocardiopatia de Takotsubo 5,6,7,8,9. Também a heterogeneidade na resposta individual aos SABA durante uma agudização deve ser tida em conta, dependendo de fatores como a contribuição relativa da broncoconstrição versus inflamação/edema na origem da obstrução das vias aéreas, a via de administração, o mecanismo desencadeante da agudização (exercício, alergénios, infeção), a medicação que o doente toma concomitantemente, a idade, a duração dos sintomas e as diferentes medidas de resultado usadas para avaliar a resposta, tanto subjetivas (por exemplo, perceção de facilidade da respiração), como objetivas (por exemplo, melhoria no pico de fluxo expiratório ou espirometria) 5.

Além da correção de FR modificáveis e tratamento das comorbilidades associadas, a Global Initiative For Asthma (GINA) 2020 passou a recomendar que todos os indivíduos asmáticos com idade superior a 12 anos incluíssem ICS na sua terapêutica de controlo para uma redução do risco de agudizações, incluindo doentes com sintomas pouco frequentes, e que tivessem na sua posse um inalador de alívio ao qual pudessem recorrer em caso de agudização, ICS-formoterol em dose baixa ou SABA. De acordo com as mesmas orientações, e reforçada na atualização da GINA 2022, a administração exclusiva de SABA como medicação de alívio é francamente preterida relativamente à associação ICS-formoterol, estando recomendada a introdução de ICS desde os estádios mais precoces da doença. Assim, um dos principais objetivos das mais recentes recomendações da GINA foi precisamente superar a dependência terapêutica de SABA logo desde os estádios iniciais da doença, outrora considerada a terapêutica de alívio preferencial quando se pensava que a broncoconstrição era o componente fisiopatológico primordial da asma. Atualmente sabe-se que a componente inflamatória das vias aéreas tem um importante papel na fisiopatologia da asma, inclusive nos doentes com clínica ligeira e intermitente. Apesar do SABA permitir um alívio rápido e eficaz dos sintomas, a sua utilização em exclusivo está associada a um risco aumentado de agudizações e deterioração da função pulmonar. O recurso sistemático a SABA aumenta a resposta inflamatória e alérgica das vias aéreas e está associada a uma down-regulation dos recetores beta2, com respostas cada vez menos eficazes aos broncodilatadores em agudizações subsequentes 1.

A introdução precoce de ICS, por outro lado, mesmo em dose baixa, associa-se a uma redução marcada do número de hospitalizações e morte relacionadas com a asma, a um controlo eficaz e rápido dos sintomas durante uma agudização, a uma melhoria da função pulmonar (tanto maior quanto mais precoce a introdução do ICS) e a uma prevenção de agudizações futuras, incluindo as induzidas pelo exercício 1. Quando comparado com SABA em exclusivo, o uso de budesonida-formoterol em dose baixa como terapêutica de alívio demonstrou uma redução igual ou superior a 60% nas agudizações 10. A opção de administração de ICS em dose baixa sempre que for necessária a utilização de um SABA como alívio (no mesmo dispositivo ou em dois distintos) também se revelou mais eficaz do que o SABA isolado na prevenção de agudizações 11.

Relativamente à avaliação da função pulmonar, nomeadamente do FEV1 com espirometria, esta deve ser feita no momento do diagnóstico ou início do tratamento, depois reavaliada 3 a 6 meses após instituição do tratamento de manutenção e, posteriormente, de forma periódica a cada 1 a 2 anos, dependendo da estabilidade clínica do doente 1.

Pretendemos com este estudo avaliar a qualidade da prescrição de terapêutica de alívio nos doentes com asma ligeira-moderada estratificados entre os degraus de tratamento 1 e 4 segundo as recomendações GINA, de acordo com a melhor e mais atual evidência científica disponível, numa unidade de cuidados de saúde primários (CSP), a Unidade de Saúde Familiar São Martinho Alcabideche (USF SMA). Paralelamente, foram definidos como objetivos secundários a análise demográfica desse grupo de doentes, o estudo dos seus fatores de risco concomitantes e da regularidade com que são reavaliados do ponto de vista funcional com provas de função respiratória.

MÉTODOS

Estudo transversal descritivo, com avaliação interna de adequação técnico-científica da prescrição de terapêutica de alívio para asma, que incluiu todos os utentes inscritos na USF SMA com idade igual ou superior a 12 anos codificados com asma (R96 da Classificação Internacional de CSP - ICPC-2) como problema ativo e estratificados entre os degraus de tratamento 1 e 4, segundo as recomendações GINA 1. Este estudo decorreu entre 1 de agosto de 2019 e 30 de julho de 2021.

Foram definidos como critérios de exclusão doentes sob corticoterapia sistémica e/ou terapêutica biológica no contexto de asma, ausência de prescrição de terapêutica de alívio nos 2 anos prévios à colheita dos dados, síndrome de sobreposição ou codificação simultânea de asma e doença pulmonar obstrutiva crónica, e ausência de seguimento regular na unidade no período de estudo.

Além do processo clínico informático (SClinico®), foram ainda consultados: o Módulo de Informação e Monitorização das Unidades Funcionais (MIM@UF), o Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários (BI-CSP) e a Prescrição Eletrónica Médica - PEM® (SPMS, EPE).

As variáveis estudadas incluíram: idade, género, índice de massa corporal (IMC), codificação de asma (R96 da ICPC-2); codificação de tabagismo (“abuso de tabaco” - P17 da ICPC-2), inflamação crónica das vias aéreas superiores (“rinite alérgica”, “rinite crónica não especificada, nasofaringite crónica, faringite crónica” e “sinusite crónica” - R97, R83 e R75 da ICPC-2, respetivamente), RGE (“azia” e “doença do esófago (refluxo)” - D03 e D84 da ICPC-2, respetivamente), obesidade (T82 da ICPC-2) e gravidez (W78/W79 da ICPC-2), ano da última espirometria realizada e registada, e respetivo valor do FEV1, prescrição prévia e uso atual de SABA, ICS e/ou ICS+LABA; terapêutica de manutenção para a asma.

Os dados foram introduzidos e analisados com recurso aos programas de software informático Microsoft Excel® versão 2013 (Microsoft Inc., Redmond, Washington, Estados Unidos da América), FileMaker Pro® versão 16.0.6.600 (Claris International Inc., Cupertino, Califórnia, Estados Unidos da América) e Jamovi® versão 1.8.2.0 (The Jamovi Project, Sydney, Austrália), sendo as variáveis contínuas sumariadas através da média, mínimo e máximo, e variáveis categóricas através do cálculo de frequências absolutas (n) e relativas (%).

A base de dados foi protegida por palavra-passe alfanumérica aleatória, a que apenas os investigadores do projeto tiveram acesso, e armazenada em computador da unidade envolvida durante três anos, ao fim dos quais será destruída.

Este estudo obteve aprovação por parte da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT).

RESULTADOS

O presente estudo abrangeu um total de 447 utentes codificados como asmáticos, correspondendo a 3,6% dos utentes da USF. Deste universo de utentes, 60,6% (n=271) cumpriram os critérios de inclusão, sendo 65,3% mulheres (n=177) com média de idade de 49,8 anos (± 20 anos) e 34,7% homens (n=94) com média de idade de 42,4 anos (± 21 anos).

Por não cumprirem os critérios de inclusão estabelecidos foram excluídos 176 utentes (39,4%), maioritariamente por ausência de prescrição de terapêutica nos dois anos precedentes ao estudo (n=148) e, com menos expressão, por idade inferior a 12 anos (n=18) e outros motivos (n=10), nomeadamente codificação simultânea de asma e DPOC e ausência de seguimento regular na unidade no período de estudo.

No que respeita aos fatores de risco, salienta-se a rinite alérgica como o fator de risco predominante com 41,3% de utentes (n=112) codificados, seguida da obesidade em 26,9% utentes (n=73) e do tabagismo em 13,7% dos utentes (n=37).

Quanto à terapêutica de alívio, verificou-se prescrição em 71,3% (n=193) dos asmáticos. Nos restantes não se encontrava especificada a terapêutica de alívio, tanto no processo clínico como na PEM. Nos casos em que a terapêutica de alívio foi identificada, apenas em 27,5% estava prescrito um ICS.

Dos asmáticos com ICS incluídos na terapêutica de alívio (Figura 1), verificou-se que 83,0% (n=44) tinham esquema terapêutico com associação ICS/LABA, 9,4% (n=5) com ICS em monoterapia e 7,6% (n=4) com associação ICS/LABA e SABA em inaladores distintos. Neste último grupo de doentes constatou-se que a utilização de ICS/LABA era feita de forma diária ou pontual (sempre que utilizado SABA).

Figura 1 Terapêutica de alívio com ICS incluído 

Na terapêutica de alívio que não contemplava ICS (72,5% do total, Figura 2), 87,9% dos utentes (n=123) estavam medicados apenas com SABA (dos quais 90,2% com salbutamol e 9,8% com terbutalina), 5,7% (n=8) com anticolinérgico de curta ação de duração - SAMA (bro- meto de ipatrópio), 5,0% (n=7) com associação de SABA (salbutamol) e SAMA (brometo de ipatrópio), 0,7% (n=1) com associação de SABA (terbutalina) e LABA (salme- terol) e 0,7% (n=1) com LABA (vilanterol) e anticolinérgico de longa ação de duração - LAMA (brometo de umeclidínio).

Figura 2 Terapêutica de alívio sem corticóide inalado incluído 

A avaliação da função pulmonar através da espirome- tria (Figura 3) foi identificada no processo clínico de apenas 54,2% (n=147) dos utentes (que apresentavam regis- to de pelo menos uma espirometria), dos quais 42,9% tinham realizado o exame nos últimos dois anos e 57,1% num período igual ou superior a três anos. Em 28,6% dos asmáticos verificou-se a realização da última espirometria há mais de cinco anos.

Dentro do grupo de utentes com espirometria, o valor do FEV1 apresentava-se registado apenas em 36,2% (n=98) dos utentes, sendo a média de 86,1%, o valor mínimo 38,0% e o valor máximo 131,0%.

Figura 3 Avaliação com espirometria 

DISCUSSÃO

A prescrição de terapêutica de alívio da maioria dos doentes com asma ligeira-moderada na unidade de CSP avaliada não vai ao encontro das guidelines internacionais atuais, que não recomendam a administração de SABA como terapêutica de alívio em exclusivo, mas ICS-formoterol em dose baixa ou introdução de ICS pelo menos concomitantemente ao SABA, contribuindo para o aumento do risco de agudizações. Desta forma, a maior parte dos doentes avaliados não têm qualquer ICS prescrito como terapêutica de alívio (na sua vasta maioria estão medicados apenas com SABA), incorrendo num risco acrescido de hospitalizações e mortalidade associada. Sendo a prescrição terapêutica um ato médico central da prática clínica, não devem ser reservados apenas uns breve minutos finais da consulta à sua realização, devendo esta ser cuidadosa, integrada e personalizada; toda e qualquer prescrição farmacológica realizada deve integrar as comorbilidades do doente (que contraindiquem ou privilegiem uma opção em detrimento de outras possíveis), as prescrições prévias por parte de outros colegas que acompanhem o doente de forma prolongada ou pontual (por exemplo, num serviço de urgência) e as próprias preferências do doente.

Foi também possível aferir a reduzida codificação da asma quando comparada com a prevalência nacional (6,8%), fazendo prever uma elevada proporção de doen- tes por identificar (2). Podemos especular tratarem-se quer de casos por diagnosticar, quer de casos por codificar, pelo que uma melhoria neste âmbito contribuiria, respetivamente, tanto para uma diminuição da morbimortalidade associada ao mau controlo da doença por tratar, como para uma melhor e mais eficiente monitorização e gestão na alocação de recursos desta que é uma das doenças crónicas com maior impacto nos sistemas de saúde.

A escassa avaliação e/ou reavaliação da função pulmonar também foi um aspeto a salientar deste estudo, na medida em que 57,1% não haviam realizado espirometria nos últimos 2 anos (prazo máximo recomendado pelo GINA, devendo esta periodicidade ser encurtada em caso de instabilidade clínica ou funcional prévia), o que revela o fraco destaque que as doenças respiratórias crónicas ocupam na grande maioria das consultas no contexto dos CSP(1).

Os fatores de risco identificados com maior prevalência (rinite alérgica, obesidade e tabagismo, por ordem decrescente) não só estão de acordo com a evidência científica atual, como também correspondem a fatores modificáveis onde a intervenção médica precoce tem um papel preponderante(1).

O facto de o seguimento em consulta hospitalar de Imunoalergologia ou Pneumologia não ter sido definido como critério de exclusão pode ter contribuído para que os resultados obtidos neste estudo não se tenham revelado mais preocupantes, uma vez que neste contexto as orientações terapêuticas e a avaliação/reavaliação da função pulmonar seguem, à partida, as recomendações mais atualizadas e são verificadas com maior regularidade e enfoque comparativamente às consultas em CSP, em que outros problemas da esfera biopsicossocial dividem o tempo de consulta e a agenda do doente.

A criação de uma consulta específica em CSP dedicada ao doente respiratório seria uma proposta interessante que visaria a abordagem de questões particulares deste grupo de doentes, nomeadamente com consulta de enfermagem conexa (à semelhança do que se encontra disponível para o doente com diabetes mellitus, por exemplo), na qual poderia ser realizada de forma sistemática a revisão da técnica inalatória e do plano de ação personalizado escrito, a aplicação de escalas de controlo sintomático ou impacto funcional, a avaliação regular da função respiratória, a abordagem e gestão de comorbilidades e fatores de risco modificáveis, a promoção da literacia do doente para a sua automonitorização e a determinação dos objetivos conjuntos de acordo com as expectativas e desejos do doente, aspetos estes fulcrais na avaliação deste grupo de doentes crónicos mas que requerem tempo de consulta e disponibilidade dos profissionais de saúde.

Uma das maiores limitações do estudo é a dependência da correta codificação e registo clínico das variáveis analisadas. A subcodificação ou codificação indevida de diagnósticos e a ausência de registos de espirometrias representam vieses de informação relevantes que subestimam ou sobrestimam o número de doentes incluídos e os resultados deste estudo.

A prescrição terapêutica em papel, particularmente relevante em contexto privado, pode enviesar os resultados obtidos, que se basearam apenas em registos de prescrição eletrónica. O facto de ter sido utilizada a PEM® para verificação da prescrição terapêutica, permitindo o acesso a informação daquela que é realizada fora do Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) onde foi desenvolvido o estudo, ajudou a minimizar o número de casos com informação omissa, limitando-os então a situações pontuais de prescrição não eletrónica. Outra limitação ao estudo foi a ausência de confirmação da adesão de cada doente à terapêutica prescrita, tendo-se baseado a sua análise na consulta da PEM®, nomeadamente no registo de aquisição da respetiva medicação nas farmácias, que é falível e passível de não representar de forma fidedigna a adesão e correta administração do tratamento prescrito, até por intercorrências técnicas nos próprios sistemas informáticos.

A dificuldade na realização de provas de função respiratória em locais convencionados também constitui uma barreira ao diagnóstico e reavaliação destes doentes.

Na tentativa de ultrapassar este problema a ARSLVT implementou a realização periódica de espirometrias a nível dos ACeS que, no entanto, se revelam manifestamente insuficientes para dar resposta à população servida pelos ACeS.

Algumas das áreas que necessitarão de mais estudo serão a análise comparativa dos ganhos em saúde dos doentes com ICS incluído na terapêutica de alívio e daqueles que não o têm prescrito, nomeadamente o número de agudizações e hospitalizações de cada grupo de doentes incluídos neste estudo, a análise com cruzamento de variáveis incluídas neste estudo, nomeadamente dados demográficos e comorbilidades, a avaliação de atualização científica dos médicos de família da unidade envolvida, de forma a identificar eventuais lacunas na sua atualização científica e a melhorar a prestação de cuidados a estes doentes. Por fim, o alargamento do estudo a outras unidades funcionais, por forma a confirmar a abrangência dos resultados apresentados.

A ausência de cumprimento das guidelines relativas à abordagem da asma constitui um problema global. Moloney, M. et al. e Fletcher, M. et al. são alguns exemplos de grupos de trabalho que se dedicaram ao estudo de fatores determinantes nesta problemática, como a ausência de políticas de saúde que estimulem a melhoria de cuidados, a falta de atualização científica dos profissionais de saúde e o acesso limitado a provas de função respiratória. Por outro lado, também identificam medidas e oportunidades que otimizem o diagnóstico e a qualidade de cuidados prestados aos doentes asmáticos, nomeadamente a integração do processo clínico do doente nos vários sistemas informáticos, a utilização de ferramentas eletrónicas de apoio à consulta ajustadas às dificuldades e desafios em CSP, a disponibilização de recursos de qualidade (nomeadamente diagnósticos), a estimulação através de incentivos, a promoção do trabalho em equipa e a criação de ferramentas de avaliação do desempenho dos profissionais de saúde orientadas para os ganhos em saúde 12,13. Fletcher, M. et al. ressalvam que o sucesso será tanto maior quanto mais diversificadas forem as intervenções neste contexto13.

CONCLUSÃO

Em conclusão, a prescrição de terapêutica de alívio da maioria dos utentes asmáticos na unidade funcional de CSP avaliada não vai ao encontro das recomendações internacionais atuais, incorrendo em última instância num maior risco de agudizações, hospitalizações e mortalidade associadas.

Foi também possível aferir a reduzida codificação de asma, a escassa avaliação/reavaliação da função pulmonar e a elevada prevalência de fatores de risco modificáveis nestes doentes. Tais conclusões reforçam a necessidade de abordagem da asma, da sua reavaliação e da sua intervenção multifatorial e integrada em CSP.

Torna-se portanto pertinente a revisão da prática clínica no âmbito da prescrição terapêutica, particularmente de alívio, e da reavaliação funcional dos doentes asmáticos nos CSP. Os CSP são o local onde habitualmente é feito o diagnóstico e seguimento longitudinal das formas ligeiras-moderadas de asma, mas também o local de recurso de muitos doentes caso a agudização seja refratária à abordagem inicial no domicílio e o local de renovação de receituário crónico, sendo assim suscetível à atualização da prescrição terapêutica segundo a revisão do estado da arte.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 11 de Janeiro de 2023; Aceito: 06 de Julho de 2023

Autor correspondente: João R. Nunes Pires Rua Rio das Grades, piso 0, Centro de Saúde de Alcabideche 2645-559 Alcabideche, Portugal E-mail: joaorpiresmd@gmail.com

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