1. Portugal e E.U.A.: breve contextualização sobre as origens do Serviço Social na academia1
A institucionalização da formação universitária em Serviço Social é, nos casos português e norte-americano, contemporânea e consequente de um conjunto de condições sociais e teóricas2 que lhes subjazem. Quer-se com isto dizer que tal não é inócuo ao desenvolvimento de outras condições, de pendor teórico, político e social, que vieram a fazer parte de um movimento progressista, encabeçado por uma classe média educada, interessada em apresentar soluções para a explosão de problemas sociais que, pelo impacto que tinham no funcionamento social, bem como no domínio das relações sociais, assumiam cada vez maior importância, quer no Portugal do século XX, quer nos E.U.A. do século XIX. Com efeito, em diferentes períodos da história portuguesa e americana, cronologicamente em primeiro lugar nos E.U.A. e só posteriormente em Portugal, os dois países experienciaram um crescimento intenso dos problemas sociais, decorrentes das transformações estruturais próprias da modernidade. Típicos das sociedades modernas, os fenómenos sociais vinculados ao desenvolvimento massivo da maquinaria e da produção industrial, como as condições de trabalho marcadas pela precariedade, os baixos salários, as condições habitacionais deficientes, a desagregação familiar, a pobreza entre outros, chamavam a si formas de resolução que, para além de não poderem ser casuísticas, teriam de ser diagnosticadas, avaliadas e respondidas de forma consistente e responsável. Esta forma estruturada de conceber uma resposta social sólida aos problemas sociais que a modernidade trazia consigo consiste na institucionalização da educação em Serviço Social.
1.1. Do longo e lento processo de institucionalização português
Em Portugal, a emergência do Serviço Social enquanto área disciplinar foi fortemente influenciada pelo regime ditatorial vivido desde a década de 1930. A ação social da época é da responsabilidade da Obra das Mães pela Educação Nacional3, sendo ainda prévias à Constituição de 1933 as primeiras tentativas de edificação da formação em Serviço Social (1928), com o maior propósito de formar os “profissionais” inseridos nos serviços de justiça de menores e 6 anos mais tarde para formar “observadores” de psicologia juvenil e sociais (Martins, 1995). Por conseguinte, a primeira proposta de institucionalização da formação académica em Serviço Social ocorre em 1934, pela autoria da Condessa de Rilvas e por Bissaya Barreto, o que veio a dar origem à criação do Instituto de Serviço Social em Lisboa (1935) e à Escola Normal Social em Coimbra (1937). Na sequência da criação destas duas escolas, surge em 19394 um plano de formação que, ainda que débil, era já desafiador para a época. Aliás, encontra-se aí presente uma certa valorização da dimensão tácita do conhecimento na sua interdependência com o conhecimento abstrato em Serviço Social, ao ressalvar a necessidade de um ensino teórico-prático. Mas é também aí apresentado um trajeto de formação marcado pela pluridisciplinaridade, onde ocorre uma preocupação de compreensão e intervenção sobre o indivíduo nas suas diversas dimensões de vida, nomeadamente na dimensão da saúde e do trabalho, da vida social, mental e moral, e na sua relação com a prática do Serviço Social. Não podemos deixar de destacar o facto de que também está presente nesse Decreto-Lei a instauração formal de uma formação académica para um público feminino, o que reproduz uma matriz patriarcal e de género onde são remetidas às mulheres a formação e profissionalização para o cuidado. Mas é importante também considerar uma certa matriz de pensamento individualizante onde se atribui ao indivíduo a responsabilização pelos problemas sociais. Esta operacionalização formal de um conjunto de princípios orientadores é revista em 195656 com a introdução de alterações ao plano de estudos que remetem para a necessidade de entender os problemas sociais como decorrentes das transformações associadas à evolução da sociedade portuguesa. Pese embora a formação em Serviço Social continuasse a ter subjacente um preceituado de valores católicos, esta estaria agora mais alinhada com os valores associados aos direitos humanos numa perspetiva não religiosa. Note-se ainda, uma primeira injeção de carga sociológica no Serviço Social português induzido pelo próprio Decreto-Lei ao referir que:
“Decorridos dezasseis anos verifica-se a necessidade de introduzir certas alterações no preceituado pelo referido decreto lei, alterações destinadas principalmente a conseguir uma correspondência mais perfeita às exigências da evolução social portuguesa, que semelhantemente à de outros países, reclama-se de cada vez maior incremento às atividades de grupo, educativas e culturais, aos movimentos de organização das comunidades e aos estudos de caráter sociológico em que essas atividades e movimentos forçosamente têm de basear-se.” (Decreto Lei nº 40 678, nº1)
Em 1960, o Serviço Social via-se legitimado pela academia enquanto curso superior, a ser lecionado nos três institutos de ensino superior particulares, vendo novamente o seu plano de estudos reformulado, iniciando o seu distanciamento da prática-voluntarista para assumir uma prática mais profissionalizante e metódica. Nos anos 60 a formação académica em Serviço Social inicia o seguimento de modelos de formação já erigidos em democracias ocidentais. O currículo de formação de quatro anos ao nível do ensino superior tinha uma forte influência dos métodos clássicos de Serviço Social e conceptualizava os direitos sociais e humanos como principal preocupação do Serviço Social. Num contexto “ditatorial” e de “censura” da liberdade de expressão, era vedada a algumas ciências sociais, como é o caso da Psicologia e da Sociologia, uma formação académica própria, reconhecendo-se apenas os centros de formação em Serviço Social, como o único quadro de desenvolvimento das ciências sociais desejado até então em Portugal. Parafraseando Branco et al.,
“sem as liberdades fundamentais e a democracia política, num país rural e pobre, a consciência da população face aos seus direitos é estreita, reina então o corporativismo católico, o anti-liberalismo e o anti-Estado Providência, que vão arregimentar e domesticar o Serviço Social, inserido nos campos da assistência (...) e da previdência.” (Branco et al., 2005:2)
Foram introduzidas disciplinas específicas da Filosofia, das Ciências Sociais e da Psicologia, mas sobretudo caminhava-se para os processos metodológicos do Serviço Social de casos. Ainda que essa modificação no plano de estudos possa ter ocorrido, segundo Ferreira (2009) as monografias produzidas não demonstravam grande distanciamento da primeira escola de pensamento, mantendo a caracterização dos territórios e a valorização dos costumes e das tradições. Como Santos et al. (2016) referem, deve-se ter presente que a criação das primeiras escolas da área ocorre no quadro do Estado Novo que, apenas em 1974, conhece o seu fim. O que significa que, numa história de 85 anos de ensino em Serviço Social, 39 desenvolveram-se sob um regime fascista, totalitário e de censura. Na sequência do 25 de abril de 1974 e, consequentemente das transformações que daí decorreram, devido ao colapso do Estado ditatorial e à institucionalização do Estado de direitos, a formação em Serviço Social reconcetualizou-se. Na verdade, face a um Estado-Providência que não se concretizou em pleno face ao “espírito” investido nos textos constitucionais, a segurança social (sua representante institucional por excelência) viria, no entanto, a ser alargada a todas as franjas populacionais, assistindo-se à democratização dos sistemas de ensino e de saúde, à imagem do que Marshall considerava necessário para a plenitude da cidadania social. Tal processo levou ao questionamento da formação dos/as assistentes sociais, a fim de fazer evoluir as pesquisas positivistas e funcionalistas, que até então nunca tinham sido verdadeiramente criticadas. Neste novo contexto social, político, cultural e económico, o modelo estrutural de formação depara-se com novas mudanças, onde o marxismo surge como maior referência teórica, amplamente influenciado pelo do Serviço Social brasileiro. Em 1985, o plano de estudos em Serviço Social é alterado de quatro para cinco anos, suportado num perfil de formação interventor-investigador. Por força de movimentos reivindicativos das instituições de ensino do Serviço Social que promoveram o aumento da duração do curso, das associações de estudantes das escolas, da Associação dos Profissionais de Serviço Social (fundada em 1978) e do Sindicato dos Profissionais do Serviço Social e do da função pública, levaram a que, em 1989, as escolas de Lisboa, de Coimbra e do Porto obtivessem do Estado o reconhecimento do grau de licenciatura em Serviço Social, comprometidas a adotar o modelo universitário. Em 1995, o então Ministério da Educação, tutelado por Eduardo Marçal Grilo, autorizou o curso ao nível de mestrado em escolas privadas em Lisboa e no Porto e, no ano 2000 abria pela primeira vez a licenciatura em Serviço Social numa universidade pública (dos Açores), que até então apenas o ensino superior privado assegurava. Já em 2003, o Instituto Superior de Serviço Social do Porto estabelecia um protocolo com a Universidade do Porto para criar o primeiro programa doutoral em Ciências do Serviço Social, seguindo-se-lhe no mesmo ano a Universidade Católica, e, em 2004, o Doutoramento em Serviço Social promovido pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) em coorganização com o Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa.
1.2. À prévia e rápida institucionalização norte-americana
A edificação da formação em Serviço Social nos E.U.A. tem a sua origem em finais do século XIX. Olhada em primeiro lugar como uma vocação e mais tarde como uma profissão, a formação em Serviço Social neste país surgiu como o produto da mentalidade de uma certa engenharia social, que expressa a ideia de que os problemas podem ser solucionados através da aquisição e aplicação do conhecimento (Reid et al., 2006), o que convoca a noção de ciência aplicada ao Serviço Social desde a sua fundação. É contemporâneo ao final do século XIX, bem como da afirmação de um certo movimento social progressista, o desenvolvimento e institucionalização das ciências sociais como disciplinas científicas. Surgiam cada vez mais, nas instituições de ensino superior americanas, cursos relacionados com a interpretação e tratamento dos problemas sociais como a pobreza, o pauperismo, a delinquência e o crime, e havia uma preocupação crescente em determinar se estes fenómenos teriam origem num qualquer defeito individual, ou se, pelo contrário, radicariam num funcionamento deficiente no espectro social. É nesta sequência que temas como a ética social e a filantropia aplicada passam a fazer parte dos currículos das recém-criadas ciências sociais das universidades, nomeadamente dos programas da Sociologia e da Economia. Para além dessa condição em particular, existem, de acordo com Austin (1997) duas outras condições consideradas de extrema importância para o futuro da educação em Serviço Social nos E.U.A.: (i) o estabelecimento da Conferência Nacional de Caridade e Correção7 que chamou atenção para a organização e gestão das instituições de custódia estatais e locais; e, (ii), numa perspetiva de mudança de paradigma feminino, nomeadamente no que se refere ao abandono da perspetiva tradicional da mulher como esposa e dona de casa, o estabelecimento das universidades femininas, de carácter privado, bem como as universidades públicas mistas (Newcomer, 1959, apud Austin, 1997), que viriam a permitir a formação estruturada, no âmbito ainda primário das ciências sociais, das mulheres. Com efeito, enquadradas num espírito reformista progressivo que fazia oposição ao modelo norte-americano de bem-estar capitalista, tornaram-se cada vez mais consistentes as intervenções das mulheres no cuidar profissionalizado, nomeadamente nas questões da infância, e nas questões da opressão e da exploração familiar, típicas dos grandes espaços urbanos aos quais numerosas famílias de imigrantes tinham chegado para trabalhar. A emergência do Serviço Social e a sua profissionalização surgiram num contexto marcado pelo esforço de indivíduos que voluntariamente tiveram a iniciativa de procurar respostas face à “Questão Social” do paradigma que se instaurava, nomeadamente marcado pelas consequências de uma afirmação capitalista selvagem. No fim do século XIX, os E.U.A. viviam um contexto paradoxal, pois se por um lado teria havido lugar à expansão da economia produtiva por via da industrialização, assistira-se, por outro lado, ao aumento da pobreza, do desemprego, da negligência e do abandono de crianças e a vulnerabilidade das pessoas portadoras de deficiência crónica. Passando de um modelo de estado, pré-guerra civil, assente na propriedade e na escravatura, e num modelo cidadão de luta pela liberdade dos oprimidos, nos finais do século XIX, assiste-se a um novo reformismo, assente na preocupação de intervir com os mais pobres, particularmente as crianças. Com o eclodir de instituições cuja principal função seria a prestação de assistência aos mais pobres e necessitados, surgiram cerca de 1880 a Charity Organization Society (COS) e as Settlement Houses. Implementada, inicialmente em Buffalo no ano de 1877, tratava-se de uma organização que viria a ser a face da “caridade científica”, nas palavras de Reid et al.,
“termo cunhado pela COS, que expressava perfeitamente a seguinte ideia: aplicar os métodos e o rigor da ciência, e fazer pelo bem-estar social o que essa abordagem fizera para a medicina e pela engenharia. O trabalho social, como caridade científica, consistia em estudar o problema da dependência, reunir dados, testar teorias, sistematizar a administração e desenvolver técnicas que levassem a uma “cura”.” (Reid et al. (2006: 470)
Para desenvolver essa caridade moderna e científica, havia a necessidade de conhecimento objetivo, sistematizado e imparcial acerca dos fenómenos em causa, para que os assistentes sociais pudessem compreender em profundidade o caráter e a organização da ordem social, a natureza e o impacto da mudança social e serem competentes nos meios de trabalhar com os indivíduos para efetuar a mudança. A constituição das COS incluía investigadores (remunerados) e os designados “Friendly Visitors” (voluntários) que visitavam os utentes, realizavam entrevistas e faziam o aconselhamento e orientação assistencial. Ao trabalhar de forma organizada, as COS vieram a dar origem ao planeamento social na prática comunitária e os seus investigadores viriam a ser os precursores dos trabalhadores sociais nos E.U.A.. Paralelamente ao trabalho desenvolvido pelas COS, as Settlement Houses foram estabelecidas nas grandes cidades nos Estados Unidos, durante a década de 1880, e visavam a criação centros comunitários em áreas urbanas. Os trabalhadores das Settlement Houses trabalhavam para ajudar a socializar os novos imigrantes nas cidades. Numa linha de trabalho de grupo e de articulação com atores sociais locais, tinham como principal função promover a educação, aconselhamento e a orientação para a integração dos indivíduos, usualmente imigrantes e pobres, na comunidade. Os trabalhadores destas casas eram normalmente indivíduos de classe média que aí operavam em regime de voluntariado e que trabalhavam em conjunto com cientistas sociais académicos, oriundos das universidades circundantes, e habitualmente alocados a disciplinas académicas que trabalhavam os problemas decorrentes da urbanização. A mais representativa deste movimento é sem dúvida a Hull House, fundada em Chicago em 1889, por Jane Adams e Ellen Gates Starr. Este conjunto de aspetos viriam a ser os antecedentes da criação dos cursos de Serviço Social nas instituições de ensino superior americanas, especialmente preocupadas com a ciência aplicada aos problemas sociais concretos e com um móbil de se encontrar ao serviço do interesse público. A primeira geração de escolas de Serviço Social tem a sua existência desde finais do século XIX até ao final da década de 20 do século XX (Austin, 1997). Não é despiciendo considerar que esta primeira geração corresponde, em termos temporais, a um conjunto de ocorrências sociais e políticas importantes e que determinaram, de certa maneira, a orientação perseguida por essas escolas, em particular, a intervenção ao nível da proteção dos veteranos de guerra e os seus dependentes, e as mães e filhos desprotegidos. São vários os autores que radicam as primeiras conceptualizações sobre a necessidade de formação estruturada em Serviço Social num artigo apresentado por Anne Dawes, em 1893, intitulado “The need for training schools for a new professions”. Na verdade, para além da necessidade estruturada de formação específica, estava diagnosticada também a incapacidade do grupo designado de “visitantes amigáveis” (Reid et al, 2006: 470) conseguir responder às necessidades que as pessoas em situação de vulnerabilidade social viviam. Nesse sentido, a proposta de Dawes fazia a apologia da sistematização e transmissão de um vasto conhecimento acumulado pelas pessoas que se vinham dedicando à caridade, o que viria a ser reforçado pelo artigo de Mary Richmond (1897) intitulado “The need of a training school in applied philantropy”. É na sequência da tomada de conhecimento destes dois artigos, que ocorre em 1897, a Escola de Verão de Filantropia e Organização da Caridade, em Nova Iorque, naquela que viria a ser a primeira universidade americana a desenvolver um programa de formação em Serviço Social, a Universidade de Columbia. Esta Escola de Verão consistiu num programa de formação que decorreu ao longo de seis semanas, composta por palestras, visita a organizações de caridade públicas e privadas e trabalho de campo supervisionado. Em 1903, o programa da escola foi ampliado para incluir um curso de inverno de seis meses, que, em 1904, foi estendido para um ano, passando a designar-se New York School of Philanthropy. A primeira geração de escolas em Serviço Social teve a sua concretização nas cidades de Boston, Nova Iorque e Saint Louis, tendo vindo a multiplicar-se ao longo das primeiras décadas do século XX. De acordo com Austin (1997) e Shoemaker (1998), os primeiros currículos em Serviço Social enfrentavam dois modelos de conceptualização. Se por um lado, se advogava a existência de um programa construído, em grande parte, em torno da teoria das ciências sociais e potencialmente preparando os alunos para cargos em administração organizacional, análise de políticas com foco em reformas sociais ou ensino académico, havia por outro lado, a defesa de um programa de formação centrado na ação, que enfatizava os métodos de prática para os profissionais de primeira linha, principalmente em organizações voluntárias de Serviço Social. A esta divergência não é inócua a formação académico-científica dos diretores de escola ou de curso, e como nos mostra Austin (1997), no caso da primeira escola de Serviço Social, decorrente dos debates criados na Escola de Verão, o ensino do Serviço Social seguia uma vertente assente na prática quotidiana dos trabalhadores que todos os dias enfrentavam os problemas sociais e conviviam com os indivíduos em situação de vulnerabilidade. Tal perspetiva mudou quando em 1907, Samuel McCune Lindsay, membro do corpo docente do Departamento de Economia da Universidade de Columbia, assumiu a direção da Escola. Sob a direção de Lindsay o currículo em Serviço Social viria a desenvolver-se em torno da ciência social aplicada, com a instrução prática no trabalho de caridade reduzida a um papel muito limitado (Meier, 1954 apud Austin, 1997). Alvo de críticas ferozes em torno da não preparação prática dos trabalhadores sociais, o mesmo programa viria a ser reformulado e ampliado para um currículo de dois anos, que enfatizava o uso de organizações comunitárias como laboratórios de formação, o uso indutivo de material de caso no ensino da prática de trabalho social e o emprego de indivíduos com experiência de trabalho social como membros do corpo docente. É neste período que surge a obra curial sob a autoria de Mary Richmond “Social Diagnosis” (1917). Nesta obra, a autora promove a defesa de que o trabalho de caso era uma técnica exclusiva do serviço social e que poderia, portanto, fornecer a resposta para a imperiosidade do serviço social, nomeadamente para o seu próprio autoconhecimento e a aquisição de distintas competências. Para isso contribuiriam as várias componentes do seu modelo de formação, designadamente, a avaliação e reabilitação de indivíduos e famílias a partir de um plano de primeiro ano focado em métodos práticos gerais, a participação dos estudantes em contexto de posto de trabalho, nomeadamente em organizações dedicadas ao serviço de apoio social, e a existência de professores de Serviço Social com experiência de terreno. Ao longo das duas primeiras décadas do século XX foram crescendo, como já dissemos, o número de escolas e universidades que ofereciam a formação em Serviço Social. Este florescimento tinha como principal característica a sua diversidade, na medida em que pairavam sobre a criação dos currículos a filiação das escolas, por exemplo, em termos de confissão religiosa e etnicidade.8 Na sequência destes primeiros programas de formação em Serviço Social surge um segundo grupo de escolas com programas de graduação em ciências sociais em algumas universidades públicas, nomeadamente a Universidade do Minnesota e a Universidade Pública do Ohio, que viriam também a ser membros fundadores da Associação de Escolas de Formação em Serviço Social. Pese embora a sua heterogeneidade inicial, eram programas marcados por alguns traços comuns, nomeadamente em termos de institucionalização. Com efeito, nasceram todos nos departamentos de Sociologia existentes, evoluíram para um curso de ciências sociais aplicadas, terminando por se autonomizarem enquanto curso de Serviço Social. De acordo com Austin (1997), alguns dos programas iniciais de Serviço Social progrediram para cursos de pós- graduação e mais tarde para mestrado, e tiveram sempre na sua base uma certa ligação à política social do Estado e a um certo desejo social reformista encabeçado pelo corpo docente dessas universidades. Com o Social Security Act (1935) foram estabelecidos programas federais que abrangiam o seguro por velhice, desemprego, segurança social e serviços sociais, programas supervisionados e financiados pelo governo federal. Por esse motivo, vários foram os Estados que contrataram novos funcionários, a maioria deles sem experiência de trabalho social, para atuar nesta rápida expansão de serviços nos sistemas de segurança social. Foram fornecidos programas de formação e variadas universidades públicas introduziram programas de educação e graduação em Serviço Social. Enfatizando a necessidade de formação superior, as escolas estabelecidas de Serviço Social, concentradas em áreas urbanas e muitas vezes em universidades privadas começaram a criar programas de pós-graduação. A criação de cursos deste género tinha o patrocínio de duas organizações distintas que representavam os dois movimentos em educação para o Serviço Social, mas igualmente importantes: a American Association of Schools of Social Work (AASSW) e a National Association of Schools of Social Administration (NASSA). O percurso da institucionalização da formação em Serviço Social nos E.U.A. ocorreu sempre com uma característica dicotómica. Os programas de pós-graduação em faculdades e universidades privadas geralmente preparavam os estudantes para cargos em programas sociais de caridade e em serviços especializados de Serviço Social dentro das organizações anfitriãs, como hospitais, clínicas de orientação infantil, escolas públicas. Por outro lado, os programas de graduação nas universidades públicas foram criados em grande parte para preparar os estudantes para trabalhar em programas de segurança social pública e programas municipais em ambientes rurais e urbanos.
2. O doutoramento em Serviço Social, ou sobre como formar para a prática de uma ciência integrativa
2.1. Da formação academicamente determinada
A educação de base em Serviço Social nos E.U.A. teve início, como já tivemos oportunidade de demonstrar em finais do século XIX, não tendo demorado mais de duas décadas a progredir no sentido de um ciclo de estudos superior e em particular no âmbito da formação doutoral. Na verdade, data de 1920 o primeiro ciclo de formação doutoral em Serviço Social, na Bryn Mawr Graduate School of Social Work and Social Research, na costa no leste dos E.U.A., geograficamente localizada nas cercanias da capital do Estado da Pensilvânia - Filadelfia. Com efeito, esta universidade, e em particular a sua oferta em termos de formação doutoral, é caracterizada como sendo uma das primeiras universidades femininas a oferecer formação graduada ao nível do terceiro ciclo de estudos, sendo designada como um sinal que os seus fundadores deram à recusa em aceitar as limitações impostas por outras instituições às mulheres no que se refere ao sucesso intelectual. Outras universidades se lhe seguiram, nomeadamente a University of Chicago School of Social Service Administration (1920), a Catholic University School of Social Service (1947) e a University of Pennsylvania School of Social Policy and Practice (1948) (Acquavita et al., 2015; Kurzman, 2015;), todavia a Grande Depressão da década de 1930 e a II Guerra Mundial funcionaram como travões ao desenvolvimento da formação doutoral em Serviço Social. De acordo com Kurzman (2015) da mesma maneira que condições estruturais importantes exteriores à academia condicionaram em decréscimo a existência de doutoramentos, condições políticas consonantes com uma certa inovação social propiciaram um novo retomar da preocupação com a implantação de programas doutorais em Serviço Social. Com a administração Kennedy (1960-1963), num panorama de grande investimento social, iniciaram-se projetos, nomeadamente no bem-estar público e na prevenção da delinquência juvenil, para os quais foram devotados importantes fundos estatais. Este tipo de programas de investimento económico-financeiro e social, cujo projeto inicial tinha incidido sobre o trabalho no âmbito da saúde mental, viria ainda a ser seguido pela administração Johnson (1963-1969), que tinha criado um programa de luta contra a pobreza dirigido por entidades semipúblicas. Em qualquer uma das administrações e dos seus programas de investimento e inovação social, os assistentes sociais foram personagens principais, e a formação doutoral em Serviço Social viria também a sê-lo. De acordo com Kurzman (2015) entre 1965 e 1975, vinte novos programas doutorais em Serviço Social teriam tido início. Esta projeção da formação doutoral em Serviço Social teve o seu início quando, em 1948, a Associação Americana de Escolas de Serviço Social (AASSW9) criou uma comissão dedicada ao desenvolvimento do Currículo Avançado em Serviço Social. Esta comissão viria a publicar, a partir de 1953, uma série de monografias onde viriam a ser definidos os critérios da formação doutoral em Serviço Social, com especial incidência para a metodologia de pesquisa, mas também para o ensino do Serviço Social (Acquavita et al., 2015), especificamente na necessidade de detenção de um grau de nível doutoral para ensinar Serviço Social. Na sequência do escrutínio a que os programas doutorais em Serviço Social estiveram expostos na década de 70, viria a ser criada uma comissão para definir a estrutura e garantir a qualidade dos doutoramentos em Serviço Social, em 1972, pelo CSWE10, especialmente vocacionada para abordar a estrutura em transformação da educação em Serviço Social nos E.U.A.. Várias recomendações foram promovidas por esta Comissão, e por conseguinte, daqui viria a sair a instituição que, desde 1975 nos Estados Unidos, apresenta as linhas orientadoras dos programas doutorais em Serviço Social - o Group for the Advancement of Doctoral Education in Social Work (GADE)11. Publicado pela primeira vez em 1985, o Guia GADE pretendeu recolher informação sobre todos os programas doutorais existentes nos E.U.A.. Na sua primeira edição, ficaram registados 49 programas de formação doutoral em Serviço Social, 30 dos quais no seu formato tradicional, de pendor mais académico - os chamados PhD, e 19 dos quais no seu formato de aplicação profissionalizante - os chamados DSW. É aliás esta a sua característica distintiva, porém não sem luta conflitual no campo do Serviço Social. O Group for the Advancement of Doctoral Education in Social Work (GADE) elaborou um conjunto de orientações pelas quais os programas de doutoramento em Serviço Social devem guiar-se. Entendidas não como prescritivas, compilam, todavia, um conjunto de princípios base a que todos os programas de doutoramento em Serviço Social devem aspirar. Para conseguir compilar o documento final aprovado em abril de 2013, este grupo recorreu a trabalhos prévios desenvolvidos por anteriores direções do GADE, para além de um estudo desenvolvido por Anastas (2012) sobre a educação doutoral em Serviço Social, bem como uma iniciativa nacional levada a cabo por Brekke (2012) e Fong (2012) em torno da ciência do Serviço Social. Para além destas fontes, e de acordo com o GADE (2013: 1) foi realizado um estudo nacional em dezembro de 2012 no qual participaram 416 docentes, administradores universitários e estudantes de Serviço Social, e onde era solicitado aos participantes que expressassem a sua opinião sobre a importância de vários aspetos num programa de doutoramento em Serviço Social. Esse documento orientador começa por definir o propósito da educação doutoral em Serviço Social, que em nada é diferente da formação doutoral noutras disciplinas científicas. Com efeito, os estudantes doutorais são preparados para funcionarem como administradores da disciplina, isto é,
“aquele que gera e avalia criticamente o novo conhecimento, compreende como o conhecimento está a transformar a disciplina e o ambiente geral à sua volta, e comunica o seu conhecimento de uma forma responsável aos outros. (Walker et al. 2008 apud GADE, 2013). Ou seja, os doutorados em Serviço Social melhoram a arte e a ciência do Serviço Social gerando, disseminando e conservando o conhecimento que informa e transforma a prática profissional. Os domínios da investigação do trabalho social derivam da missão e do propósito do Serviço Social: “melhorar o bem-estar humano e ajudar a atender às necessidades de todas as pessoas, com atenção especial às necessidades e ao empoderamento das pessoas vulneráveis, oprimidas e vivendo na pobreza” (NASW Code of Ethics, apud GADE, 2013)12.
Neste sentido são três as grandes áreas relativamente às quais os programas de formação devem desenvolver nos estudantes competências específicas e conhecimento, nomeadamente no que se refere ao (i) conhecimento profundo do Serviço Social enquanto profissão e enquanto disciplina, (ii) investigação e (iii) docência13.
2.2. À formação empiricamente evidenciada14
Como já tivemos oportunidade de referir, o primeiro ciclo de estudos doutorais em Serviço Social, em Portugal, ocorre em 2003 com a criação do Doutoramento em Ciências do Serviço Social protocolado entre o Instituto Superior de Serviço Social do Porto (ISSSP) e a Universidade do Porto (UP). Seguiram-se-lhes a Universidade Católica Portuguesa (UCP) (2003), e o ISCTE em articulação com o Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa (ISSSL) (2004). À data da redação da dissertação que dá origem a este artigo, existiam em Portugal quatro programas doutorais em funcionamento e devidamente acreditados pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), nomeadamente, promovidos pelo ISCTE-IUL, Universidade Católica Portuguesa (que viria a ser descontinuado em 2019), Universidade Católica Portuguesa em colaboração com a Universidade de Coimbra (UC) e Universidade Lusíada. Como temos oportunidade de destacar, a sua institucionalização demorou cerca de sete décadas relativamente à primeira autorização de funcionamento de formação em Serviço Social. Muito mais tardia do que nos E.U.A., é também menos expressiva no que se refere ao número de doutoramentos que vieram a ter autorização para funcionar de acordo com o Ministério do Ensino Superior entre 2003 e 2013, e mais tarde a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), a partir de 2013. Através de uma análise categorial aos relatórios produzidos pelas Comissões de Avaliação Externa (CAE) realizados pela A3ES, é-nos permitido afirmar que a formação doutoral em Serviço Social em Portugal é diversificada dependendo da escola disciplinar predominante na Instituição que promove a formação. Por outras palavras, embora os quatro programas doutorais refiram como área científica predominante, o Trabalho Social e Orientação15, no que respeita à área secundária do plano de estudos não existe o mesmo consenso, como expresso no Quadro 1.
Designação16 | Programa Doutoral | Área predominante principal | Área predominante secundária | Área predominante secundária |
A | Universidade Lusíada | Trabalho Social e Orientação | Economia | Ciências Sociais e do Comportamento |
B | ISCTE | Trabalho Social e Orientação | Sociologia e outros estudos | |
C | Universidade Católica Portuguesa | Trabalho Social e Orientação | Ciências Sociais e do Comportamento | |
D | Programa Interuniversitário (UCP e UC) | Trabalho Social e Orientação | Ciências Sociais e do Comportamento |
Fonte: Elaboração própria a partir da análise empírica dos relatórios de avaliação da A3ES’
Os dados mencionados no Quadro 1 alinham-se com a teoria de Brekke (2012; 2014) acerca do Serviço Social ser uma disciplina integrativa, ou seja, ainda que tenha uma predominância específica com fronteiras delimitadas, abraça outras disciplinas para responder aos problemas da realidade social. Efetivamente, ao reconhecer-se que os programas doutorais não se restringem a apenas uma área científica, mas pelo contrário a duas ou três, reconhece-se um primeiro traço singular da pluralidade desta formação. No que respeita à estrutura do plano de estudos, nomeadamente, a sua duração e o número de ECTS encontramos uma homogeneização dos quatro programas doutorais, ou seja, a duração de seis semestres, correspondente a três anos letivos e ao total de 180 ECTS. Além disso, todos os programas correspondem às designações adotadas para a área científica no quadro de Bolonha. Partindo de um quadro conceptual que designa o Serviço Social como uma disciplina integrativa (Barak et al., 2014), cuja ciência está enraizada em domínios, construções e estética de abordagens focadas em problemas centrais do bem-estar ecobiopsicossocial17 humano, desenvolvemos um conjunto de categorias a partir das quais operacionalizamos algumas das dimensões que consideramos ser explanatórias dessa identidade.
De acordo com a análise dos relatórios das CAE que tivemos oportunidade de realizar, e relativamente à dimensão Integração científica18, é predominante a produção científica no geral19 por parte dos docentes e discentes dos programas doutorais. Esta evidência é traduzida, por exemplo, no relatório de avaliação da Instituição B, “(...) 4.1.10. Pontos Fortes: (...) produção científica dos docentes em geral. (...)” (B1. 2015: 12) Tendo em consideração a quase inexistência de revistas de Serviço Social em Portugal, a acrescer à juvenilidade dos programas de doutoramento, e, por conseguinte, da prática científica na área específica, somos levados a crer que os/as investigadores/as tivessem sido obrigados a iniciar a sua carreira de investigação (nomeadamente projetos de investigação e publicações) mais ou menos formal, em outras áreas do conhecimento (por exemplo, Sociologia, Psicologia, Ciência Política). Já no que se refere à categoria “Relação entre teoria e prática”, presente em pelo menos dois relatórios de avaliação, apresentamos a afirmação correspondente a um ponto forte do programa doutoral da Instituição C, “(...) Articulação entre teoria e prática e aprofundamento teórico e metodológico no campo da investigação. Articulação da formação e dos formadores com o Centro de Estudos de Serviço Social e Sociologia.” (C.1, 2015: 3)
A esta categoria associa-se outras que designamos como a “Participação em projetos de prestação de serviços à comunidade em parceria com centros de investigação” e a “Realização de atividades em prol do desenvolvimento social local”.
“(...). Existem protocolos formais de integração junto do contexto económico e social local, por via (sic) tem havido envolvimento em projetos de desenvolvimento social local. Tais cooperações são estabelecidas com instituições diversas, a saber: Serviço prisionais, municípios, projetos de reabilitação urbana, ONG’s e organizações não lucrativas.” (A.1, 2013: 5)
Conseguimos inferir a partir da análise produzida que os quatro programas doutorais em Serviço Social têm um compromisso com a práxis. Nomeadamente, na missão de, através da inscrição de protocolos, desenvolverem atividades e/ou prestação de serviços à comunidade envolvente, bem como, projetos de investigação que procurem respostas aos problemas reais do seu ambiente. O doutoramento não procura apenas realizar uma pesquisa básica, mas também mover os recursos que tem ao seu dispor para dar uma vertente prática a este trabalho, de modo a que, o conhecimento tenha um uso efetivo, seja ele de grande ou pequena escala. Tal resultado parece, segundo a A3ES, remeter para a existência da relação da teoria com a prática. É importante que o conhecimento seja gerado com a mente e transferido continuamente para a realidade social através da matéria do corpo, que produz ações. No que diz respeito à “Utilidade da produção de conhecimento em Serviço Social no âmbito dos programas doutorais”, uma vez que, uma ciência vai amadurecendo e reforçando a sua legitimação quanto maior for a utilidade do seu conhecimento, refere-se, a título de exemplo, a afirmação da A3ES’ como um dos pontos fortes do doutoramento da Instituição B, “a potencial relevância dos trabalhos finais do CE para o desenvolvimento socioeconómico e, em especial, para áreas e temas menos abordados em trabalhos académicos.” (B1, 2015: 12). Esta evidência associa-se ao compromisso por parte dos programas doutorais em realizar atividades que promovam e desenvolvam o bem-estar do seu meio envolvente. Criar e desenvolver o conhecimento em Serviço Social é uma emergência que deve ser respondida com a presença dos valores e, por conseguinte, da ética, no que respeita ao objetivo de gerar conhecimento científico. Não deve ser esquecido um dos primeiros pilares de Serviço Social, que, em última instância, deve ser sempre, o de dar voz aos problemas silenciados dos oprimidos e defender os valores basilares dos direitos humanos. Relativamente ao uso de outros recursos e áreas disciplinares para construir respostas com predominância do olhar do Serviço Social a problemas da realidade social, são encontrados nos quatro programas doutorais, como já foi possível aferir através da análise das áreas predominantes nos ciclos de estudos, nas quais se destacam, a sociologia, a economia, as ciências do comportamento, a história e as ciências políticas. “(...) A investigação produzida centra-se em práticas do Serviço Social e em políticas sociais numa análise dos seus impactos nos serviços de ação social. (D.1. 2015: 5-6) (...) Sinergias de recursos humanos especializados promotores de credibilidade científica do programa.” (D1., 2015: 3) Na esteira de Perlman (1962), uma formação liberal com uma orientação humanista, outorga as melhores bases para alcançar o objetivo do que o assistente social deve ser, saber ou ser. A especificidade do Serviço Social é imprescindível na formação, tanto quanto a dimensão multi e transdisciplinar (ainda que esta última seja pouco apreciada ao nível universitário). A autora refere a psicologia, a biologia, a sociologia, e a antropologia social, como disciplinas que providenciam a exploração e explanação do Homem em interação com o seu meio ambiente, pelo que são importantes para a formação de conhecimento em Serviço Social. A economia e a ciência política outorgam o conhecimento básico para a construção do conhecimento e compreensão acerca do papel do Estado e das suas responsabilidades e a sua influência na vida dos mais fragilizados. A literatura e a filosofia incidem sobre a compreensão do comportamento humano em constante conflitos e dilemas. Desta forma, é possível que raciocínios sejam desenvolvidos em Serviço Social acerca da condição humana. A integração destas disciplinas no Serviço Social, nomeadamente na formação, permite o desenvolvimento das habilidades comunicacionais. Efetivamente, em Serviço Social é deveras importante saber adaptar a sua linguagem e comunicação para ser compreendido pelas pessoas com quem se trabalha, frequentemente desmunidas de arcabouço académico e por isso com fragilidade comunicacional. Mas é igualmente importante que o Serviço Social saiba comunicar com as outras disciplinas sociais, compreendê-las e saber fazer-se compreender por elas. No que diz respeito à dimensão Envolvimento com a comunidade científica, verificamos a presença do compromisso em cada ciclo de estudo em integrar os doutorandos em Serviço Social numa comunidade científica, quer através da sua integração em centros de estudos e investigação, quer através de atividades e eventos científicos promovidos ao nível nacional e internacional com a comunidade científica e académica de Serviço Social. Encontramos a este respeito, na análise dos relatórios de avaliação, afirmações tais como:
“(...) Realizam eventos científicos, na área do Ciclo de Estudos e Seminários Avançados, com participação de investigadores estrangeiros e nacionais são abertos aos estudantes e à comunidade.” (A1, 2013: 11)
“(...). Existe cooperação internacional, designadamente com instituições europeias, com as quais vários protocolos estão estabelecidos. São promovidos ciclos de conferências com docentes e investigadores de escolas estrangeiras, bem como intercâmbios de estudantes e mobilidade de professores.” (B1, 2015: 5)
Da análise efetuada, três em quatro programas doutorais promovem relações entre doutorandos e o resto da comunidade científica em Serviço Social, através da realização de eventos científicos, tais como, debates teóricos, seminários internacionais, e conferências, mas também através de programas de intercâmbio de estudantes e mobilidade de professores nacionais e internacionais. O quarto programa não vê elencado no seu relatório a participação ou realização de tais atividades. Tal facto não deve, no entanto, ser entendido como total ausência de realização de eventos. Pelo contrário, numa pesquisa avançada ao programa doutoral dessa instituição, com recurso à análise de dados conseguidos, quer pela página web do programa doutoral, quer pela sua página numa rede social, conseguimos aferir que são realizados com regularidade, conferências, seminários, jornadas, congressos e aulas abertas com a participação de académicos/as e investigadores/as nacionais e internacionais. A categoria “criação de condições para o habitus científico” encontra evidência nos mesmos documentos quando estes referem como pontos fortes dos programas: “(...) Possibilidade de desenvolver atividades de investigação com a participação dos estudantes no âmbito do centro de investigação (...)” (B1, 2015, 3) Como podemos verificar, três dos quatro ciclos de estudos têm a preocupação de criar condições aos estudantes de doutoramento para a prática investigativa e o seu respetivo habitus científico (Bourdieu, 1976). Reiteramos novamente para a atenção na leitura dos dados, a ausência de evidências nos relatórios de avaliação no que respeita ao quarto programa doutoral, não deve ser tomado com veemência, uma vez que a triangulação de recolha de dados através da análise de uma rede social, e da página web dedicada ao programa doutoral nos permite aferir a existência de condições para o habitus científico. Verificamos a existência dessas condições, não apenas através da existência de um Centro de Investigação em Serviço Social (presente na Instituição A), mas também, através dos recursos bibliográficos que os programas doutorais possuem para uso dos investigadores, docentes e discentes. A terceira dimensão contemplada na nossa análise conceptualiza-se na capacidade dos programas doutorais em formarem os seus estudantes para o Desenvolvimento e consolidação da identidade académica do Serviço Social, enquanto área profissional e científica. Relembremos que na conceptualização desta categoria se retoma a ideia de Barak et al. (2014) com a aquisição de conhecimento e expertise científica, bem como, com o crescimento da personalidade e do caráter, moldados pelo sentido de missão no papel de investigador/a em Serviço Social. No entanto, entendemos, através de um raciocínio lógico que, a identidade académica deveria ser analisada como última categoria, uma vez que, defendemos existir um cruzamento entre os conceitos da comunidade científica e da disciplina integrativa, com o conceito da identidade académica. Efetivamente, o cientista não pode e não é uma ilha que existe per si. Da mesma forma que o Serviço Social acredita que o que afeta o outro, mais cedo ou menos tarde o afeta a si, e por isso é importante o bem-estar social, também acreditamos que é importante estar inserido num contexto específico que reforce a auto-perceção, e alimente a reflexividade, neste caso a comunidade científica. Essa comunidade rege-se por tradições e paradigmas que permitem realizar a investigação, partilhando uma classe de elementos específicos à área à qual pertence. Efetivamente, a comunidade científica do Serviço Social deve ser entendida através da sua contextualização histórica, política e social que partilha regras e valores. Ora, é importante que os académicos da área conheçam a sua origem. Não se trata de criar um conceito novo, mas desenvolver os lugares comuns do pensamento da geração anterior, com o pensamento da geração presente. Por conseguinte, ao identificarmos que os “programas doutorais das quatro instituições existem a par com mais dois ciclos de estudos” (Licenciatura e Mestrado em Serviço Social), ressalva-se que, ao longo dos ciclos formativos os estudantes vão sendo preparados para uma perceção consolidada do lugar (real, e não necessariamente socialmente construído) do Serviço Social na academia e, por conseguinte, no campo científico. Como segunda categoria, encontramos a “Formação dos docentes em Serviço Social”, figuras de legitimidade científica e com grande relevo no que respeita à formação identitária dos estudantes. Efetivamente, três programas doutorais em quatro, têm como coordenador do ciclo de estudos um docente com formação de base em Serviço Social e também doutorado na área. O quarto programa por nós identificado como sendo uma exceção tem, na sua coordenação, um docente com qualificação de base em Serviço Social, mas com doutoramento noutra área social. Ora, ainda que possa ser considerado um calcanhar de Aquiles, ressalvamos a formação base do docente em questão, e, formulamos a hipótese já elencada previamente: devido ao desenvolvimento sociopolítico do Serviço Social em Portugal, nomeadamente ao que à sua emergência na academia diz respeito, muitos licenciados em Serviço Social, foram “obrigados” por falta de oportunidade, a realizar mestrados e/ou doutoramentos noutras áreas, uma vez que a inexistência de doutoramento em Serviço Social em Portugal, levava a que quem quisesse seguir programas avançados de formação em Serviço Social tivesse que os frequentar no, estrangeiro (note-se que os primeiros doutorados em Portugal completaram parte ou a totalidade do seu doutoramento no Brasil). Esta hipótese permite de igual modo, perceber, o motivo pelo qual, até há pouco tempo, as escolas tinham dificuldade em cumprir rácios de doutorados em Serviço Social nos seus ciclos de estudos, aliás, fragilidade elencada nos relatórios da A3ES. Os relatórios apontam nos quatro programas doutorais para a totalidade do corpo docente como sendo doutorados, e em duas instituições é ressalvada a internacionalização dos discentes.
Como terceira categoria, encontra-se a potencialidade dos doutoramentos em Serviço Social para a “criação de atividades de investigação para os doutorandos”, trabalhando o habitus científico e a própria identidade académica:
“A possibilidade de os alunos serem envolvidos em actividades de investigação, podendo ter algumas subvenções e fazendo parte do CLISSIS como membros da equipa e participando de uma das três linhas de investigação. (A1, 2013: 3)
O Trabalho autónomo dos doutorandos no processo de ensino-aprendizagem. A integração dos estudantes na investigação científica através do CESSS.” (C1, 2015: 9)
Além da realização de atividades de investigação com estudantes, como a produção científica, a realização de conferências e seminários com oradores nacionais e internacionais de Serviço Social, é também relevante quer a existência de um centro de estudos e investigação da área numa instituição, quer a possibilidade de integrar os doutorandos nos centros de estudos existentes nas três restantes instituições. As atividades de investigação para os estudantes de doutoramento permitem que seja adotada, através da situação, a identidade académica existente no contexto. Deste modo, é possível apreender formas de pensar, sentir e fazer ciência em Serviço Social. É através da participação e da associação às instâncias de investigação que é possível interiorizar a dimensão prática da identidade académica e interligar (para os estudantes que trabalham também no campo profissional) com a prática, fazendo emergir a praxis. Também a participação em congressos e conferências da área, promovidas pelos programas doutorais, permitem reconstruir a perceção de si enquanto investigador/a de Serviço Social, nomeadamente, ao partilhar uma linguagem académica comum, e visões do mundo familiares à área disciplinar. Efetivamente, a construção e desenvolvimento identitário seja ela académica, profissional ou pessoal parece apenas fazer sentido quando devolvida pelo nosso semelhante. Não será, pois, possível vermo-nos à janela, a não ser através da imagem que construímos de nós no outro. Como penúltima evidência encontramos a referência ao “Serviço Social enquanto ciência autónoma”, reconhecida e legitimada pelos relatórios da A3ES acerca dos programas doutorais desta área, nomeadamente ao referirem-se aos objetivos dos ciclos de estudo em Serviço Social. “Os objetivos gerais definidos para o CE prevêm a qualificação de docentes, investigadores e outros profissionais no campo do Serviço Social. Contextualizar o Serviço Social no quadro das transformações sociais contemporâneas é outro dos propósitos a que se acrescentam alguns dos meios para a sua concretização: análises aprofundadas e investigações, debates e intercâmbios a nível nacional e internacional e, ainda, o incentivo à produção e divulgação de trabalhos.
Dado que esta IES tem em funcionamento os três ciclos de estudo na ACP é esperado que os objetivos de cada CE sejam definidos simultaneamente garantindo a sua singularidade, mas também as relações de complementaridade e cooperação com os restantes CE.” (B1, 2015: 2-3)
Por fim, procuramos, como última evidência, o ajustamento do plano de estudos do 3º ciclo em Serviço Social à identidade académica da área. Conclui-se que existem cinco disciplinas específicas de Serviço Social: uma unidade curricular contribui para o reforço da ética na investigação em Serviço Social, bem como para a dimensão da Filosofia. Duas unidades curriculares concentram-se na dimensão da realização de pesquisa na área, nomeadamente ao que à metodologia, aos métodos de investigação e à epistemologia em Serviço Social diz respeito. E duas unidades curriculares que aprofundam as teorias em Serviço Social, bem como, a sua aplicação na intervenção. Além das disciplinas específicas da área científica predominante, acrescentam-se unidades curriculares provenientes de diferentes áreas sociais: Metodologia e métodos avançados de análise de dados nas ciências sociais; Problemas sociais (com enfoque na perspetiva sociológica); e as Ciência Política, nomeadamente a política social. Este resultado confere com a dimensão “integrativa” já encontrada nos relatórios de avaliação da A3ES dos programas doutorais. Mas também com o reforço identitário académico, ao verificarmos que cerca de 60% dos planos de estudo respeitam especificamente a área em estudo. Por outro lado, ao analisarmos os objetivos das unidades curriculares, reconhecemos a preocupação em trabalhar não apenas um habitus científico nos estudantes, nomeadamente através de avaliações que passam pela redação de artigos e projetos de investigação, mas também, por trabalhar os alunos no sentido da responsabilidade científica tendo em conta o código ético e a missão que rege a profissão, bem como, a consolidação da identidade académico-profissional.
Notas conclusivas
O presente artigo aborda a criação do projeto científico do Serviço Social a partir da análise socio-histórica da sua emergência na academia, em Portugal e nos E.U.A.. Para tal, desenvolvemos uma análise focada inicialmente na edificação da formação em Serviço Social na Universidade, nos dois países, sendo esta edificação profundamente influenciada pelo contexto social e político envolvente. A uma lenta e tardia institucionalização da formação graduada em Portugal, ancorada num contexto político ditatorial, católico e economicamente depauperado contrapõe-se uma rápida e extensiva institucionalização norte-americana, muito devedora de uma incessante necessidade de dar resposta social estruturada aos problemas que as transformações estruturais provocadas pelo desenvolvimento social, vinham produzindo. A premissa do cuidar dos outros esteve sempre presente em qualquer um dos casos, fosse numa perspetiva mais caritativa-assistencialista, fosse numa perspetiva mais científico-filantrópica.
A evolução da formação graduada para a formação pós-graduada, nomeadamente ao nível do terceiro ciclo, conheceu nos dois países as mesmas características que já a formação graduada detinha, isto é, longa e pouco expressiva institucionalização em Portugal em oposição a uma difusão rápida e sólida pelo contexto norte-americano de programas doutorais em Serviço Social (ora mais cientifico-académicos - PhD, ora mais profissionalizantes - DSW). Esta celeridade norte-americana, associada a uma forte componente reguladora, permitiu criar determinantes institucionais orientadoras para aquilo que se espera de um programa doutoral em Serviço Social, nomeadamente nas suas componentes de conhecimento profundo da disciplina, de investigação e de docência, em particular relativamente às competências nucleares de base e recomendadas de aquisição por parte dos estudantes que o venham a frequentar. Já no caso português, e a partir da análise documental dos relatórios produzidos pela A3ES relativos aos quatro programas doutorais em funcionamento à data da realização da dissertação foi possível constatar que: i) os doutoramentos têm presentes a integração científica evidenciada pela, a) participação em projetos de prestação de serviços à comunidade em parceria com centros de investigação, o que salvaguarda uma relação dialética entre teoria e prática; b) pelas atividades em prol do desenvolvimento social local; c) pela relação com outras disciplinas; d) pela produção científica em geral; e) e pela utilidade da produção de conhecimentos no âmbito do doutoramento; ii) os doutoramentos têm presente o envolvimento com a comunidade científica em Serviço Social, evidenciado por realizações de eventos científicos com participação de académicos e investigadores e através da criação de condições para o habitus científico (no qual se destacam as criações de núcleos de investigação compostos por doutorandos e doutorados); e iii) a identificação do desenvolvimento e consolidação da identidade académica do Serviço Social, evidenciado pela, f) presença dos três ciclos de estudos em cada uma das instituições que o ministram; g) pela qualificação em Serviço Social do respetivo corpo docente; h) por atividades de investigação direcionadas aos estudantes em Serviço Social; i) por centro de estudos com a área de Serviço Social; j) e pelo reforço do Serviço Social como área científica autónoma. As evidências empíricas que encontramos na análise que desenvolvemos parecem ser consentâneas com a perspetiva de Barak et al. (2014) que sugere que o Serviço Social se caracteriza como uma disciplina científica integrativa. As disciplinas científicas integrativas procuram impor limites disciplinares para resolver problemas da vida humana. São definidas pelo seu foco explícito na aplicação do conhecimento disciplinar de forma integrada, aplicado a domínios centrais. A Medicina, o Serviço Social e a Saúde Pública são segundo Brekke (2012;2014;) exemplos disso. Estas disciplinas derivam frequentemente das profissões, o que permite fornecerem novas aplicações de teorias para os problemas, desenvolvendo ao mesmo tempo novas teorias e novos modelos que abrangem e se baseiam em conhecimentos sólidos das diferentes disciplinas consideradas principais. O que torna uma disciplina integrativa única e autónoma é o que ela constitui ser um problema crítico, e no caso em particular do Serviço Social tal significa conceber uma resposta sólida aos problemas sociais, partindo de um diagnóstico estruturado, um plano de intervenção e uma avaliação que potencie o desenvolvimento e a capacitação de indivíduos e organizações.