1. Introdução
Na linguagem corrente (muitas vezes importada sem crivo crítico para a linguagem pericial e académica) “infância” é uma palavra com conotação normativa expressa. A infância é uma espécie de qualidade moral, originalmente associada à condição etária das crianças, mas que a supera (em frases como “a infância que permanece no coração dos adultos”), revestida de caraterísticas como a ingenuidade, a bondade natural, a criatividade, o espírito sonhador, o sentido lúdico da vida, a “beleza natural das coisas”. Esta conceção, no entanto, carrega consigo um sentido excludente, expresso em palavras como “crianças que nunca tiveram infância”, e pode mesmo arrastar consigo a ideia (aliás cada vez mais reforçada na indústria cultural de massas) da “má infância”, pela subversão daqueles atributos morais (representado, por exemplo, nesse boneco criança assassino, Chucky). Neste artigo discutimos o conceito de infância, apresentando-o como categoria social do tipo geracional, universal e permanente, ainda que marcada pela desigualdade social e pela diversidade, através da interceção com outras categorias sociais, designadamente classe, género, etnia, escolaridade, espaço geográfico, credo religioso, orientação sexual. Pensar a infância numa perspetiva sociológica crítica implica a desconstrução da conceção normativa da infância e a focalização dos fatores sociais que, em simultâneo, contribuem para a justificação da universalidade dos direitos da criança e para a desigualdade da sua aplicação.
Começaremos pela crítica da conceção normativa da infância, deter-nos-emos, de seguida, na análise do contributo da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) para a construção dessa conceção normativa, procurando, a partir de uma perspetiva crítica, resgatar os direitos da criança enquanto estádio de desenvolvimento de uma consciência coletiva, juridicamente formulada, sobre a alteridade da infância e a consideração dos seus direitos cívicos, sociais e participativos (políticos, num sentido genérico), ao mesmo tempo que postulamos a exigência de uma perspetiva crítica sobre a formulação dos direitos, tendo em consideração os fatores estruturais que estabelecem as desigualdades entre crianças e que rasuram as suas diferenças.
2. Crítica da conceção normativa da infância
A evolução histórica da ideia ou “sentimento” da infância está largamente estabelecida, a partir sobretudo, dos estudos de P. Ariès (1973) e da sua tese da emergência e maturação, com o iluminismo e a modernidade europeia, do que chamou de “sentimento da infância”. Na verdade, é um duplo sentimento aquele que Ariès descreve: o das crianças como seres arracionais e amorais, que necessitam da orientação racionalizadora e disciplinadora dos adultos para a sua condição à condução plena de seres humanos maduros e de cidadãos; o das crianças como seres naturalmente belos, pela sua ligação intrínseca à natureza e pela sua ingenuidade, que as aproxima da verdade e da descoberta de sentidos não formatados para a vida e o mundo. Descobrem-se nestes dois “sentimentos” as conceções de Montesquieu e de Rousseau, respetivamente. Na sua diferença radical (que se perpetua em diferentes orientações pedagógicas que se digladiam até aos nossos dias), estas conceções exprimem uma ideia comum: as crianças não são adultas em miniatura; são, outrossim, o outro do adulto. Nesta alteridade se estabelece a diferença geradora de uma distinção geracional, que é também inerente ao processo histórico de “generatividade” (Honig, 2009), isto é de estabelecimento de processos de constituição da infância e da sua diferenciação jurídica, concetual, simbólica e existencial face aos adultos.
Apesar da análise histórica de Ariès ser objeto de crítica (e.g. Heywood, 2002), o seu contributo mantém-se inestimável na compreensão dos processos de formação ideológica e filosófica da infância moderna e, portanto, na arqueologia das imagens sociais que ainda hoje estruturam representações sobre o que é uma criança, o que lhe é permitido e o que é interdito, o que se espera que faça e o que se lhe recusa, bem como dos modos como os adultos podem e devem comportar-se com as crianças. Na verdade, o que está em causa é o processo social, guiado pelos grupos sociais dominantes e agenciado pelas instituições sociais, especialmente a família e a escola, de construção normativa da infância.
A diferença entre as gerações e as suas condições de existência é um processo largamente estudado na sociologia da infância e é mesmo estruturante do seu percurso teórico. As gerações distinguem-se umas das outras e a sua diferenciação é constitutiva de cada uma delas. Elas são socialmente construídas, a partir da criação de normas sociais que estabelecem as respetivas relações e que garantem o que é aceitável, admissível e adequado, ou, inversamente, o que é ilegítimo, interdito ou considerado impróprio. Por exemplo, nas sociedades modernas de matriz ocidental e europeia é considerado inadequado que as gerações mais jovens tenham uma atividade produtiva regular e, em contrapartida, o “direito ao trabalho” da população adulta é considerado como uma norma social inerente ao contrato social (pese embora, a sua denegação se manifestar no relativamente elevado desemprego existente nos países capitalistas ocidentais).
A mútua produção das gerações (a generatividade) é profundamente normativa. É desse modo que se define o que é ser criança e o que lhe é impróprio. O próprio conceito de “infância” é utilizado, por vezes, não no sentido analítico de uma categoria geracional própria, mas como um conceito puramente normativo. Um conjunto muito vasto de expressões popularmente difundidas expressa essa conceção normativa, ao mesmo tempo que lhe dá vida e a atualiza no quotidiano das relações entre gerações: “coisa de criança”, “não lhe ligue, é uma criança”; “ingénuo como uma criança”; “criança não tem querer”; “ao menino e ao borracho, põe Deus a mão por baixo”; “desperta a criança que vive dentro de ti”; etc. Entre proposições mais orientadas para uma conceção autoritária e paternalista e proposições que refletem uma visão romantizada da infância, estas expressões não deixam de refletir uma conceção de infância, bivalente como o duplo “sentimento” ariesiano, que se estandardiza e funciona como horizonte de referência nas relações intergeracionais. Na verdade, elas exprimem um conjunto de assunções, formas de conhecimento, ideias, pressuposições e representações sociais que incorporam, no seu todo, modos dominantes de resposta às questões: O que é ser criança? Como agir em face das crianças? São modos dominantes que se exprimem em padrões de comportamento e condutas, hábitos e procedimentos dos adultos em face das crianças.
Mas esse conjunto de assunções funciona também como a base oculta, porque subliminar, de um reportório de conhecimentos e saberes disciplinares que se foram constituindo ao longo do tempo sobre a criança. Se a criança é o outro do adulto e se se encontra em trânsito para a condição adulta, então constituir a criança como objeto de conhecimento científico significa estudar os processos e as fases através das quais ela se “desenvolve” até atingir a maioridade plena ou ela é “socializada” para se constituir como cidadã plena. Esse é o projeto da psicologia do desenvolvimento e da sociologia funcionalista ou da reprodução (Corsaro, 2009), que se instituíram como as principais bases científicas modernas sobre a infância. Deste modo, as conceções da infância modernas configuraram-se como uma episteme sobre a qual se alicerçou o conhecimento pericial dominante. A desconstrução crítica desse conhecimento tornou-se, por consequência, uma das primeiras tarefas da nova sociologia da infância, na sua fase inicial, no final do século passado (eg. James, Jenks e Prout, 1998).
Ao mesmo tempo, essas assunções fundamentam a legislação que se debruça sobre as crianças. Do “Direito de Menores” à regulação da proteção social à” Infância Desvalida”, passando pela legislação escolar e pelos sucessivos “Estatuto(s) do Aluno”, um corpo jurídico vasto dá forma jurídica à normatividade social da infância, ao longo do tempo.
Se essa produção jurídica de infância marca determinantemente a perspetiva normativa com fortes efeitos regulatórios da vida das crianças e das ações e responsabilidades dos adultos diante delas, ela articula-se com as assunções implícitas de difusão social, estabelecendo-se um diálogo entre a norma escrita e o senso comum de forma nem sempre convergente, mas frequentemente confluente. Assim, em cada momento histórico, o conjunto de orientações normativas, jurídicas e não jurídicas, explícitas e implícitas, que estruturam e organizam os procedimentos considerados adequados para o exercício dos poderes educativos dos adultos perante as crianças constituem os modos de “administração simbólica” da infância (Sarmento, 2004).
Podemos hipotetizar, dizendo que, no quadro de uma sociedade globalizada, o mais completo de todos os documentos jurídicos - a CDC - influi notoriamente no modo dominante de administração simbólica da infância, articulando-se ora de maneira convergente ora divergente com elementos culturais oriundos dos diferentes povos do mundo, na forma como os adultos compreendem e se relacionam com as crianças e como as instituições incluem e se ocupam dos seus membros mais jovens. Trataremos deste aspeto na secção seguinte. Por agora, importa-nos sublinhar que, ao mesmo tempo que as assunções e normas da infância estipulam o que é uma criança, isto é, ontologizam a condição social geracional da infância, excluem dessa condição crianças que se encontram numa situação de desvio face à norma hegemónica.
Algumas expressões popularmente repetidas, usualmente referentes a crianças pobres, excluem da condição infantil, usualmente sob uma forma piedosa, meninos e meninas que vivem em especiais condições de vulnerabilidade. Talvez a mais emblemáticas dessas expressões seja a que ficou consagrada na dedicatória do livro de Soeiro Pereira Gomes, Esteiros (1941), repetida até à exaustão em tantos discursos, artigos e livros que convocam à comoção face ao infortúnio infantil: “Aos filhos dos homens que nunca foram meninos!”. Esta mesma ideia replica na expressão corrente de “crianças sem infância”, que remete para as crianças desprovidas das caraterísticas que normativamente lhe estão associadas: proteção, frequência da escola, pertença familiar, condições mínimas de conforto, acesso e usufruto de atividades lúdicas, etc.
Ora, se considerarmos as crianças nessas condições, teremos de computar como pertencendo a essa condição de “crianças sem infância” mais de metade da população infantil mundial. Com efeito, a condição de especial vulnerabilidade das crianças pobres coloca muitas delas em situação de vida fora da família (meninos de rua e crianças em situação de acolhimento residencial). Alguns milhões de crianças estão em situação de abandono precoce da escola, realizando atividades de trabalho infantil . Associam-se a estas, as crianças refugiadas e migrantes, muitas delas em situação de separação dos seus pais ou de adultos de referência, as crianças dos grupos étnicos minoritários, as crianças perambulantes, sem casa e sem terra, as crianças escravizadas nas sweatshops ou nas plantações intensivas, as crianças compulsivamente incorporadas nos exércitos de meninos-soldados. Milhões de crianças mão têm qualquer proteção de políticas de Estado. Ainda que muitas destas crianças vivam em alguns dos países mais ricos do mundo e seja nestas que algumas das mais brutais violações da dignidade das crianças e do seu bem-estar e desenvolvimento (veja-se, por exemplo, a situação das crianças latino-americanas nas fronteiras dos Estados Unidos da América, ou as crianças refugiadas no mar da morte do Mediterrâneo e nas praias e campos de refugiados da Europa, ou as crianças vítimas de abusos sexuais nas instituições católicas ocidentais, ou ainda os índices de pobreza infantil nos países ricos), é sobretudo nos países do Sul Global que se encontram crianças que não cabem nas definições estandardizadas em que a normatividade de matriz europeia estipula o que é a infância. Na verdade, elas estão fora da norma ocidental e eurocêntrica que positiva uma conceção de criança protegida.
Mas todas elas são crianças e integram a condição social da infância. Esta constatação implica uma mudança de olhar e perspetiva: considerar a infância na sua diversidade, dando especial atenção às crianças em situação de exclusão. Isto exige que se adote uma perspetiva de desconstrução da normatividade da infância, de matriz ocidental e europeia.
A investigação da condição social da infância das crianças excluídas, à margem, em posição de subalternidade, não pode ser feita sem o questionamento da norma ocidental da infância. É aqui que faz sentido o debate sobre a pluralidade da normatividade infantil (Sarmento, Marchi e Trevisan, 2018).
O debate sobre normatividade infantil tem-se feito essencialmente a partir de dois caminhos que se cruzam.
O primeiro é o da crítica da posição hegemónica (inclusive, no interior do próprio campo teórico) sobre a universalidade da norma ocidental e eurocêntrica da infância e das suas consequências teóricas e políticas no esbatimento das diferenças culturais e sociais das crianças em situação de subalternidade ou periferia. Esta linha de discussão procura identificar as complexas relações entre identidade geracional e diferença cultural, resgatar da invisibilidade crianças “invisíveis”, potenciar uma leitura crítica da CDC e das agências internacionais da infância, ressalvando a exigência de uma garantia política que atenda à diferença no combate às desigualdades sociais e promovendo uma visão cosmopolítica da infância (Tomás, 2011).
O segundo caminho, é o do levantamento das práticas culturais das crianças, a partir de contextos periféricos da hegemonia da cultura global, mobilizando formas de expressão e de conhecimento do mundo pelas crianças que, em larga medida, escapam aos cânones da cultura escolar. Investigações realizadas com crianças africanas ou sul-americanas estabelecem um sólido diálogo entre a sociologia da infância e os estudos pós-coloniais e associam-se a uma corrente crescente, no plano internacional, de crítica ao reducionismo da investigação da infância a partir do mundo minoritário (Europa e América do Norte), rasurando das questões teóricas e metodológicas os desafios colocados pelas crianças do Sul Global (Punch, 2016; Liebel, 2006; 2012).
A crítica à normatividade hegemónica é uma das mais prometedoras tarefas em curso no trabalho teórico da sociologia da infância no sul da Europa. Mas ela impõe uma visão crítica do documento normativo que melhor exprime essa normatividade: a CDC.
3. Os direitos da criança: universalidade e desigualdade social
Desde finais do século XIX, vários movimentos de defesa dos direitos da criança têm encetado ações, lutas, reivindicações e estratégias contra os mecanismos sociais, políticos, culturais, jurídicos e económicos relacionados com a defesa dos direitos da criança e o combate à desigualdade social, em geral, e à geracional, em particular. No século XX, assistimos à emergência e desenvolvimento dos Estudos da Criança, dos Estudos Críticos da Infância, da Sociologia da Infância, dos Estudos dos Direitos da Criança ou dos Estudos Legais das Crianças. Estes dois movimentos, diferentes no seu percurso socio histórico, nos seus pressupostos epistemológicos, teóricos, metodológicos e funções, aproxima-os um “terreno fértil comum” (Alanen, 2009: 5): os direitos da criança. A relação entre estes dois movimentos é, aliás, um dos debates atuais mais intensos no que aos direitos da criança diz respeito (Bendo, 2020), sobretudo pelo crescimento de uma visão crítica sobre a situação das crianças e dos seus direitos, assim como pelo papel da CDC neste processo, de que daremos conta a seguir.
O processo de constituição dos direitos da criança, conducente ao modelo jurídico-normativo com o âmbito global que atualmente existe - de que a aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas da CDC, em 1989, é a sua face mais visível e (re)conhecida - foi um processo lento, difícil e conflitual. Ainda assim, tornou-se um marco jurídico e simbólico, apontando para uma universalidade dos direitos dos cidadãos mais novos. A CDC impulsionou uma nova conceção sobre a infância e, reconhecendo a capacidade das crianças serem titulares de direitos, inaugurou ainda uma nova categoria de direitos, os de participação, que se reúnem aos de provisão e proteção, resultando na tradicional, popular e conhecida categoria dos 3 P (Fernandes, 2009).
Não obstante, trinta e um anos após o seu nascimento, mais do que aquilo que é dito sobre a Convenção, merece igualmente atenção o que não é dito, ou seja, estabelecer uma articulação entre emergências e ausências (Santos, 2002).
Uma reflexão crítica sobre a CDC e a situação dos direitos das crianças no mundo torna-se necessária, de forma a possibilitar uma revisão aprofundada, não só do seu funcionamento, como da sua relação com o conhecimento científico, em particular com os Estudos da Criança e ainda da análise da situação mundial da infância (UNICEF, 2019). Em particular, é necessária uma reflexão em relação à melhoria da sua eficácia e ao próprio conteúdo, que necessita integrar as mudanças que se produziram nas sociedades contemporâneas e nos modos de vida das crianças, como, por exemplo, as tecnologias de informação e comunicação, as questões ambientais, as relações entre humanos e não humanos, só para citar alguns, e a permanência de muitos outros fenómenos como a desigualdade, a pobreza, a guerra, as catástrofes naturais. No fundo, estamos a remeter para um dos debates mais intensos no interior dos Estudos da Criança da atualidade: a necessidade de um olhar adentro sobre os direitos da criança e sobre a CDC, que permita um discurso crítico, rebelde e verdadeiramente emancipador dos direitos da criança (Sgritta, 1997; Cussiánovich, 2006; Liebel, 2006, 2012; Tomás, 2011; Arce, 2012; 2015; Marchi e Sarmento, 2017; Gaítan, 2018).
O reconhecido discurso, sedutor e generoso, que a CDC foi capaz de promover à imagem das crianças como sujeitos de direitos e a possibilidade teórica e simbólica do paradigma da criança cidadã, são conquistas inegáveis. No entanto, assistimos atualmente a uma discussão entre discursos e perspetivas, ora mescladas ora opostas entre si, em torno dos direitos da criança. Sintetizamos algumas delas.
Há muito que se defende a centralidade do discurso dos direitos das crianças e do papel fundamental da CDC nesse processo, nomeadamente a pretensa universalidade da sua aplicação. A defesa da criança como sujeito de direitos com ação, vez e voz parte do reconhecimento de que as crianças são atores sociais com agência sobre o mundo em que vivem, com direito a expressarem as suas vozes e ações e a se representarem como sujeitos de conhecimento nos seus próprios termos (Ferreira, 2010) e de que essa agência é produzida social e relacionalmente. Desta forma, contraria-se a construção social da infância na modernidade, que concebia as crianças como seres deficitários e incompetentes (Sarmento, 2004). As crianças passaram, sobretudo a partir da CDC e do desenvolvimento dos Estudos da Criança, especialmente da Sociologia da Infância - ainda que não tenham seguido caminhos equivalentes - a ser entendidas como atores sociais, sujeitos sociais e históricos, com uma identidade distinta do adulto; como membros ativos da sociedade, participando nos diversos espaços onde se movem e a infância caraterizada como uma categoria social autónoma e com direitos. Mas como foram definidos e por quem? Que perspetivas de criança e infância estão subjacentes aos discursos dos direitos da criança e à CDC? A nossa tarefa será a de responder a estas questões.
Embora tenhamos assistido progressivamente a uma maior consciência da infância como categoria social, dos seus direitos e das suas necessidades, aliadas às constantes mudanças sociais que impõem a reconfiguração de um quadro legislativo, de políticas e de práticas, são afinal as tensões, ambiguidades e duplos critérios que continuam em destaque quando é considerado o respeito, a garantia e o exercício dos direitos da criança.
Considerar os direitos da criança como um espaço agonístico, implica compreender conceções distintas ou opostas em debate, bem como os atores, que são legitimamente admitidos nesse espaço, e dão voz a essas conceções.
Uma primeira abordagem defende a CDC como o bastião dos direitos da criança e, apesar dos seus problemas e inconsistências internas, sustenta a crença e a defesa de que continua a ser o documento mais importante para as crianças e para a universalidade dos seus direitos, continua a ser uma realidade política, jurídica e académica. Outra abordagem advoga que a CDC surge descontextualizada da história e é utilizada para minar e destruir todos os direitos legitimados que as crianças têm de proteção da família e dos adultos. Critica-se o facto de se alterarem legislações nacionais, na medida em que os países, ao ratificarem a CDC, se submetem a uma imposição externa que constitui um ataque à soberania nacional. Mais ainda, que a CDC tenta esbater as diferenças entre adultos e crianças e que estas têm direitos a mais e que precisam é de mais deveres. Finalmente, há uma abordagem que defende um discurso emancipador dos direitos das crianças, considerando que a história dos direitos também se faz pela luta das próprias crianças, dos seus movimentos e organizações (Cussiánovich, 2006; Liebel, 2006, 2012; Tomás, 2011; Arce, 2012; 2015). Entre outros argumentos, critica-se o processo de cristalização da CDC e de ela ser um instrumento construído por adultos para crianças, ou seja, que se trata de uma visão adultocêntrica que “atribui às crianças direitos” ou “lhes dá voz”. Outra crítica prende-se com o facto de a CDC conter conceitos vagos, indeterminados, ambíguos e altamente contestados, que dão origem a uma diversidade de interpretações, como maturidade, autonomia ou participação, por exemplo, sempre definidos e decididos pelos adultos (Alderson, 2000; Quennerstedt, Robinson e I’Anson, 2018). A terceira crítica remete para a marca ocidental da CDC e para a não consideração da diversidade cultural, sem cair no relativismo cultural, das crianças e das suas vozes, combatendo desta forma um tipo ideal de criança ou a criança abstrata. A última crítica remete para a necessidade de repensar o discurso da participação das crianças e substitui-lo pelo discurso da cidadania (Arce, 2012; 2015; Gaítan, 2018).
Como demos conta, há um amplo e intenso espaço de discussão sobre os direitos da criança. Não sendo uma discussão recente, assume hoje contornos mais complexos. Essa discussão tende a transformar-se numa questão global; contudo, tem que ser feita num contexto que vá para além dos limites da globalização hegemónica neoliberal, que considera que as nossas sociedades já são pautadas pela ordem e pelo progresso e que carecem apenas de consolidação. As crianças, muitos milhões de crianças, continuam a ser consideradas “pessoas supérfluas”, como lhes chamou Hannah Arendt. Apesar da CDC ter conferido uma maior visibilidade às modalidades de internacionalização e de articulação entre as três escalas (local, nacional e transnacional) no domínio dos direitos da criança e criar para a infância um quadro jurídico e simbólico que tornou possível uma melhoria de vida das crianças e o seu reconhecimento como atores sociais, pelo menos do ponto de vista simbólico, discursivo e teórico, é óbvia a falta de prioridade dos Estados em implementar e promover os direitos da criança. Para além de precisar de ser revista, será necessário ultrapassar o discurso dominante sobre os direitos da criança e a CDC das preocupações legalistas, muitas vezes em detrimento das complexidades estruturais, das condições socioeconómicas e político-culturais em que as crianças vivem. O descompasso entre direitos e desigualdades é real. Um contributo para a sua redefinição implica combater défices teóricos e metodológicos na reflexão sobre os direitos da criança. Dessa primeira tarefa demos conta neste ponto, ao apresentar um conjunto de abordagens e debates atuais na área. A segunda tarefa implica fazer uma releitura crítica das formas de conceber e interpretar os direitos da criança que contribui para conceptualizar uma conceção crítica desses mesmos direitos.
4. Para uma conceção crítica dos direitos da criança
Assente numa normatividade de matriz europeia e ocidental, a CDC tende a apresentar uma visão idealizada da infância. Como vimos, isso é fortemente excludente de crianças que, estando “fora da norma”, tendem a aparecer como estando “fora da infância”. Estas crianças são sobretudo aquelas que se encontram numa posição subalterna, de maior vulnerabilidade. E são as crianças dos grupos sociais, étnicos e culturais em situação de maior exclusão. São também, sobretudo, as crianças do Sul Global.
No entanto, a CDC constitui, como dissemos, um marco civilizacional e um instrumento de regulação internacional que tem potenciado, mais do que prejudicado, o desenvolvimento e bem-estar das crianças, apesar de todas as suas limitações. Isso deve-se, fundamentalmente, à ação coletiva de ONG, movimentos sociais, entidades e personalidades implicadas nos direitos da criança, que com a sua ação, estudos, denúncias, propostas, decisões impulsionam e estimulam a adoção de medidas e de políticas verdadeiramente implicadas na vida das crianças. Essas ações são, frequentemente, protagonizadas pelas próprias crianças, que, aliás, encabeçam alguns dos movimentos mais influentes atualmente neste campo, como a luta contra as alterações climáticas, o movimento pelo desarmamento nos EUA e a luta pela educação das meninas no Extremo Oriente, entre outros. Há aqui um paradoxo: a CDC só pode cumprir a função a que se destina - promover as crianças como sujeitos de direito - se ela for criticamente assumida e superada pela prática social.
Isto implica tornar os direitos não numa mera formulação jurídica, mas numa verdadeira realidade social. Significa, outrossim, desenvolver uma conceção da infância que seja suficientemente abrangente para considerar a diversidade da infância, na perspetiva intersecional que cruze a condição geracional com a classe, o género, a etnia, a orientação religiosa, a orientação sexual e a condição urbana ou rural, a inserção no espaço mundial. Só isso permitirá resgatar a noção normativa da conceção meramente jurídica, que a consagra, para reconhecimento efetivo da criança como membro efetivo da sociedade.
Esta conceção tem condições de se desenvolver, se considerarmos que a sociedade contemporânea tem recursos suficientes para garantir que todas as crianças do mundo podem frequentar a escola ou as atividades educativas correspondentes às suas necessidades de formação e de desenvolvimento (alguns grupos ameríndios, por exemplo, desenvolvem atividades educativas fora do contexto da instituição escolar, que têm sido reconhecidos como válidos em si mesmo e extramente adequados à conceção da criança como sujeito de cultura, e.g. Pereira e Gomes, 2019); acabar com a fome das crianças no mundo é uma exigência realizável; garantir o fim da exploração do trabalho infantil, regulando as formas de ajuda familiar e de envolvimento das crianças em atividades produtivas que estimulem o desenvolvimento é um desafio com um horizonte de possibilidade; combater com eficácia a pobreza infantil, na sua multidimensionalidade, é um programa inadiável e uma exigência reforçada perante a pandemia COVID-19 e a crise económica associada; promover uma efetiva proteção das crianças contra o abandono, o mau-trato, a violência e o abuso é uma utopia realizável; promover uma efetiva participação das crianças nos seus ambientes sociais de existência, na creche, no jardim de infância, na escola, nas instituições e na cidade é já uma realidade suficientemente forte em alguns contextos que se pode aspirar à sua ampliação e generalização. Tudo isto constitui um imperativo político, social e ético que tem sido reclamado pelos movimentos transformadores, os quais assinalam o escândalo de no início do novo milénio não apenas a promessa de décadas dos direitos não estar consolidada, apesar de se ter percorrido um caminho com progressos (mas também de retrocessos periódicos), como o horror da infância apresentar hoje novas expressões nas crianças migrantes e nos novos filhos da fome das crises contemporâneas.
A flagrante contradição entre uma conceção normativa idealizada da infância e a realidade concreta das crianças exige um trabalho teórico, sobre os direitos da criança, que os resgate das suas determinações historicamente datadas e social e culturalmente enformadas pela hegemonia de países e agências centrais, para os abrir às condições reais da sua possibilidade de abrangência para verdadeiramente todas as crianças. Esse trabalho teórico, assente numa perspetiva crítica, não poderá consumar-se fora dos movimentos e ações verdadeiramente empenhadas na promoção da igualdade social e do bem-estar das crianças (cf. Ferreira e Sarmento, 2008). Do mesmo modo, não conseguirá realizar-se sem contar com as crianças como sujeitos ativos na transformação das suas condições de existência. Ao mesmo tempo, esta perspetiva crítica não poderá deixar de estar articulada com a análise dos fatores estruturais em que se sustentam as contradições e os processos de dominação no espaço-mundo e o modo como eles geram desigualdades entre as crianças dos países centrais e dos países periféricos. Do mesmo modo, esse esforço simultaneamente teórico e praxeológico, só se poderá desenvolver se se articular com as causas que hoje ocupam muito do que são os movimentos protagonizados pelas crianças: as causas ambientais por um planeta sustentável; a paz, contra a cultura do ódio e da violência; a educação como projeto emancipador.
Nestas circunstâncias, abandonar a CDC como instrumento internacional de regulação e orientação de políticas seria porventura trágico . Fazer da CDC o instrumento para a sua própria superação parece ser uma via que se abre na promoção dos direitos da criança.
5. Conclusão
Não há “direito à infância”. A infância é uma condição social do tipo geracional, não é uma garantia de felicidade e bem-estar. Também não há crianças sem infância. Todas as crianças integram a infância, que é uma categoria social com elementos comuns a todas elas (vivem numa situação de alteridade face aos adultos), mas é profundamente atravessada pelas desigualdades sociais e pelos fatores de diferenciação social.
A assunção das crianças como sujeitos de direitos constitui um importante progresso nas relações intergeracionais. Não obstante, a conquista de um corpo de direitos para as crianças, apesar de ser considerado um dado adquirido para grande parte da sociedade ocidental - pelo menos teoricamente - apresenta-se ainda hoje, em muitos contextos, como uma miragem. Alargar e estender a todas as crianças os direitos sociais apresenta-se, portanto, com um programa inacabado, que exige um esforço urgente, numa sociedade globalizada e desigual.
Este esforço é também de natureza teórica e concetual. Promover a arqueologia do processo de construção jurídica dos direitos das crianças, identificar a origem das assunções implícitas na sua formulação, desconstruir a sua matriz eurocêntrica, perspetivar a pluralidade normativa na análise da generatividade e reformular numa conceção cosmopolita, intersecional e ampliada dos direitos constitui-se como um programa determinante na agenda da sociologia da infância crítica.
Tomar como referente primário as crianças em condições subalternas, vítimas maiores da desigualdade social e dos processos de discriminação constitui um elemento nuclear nesse programa. Fazê-lo, lado a lado com as crianças, os movimentos sociais e os promotores dos direitos da criança num sentido transformador é também inerente a esse programa. Mas é próprio da sociologia crítica não se ficar pela interpretação do mundo, mas contribuir para a sua transformação