Introdução
Os estudos monográficos dos partidos políticos portugueses, durante a cronologia a que este trabalho reporta pouca atenção têm capturado à historiografia portuguesa.
Consideramos, no entanto, o avanço no conhecimento destas organizações uma contribuição importante para a compreensão do período que designaremos por “Crise do Liberalismo” (1890-1930), seguindo a proposta de Nuno Severiano Teixeira (2014), entre Outros2. Desta longa crise recortamos o seu primeiro andamento, a crise final da Monarquia Constitucional (1890-1910), não só por economia de espaço, mas sobretudo por ter sido neste período que os ingredientes da crónica instabilidade política e social se manifestaram (Marques, 1991) e que os partidos políticos ganharam protagonismo, formando-se ainda o primeiro (e único) partido de massas da história portuguesa até ao advento da III República com a Constituição de 1976 - o Partido Republicano Português, o qual merecerá destaque no segundo trecho da “Crise” (1910-1926) que estamos a preparar para publicação futura. No entanto, admitimos que a análise parcelar desta conjuntura é uma das limitações deste trabalho.
A parca produção historiográfica sobre esta temática tem no igualmente diminuto labor interdisciplinar entre a História e a Ciência Política uma das principais razões para o pouco avanço sobre esta matéria. Propomo-nos, por isso, explorar e descrever os conceitos teóricos de maior interesse para a história política que pode aportar a referida ciência política.
Assim, na secção seguinte defenderemos a necessidade de uma cronologia alternativa à tradição historiográfica mais clássica para os anos 1890-1930, para de seguida expormos a importância da interdisciplinaridade entre as duas mencionadas ciências para a elaboração de estudos sobre os partidos políticos neste arco temporal. Definiremos ainda os conceitos de sistema político, eleitoral e partidário, descrevendo a oportunidade que abrem para o exame dos partidos políticos e para a uma melhor análise da conjuntura geral em que nos movemos. Finalmente, na parte central deste nosso trabalho, servir-nos-emos do período da desagregação da Monarquia Constitucional, entre 1890-1910, como lugar de experimentaçã3.
Julgamos poder desde já acrescentar à pertinência da utilização conjunta da História e da Ciência Política a afirmação de Philippa Levine (2014) da necessidade de um forte engajamento com a interdisciplinaridade, não só pela extensão da potência da lupa analítica, mas também pelo desafio fundamental, segundo a autora, de confrontar epistemologias, propostas teóricas e resultados de disciplinas com diferentes georreferenciações.
1-Contexto histórico - proposta para uma análise temporal alternativa.
Para Nuno Severiano Teixeira analisar em conjunto 1890-1930 é uma periodização pouco vulgar na historiografia portuguesa. Na dimensão de análise política não marca nem o princípio nem o fim dos regimes contidos nesse intervalo: a Monarquia que em 1910 dá lugar, até 1926, à República “e o Estado Novo, (o qual) só começa, formalmente, em 1933” (2014, p. 21).
Também é um período que não corresponde a “(…) tendências de mais longa duração que atravessam todo o período e se prolongam para lá dos seus limites cronológicos”. Na dimensão económica assinala-se a prevalência do mundo rural, face à lentidão da industrialização, e mesmo na dimensão externa Teixeira não considera que esta cronologia coincida “totalmente com as dinâmicas internacionais em que Portugal se insere” (idem).
Todavia, há “um fenómeno que acompanha, em geral, todo o período e cuja lógica poderia, em certo sentido, caracterizá-lo: a crise do liberalismo”4 (idem). A “do liberalismo monárquico, no final da Monarquia Constitucional (1890-1910), e a crise do liberalismo republicano, durante a I República” (ibidem). Acrescentamos, como período de transição, a Ditadura Militar (1926-1930) a esta possibilidade de analise conjunta, dada a sua indecisão na eleição do caminho a seguir, e o período de 1930-1933, agora como oportunidade de acompanhar o processo de superação disruptiva dessa “Crise” e perceber a quem foram entregues “As Chaves do Período”5.
A.H. de Oliveira Marques já anteriormente tinha dado o mote para esta possibilidade de periodização, sublinhando a hipótese de a considerar “uma única época de conjunto, (a qual) iniciar-se-ia com os primeiros anos do século XX - quando os fermentos de mudança se introduziram definitivamente - e terminaria com a definição do Estado Novo e com a adoção definitiva de um Estado autoritário e antiliberal, por volta de 1930”. Esta abordagem seria o oposto de um “atomismo periodista”, historiograficamente mais clássico, o qual coloca em relevo uma multiplicidade de neblinas temporais que podem escurecer uma visão de conjunto da “Crise do Liberalismo” (1991, p. 9).
Rui Ramos (2001), por sua vez, considera o intervalo 1890-1926 como uma unidade que assiste à construção de uma nova ideia de nação, a qual emerge com o Ultimato de 1890 e que teve um impacto na “instituição que até aí concentrara a devoção cívica, a monarquia, (a qual) se ressentiu da incapacidade para se pôr ao nível do novo nacionalismo” (p. 41). O autor alonga ainda a oportunidade de análise unitária à etapa entre 1890 e 1930. Dois momentos que acolhe como o fim e o início de dois ciclos, o primeiro, em 1890, quando em Portugal se encerra “uma monarquia liberal à inglesa”, o segundo, em 1930, quando se inaugura um “Estado nacionalista e corporativo, segundo o modelo fascista italiano” (p. 35). Telo (2010) também concorda que a um “nível político, a I República é no essencial um momento curto de uma crise política de longa duração (a qual) “enquadra e excede a República, tanto a jusante como a montante” (p. 12).
Este processo desenrola-se num contexto mais alargado da história da Europa6. Três tempos podem sumariamente ser considerados:
O tempo anterior à I Guerra Mundial, no qual a “Europa parece gozar de um ascendente indiscutível e a sua civilização impõe-se por toda a parte” (Droz, Rowley,1988, p. 13), tempo de crença no “limiar de uma era verdadeiramente sem precedentes de paz e prosperidade ilimitadas” (Judt, 2011, p. 31).
O tempo do crescente mal-estar entre as potências industriais, estando, sobretudo, em causa a concorrência pelo domínio dos espaços coloniais - cura para as dores de crescimento de um liberalismo capitalista em ascensão, para a legitimação dos regimes e para a sua afirmação de poder e prestígio (Rémond, 1994), que culminará na I Guerra Mundial7.
Cerrada a cortina da guerra, um novo pano de cena se abre: o tempo do “Entreguerras”. Tempo que “representará para a Europa o fim da sua hegemonia” (Droz, Rowley, 1988, p. 13), com o desmembramento dos impérios Austro-Húngaro e Otomano, a queda do regime do Kaiser, o advento da Revolução Bolchevique, o ensaio democrático inacabado da República de Weimar e a marcha fascista em Itália, apenas para citar alguns exemplos.
Se no mapa de regimes anterior a 1914 a Europa era povoada de monarquias, descontando as repúblicas portuguesa e francesa e o caso especial da Federação Suíça, em 1918/19 estas tinham sido praticamente varridas deste continente, sobretudo nas principais potências, como a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Rússia.
Porém, ao fim do antigo regime não sucedeu um domínio duradouro de repúblicas democráticas. “Rapidamente as instituições parlamentares são varridas por golpes de força que as substituem por regimes autoritários”. Aponta-se a Itália como o modelo que muitos outros países seguiram na década de 1920-1930 (Rémond,1994, pp. 320-321).
O intervalo do entre guerras assiste, então, ao início de uma crise geral com o enfrentamento de três opções de organização política, económica e social: a democrata e parlamentar, a fascista e corporativa e a comunista e soviética - descendentes primogénitas da guerra, as duas últimas8. Legado “ambivalente, (…) que suscita evoluções em sentidos contrários” (Droz, Rowley, 1988, p. 147), progressivo desassossego do Liberalismo, “sentimento de que a democracia já não se encontra adaptada à realidade”, inquietação indissociável dos “ataques que lhe são dirigidos do exterior pelo fascismo e pelo comunismo”, aos quais se somam as suas “imperfeições de ordem interna” (Rémond, 1994, p. 319).
Até ao início da II Guerra, esta ambivalência vai digladiar-se internamente na Itália, na Alemanha, na Espanha, na França. Enfim, por toda a Europa.
É, em conclusão, o crescimento das forças antiliberais e ultranacionalistas que marcará o ritmo da Europa, até 1939. O choque frontal entre estas e as demais encena-se na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). O fim da Guerra não traria a Paz. Não seria “um adeus às armas”. Apenas um podre curto intervalo. Os sinos da batalha voltariam a dobrar dentro de momentos. O fim do período liberal em Portugal insere-se também neste contexto mais alargado.
2-A Interseção entre História e Ciência Política
Consideramos fundamental, como mencionado na introdução, ampliar o diálogo interdisciplinar entre a “História”, sobretudo a história política, e a “Ciência Política”. Torna-se, então, imprescindível expor e definir os principais conceitos teóricos da Ciência Política, os quais ensaiaremos em proveito da análise dos processos históricos em que se inserem a ação dos partidos políticos.
Importa, desde logo, salientar que o estudo dos partidos políticos - a sua análise e enquadramento num sistema de partidos, no qual o sistema eleitoral tem um papel decisivo, ambos se interrelacionando com um sistema político9 - acompanhou a progressiva subida ao palco de novos atores políticos, a burguesia e classe assalariada, a partir sobretudo da 2.ª metade do século XIX, nomeadamente em países como a Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica e, um pouco mais tarde, o norte de Itália. O processo de industrialização e de crescimento urbano são parte importante (mas não únicos) para compreender o aparecimento na arena política destas novas vozes que pretendem uma democratização do acesso ao poder, quer pelo alargamento do sufrágio, quer pela tomada violenta das instituições políticas.
Inicialmente analisados pelos cientistas políticos numa vertente mais normativa10, a deslocação da centralidade desta perspetiva para a dissecação dos aspetos organizativos e das práticas dos partidos políticos é introduzida nas primeiras duas décadas do século XX por Moisei Ostrogorski (1902), Robert Michels e Max Weber (2015). Proposta que não será alheia às transformações económicas e sociais referidas anteriormente e que foram progressivamente alterando o formato, as funções e a atuação dessas organizações no processo histórico.
Apesar das diferentes abordagens, une-os um certo pessimismo relativamente à capacidade de os partidos políticos promoverem a democratização do sistema, considerando inevitável a sua profissionalização, burocratização e oligarquização. Robert Michels vai, em 1911, apelidar este fenómeno como Lei de Ferro da Oligarquia, defendendo que as elites partidárias atuavam sobretudo na defesa dos seus próprios interesses, descurando a integração efetiva das massas no sistema político, tornando-se assim forças de bloqueio à própria modernização democrática. Apesar da descrença enunciada, devemos a estes autores um novo ângulo teórico, o qual se constituiria como matriz fundamental na análise dos partidos políticos, especialmente após a II Guerra Mundial.
Adotando o enfoque referido, Maurice Duverger, no seu livro Les Partis Politiques, editado pela primeira vez em 195111, construiria tipologias de partidos (Ideal Types), os quais se diferenciariam em função da sua origem, dimensão e natureza da organização, estabelecendo também uma correlação entre estas categorias e os sistemas eleitoral e de partidos. Conquanto a grelha analítica e as conclusões de Duverger tenham sido debatidas e criticadas, não deixariam de se constituir como uma referência, tendo vários investigadores adaptado, aprimorado e ajustado as teses e as tipologias de partido definidas por este, harmonizando-as, sobretudo, com o devir histórico.
No entanto, a compreensão dos partidos políticos não se adapta bem a qualquer prisão concetual e não se esgota, longe disso, nesta análise “estrutural”, a qual negligencia a dimensão social destas organizações. Pretendeu, por isso, uma outra escola, inspirada no ensaio de Karl Marx, o 18 Brumário de Luís Napoleão Bonaparte12, estabelecer uma correlação entre tensões sociais e diferenciação partidária, tendo como premissa a correspondência territorial entre o lugar social e a região política. As preferências ideológicas seriam, então, determinadas pelas características sociológicas e, assim, os partidos teriam origem e desenvolveriam a sua ação em função das clivagens existentes entre diferentes grupos sociais13. Estas originariam uma identidade comum entre indivíduos com os mesmos interesses e o partido que pensam defendê-las.Lipset & Rokkan (1967, p. 182-227) consideram sobretudo quatro clivagens sociais: capital/trabalho; religião/Estado; rural/urbano e a clivagem entre os centros e as periferias14. Argumenta-se, todavia, a possibilidade de se considerar inversamente este modelo, criado por Lipset e Rokkan, posicionando os próprios partidos como motor das clivagens sociais, as quais seriam, assim, uma invenção dos partidos políticos e das suas estratégias de tomada do poder (Sartori, 2005).
Independentemente da argumentação sobre quem é o criador e a criatura, decorre desta perspetiva teórica a necessidade de examinar os partidos políticos à luz da sociologia dos seus militantes, da construção das suas elites e das suas atividades societais, admitindo-os, assim, como legítimos representantes do seu próprio grupo social, na comunidade política de um determinado sistema político. Contudo, por um lado, Panebianco (2009, pp. 28-30) sugere cautela na utilização desta premissa teórica, alertando para o que apelida “de prejuízo sociológico”, por outro, esta linha de pensamento tem vindo a ser contestada, observando-se uma progressiva desidentificação entre o ser social e o ser político-partidário, especialmente nas democracias ocidentais industrialmente mais avançadas (Freire, 2001, p. 39).
Quanto aos partidos políticos, se considerarmos os regimes constitucionais parlamentares, podem ser definidos como um grupo organizado em estruturas particulares, podendo ter alguma relação com uma clivagem social, que se propõem atuar concertadamente numa luta competitiva pela tomada e exercício do poder político, cumprindo assim determinadas funções nas “componentes” de um sistema político e nas “dimensões” do regime que o acompanha. Partimos, então, da definição clássica de Schumpeter (1976, p. 283), cruzando esta abordagem competitiva e institucionalista com uma perspetiva mais sociológica.
Importa ainda considerar Sartori (2005), para quem a definição mínima de um partido é “qualquer grupo político capaz de se apresentar a eleições com candidatos a cargos públicos”, tentando, através deste processo, tomar o poder político (p. 101). Desta definição não exaustiva, podemos deduzir que “ser poder”, apesar de meta capital, não esgota os objetivos de um partido, embora, aproximando-se da linha de Shumpeter, considere a necessidade de eleições com um grau mínimo de concorrência para estas organizações cumprirem os seus propósitos. Ficam, assim, arredadas desta definição organizações que se podem auto-etiquetar como partidos, mas cujo objetivo não é a conquista do poder por via eleitoral, mas sim o derrube golpista do regime vigente (Lopes & Freire, 2002, p. 10).
Aproveitando a definição compósita que utilizamos, o esforço de compreensão destas organizações é, então, devedor do estudo das suas atividades institucionais e societais, dos seus militantes e das suas elites. Estas dimensões de análise, desde que utilizadas dialeticamente e atentem às dinâmicas cronológicas, são fundamentais para progredir na apreensão dos papéis de um partido num sistema político e na sociedade onde se insere.
Quanto à doutrina programática - e a sua retórica - é também uma categoria a não descurar totalmente. Não como dimensão primacial de análise, mas como possibilidade de ser peça do cimento agregador de militância, de construção de cultura política. No entanto, pode não corresponder à ideologia o motor dos partidos políticos em geral, embora consideremos que nuns o seu peso possa ser mais vincado do que noutros. David Hume (1882, pp. 133-144), no seu Essay of the Parties of Great-Britain, de 1760, considerava que os partidos políticos eram guiados por princípios e por interesses, os primeiros influenciando mais os militantes de base e os segundos a elite dirigente, embora apontando como pedra angular das instituições políticas a sua utilidade prática.
O que não pode ser dispensado quando se examinam estas organizações é a sua relação com as eleições15, característica primordial sobretudo dos regimes representativos (Freire, 2011). A opção por um determinado sistema eleitoral, a qual se relaciona com as condições socio-históricas de um dado espaço político-geográfico, para além de colaborar na caracterização do sistema político, influencia o sistema de partidos e a latitude da concorrência entre os habitantes deste (Nohlen 1994).
No entanto, existe uma discussão teórica intensa, a qual repousa em três questões principais: a questão do tipo de abordagem empírica a utilizar no estudo dos sistemas eleitorais, que se relaciona diretamente com a questão da possibilidade de se estabelecerem, ou não, relações de dependência causal entre o sistema de partidos - variável dependente - e o sistema eleitoral - variável independente - e, finalmente, a questão dos critérios para a classificação dos diferentes tipos de eleição. Duverger (2012) formula esta possibilidade de dependência, embora reveja parcialmente a sua posição em obras mais recentes (1986). É acompanhado por Lipset & Rokkan (1967) e Sartori (1986). Nohlen (2007), pelo contrário, contesta a possibilidade de generalizações com alcance universal e contrapõe uma abordagem centrada “no estudo dos sistemas eleitorais concretos e na análise do seu contexto sociopolítico, o qual é considerado indispensável para compreender o seu funcionamento e os seus efeitos” (p. 69), colocando, assim, em questão a possibilidade de deduzir leis sociológicas a partir de resultados parciais, como pretende Duverger.
Importa salientar que a pertinência da utilização da Ciência Política e dos seus conceitos na história política e dos partidos, será mais frutuosa usando as diferentes tipologias de abordagem desta ciência no estudo dos partidos políticos - como o estruturalismo de Duverger ou o https://pt.wikipedia.org/wiki/Behaviorismocomportamentalismo de Lipset e Rokkan, apenas para dar um exemplo de cada uma destas escolas de pensamento. Mais a perspetiva estruturalista se for necessário debater a organização dos partidos, por exemplo, e mais a comportamentalista se procurarmos explicar a relação das ações destes com a sua cultura política ou com a sociologia dos militantes e dirigentes.
Reconhecendo ao sistema político - e à influência decisiva que tem nos seus sistemas-alicerce, o eleitoral e de partidos - uma dinâmica, “em contínua evolução, (…) em circunstâncias históricas precisas (Cruz, 2017, p. 9), interpelar a premissa de “Crise do Liberalismo” a partir de uma perspetiva sistémica é, para nós, condição essencial para inserir os partidos políticos como peças no xadrez desta conjuntura unitária, especialmente no sistema de partidos e na influência que o eleitoral tem sobre este, não esquecendo a influência do zeitgeist, sobretudo europeu.
Numa definição clássica, podemos considerar o sistema político como um conjunto de articulações e interações - as quais resultam “do ordenamento das instituições políticas (e) das relações estabelecidas entre elas” (Cruz, 2017, p. 9) - que delimitam “de forma imperativa os valores (materiais e simbólicos) em uma determinada sociedade” (David Easton, 1965 apud Freire, 2013, p. 6). Sendo parte de um arquipélago e não uma ilha isolada, este sistema e os seus elementos endógenos tecem relações de reciprocidade com outros atores e não podem existir dissociados do mais amplo sistema social (Cruz, 2017).
Estas relações de articulação e reciprocidade acontecem internamente, mas também com “todos os sistemas que estão fora da sociedade em causa em interação com o sistema político nacional” - são exemplo, os sistemas políticos do resto do mundo, as organizações internacionais, como as Internacionais Socialistas, ou os movimentos sociais internacionais, como, por exemplo, o Sindicalismo (Freire, 2013, p. 7)16.
Esta ecologia desafia os sistemas políticos, levando-os a dar-lhe resposta, o que por sua vez originará uma reação e novos desafios, alimentado continuamente a sua atividade (Easton, 1965 apud Freire, 2013) e sujeitando-os a “um fluxo constante de influências e condicionamentos, (os quais) delimitam a sua capacidade de resposta (…)” aos desequilíbrios que as permanentes solicitações dos vários ambientes provocam, obrigando a um persistente teste de esforço para se adaptarem às circunstâncias (Freire, 2013).
O sistema político apresenta ainda três componentes indispensáveis para a sua caracterização e dinâmica: “‘a comunidade política’, ‘o regime’ e as ‘autoridades’” (idem): a primeira, é o conjunto de agentes sujeitos às fronteiras impostas pelo sistema político, quer sejam individuais ou coletivos, como os partidos políticos; a segunda, é o conjunto de normas que regulam a vida das instituições, as ações políticas possíveis (legais) de cada membro da referida “comunidade política” - “poder-se-ia mais genericamente dizer a Constituição” (Freire, 2013, p.7) -, determinando ou condicionando17 por isso o sistema eleitoral e o de partidos e permitindo perceber qual a tipologia do regime; finalmente, as “autoridades” são compostas pelos detentores dos cargos institucionais, os quais produzem os imperativos de um determinado sistema político, fazendo-o cumprir e dando a resposta possível às demandas da comunidade política e da ecologia de sistemas com os quais interage, com o objetivo de repor os equilíbrios da orquestra que rege.
Dessa orquestra já destacamos o sistema eleitoral, que podemos, sinteticamente, definir como um mecanismo de conversão de votos em mandatos, podendo assumir vários formatos. Para Cruz (2017), o “alicerce do sistema político” e a “base (…) para a designação de representantes e de governantes”.
Sistema sensível a qualquer alteração tem consequências em todos os sistemas, sobretudo no de partidos (idem). Consequência bem vincada durante a instabilidade do sistema político liberal em geral, fazendo notar o seu temperamento de forma aguda no contexto da desagregação da Monarquia Constitucional (1890-1910), como veremos mais adiante.
Sartori (1987) atribui ao sistema eleitoral uma dupla função, a de espelho e a de seleção. A primeira reflete a opinião dos eleitores, enquanto a segunda escolhe o corpo dos seus representantes e governantes. Duplo encargo, do qual se espera a legitimação das “autoridades” e o exercício estável dos seus mandatos, já que em teoria ambos se respaldam na representatividade das expetativas emanadas da vontade livremente expressa pela nação de eleitores. O problema da representatividade, e, por consequência, da legitimidade, subsistirá em todos os sistemas políticos até ao alcance pleno da universalidade do voto, vetor imprescindível para o poder qualificar como verdadeiramente democrático (Huntington, 1991). Questão que começou a ser resolvida no final da I Guerra, mas que apenas se tornou uma prática comum, no mundo ocidental, após a II Guerra Mundial. Até lá, com algumas exceções, como a Suécia (Berman, 2006), o voto era masculino, censitário e/ou capacitário, resultando num reduzido número de eleitores e num ainda mais reduzido número de votantes. Por vezes, como no caso de Portugal e de Espanha, sujeitos ainda a uma doutrina eleitoral clientelar, a qual constrangia a liberdade de escolha, subvertendo, assim, as funções que Sartori atribui ao sistema eleitoral e minando a legitimidade das “autoridades” e, consequentemente, a sua possibilidade de exercer o poder (governar) com estabilidade.
Os casos dados são exemplares, sobretudo em momentos de sufrágio nacional. No entanto, é necessário matizar e analisar as eleições locais, nas quais os referidos constrangimentos parecem em geral ser menores. A sua explicação deve-se procurar no facto dos sufrágios municipais serem considerados de menor importância - mais ainda no 1.º andamento da “Crise do Liberalismo”, dada a tipologia dos partidos do regime18 - não acionando na sua máxima força a máquina de fazer eleitores. Aparelhagem, além de tudo, com custos financeiros não negligenciáveis, sobretudo nas zonas urbanas, nas quais os partidos marginais - como o Partido Republicano Português até 1910 - tinham também maior implantação e uma população mais avessa ao cacique. Se assim for, as eleições locais ganham protagonismo quando se procura, por exemplo, estudar a força real dos partidos políticos, podendo constituir-se como os buracos no sistema que vão permitir a infiltração destes partidos acessórios.
Regressando à análise do sistema eleitoral, devemos considerar, ainda, dois modelos principais para o objetivo de transformação dos votos em mandatos - embora estes tenham afluentes e possam mesmo coexistir - o “maioritário”, desenhado no alvor do parlamentarismo liberal, e o “proporcional”, constituído depois como alternativa. Segundo Cruz (2017), o primeiro é normalmente melhor para a escolha de governantes e pior para a seleção de representantes, estando o segundo no hemisfério oposto. Enquanto aquele privilegia a governabilidade, este a legitimidade (p.18)..
Podendo coexistir temporalmente diferentes sistemas em diferentes países, e inclusive num dado Estado-nação, importa realçar a importância do método comparativo, de forma a se aventarem possíveis relações causais entre o sistema eleitoral e a estabilidade de um determinado sistema político e das instituições que o corporizam. A comparação entre Portugal e Espanha ou entre estes dois países (individualmente ou em conjunto) e a Inglaterra pode ser modelar.
Na trilogia de sistemas, aos quais nos temos vindo a referir, o de partidos deve ser considerado como singular. Como afirma Nohlen (2007), ao contrário dos demais sistemas, cujas escolhas de configuração ou reconfiguração podem resultar simplesmente de deliberações legislativas das “autoridades”, este está subordinado a essas decisões. Daqui decorre a sua matriz de variável dependente dos restantes sistemas desta trilogia.
Contudo, paradoxalmente, é decisivo para os resultados que aqueles apresentam e para as apreciações que merecem os elementos institucionais (idem) - ou, como afirma Seiler (2003) fonte de tensão ou de estabilização do agregado de sistemas, desvelando então uma personalidade bipolar ao desempenhar também “o papel de variável independente, assumindo uma importância decisiva em três sentidos: na escolha, no comportamento e nos efeitos das instituições políticas” (p. 33), reforçando a tese que “defende que na política a história e as estruturas sociais têm maior relevância do que as instituições”, tricotando uma malha de causalidades “entre a história e as estruturas sociais, por um lado, e o institucional, por outro” (Nohlen, 2007, p. 79). Hipótese que matizaríamos19, mas à qual reconhecemos a inspiração na eleição dos dois primaciais instrumentos de navegação, a história política e a ciência política, para a concretização deste trabalho e cujo potencial complementar decidimos colocar em exame, na próxima secção, utilizando o trecho do ocaso do liberalismo monárquico como posto de observação.
Para Sailler (2000, apud Marques, 2016, p. 97) o sistema de partidos é “o conjunto estruturado constituído por reações ora de oposição ora de cooperação que existem entre partidos políticos agindo na cena política de uma dada sociedade política”. Desta definição, na qual não cabem os sistemas de partido único, destacamos a competição entre os agentes deste sistema e a possibilidade de alianças entre eles.
De forma a centrar o debate nas causas da sua estruturação específica, numa dada conjuntura socio-histórica, e nos motivos da sua durabilidade (Lepsius, 2017), é relevante tomarmos de empréstimo uma chave analítica mais interpelativa dos “elementos constitutivos de esse fenómeno (…): a) o número de partidos; b) o seu tamanho; c) a distância ideológica entre eles; d) os seus padrões de interação; e) a sua relação com a sociedade ou com grupos sociais; f) a sua atitude e relação perante o sistema político” (Nohlen, 1994, p. 38). Sartori (1986) concordando com a necessidade de análise do “tamanho”, defende que a importância de um partido político se deve medir também, independentemente da sua dimensão, pela função que exerce na formação de coligações ou maiorias, num sistema de partidos concreto, oferecendo-nos uma pista de análise para melhor interpretarmos os partidos políticos, comparando-os com alguns dos seus congéneres europeus.
Se Duverger (1950) subordinou a estrutura, o funcionamento e o desenvolvimento dos sistemas de partido ao eleitoral, definido pelo político, Sartori (1966) autonomiza o seu estudo, considerando a necessidade de observar outras variáveis. Constrói, então, uma chave taxonómica para distinguir diferentes sistemas partidários, introduzindo três tipologias-base “bipartidarismo”, “multipartidarismo” e “pluripartidarismo”. Tipologias cuja chave de classificação depende da maior ou menor fragmentação do sistema (número de partidos - equivalente ao vetor “a” de Nohlen), da distância ideológica entre os partidos políticos (vetor c), do movimento de aproximação ou afastamento de um centro imaginário, mas nevrálgico, do sistema político (vetor f), do qual depende o maior ou menor grau de polarização e, por consequência, o nível de dependência de maiorias ou coligações para manter estável o subsistema parlamentar e de governo (as “autoridades”). Sartori deteta, ainda, uma correlação positiva das variáveis “fragmentação” e “polarização”.
O autor, essencialmente preocupado com o risco de um pluripartidarismo excessivo, o qual, no extremo, pode fazer colapsar o sistema político, não abandonou o sistema eleitoral como ferramenta essencial do desenho do sistema de partidos, aproximando-se aqui de Duverger. O nexo causal entre fragmentação e polarização parece-nos de muita utilidade para a explicação do “colapso” do sistema político liberal em Portugal. Podendo esta causalidade ser observada já nos anos finais da Monarquia Constitucional.
LaPalombara & Weiner (1966) acrescentaram outros critérios à chave de Sartori,diferenciando sistemas partidários “competitivos” e “não competitivos” e, naqueles, a relação de forças dos partidos políticos num dado sistema, distinguindo arquiteturas competitivas com alternância das de traça hegemónica. Sartori (1966), embora concordando com as diferentes intensidades de competição e não abandonando, como mencionamos, o critério quantitativo (número de partidos) para topografar um dado sistema partidário, contraria a ideia de que há sistemas partidários sem competição. Desde o bipartidarismo, ao multipartidarismo de partido hegemónico ou dominante, passando obviamente pelo pluripartidarismo, moderado ou polarizado, e mesmo pelo de partido único, considera existir sempre concorrência. Abre a porta, assim, à discussão sobre a intensidade concorrencial e as suas consequências.
A análise do pluralismo, de moderado a polarizado, pode ajudar, por exemplo, a explicar as fragilidades da República de Weimar, na Alemanha do pós-guerra, e a ascensão do nazismo, ou a desintegração do sistema italiano, a qual acelerou a marcha fascista de Mussolini.
Para Portugal, estas diversas opções permitem-nos refletir sobre a dinâmica do sistema partidário, durante toda a “Crise do Liberalismo”, sugerindo a hipótese de existirem mais fases do que aquelas que classicamente se definiram, levando-nos à necessidade de interpretar as causas e as consequências históricas destas movimentações. Interessa-nos sobretudo perceber que influência teve este sistema, conjugado com o eleitoral, nas fases críticas da “Crise do liberalismo”. No final da Monarquia Constitucional, podemos ainda falar de bipartidarismo? Questão que abarcaremos neste artigo. No entanto, abrimos já a janela para interrogar outros períodos que estamos a analisar para futuras publicações. Como classificar o sistema (ou sistemas) de partidos entre 1910 e o curto tempo sidonista (1917-1919)? O que se pretendeu alterar com a emenda de 1919 à Constituição de 1911? Nos últimos anos da República é possível defender a existência de um pluralismo polarizado, o que ajudaria a explicar seu o fim? Que sistemas estiveram em debate entre as fações da Ditadura Militar de 1926?
No fundo, defendemos que o exame desta orquestra, a qual sumariamente definimos, recai na sua interação conjunta para solucionar as várias pressões que lhe são colocadas pela “comunidade política”.
Se é verdade que a análise desta “Crónica de uma Morte Anunciada” está dependente de muitos fatores, a nós interessa-nos fundamentalmente a observação da diferença entre a extensão da procura de direitos políticos e de “integração dos diferentes grupos sociais no sistema (...)” (Freire, 2013, p.10), pretendidos em diferentes momentos pela “comunidade política”, como os partidos políticos e a oferta das “autoridades”. Interessa-nos também examinar a “capacidade da classe política para responder às demandas sociais” (idem), como às das organizações sindicais. Em poucas palavras, o nosso foco direciona-se para o grau “de abertura e fechamento” do “sistema” às interpelações dessa “comunidade” e para as causas e os efeitos desta ginástica de contração e distensão.
A clivagem e tensão entre as referidas procuras e ofertas foi permanente e desenvolveu processos históricos com diferentes níveis de stress agregado. A profundidade de ajuste variou entre alterações nos sistemas eleitoral e de partidos e a dissolução das normas constitucionais, provocando a queda do regime e a transição para um novo (1910). Esgotadas as possibilidades de adaptação, já incapaz de encontrar no seu ventre a solução para a pressão agregada a que foi colocado, o sistema político colapsa, dando o passo a uma nova ordem (1930-1933). Nova ordem que não contemplava já os partidos políticos. Processo que não desenvolvemos neste trabalho pelas razões apontadas na parte introdutória.
Assim, dedicaremos a próxima secção à análise do que consideramos o 1º andamento do período da crise do liberalismo através das lentes conjuntas da história e da ciência política, procurando demonstrar a validade deste olhar interdisciplinar.
3-Xeque ao Rei - a desagregação da Monarquia Constitucional (1890-1910)
A crise do sistema político português, construído em redor da década de 1850, surge em boa medida “quando as zonas urbanas começam a crescer com ímpeto a partir da última década do século XIX” (Telo, 2010, p. 22), colocando as “autoridades” sobre a pressão da gradual reivindicação das novas classes que a habitam para uma maior integração política. A esta tensão somou-se uma conjuntura política e económica europeia, com consequências específicas em Portugal: “que levou à declaração de bancarrota parcial do Estado” (Fernandes, 2013, p. 44) e a um nacionalismo de novo tipo, ao qual a ferida aberta com o Ultimato inglês, de 1890, abriu maior espaço de radicalização. Basílio Teles, no seu livro Do Ultimatum ao 31 de Janeiro (1968) considerava a posição inglesa como uma afronta à soberania de Portugal e o ultimatum como o momento mais marcante que a sociedade portuguesa teve de enfrentar desde as invasões napoleónicas.
Utilizando uma perspetiva de banda larga do poder moderador, a resposta do “regime” não satisfez a mencionada procura de maior acomodação das novas classes urbanas. De facto, a hiperbolização do entendimento da prerrogativa régia substitui-se ao sistema eleitoral e ignorou parcialmente o partidário, nomeando quatro governos independentes (1890-1893) - penalizando regeneradores e progressistas, os dois partidos motrizes do sistema, muito desgastados face a “incapacidade de ambos para resolver a questão diplomática” (Fernandes, 2013, p. 44) -, quebrando, assim, o rotativismo bipartidário20 característico da fase regeneradora do regime. Perante a inaptidão destes executivos extrapartidários, a pressão aumentou com a alteração do sistema eleitoral (leis eleitorais de 1895 e 1901) que funcionou como “fechamento” às demandas de parte da “comunidade política”, em contraciclo com a Europa. Chegava, assim, ao fim a fase de maior estabilidade da Monarquia Constitucional, o período da “Regeneração” (1851-1890).
O bipartidarismo turnista haveria de voltar, entre 1893 e 1906, mas sem o sucesso da etapa anterior, carregado aos ombros pelas mencionadas leis eleitorais (de 1895 e 1901), as quais reduziram drasticamente o número de eleitores, travando-se, em 1895, a proteção das minorias, reposta em 1891, e diluindo ambas o voto urbano, tipologia fundamental para a eleição de representantes republicanos, a partir da inserção das duas grandes cidades do Porto e Lisboa em círculos com largas zonas rurais - processo de gerrymandering (Almeida, 2013).
Estas alterações respondiam à necessidade de diminuir a instabilidade, afastando das instituições políticas os mais temidos contestatários, o Partido Republicano Português, partido que não elegerá deputados entre 1899 e 1906, apesar de ir aumentado a sua votação total e a sua implantação em Lisboa e Porto (Marques, 1991). A segunda lei eleitoral (1901), apelidada de “Ignóbil Porcaria”, por João Franco, visava também impedir a ascensão do novo Partido Regenerador-Liberal, fundado por aquele, após cisão com os regeneradores e com Hintze Ribeiro, na altura Presidente do Conselho. No fundo barrava-se a entrada de novas tendências, para tentar proteger o sistema bipartidário tradicional.
Nesta nova fase do rotativismo (1893-1906), dois objetivos encabeçavam, então, a decisão moderadora do rei, responder, por um lado, “à forte pressão social contra os partidos de poder” (Fernandes, 2013, p. 44) e diminuir, por outro, o protesto da “comunidade política” contrária ao “regime”. Oposição, como dissemos, sobretudo concentrada no PRP, o qual, depois de aproveitar uma anterior maior “abertura” do sistema eleitoral (1878) para ganhar presença parlamentar, ameaçava transformar-se agora numa força capaz de arrastar as massas e fazer perigar o regime. Com essa meta, os republicanos utilizariam a questão colonial como alavanca para propagandear uma ideia de nação progressista, democrática e redentora do atraso de Portugal, cuja responsabilidade atribuíam em exclusivo a um regime monárquico débil e debilitador da grandeza da pátria (Fernandes, 2014).
Não bastando afastar o PRP do parlamento, enveredou-se ainda por outros caminhos, como a repressão e sobretudo o encerramento das Câmaras por longos períodos, conseguindo depois facilmente tornar lei os decretos aprovados pelos executivos. De 1900 a abril de 1907, assistimos ao todo a “seis anos e três meses de encerramento, num total aproximado de 7 anos e nove meses. Isto é, durante a maior parte do ano (64%) viveu-se, na prática em ditadura” (Marques, 1991, pp. 681-682)21.
Contudo, a instrumentalização do sistema eleitoral para normalizar o regime vaiter um efeito contrário ao esperado, cindindo “regeneradores” e “progressistas”, os dois partidos alicerce do rotativismo, os quais acoitavam personalidades descontentes com o “fechamento” do sistema político. Aumentou, assim, o número de atores no sistema partidário e também a velocidade do crescimento contínuo do republicanismo. O bipartidarismo rotativo começará a fragmentar-se, depois de 1891, iniciando uma transformação num sentido mais multipartidário e, por isso, tendencialmente menos centrípeto.
Em 1906, assistimos a uma nova intervenção do monarca, destituindo novamente o sistema de alternância dos partidos históricos, já em processo mais acelerado desegmentação. Esta opção do monarca marca um novo “fechamento” do sistema, uma nova tentativa de reequilíbrio de um regime já muito debilitado, um novo reforço na acumulação de frustração na “comunidade política” e no sistema social em geral. A Monarquia Constitucional desagregava-se.
Em abril de 1907, Carlos I decide-se pelo fortalecimento de João Franco (e da sua própria autoridade) e o Presidente do Conselho de Ministros passa a exercer o poder em “Ditadura” (1907-1908). O clima de contestação agudiza-se e mais se agrava quando, em dezembro, dissolve os representantes do poder local. Afinal, Franco, que declarara querer governar à inglesa, acabou a governar à turca (Marques, 1991).
A ditadura que o rei caucionara agrava substancialmente o seu isolamento e desagrega mais profundamente os partidos do regime. Com uma força política institucional sem precedentes, o PRP começa a abraçar, aproveitando a crise profunda que massacrava o regime, o objetivo sonhado de tomada do poder pela via revolucionária, fechada que parecia estar, neste momento, outra opção. O regime, com uma frágil válvula de segurança de apoios institucionais e com a organização e condução da “Rua” por parte do PRP, converte-se numa câmara de alta pressão, faltando saber quanta despressurização ainda aguentaria, antes de rebentar.
Carlos I é morto em inícios de 190822, e “Toda a esperança de criar um país diferente passou a assentar no programa republicano” (idem, p. 695).
O período de fevereiro de 1908 até 5 de outubro de 1910 pode ser considerado já de progressiva, embora não linear, transição revolucionária.
Abre-se o último ato, 1909-1910, com um novo rei, o qual podia ser jovem e estar mal preparado para reinar, afinal não tinha sido preparado para suceder ao seu pai (Telo, 2010). Todavia é a sua tentativa de pacificação que permite ao “regime monárquico (ter) nos últimos anos de vida um novo fulgor”. Foi “nessa altura que procurou reformar-se o sistema político com muita determinação”, seguindo em parte os modelos europeus, cortejando a esquerda monárquica, os republicanos e até os socialistas (Amaral, 2011, p. 29), o que dificilmente ocorreria com a rota política de Carlos I.
A falta de vontade ou a incapacidade demonstrada entre 1907-1908, e depois entre 1908-1910, de rasgar a “Ignóbil Porcaria” e regressar à lei eleitoral anterior a 1895, e a impossibilidade de agregar os republicanos ao governo, fornece ao PRP a dinâmica revolucionária decisiva. Este partido era no “final da monarquia (…) uma das poucas que faziam parte a maçonaria, a carbonária e os sindicatos” (idem, p. 33). Os republicanos conseguem, enfim, unir “numa corrente única antimonárquica movimentos e ideologias muito diversas (…), que estava acima das teorias políticas e das ideologias” (Telo, 2010, p. 60).
O “fechamento” do sistema político à pressão para a abertura democratizante impediu, então, a canalização para o espaço institucional das crescentes tensões de modernização e a conversão de “qualquer tentativa de abertura democrática do regime numa impossibilidade prática” (Fernandes, 2014, p. 35) conduzindo a um crescente esboroamento da coesão social e ao processo histórico que levaria à consumação da I República, em 1910.
Concluindo, consideramos como Fernandes (2013) que a desagregação da Monarquia teve no protagonismo régio, caucionado por um poder moderador lido de forma demasiado abrangente, na incapacidade de modernização democratizante do sistema político e na consequente obstinação em manter a lei eleitoral as suas causas mais estruturais.
Se a intervenção política do rei não pode ser considerada novidade, já que até 1910 “assumiu quase sempre um papel de visível ingerência, (embora podendo) dentro dos preceitos da lei (…) subverter o funcionamento do sistema político e adequar o respetivo exercício à sua própria vontade”, o facto de Carlos I ter descuidado os “efeitos colaterais de tal procedimento” ser-lhe-á fatal. O “rei estava (embora não o fosse) no centro do sistema político (…). A coroa passou a ser vista pela classe política apenas como um mecanismo de ratificação de legislaturas e executivos”, não apenas pelos republicanos, mas também por muitas das principais figuras dos partidos do rotativismo da monarquia liberal (Amaral, 2011, pp. 22-23).
Esta interpretação parece-nos fundamental para isolar uma hipótese explicativa geral. O problema afinal parecia não residir no turno partidário, nem inteiramente na fatia de população com direito de voto - cerca de 47% dos homens com mais de 21 anos, nas últimas eleições do regime23, mas “no paço (…) ao excluir sistematicamente a ala ‘avançada’ do regime.” (Fernandes, 2013, p. 47).
É, assim, num contexto de incapacidade da “ordem dominante (…) da lenta e controlada incorporação política das massas urbanas (…) ” (idem) que se deve entender o agigantamento do movimento republicano e a “inevitabilidade” da tentação revolucionária, facilitada ainda pelo absentismo dos partidos monárquicos na defesa do regime (Amaral, 2011, pp. 23-37).
Considerações finais
Sendo o objetivo principal deste artigo demonstrar a validade da utilização de um enquadramento teórico interdisciplinar, verificando a possibilidade do exame dos processos históricos através das lentes da história e da ciência política, entendemos ser necessária uma aplicação prática que demonstrasse o potencial deste cruzamento de saberes, nomeadamente para o avanço do estudo dos partidos políticos.
Esta aplicação teve como laboratório não o ocaso da Monarquia Constitucional como uma rutura preenchida pelo período subsequente, a I República, mas como o andamento de abertura de um tempo mais longo. Trecho inicial no qual os problemas a resolver pelo sistema liberal se foram constituindo, ganhando forma e agudizando-se.
Também nesta fase é possível detetar o aparecimento em Portugal de um partido de massas, o Partido Republicano Português, tipologia de partidos que estava lentamente a substituir a anterior, os partidos de notáveis, pelo menos na europa ocidental. Será esta organização política a alterar o equilíbrio do sistema partidário do liberalismo monárquico, com as consequências que descrevemos na secção anterior.
Pudemos, então, constatar que a integração da leitura do período 1890-1910 na constelação dos sistemas propostos pela Ciência Política - e na mais vasta conjuntura europeia - aportou riqueza à análise histórica, a qual fica demonstrada (esperamos) na periferização dos particularismos em proveito da análise interpretativa sistémica.
A compreensão da interação entre os sistemas político, eleitoral e partidário permitiu reagrupar os factos dando-lhes significado, possibilitando novas interrogações e um debate historiográfico menos preso a uma sequência causal microscópica e mais atento a uma visão interpretativa de conjunto.
É para nós claro que o diálogo interdisciplinar que propusemos é válido e urgente. Ficando assim, como intenção futura a conclusão da aplicação destas lentes bifocais aos restantes andamentos da “Crise do Liberalismo”, a que se seguirá uma tentativa de
sistematizar todo este período usando o enquadramento teórico que experimentamos neste artigo.