Introdução
Desde a adesão à Comunidade Europeia, os fundos europeus1 apoiaram de forma cíclica diferentes domínios de política pública. Esses fundos assumiram a forma de quadros plurianuais de financiamento a partir de 1989 com diferentes prioridades e organização de recursos (Pires, 2017), mas já antes, com as ajudas de pré-adesão, apoiaram as políticas de desenvolvimento e a estruturação de vários campos da política pública.
Um dos domínios de política cujo desenvolvimento está fortemente ancorado nos fundos europeus é o da formação profissional (recuperando o sentido anglo-saxónico do conceito de Vocational Training) e, incluído nesse âmbito, o da educação de adultos. Sendo um percurso com mais de trinta anos, é natural que nele encontremos diferentes prioridades, objetivos, instrumentos e, mais amplamente, fases ou etapas de desenvolvimento. Essas fases traduzem impulsos e visões políticas que, fazendo escolhas próprias, constroem um percurso evolutivo que, porque mais incremental nuns momentos e mais descontínuo noutros, importa compreender.
Este artigo propõe-se fazer uma identificação e breve caracterização das principais fases de desenvolvimento do sistema de formação profissional e da sua interação com o percurso de financiamento europeu à política de educação e formação profissional. É um percurso longo que faz evoluir a capacidade de resposta do Sistema de mil formandos para as dezenas de milhares de formandos. É um percurso com forte interdependência entre o referencial estratégico das políticas de formação profissional e aquele que orientou a programação dos fundos europeus, ou seja, entre o financiamento e o impulso político que a nível nacional lhe dá forma. Um e outro confundem-se, o que enriquece o interesse da sua análise.
Enquadramento da análise e do seu âmbito
O conceito de formação não tem um entendimento que possa ser facilmente consensualizado. Na versão anglo-saxónica, o conceito corresponde à designação vocational training. A sua tradução equipara o termo vocação ao termo profissional, sugerindo a utilidade de situar em termos gerais o que entendemos por este objeto neste artigo. Na literatura em língua inglesa, é comum referir-se o conceito de vocational education and training. A vocação está presente novamente como expressão da natureza profissionalizante da formação, não explicitando, em grande medida, fronteiras marcadas entre os dois conceitos. Comumente, na literatura, o termo educação e formação profissional (vocational education and training) surge associado a programas de formação inicial em que está presente uma dimensão escolar no programa de aprendizagem. Recorrendo a Thompson (1973), podemos considerar que a associação entre educação e formação traduz a combinação de aprendizagens inscritas no domínio da formação de base - académicas - e de aprendizagens inscritas no domínio da formação técnica. Esta é uma abordagem muito presente não só na formação inicial de jovens, por exemplo, mas também na educação de adultos (Veloso, 2008).
Tendo em conta a ótica acima exposta, o conceito de formação profissional (vocational training) assume uma abrangência maior (Billett, 2011), incluindo programas de formação de âmbito, duração e fins muito diferenciados. Consideram-se, pois, programas que tanto podem corresponder a percursos de formação inicial como de aprendizagem ao longo da vida. Nesta perspetiva, a estratégia de aprendizagem pode visar quer processos de apoio à transição para o mercado de trabalho, quer estratégias vocacionadas para a atualização e requalificação de competências.
Na ótica deste artigo, recorremos ao conceito de formação profissional por ser mais abrangente e permitir referenciar a significativa amplitude de programas incluídos ao longo do tempo da programação apoiada por fundos europeus.
Na categoria de fundos europeus, acolhe-se uma ampla diversidade de fundos, com finalidades distintas, regras específicas e estruturas de gestão próprias. São cinco os Fundos Europeus Estruturais de Investimento (FEEI) que asseguram a mobilização dos apoios europeus ao desenvolvimento2..Estes apoios são programados em Quadros Financeiros Plurianuais (QFP), que se têm renovado ciclicamente desde 1989, estando a iniciar-se agora o sexto QFP. Com exceção do primeiro, que teve uma duração de cinco anos, os restantes QFP programam a aplicação dos fundos europeus por um período de sete anos e exigem um dispositivo administrativo e de gestão complexo.
A análise que procuramos fazer neste artigo remete, também, para a estratégia de análise das políticas públicas. Neste plano, são várias as teorias políticas que procuram auxiliar na análise do processo político e na compreensão das suas dinâmicas de evolução. A teoria institucional é uma delas e situa a sua análise no papel das instituições de governação na evolução do processo político. A abordagem do processo político por via das instituições tende a aprofundar o conhecimento sobre as condições de estabilidade da ação política, ou seja, a situar como se promove a sua estabilidade e quais os elementos que a determinam. Ora, olhar para as circunstâncias de estabilidade das políticas permite, articuladamente, situar as condições da mudança, sejam elas condições externas que envolvem a atuação das instituições, ou a sua inter-relação com fatores externos, onde se inclui o plano das ideias (Hill, 2009).
Os sistemas com forte expressão na intervenção pública, como é o caso do sistema de formação profissional, são significativamente influenciados pela dinâmica institucional, sendo relevante para a sua caracterização e compreensão apreender o processo de evolução no longo prazo e identificar os fatores que promovem a mudança que de forma incremental vai ocorrendo.
As denominadas novas abordagens institucionalistas procuram incluir nas suas dimensões de análise o papel dos valores, normas, convenções e cultura na dinâmica de evolução dos sistemas políticos. De acordo com essas teorizações, estas são dimensões persistentes e relevantes do jogo social e permitiram uma significativa diversificação das abordagens teóricas que integram a evolução do institucionalismo (Hall & Taylor, 1996). O institucionalismo histórico é uma dessas abordagens e constitui um referencial útil para enquadrar a reflexão proposta neste artigo.
O institucionalismo histórico releva o papel do percurso cumprido e dos padrões de atuação anteriores na configuração da evolução e cenários futuros das políticas. Ou seja, o institucionalismo histórico destaca o papel do tempo e da sequência dos acontecimentos passados para a determinação dos acontecimentos futuros, sinalizando que o modo como se organizou e se atuou anteriormente influencia significativamente o modo de organização e atuação no futuro. A utilização deste pressuposto analítico faz com que esta teoria seja mobilizada, predominantemente, para a análise e interpretação no longo prazo. A observação da evolução das instituições ao longo do tempo torna, por sua vez, mais visível e fiável a verificação dos fatores que promovem constrangimentos à mudança e permite aclarar aqueles que emergem como elementos de ignição de momentos de transformação.
A ideia traduzida nesta abordagem teórica remete para o conceito de dependência sistémica, que enfatiza o papel das estruturas e normas vigentes no modo como se forma a evolução das políticas (Thelen, 2004). Nesta perspetiva (path dependence), os sistemas influenciam significativamente o processo de mudança e sugerem que o mesmo se alimenta de transformações incrementais. Esta perspetiva contribui para a compreensão da transformação longa dos sistemas e subsistemas políticos e dos programas e regras que os organizam. A análise da evolução do sistema de formação profissional desde o momento em que começaram a existir fundos europeus em Portugal inscreve-se nesta ótica de longo prazo.
A corrente do institucionalismo histórico convoca o conceito de rendimentos crescentes enquanto processo através do qual a manutenção de determinadas circunstâncias gera ganhos maiores ao longo do tempo. Estes alimentam um retorno positivo sobre o funcionamento de uma determinada realidade e promovem a sua manutenção (Pierson, 2000). Apesar disso, uma determinada associação de acontecimentos críticos (Pierson, 2000) constitui o fator que permite induzir mudança, criando os incentivos certos ao tecido institucional que suporta o curso das políticas. Para o estudo destas dinâmicas importa rastrear o processo de evolução das instituições (Hall, citado por Immergut, 2006) e assegurar uma perspetiva histórica nessa análise.
A evolução dos Sistema de Formação Profissional e os ciclos de financiamento
A nossa análise considera o período de pré-adesão e termina com o último ciclo de programação já cumprido, ou seja, o PT 2020 (último período de programação dos fundos europeus cumprido e cuja execução se encontrava, à data de redação deste texto, na fase final). As fases que identificámos não coincidem nos seus exatos termos com os períodos temporais de calendarização dos fundos. Com efeito, a interação entre as políticas e os ciclos de financiamento não é linear, sendo que a evolução do perfil das políticas tende a influir na formatação dos ciclos de programação do financiamento e estes a constituírem-se como condição de eficácia daquelas. Assim, as fases identificadas procuram, antes, delimitar o conteúdo dos ciclos de transformação e referenciá-los à dinâmica dos ciclos de programação (medidas de política e opções de financiamento) dos fundos europeus neste domínio. Nesta perspetiva, identificámos quatro grandes fases de desenvolvimento das políticas de formação profissional que, na análise realizada, se articulam com a programação dos fundos europeus.
A primeira fase é a da Institucionalização. Desenvolvida entre as décadas de 1980 e 1990, abrangendo o período de pré-adesão e o primeiro Quadro Comunitário de Apoio (QCA I), esta fase caracteriza-se por avanços relevantes na construção deste campo de políticas, seja no plano infraestrutural, seja da criação de novos instrumentos de atuação no domínio da formação profissional. Estas duas dinâmicas combinadas permitiram cumprir um processo de institucionalização deste campo de políticas, criando o sistema de formação profissional, e, articuladamente, expandindo a sua capacidade de resposta.
A segunda fase é a da Regulação e desenvolve-se entre a década de 1990 e o início da primeira década do século XXI, coexistindo, sobretudo, com o segundo e o terceiro Quadros Comunitários de Apoio (QCA II e QCA III). Esta fase cumpre uma função organizadora do sistema, regulando os seus campos de intervenção, os seus objetivos e públicos, os seus instrumentos e, mais amplamente, o seu funcionamento.
A terceira fase é a da Renovação do campo das políticas de educação e de formação e corresponde, em grande medida, ao período de execução do ciclo de programação que mediou entre 2007 e 2013 (QREN). Esta etapa de evolução do sistema de formação profissional caracteriza-se por uma relevante evolução (mudança) na sua proposta estratégica e princípios organizativos. Os atributos que guiaram a reorganização deste campo de políticas mantêm-se vigentes, determinando o perfil da última fase identificada no artigo.
A quarta fase é da (Des)continuidade, refletindo o facto de nela se acolherem movimentos contraditórios, nomeadamente no que diz respeito à educação e formação de adultos. Esta fase coincide com a programação do último ciclo de fundos europeus concluído (PT 2020) e corresponde, em grande medida, àquela onde menor visibilidade é assumida por dinâmicas reformistas e de transformação do campo de políticas de formação profissional.
Por fim, olhamos de relance o ciclo que agora se inicia. Será extemporâneo conferir-lhe já atributos definidos. Porém, considerando as circunstâncias singulares do financiamento das políticas públicas por via da combinação do ciclo de programação em vigor com o Programa de Recuperação e Resiliência, e atendendo ao perfil de programação de cada um destes instrumentos, é expectável que esta possa ser a fase da complementaridade. Complementaridade de instrumentos de financiamento, mas, também, de políticas e medidas. O tempo permitirá aferir se assim será ou não.
Procuramos de seguida caracterizar de forma breve cada uma destas fases e sinalizar o modo como se promoveu a interação com o financiamento comunitário.
A relevância para a institucionalização do campo das políticas de educação e formação: as ajudas de pré-adesão e o QCA I
As Ajudas de Pré-Adesão foram negociadas em 1980 e elegeram como objeto a melhoria das estruturas industriais, a modernização dos sectores agrícola e das pescas e o desenvolvimento de infraestruturas. A disponibilização dessas ajudas coincidiu com um impulso reformista das políticas de educação e formação apoiadas no parecer da UNESCO sobre os sistemas de educação e formação (Cardim, 2019). Este impulso foi vertido num Plano de Médio Prazo (1977/80) para a expansão do sistema educativo e o reforço da formação profissional.
No âmbito das Ajudas de Pré-Adesão, foi acordada a construção de 10 novos centros de formação profissional, reforçando significativamente uma rede que à data contava com 13 centros em funcionamento, criados na década de 1960 (Cardim, 2005). Assim, o primeiro impulso recebido dos fundos europeus para a institucionalização da formação profissional situa-se precisamente na consolidação da capacidade instalada na rede de resposta do então recentemente criado Instituto do Emprego e Formação Profissional (1979). Este reforço da rede permitiu um crescimento exponencial do número de formandos abrangidos, que passou de cerca de 1.000, em 1981, para quase 19.000, em 1988.
O impulso reformista desenhado à data contemplava outros domínios de aposta além do infraestrutural, compreendendo a formação inicial e contínua. A resposta ao desemprego constituiu-se como uma prioridade do Fundo Social Europeu (FSE) no QCA I, determinando uma aposta relevante na formação inicial de jovens e no “aperfeiçoamento” de ativos. Destacam-se a criação do Sistema de Aprendizagem, a criação do Ensino Profissional e a consolidação de um sistema de formação contínua, implicando a revisão de métodos - designadamente do sistema de Formação Profissional Acelerada, que marcava o sistema desde a década de 1960. Sem dúvida, estes foram desenvolvimentos que perduraram e que deste então constituem atributos essenciais do sistema de educação e formação.
Fortemente ancorada no financiamento do PRODEP I (Programa de Desenvolvimento Educativo para Portugal), a expansão do ensino profissional tem lugar no início da década de 1990 (Alves & Azevedo, 1998). Desde então, os Cursos Profissionais têm percorrido um percurso de progressiva afirmação no contexto do ensino secundário, representando um subsistema essencial da estratégia de diversificação da oferta de educação e formação e de combate ao abandono escolar precoce. A sua vinculação ao reforço da capacidade de financiamento possibilitada pelo FSE tem raízes no primeiro QCA que perduram até hoje. Primeiro, como espaço de inovação da política de educação; agora, como subsistema alternativo para a frequência do ensino secundário.
A criação do Sistema de Aprendizagem cumpre um percurso semelhante. Neste caso, por via dos Programas Operacionais geridos pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), designadamente através do PO3. Foi também o FSE que permitiu a estruturação do modelo de formação em alternância perspetivado na dinâmica reformista da década de 1980, que foi marcada por sucessivas revisões legais e impulsos programáticos, visando garantir condições de afirmação do Sistema de Aprendizagem. O QCA I reuniu condições de financiamento favoráveis à afirmação desta dinâmica política.
A análise da estrutura de programas operacionais sob gestão do IEFP permite referenciar, ainda, o significativo impulso dado aos programas de formação de ativos, traduzindo a preocupação em dar resposta ao déficit de qualificações da população portuguesa. A ótica da formação profissional de ativos aí contemplada (ativos não qualificados, ativos qualificados, quadros, adultos desempregados de longa duração) começou a construir um campo de resposta na educação de adultos marcada por uma forte vinculação à formação profissional (Cardim, 2005).
De referir, ainda, que é deste período a consolidação da rede de Centros de Gestão Participada, geridos em parceria com os parceiros sociais, tendo por base o regime jurídico criado em 1983. Protagonizando uma abordagem de aproximação aos setores de atividade e à formação empresarial, esta rede constitui ainda hoje uma referência na procura de ligar o sistema de formação profissional ao tecido empresarial.
Os desenvolvimentos referidos são emblemáticos do contributo dado pelo FSE para a institucionalização do sistema de educação e formação, subsistindo ainda enquanto instrumentos relevantes da política de educação e formação e prioridades do financiamento do FSE. Nesta matriz fundadora do Sistema, a ação do IEFP constitui-se como centro de racionalidade e elemento de governação essencial. Esse papel mantém-se ainda atual.
A fase da regulação e organização do(s) campos de política: o QCA II e o QCA III
Esta fase contempla o processo de consolidação do sistema de formação profissional executado durante a década de 1990 e vigente até meados da década seguinte. A década de 1990 abrange o QCA I (1989-1993) e o QCA II (1994-1999), mas é sobretudo no desenvolvimento dos QCA II e QCA III (2000-2006) que encontramos uma maior tradução do referencial estratégico correspondente a esta etapa de desenvolvimento do sistema de formação profissional. Neste período, foram significativos os desenvolvimentos na perspetiva da consolidação do campo de políticas de formação profissional, destacando-se a criação do regime jurídico da formação profissional. Por esta via, é conferida significativa relevância à dimensão normativa e de regulação do campo, aspetos essenciais para melhor organizar e estruturar o seu funcionamento. O exercício de regulamentação então cumprido conduziu à aprovação de quadros de regulação autónomos no contexto dos dois subsistemas de políticas mais relevantes neste âmbito - trabalho e educação -, conferindo uma legibilidade específica aos diferentes instrumentos de política.
O Acordo de Política de Formação Profissional (CPCS, 1991), subscrito por todos os parceiros sociais com assento no Conselho Permanente de Concertação Social, destacava seis áreas de aposta: melhoria da articulação entre formação e vida ativa; inserção, no mercado de emprego, dos grupos mais desfavorecidos; intensificação da formação contínua; concertação social na definição, desenvolvimento e execução das políticas de emprego e formação; fomento da investigação e sistematização das estatísticas de formação e emprego; e cooperação no âmbito das Comunidades Europeias. Articuladamente, o Acordo consagrou a adoção de um regime jurídico para a formação profissional (Decreto-Lei 401/91), regulamentando-a nos seus principais atributos através da distinção entre formação profissional inserida no mercado de emprego e formação profissional inserida no sistema educativo (Rodrigues & Matos, 2019).
Deste modo, o referencial jurídico e programático que antecede o início do QCA II consagra uma distinção entre a formação inserida no mercado de trabalho e a que se desenvolve no âmbito do sistema de educação. Esta opção dualiza as prioridades e objetivos de cada um dos subsistemas e da formação profissional que acolhe. No caso do sistema educativo, uma ótica qualificante para a inserção na vida ativa; a outra, do sistema de emprego, é dirigida a ativos empregados e desempregados e vocacionada não só para a qualificação para o posto de trabalho, mas também para dar resposta ao impacto sobre o emprego dos processos de ajustamento económico. Vinculada a organismos do então denominado Ministério do Emprego e Segurança Social e, no seu âmbito, ao IEFP, a formação inserida no mercado de emprego conferiu relevância à generalização da formação contínua, à resposta a grupos sociais desfavorecidos e à resposta aos processos de reestruturação empresarial.
Acompanhando esta visão organizativa do sistema de formação profissional, o QCA II contemplou uma abordagem segmentada do Fundo Social Europeu e dispersou por vários programas as medidas de apoio à Formação Profissional. No subprograma PRODEP - incluído no Programa Bases do Conhecimento e Inovação -, centrou-se o financiamento da formação inserida no sistema educativo, destacando-se o ensino profissional e artístico e a formação contínua de professores. Incluía-se também neste subsistema a resposta à população adulta através do ensino recorrente e da educação extraescolar. No Programa Pessoa, além do sistema de aprendizagem, contemplava-se uma gama diversificada de medidas de formação para o emprego (tendo como público-alvo ativos empregados e desempregados) e formação para grupos específicos. A resposta do FSE incluía ainda subprogramas de base setorial nos domínios da agricultura, pescas, indústria, turismo e saúde e um subprograma vocacionado para a integração social de grupos desfavorecidos.
O QCA II contribuiu, deste modo, para dar um relevante impulso à expansão da formação contínua - nas suas dimensões de aperfeiçoamento e reconversão profissional - e à estruturação de subsistemas setoriais de formação profissional. São casos emblemáticos que mantiveram lastro de intervenção com relevante autonomia ao longo do tempo os da formação para o turismo, através de institutos setoriais próprios, da agricultura, através de organizações patronais, e da economia, através de instrumentos específicos associados ao investimento industrial e à rede de escolas tecnológicas.
A regulação do campo da formação profissional e a organização e expansão da resposta da formação profissional dirigida à atualização de competências e reconversão profissional de ativos empregados e desempregados foi durante este período amplamente suportada no financiamento do FSE, representando 42% do financiamento total da formação profissional no QCA II (CEDEFOP, 1999). A formação profissional inicial absorveu, por sua vez, 58%. Importa considerar, contudo, que esta começou o seu processo de estruturação e expansão no QCA I. Ao mesmo tempo, reforçou-se neste período, também, a resposta da formação profissional a públicos desfavorecidos.
O QCA III garantiu uma significativa continuidade desta abordagem. Elegendo como prioridade “Elevar o nível de qualificação dos portugueses, promover o emprego e a coesão”, a estratégia, no domínio mais específico da formação profissional, apoiou-se na terceira geração do Programa Operacional da Educação (PRODEP III), do Programa Operacional Emprego, Formação e Desenvolvimento Social (POEFDS), do Programa Operacional da Sociedade da Informação (POSI) e do Programa Operacional da Saúde (Saúde XXI). As linhas de intervenção do PRODEP III mantêm-se significativamente próximas das adotadas no QCA II. Na área do Emprego, Formação e Desenvolvimento Social, a prioridade dada à promoção da empregabilidade da população ativa convoca estratégias de ação no domínio da adaptabilidade e da qualificação de desempregados, sobretudo de longa duração, vinculando a aprendizagem ao longo da vida à promoção do emprego e da coesão social.
Talvez a principal linha de inovação do QCA III no domínio da estratégia de qualificação da população portuguesa seja a adoção do Programa Operacional Sociedade da Informação, que procura corresponder aos desafios e prioridades da "estratégia do emprego na Sociedade de Informação", formulada pela Comissão Europeia, e do "Livro Verde para a Sociedade da Informação". Constituindo uma primeira geração de políticas públicas de resposta aos desafios da sociedade da informação, e, em sentido mais amplo, da digitalização, neste programa operacional acolheram-se intervenções para o desenvolvimento de competências em tecnologias de informação e comunicação, tanto numa ótica de qualificação avançada, como de combate à exclusão.
No domínio da formação profissional, este percurso confrontou-se com a dificuldade de criar centros de racionalidade próprios fora da intervenção do Instituto do Emprego e da Formação Profissional. A disseminação da intervenção no domínio da formação contínua por diversos instrumentos de financiamento e atores ficou aquém do desejado na consolidação de estratégias setoriais de qualificação dos recursos humanos e do tecido institucional de suporte. Essas limitações abriram espaço para uma dinâmica de renovação do campo da formação profissional que dá forma à etapa subsequente do percurso que aqui tentamos traçar.
A renovação do campo através da adoção de uma nova racionalidade estratégica: do QCA III ao QREN
À semelhança do que aconteceu com o início da fase anterior, a dinâmica de reforma que caracteriza esta etapa está ancorada no diálogo social, mais diretamente através do Acordo para a Reforma da Formação Profissional, de 2007, mas também pelo acordo que o antecedeu, em 2001 (ainda na vigência do QCA III), de âmbito mais amplo - o Acordo Sobre Política de Emprego, Mercado de Trabalho, Educação e Formação. Enquanto este último foi assinado por todos os parceiros sociais com assento na Comissão Permanente de Concertação Social; o de 2007 não contou com a aprovação da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses.
O traço distintivo desta fase é a criação do Sistema Nacional de Qualificações (SNQ).Articuladamente com a criação e funcionamento do SNQ, destaca-se nesta fase a proposta programática incluída no Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN), correspondendo ao ciclo de fundos europeus que mediou entre 2007 e 2013. Embora assim seja, é adequado considerar que algumas das dinâmicas de mudança consagradas na Agenda de Reforma da Formação Profissional - e no Acordo que a adota - começam a desenhar-se no início da década de 2000 e têm expressão no Acordo Sobre Política de Emprego, Mercado de Trabalho, Educação e Formação de 2001 (CPCS, 2001). A evolução na organização do campo da educação de adultos, incluindo o surgimento do reconhecimento, validação e certificação de competências, e a adoção de medidas que reforçam a prioridade à aprendizagem ao longo da vida são disso os exemplos mais significativos.
A criação do SNQ (Decreto-Lei 396/2007) concretiza o impulso de reforma da formação profissional no plano normativo e afirma a prioridade atribuída à formação profissional - em sentido amplo, como acima se explicitou - na resposta ao desafio de elevar o nível de qualificações da população portuguesa. O princípio da dupla certificação constitui-se como elemento nuclear da estratégia de reforma (Feliciano, 2019). A sua aplicação assegurou que toda a formação inicial qualificante atribuía, simultaneamente, certificação escolar e qualificação profissional. Este princípio foi considerado na formação inicial de jovens, sobretudo através do ensino profissional e dos cursos de aprendizagem, mas também na educação e formação de adultos, através da diversificação dos Cursos de Educação e Formação de Adultos (Cursos EFA). O princípio da dupla certificação estendeu a sua aplicação à formação contínua e ao reconhecimento de aprendizagens informais. Através da referenciação do conjunto de percursos de aprendizagem - inicial, contínua e de reconhecimento, validação e certificação de competências - aos referenciais de qualificação do Catálogo Nacional de Qualificações e da sua organização modular, todos os percursos de aprendizagem passaram a permitir obter uma dupla certificação.
A esta dinâmica associou-se um reforço da prioridade atribuída à educação e formação de adultos e à expansão da oferta que lhe estava dirigida. Em particular, releva a articulação de três instrumentos da política de formação profissional: i) os cursos de Educação e Formação de Adultos, ii) as formações modulares e iii) o reconhecimento, validação e certificação de competências. A expansão da utilização destes instrumentos apoiou-se no impulso ao seu desenvolvimento e consolidação metodológica iniciados na viragem do século que o Acordo de Concertação Social de 2001 (CPCS, 2001) viria a reforçar.
Do ponto de vista institucional, surgem, também, alterações relevantes. A coordenação do Sistema Nacional de Qualificações é assumida pela então criada Agência Nacional para a Qualificação (ANQ). Este desenvolvimento atribui ao sistema de formação profissional uma fonte adicional de racionalidade na sua coordenação. A ANQ integra nas suas competências a coordenação do Quadro Nacional de Qualificações, do Catálogo Nacional de Qualificações, da coordenação da Rede de Centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências e da rede de oferta de educação e formação profissional. Deste modo, à intervenção central assumida pelo IEFP na coordenação do sistema de formação profissional até então associa-se a da ANQ, através do seu papel nuclear na coordenação e apoio à regulação do Sistema Nacional de Qualificações.
A par da criação da ANQ enquanto entidade de coordenação do Sistema Nacional de Qualificações, a reforma promovida suscitou uma relevante integração entre os subsistemas de educação e formação profissional, invertendo a lógica subjacente à opção assumida na regulamentação aprovada na década de 1990, que promovia a distinção entre a formação inserida no sistema de educação e a formação para o emprego. Em linha com este redirecionamento, a disponibilização da oferta de formação na rede de operadores do SNQ passou a estar mais integrada. São disso exemplo a oferta de cursos EFA, de formações modulares e de respostas de RVCC em operadores dos sistemas de educação e emprego. Apenas o Ensino Profissional e o Sistema de Aprendizagem mantiveram alguma especialização sistémica: o Ensino Profissional na rede de escolas públicas e profissionais e o Sistema de Aprendizagem no âmbito da rede de centros de formação e de outros operadores de formação profissional.
Estes desenvolvimentos no plano institucional e das medidas de política foi plenamente articulado com o novo ciclo de financiamento de fundos europeus, em particular com a programação do Fundo Social Europeu. Três traços relevantes caracterizam este período: i) o reforço do financiamento do FSE no conjunto da programação, representando 35% no QREN, correspondendo à proporção mais elevada no conjunto dos fundos europeus ao longo dos vários ciclos de programação - no QCA I, o FSE representou 23% do financiamento; no QCA II, 18%; no QCA III, 19%; e, já depois do QREN, no PT2020, 30%3; ii) a concentração do financiamento num único PO Temático no Continente (o Programa Operacional do Potencial Humano); e iii) a focalização dos apoios nos instrumentos de política que deram forma à Agenda de Reforma da Formação Profissional.
O Programa Operacional Potencial Humano concentrou a agenda temática no domínio da formação profissional, elegendo como bandeira de referência para a sua ação a generalização do ensino secundário como patamar mínimo de qualificação para a população portuguesa. Esta era, de resto, uma bandeira importada da “Iniciativa Novas Oportunidades”, que se constitui como referencial programático central da intervenção no domínio da formação profissional. Como referido no Estudo de Avaliação Ex-ante do POPH (Carneiro et al., 2007), a Iniciativa Novas Oportunidades (INO) constitui-se como elemento estruturante da programação da Agenda Temática Potencial Humano, estando esta amplamente ancorada nos instrumentos de política do SNQ.
A concentração da agenda nas prioridades de política do SNQ e da INO respondeu a um objetivo de seletividade do financiamento em prioridades claras e na sua transversalidade ao território. Nesta perspetiva, no âmbito do QREN, a intervenção do FSE não introduziu significativas mudanças no que diz respeito à territorialização dos instrumentos de política.
A continuidade de políticas: a Agenda 2020
A proposta estratégica introduzida pela reforma da formação profissional e o suporte que o FSE garantiu à sua concretização tiveram uma linha de significativa continuidade no quadro plurianual de financiamento subsequente. Embora, numa perspetiva global, o ciclo seja de continuidade, a sua implementação foi menos linear. Correspondendo à leitura crítica que à data se fez dos instrumentos de política da educação de adultos incluídos na INO, a programação inicial da Agenda 2020 promoveu uma redução significativa do financiamento neste domínio. Em resultado disso, verificou-se uma relevante atrofia deste campo de políticas, reduzindo o número de atores institucionais e de indivíduos abrangidos. Na vertente institucional, verificou-se um significativo esvaziamento da rede de Centros para a Qualificação e Ensino Profissional (CQEP), à data responsáveis pelos processos de RVCC e de encaminhamento para formação. Na vertente da oferta, verificou-se uma redução da capacidade de abranger adultos em processos de RVCC e do volume de cursos de Educação e Formação de Adultos. Esta opção da programação inicial do PT2020 fragilizou os elos de continuidade dos instrumentos de política do SNQ vocacionados para os adultos. Ao longo da execução da Agenda Temática Capital Humano este ponto de partida da programação alterou-se substancialmente, tendo a dotação do Eixo “Aprendizagem, qualificação ao longo da vida e reforço da empregabilidade” - onde se inclui a formação para a educação e formação de adultos - crescido 69%, de 500 milhões de euros para 845 milhões de euros4. Esta dinâmica de execução reforçou a relevância desta prioridade no contexto do QREN e deu maior expressão à linha de continuidade da programação. No que respeita aos outros instrumentos da política de formação profissional, a Agenda Temática do POCH retoma em grande medida as prioridades anteriormente assumidas.
Esta continuidade da programação no ciclo de financiamento alinha-se com a continuidade das políticas ao nível da formação profissional, evidenciando a interdependência entre os dois domínios de atuação. Assim, as linhas gerais de organização do sistema de formação profissional - enquadradas no SNQ - mantêm a sua hegemonia, tanto no que respeita ao quadro institucional e estratégico, como do financiamento dos fundos europeus, que continua a assumir relevante centralidade para assegurar o seu funcionamento.
Do lado do financiamento, ganha expressão, ainda que com moderado impacto, um elemento novo na ótica da regulação: a abordagem por resultados. Esta procura indexar o financiamento e a avaliação dos instrumentos de política à sua capacidade de produzir resultados, ou seja, à sua capacidade de cumprir os objetivos que a orientam. Em grande medida, a análise de resultados esteve muito indexada à verificação das taxas de empregabilidade associadas às medidas de formação. A empregabilidade, sendo um indicador relevante, não deixa de propiciar uma visão parcial do contributo atribuível à política de formação profissional.
O ciclo que agora se inicia
Estando ainda no início o atual ciclo de programação dos fundos comunitários, será extemporâneo concluir sobre aqueles que serão os seus principais atributos. Contudo, alguns elementos de reflexão podem ser sublinhados. O primeiro, para referir que, do ponto de vista do referencial estratégico e institucional, o campo das políticas de formação conserva os seus principais traços característicos. Deste ponto de vista, não se formaram no campo das políticas elementos de diferenciação que gerem dinâmicas de descontinuidade. Articuladamente, e sem surpresa face ao que até agora se expôs, o financiamento dessas políticas pelos fundos europeus canalizados pelo quadro de financiamento plurianual (PT 2030) para a formação profissional mantém um perfil muito semelhante ao do PT 2020 (Feliciano et al., 2022). Esta constatação indica que o Acordo Sobre Formação Profissional e Qualificação assinado em 2021 (CPCS, 2021) entre o Governo e os Parceiros Sociais na Comissão Permanente de Concertação Social não abrangeu matérias suscetíveis de conduzir a uma reorganização do campo de políticas, tendo um foco maior na ótica da operacionalização. Nesse sentido, terá representado mais um impulso à concretização de prioridades e lógicas de abordagem já priorizadas do que um impulso no sentido da alteração do rumo estratégico.
Complementarmente, a formação profissional com vocação de resposta mais direta ao tecido empresarial e às suas necessidades de ajustamento à evolução da economia e às dinâmicas de investimento mantém um financiamento específico no âmbito da agenda temática para a competitividade e do Programa Inovação e Transição Digital (COMPETE 2030).
O atual ciclo de políticas encerra, contudo, um fator novo, que importa considerar na perspetiva do que poderá representar para a evolução do campo da formação profissional. Esse fator é a convivência do ciclo de financiamento plurianual 2021-2027 com o Programa de Recuperação e Resiliência (2021-2026), que também canaliza apoios para a formação profissional. Se a análise da programação do PT2030 no domínio do FSE permite concluir por uma lógica de continuidade ao nível das prioridades e instrumentos de política, a análise das prioridades e componentes de intervenção do PRR permite situar domínios de complementaridade face ao PT2030.
Constituem exemplo da referida complementaridade o financiamento do investimento para capacitação das estruturas de ensino e formação profissional (equipamentos e requalificação de espaços), a diversificação da oferta formativa ao nível do ensino superior - procurando o reforço em áreas críticas em matéria de procura de qualificações - e o reforço dos incentivos para uma intervenção de base comunitária e local no contexto da educação de adultos. Nesta ótica, o PRR terá condições para intervir numa linha de complementaridade face ao financiamento plurianual e para trazer elementos de inovação para o sistema. A concretização desta abordagem poderá situar o plano da complementaridade como atributo deste novo ciclo de políticas ao nível da formação profissional.
Conclusão
A análise sugerida evidencia a estreita interdependência entre a evolução do sistema de formação profissional e o financiamento europeu. Em grande medida, os impulsos políticos ajudaram a definir o âmbito dos vários períodos de programação dos fundos europeus e estes mostraram-se essenciais ao processo de estruturação e valorização do sistema de formação profissional. Quando o impulso político foi menos expressivo, os ciclos de programação dos fundos europeus aplicados à formação profissional tenderam a ser mais conservadores na sua proposta. Nesta ótica, será possível concluir que o papel dos fundos foi determinante como fator de viabilização do impulso político e da progressiva consolidação do sistema. A estratégia de programação do financiamento tem sido subsidiária da estratégia resultante do impulso político e as dinâmicas de inovação são comumente acolhidas e impulsionadas pela estratégia de financiamento.
A lógica incremental de evolução do sistema tem permitido sedimentar os principais instrumentos de política criados. São disso exemplo o ensino profissional e os instrumentos de promoção da aprendizagem ao longo da vida. O facto de o seu funcionamento ainda estar fortemente ancorado nos fundos europeus evidencia a relevância destes para a consolidação do campo da formação profissional, por um lado, e a dificuldade da sua autonomização a partir de mecanismos de financiamento próprios, por outro. As quatro décadas analisadas refletem uma evolução muito significativa do Sistema de Formação Profissional e permitem identificar os principais centros de racionalidade da sua transformação e regulação.
A concertação social e os acordos nela gerados têm sido um elemento presente neste processo gradual de evolução do sistema e de legitimação do impulso político, sendo que os seus principais marcos de transformação foram explicitados e sufragados nos textos dos acordos celebrados.
A evolução do sistema tem cumprido um percurso em que, simultaneamente, se diversificaram objetivos, instrumentos e públicos e se promoveu uma progressiva integração estratégica do perfil de respostas (subordinado ao princípio da dupla certificação) e de subsistemas (educação e formação).
Os centros de racionalidade institucionais mantêm uma configuração relativamente concentrada - IEFP e ANQEP -, favorecendo os mecanismos de coordenação global do sistema, mas penalizando uma maior especialização estratégica, sobretudo na ótica dos territórios, mas, também, dos setores de atividade.