Introdução
Com o advento das tecnologias digitais e o surgimento da Internet, o informacionalismo instaurou-se enquanto paradigma económico que privilegia a produção da informação como bem comercial (Castells, 2002). Paralelamente, a Web 2.0 permitiu o surgimento das redes sociais online e potenciou a emergência de novas formas de comunicação e relacionamento interpessoal, num contexto de digitalização da vida quotidiana (Fussey & Roth, 2020). Possibilitou, igualmente, que cada utilizador assumisse um duplo papel enquanto recetor/consumidor e criador/produtor de informação. Desde que possua um dispositivo tecnológico com acesso à Internet, qualquer indivíduo passa não só a poder aceder, como publicar conteúdos online de forma independente. A ubiquidade do digital foi rapidamente percebida pelas empresas como uma excelente oportunidade para a obtenção de lucro (Teodoro et al., 2019). Foi nesse contexto que surgiram os Influenciadores Digitais (ID), indivíduos que não só se destacam como intermediários privilegiados de processos comerciais com o público, utilizando as suas redes sociais para fins publicitários, como também enquanto mediadores das mais variadas ideologias de dominação social capitalista e representações de poder (Abidin, 2015; García et al., 2016).
Este artigo começa por apresentar alguns dos fatores que potenciaram a emergência dos ID na contemporaneidade, bem como algumas das características inerentes às suas atividades. Segue-se uma discussão acerca do papel dos ID enquanto mediadores simbólico-ideológicos. Fazendo um particular enfoque nas ideologias da autenticidade, capitalistas neoliberais (particularmente, o empreendedorismo e auto empoderamento) e políticas que estes indivíduos veiculam nos conteúdos que produzem e partilham e nas suas práticas quotidianas, apresentam-se as principais conclusões de alguns estudos empíricos relacionados com estas problemáticas.
A emergência dos ID na era digital
As últimas décadas têm sido pautadas pela predominância de um capitalismo global associado a modelos industriais pós-fordistas, de comunicação em rede e do aumento dos regimes de trabalho e acumulação mais ‘flexíveis’ (Castells, 2002; O’Meara, 2019). A Internet foi legitimando e (re)forçando a sua presença e as redes sociais online foram conquistando cada vez maior relevância na vida quotidiana, trespassando a esfera comercial e passando a apresentar-se como montras publicitárias de bens e serviços (Sanz-Marcos et al., 2021).
A era digital tem potenciado, igualmente, uma procura incessante de novos estímulos visuais. As imagens funcionam como (re)programadores subjetivos dos modos de vivência em sociedade e a linguagem imagética apresenta-se como uma representação abstrata do real, uma “nova forma de racionalidade imanente ao mundo humano: a digitalização da ideia como forma de o sujeito vivenciar a experiência social.” (Araújo, 2021, p. 477). A realidade social torna-se cada vez mais determinada pela ‘sensação’, pelo ‘espetacular’ ou ‘chamativo’. As relações sociais, desenvolvidas nas redes sociais online, logo, mediatizadas através de imagens e conteúdos visuais, atuam como ‘espetáculos’ repletos de inúmera(s) “ideologia(s) por excelência, (que) expõe(m) e manifesta(m) em sua plenitude a essência de todo o sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição, e negação da vida real.” (Debord, 1997, pp. 138-139). A título exemplificativo, a rede social Instagram, pela sua ênfase nos apelos visuais e estéticos, não só dota os utilizadores, sobretudo os ID, de competências fundamentais para a criação de autorretratos (que serão vistos por um alargado número de utilizadores), como também possui, por si só, uma capacidade persuasiva patente na lógica algorítmica (Abidin, 2018; Annisa, 2022).
Diante deste cenário, a ‘abertura de portas’ ao alcance e visibilidade de qualquer pessoa em ambiente digital potenciou o surgimento dos ID, indivíduos que divulgam bens e serviços nos seus perfis de redes sociais com o objetivo de influenciar a tomada de decisão de compra dos seus seguidores e que vislumbram um novo mercado de trabalho e novas possibilidades de emprego alinhadas com ‘carreiras digitais’ (McRobbie, 2002; Abidin, 2015; Oliveira, 2018). Ao invés de princípios argumentativos elaborados, a difusão e a intermediação ideológicas, na contemporaneidade, privilegiam a aparência e os conteúdos das imagens digitais (e as suas representações) como formas de restrição e persuasão dos indivíduos e das suas ações (Nichols, 1981; Araújo, 2021).
O trabalho dos ID constitui um ato performativo comercial e afetivo que não depende unicamente deles. Faz parte de uma rede, sendo coproduzido por outros públicos: os ID produzem e publicam os seus conteúdos, mas os empregadores, as marcas ou a imprensa dão-lhes visibilidade e os seus seguidores colocam likes, escrevem comentários ou fazem partilhas desses conteúdos (Abidin, 2015; Ribeiro, 2021). Os ID são considerados ‘microcelebridades’ da Internet, uma vez que se tornaram populares nas redes sociais, não só através da divulgação de conteúdos patrocinados, mas também da partilha informal dos seus desabafos, pensamentos, vidas pessoais e experiências. Daí que a sua comunicação, contrariamente à da publicidade tradicional, seja mais autêntica e eficaz (Duffy, 2020).
Detentores de um forte capital social e cultural, estes indivíduos, pelas suas capacidades de seleção, controlo e transmissão da informação, têm sido igualmente associados a ‘líderes de opinião’ (Lazarsfeld, 1944; Bourdieu, 1986). Adotam práticas comunicativas que vão ao encontro de novos valores culturais que influenciam as representações sobre o consumo, sendo capazes de mobilizar um elevado número de seguidores habitualmente associado a nichos de mercado ou a grupos específicos da sociedade (Abidin, 2018; Araújo, 2021). Esta diluição das fronteiras entre os domínios pessoal e profissional reforça, por isso, a necessidade de os ID projetarem as suas imagens pessoais como marcas ou modelos empresariais (Khamis et al., 2017). Através da construção de uma reputação positiva que lhes confira credibilidade e uma imagem pessoal com valor de troca para as empresas, os ID apresentam-se como ‘mercadorias’, num claro processo de ‘comodificação’ ou mercantilização do eu (Kapitan & Silvera, 2016; Karhawi, 2017).
Os ID como mediadores simbólico-ideológicos
As práticas levadas a cabo pelos ID permitem-nos pôr em prática o exercício de uma sociologia da mediação que sublinha o papel do social e, particularmente, dos ID, não enquanto ‘intermediários’ (transmissores passivos), mas como ‘meta-intermediários’ ou mediadores de informação. De facto, estes indivíduos não só traduzem conteúdos e significados, como também os (re)produzem, modificam e (re)criam, desempenhando um papel ativo nos processos comunicativos (Castells, 2002; Silverstone, 2006; Cardoso & Quintanilha, 2013). Os investigadores têm recorrido à sociolinguística, socio semiótica ou estudos críticos do discurso para compreenderem de que forma os ID recorrem à linguagem para elaborar determinado tipo de discursos culturais, repletos de significados sociais e simbólicos. Discursos eficazes e ‘poderosos’ que influenciam os indivíduos (seguidores) não apenas no domínio comercial, mas também nos planos social e cultural, na forma como estes se entendem a si mesmos e perspetivam os mundos sociais em que se inserem e que os rodeiam (Cardoso & Quintanilha, 2013; Teodoro et al., 2019; Droz-dit-Busset, 2022). A influência social dos ID, decorrente da difusão das suas opiniões, valores, crenças, ideologias, representações, identidades, estilos de vida, atitudes e comportamentos, amplifica-se pelo facto de estes possuírem acesso direto ao feedback e opinião dos seus seguidores (através dos comentários às publicações, às mensagens diretas ou às transmissões ao vivo, podem, em tempo real, adaptar as suas mensagens) (Parsons, 1963; Batista et al., 2020; Arnesson, 2022). As fronteiras comerciais e profissionais inerentes às práticas dos ID são rapidamente ultrapassadas pela difusão de princípios ideológicos, económicos e capitalistas, tanto por parte das empresas com as quais estabelecem parcerias comerciais, como para interesses e benefícios próprios (Arnesson, 2022; Ortiz, 2022). Nas palavras de Arnesson (2022, p. 540), “personificando e promovendo um estilo de vida que é inspirador, aspiracional e profundamente ideológico”, os ID são considerados os novos mediadores ou (re)produtores simbólicos-ideológicos, por excelência, da era digital.
As ideologias da autenticidade
A autenticidade constitui uma estratégia fundamental para o trabalho comercial e ideológico dos ID. Embora esta competência remeta diretamente para princípios éticos e morais básicos (já que qualquer indivíduo deve, à priori, ser ‘verdadeiro’ consigo próprio e com o seu público), os ID apenas conseguem criar e manter, de forma consistente, uma marca pessoal forte, estável e ‘única’, se forem autênticos (Khamis et al., 2017; Whitmer, 2021). Apesar de nem todos os ID serem capazes de cultivar ou manter uma personalidade autêntica, esta ‘forma de trabalho’ ideológica é determinante para que consigam estreitar a proximidade com os seus seguidores e promover outras ideologias específicas (Abidin, 2015; Wellman et al., 2020; Arnesson, 2022). Enquanto figuras de grande poder persuasivo, os ID desempenham uma ‘performance de intimidade’ com os seus seguidores, estabelecendo conexões íntimas, personalizadas e de confiança e fazendo-os sentirem-se ‘únicos’ e ‘especiais’, logo, mais recetivos às mensagens e valores que transmitem (Giles, 2018). De facto, embora o trabalho de autenticidade dos ID possa parecer individualizado, este apenas se torna bem-sucedido se for codesenvolvido com os seus seguidores. Para Enli (2015), os ID e os seguidores estabelecem um ‘contrato de autenticidade’ assente em ‘ilusões de autenticidade’, em que ambas as partes concordam com um conjunto de convenções e técnicas subjacentes às práticas dos ID.
Para Shifman (2018), devem equacionar-se duas grandes dimensões ou tipos de autenticidade: a autenticidade externa, manifesta nos conteúdos publicados pelos ID, é avaliada pelos seus seguidores e/ou outros atores externos, que distinguem as informações ‘reais’ ou ‘falsas’ das suas práticas; a autenticidade interna privilegia a perceção da autenticidade por parte de cada ID e a capacidade interior de este ser ‘verdadeiro’ consigo próprio. Tal pressupõe uma coerência entre as suas afirmações, opiniões, atitudes e comportamentos e o seu lado ou ‘essência’ emocional e interior. A autenticidade interna parece ser alvo de maior preocupação por parte dos ID, já que o seu trabalho depende maioritariamente da autorrepresentação e marca pessoal (Arnesson, 2022).
No que diz respeito à autenticidade externa, os estudos empíricos sugerem que os seguidores percecionam a autenticidade dos ID tendo por base uma construção multidimensional constituída por cinco elementos: sinceridade, transparência do patrocínio ou grau de envolvimento com as marcas, visibilidade (facto de exporem a sua vida privada), experiência ou perícia (conhecimento/domínio em relação ao produto) e singularidade/originalidade (distinção face aos outros) (Lee & Eastin, 2021). Numa pesquisa, que procurou identificar as estratégias discursivas, mobilizadas por quatro ID suecos, nas publicações patrocinadas por duas empresas privadas, Arnesson (2022) concluiu que estes, seja de forma consciente (ou não), personificam e promovem um estilo de vida inspirador, aspiracional e ideológico através do recurso a estratégias de autenticidade como a transparência (partilhando detalhes das suas vidas privadas e quotidianas), divulgação promocional (possuindo abertura em relação aos conteúdos que patrocinam) ou experiência pessoal (divulgando, apenas, produtos/serviços que apreciam e utilizam no dia-a-dia). A intimidade (cultivo de uma relação com os seguidores baseada na acumulação de narrativas pessoais e memórias partilhadas), a relacionabilidade e a consistência são estratégias que “contribuem para apresentar o influenciador, a marca parceira e os serviços que prestam de uma forma específica.” (Arnesson, 2022, p. 540).
McRae (2017) e Wellman et al. (2020) identificaram, nos seus estudos, outras características do trabalho de autenticidade dos ID. É o caso do profissionalismo e credibilidade (mantendo-se fiéis a si próprios e aos seus públicos), da coerência e consistência na ação e estilo (dos conteúdos, imagens e linguagem), da originalidade e espontaneidade dos conteúdos. Do ponto de vista discursivo, muitos utilizam um estilo conversacional informal ou um tom confessional convidativo a um diálogo entre amigos. Também a estética amadora das publicações, a manifestação de uma certa vulnerabilidade e a aparente produção de conteúdos que não obedece a um guião fixo/pré-estabelecido são outras das estratégias de promoção e reforço da autenticidade mobilizadas pelos ID.
Todavia, uma vez que desenvolvem práticas relacionáveis e íntimas com os seus seguidores em plataformas que remetem para locais de fantasia e escape da realidade, os ID podem, a certa altura, ser alvo de algum tipo de ‘crise’, ‘dilema’, ‘perda’ ou ‘confusão’ de autenticidade. Tal verifica-se quando os seguidores possuem consciência de que o desempenho da autenticidade dos ID se resume a um ato meramente performativo, uma prática ‘teatralizada’ ou ‘fabricada’. Nesses casos, os seguidores podem conseguir identificar a autenticidade política e promocional dos ID, exigindo-lhes responsabilidades e politizando as suas colaborações comerciais, conteúdos e publicações (Arnesson, 2022). Para analisar se os ID são, ou não, verdadeiramente ‘autênticos’, os seguidores articulam, (in)conscientemente, a transparência, solidez e consistência das publicações dos ID com as suas marcas pessoais e imagens públicas. Uma articulação que pode ser percecionada como ‘de marca’ (motivada por interesses económicos) ou simplesmente genuína (McRae, 2017; Primo et al., 2021). De igual forma, para evitarem ‘beliscar’ a sua autenticidade, os ID utilizam, também, alguns mecanismos discursivos, optando por se referir a ‘colaborações’ com empresas/marcas, em vez de acordos comerciais ou publicitários (Banet-Weiser, 2012; Arnesson, 2022). Sempre que os imperativos económico-financeiros e éticos entram em conflito, rejeitam estabelecer parcerias comerciais ou divulgar produtos que não estejam alinhados com a sua marca pessoal e tipos de conteúdos, princípios e valores (Duffy, 2020; Wellman et al., 2020).
Incidindo particularmente sobre a autenticidade interna (ou autopercebida) dos ID, Balaban & Szambolics (2022), na sua pesquisa sobre a forma como os ID definem e percecionam o papel da autenticidade na sua profissão, apuraram, desde logo, que a sua profissionalização não exclui a sua autenticidade, e verificaram a existência de três níveis ou componentes de autenticidade. São eles: a autenticidade da fonte (autoconsciência autêntica), que remete para a sinceridade, especialização ou domínio/conhecimento da marca e dos produtos, singularidade/diferenciação e compromisso com os próprios valores; a autenticidade da mensagem (autoexpressão autêntica), que inclui a visibilidade, estilo de comunicação coerente, apoio transparente e criativo à marca e espontaneidade; e a autenticidade da interação (autoconsciência e autoexpressão autênticas), que resulta da proximidade/compromisso com os seus seguidores, respondendo constantemente às suas perguntas, publicando conteúdos e interagindo com eles.
As ideologias neoliberais: o empreendedorismo e o auto empoderamento
Atendendo às suas características históricas e múltiplas dimensões, o neoliberalismo afigura-se um conceito ideológico de elevada complexidade, podendo ser entendido, em traços gerais, como um sistema económico impulsionador da mercantilização e do consumismo, assente num mercado ‘livre’ expansível aos mundos público e privado (Archer, 2019).
Nos últimos 30 anos, a economia política do trabalho, no cenário do capitalismo neoliberal, sofreu algumas transformações, desde logo, ao nível da alteração das representações tradicionais das palavras ‘emprego’, ‘profissão’ ou ‘trabalhador’. Por exemplo, contrariamente a um artesão que, há muito, se dedica ao aperfeiçoamento de uma tarefa ou competência específica, qualquer indivíduo, num contexto neoliberal, pode tornar-se um ‘negócio’ ou ‘marca’, sensível e flexível às exigências do mercado, sendo capaz de se desdobrar em múltiplas atividades (Gershon, 2016).
Um dos aspetos-chave do neoliberalismo remete para a importância da responsabilidade e valor individuais, ou seja, na capacidade de qualquer indivíduo poder e saber competir num mercado repleto de forças (Archer, 2019; Chang, 2020). Os indivíduos tornam-se autorreguladores, racionais e calculistas, assumindo “plena responsabilidade pela sua biografia de vida, por mais severos que sejam os constrangimentos à sua ação.” (Gill, 2007, p. 163). Daí que, num contexto liberal, qualquer pessoa possa escolher a profissão que mais aprecia e com a qual mais se identifica ou, até, criar o seu próprio emprego (Archer, 2019; Chang, 2020). Ora, o trabalho dos ID parece enquadrar-se na conjuntura do neoliberalismo económico (Oliveira, 2018; Arnesson, 2022). No seu estudo, Abidin e Gwynne (2017) verificaram a existência de uma estreita relação entre o trabalho das bloggers e os ideais típicos do capitalismo neoliberal, sustentando que estas possuem maior confiança no consumismo do que nelas próprias. O modus operandi do trabalho dos ID marca, assim, a “extensão de uma ideologia e orientação consumistas a praticamente todos os domínios da vida cultural contemporânea e a ascensão totalizante de valores, ideais e pressupostos largamente neoliberais.” (Khamis et al., 2017, p. 200).
Além disso, o trabalho dos ID, embora pressuponha o estabelecimento de múltiplas relações com várias audiências, constitui um regime de trabalho específico, profundamente individualizado (ou hiperindividualizado), criativo e ‘sedutor’ (McRobbie, 2002; Hearn & Schoenhoff, 2015). Daí que a mobilização de discursos neoliberais característicos do individualismo, alinhados com ideologias de auto empoderamento, empreendedorismo, autoconfiança e auto governação, constitua uma das principais características do seu trabalho (Banet-Weiser, 2018). Ao reforçarem a possibilidade de sucesso individual, encorajam os seguidores a perseguirem os seus sonhos e as suas paixões, a desenvolverem os seus projetos empresariais (partilhando estratégias de criação de empresas), a ultrapassarem barreiras e a lutarem contra quaisquer obstáculos que impeçam os seus crescimentos pessoais, sucessos e liberdades financeiras (Banet-Weiser, 2018; Oliveira, 2018; Arnesson, 2022). Ideais neoliberais de sucesso individualista, inovação, aventureirismo e possibilidade de uma mobilidade social ascendente que acabam por legitimar os ID e as suas práticas profissionais (Mapes, 2018; Droz-dit-Busset, 2022). Simultaneamente, há que destacar a criatividade enquanto competência fundamental no trabalho dos ID. Criar e produzir inovação em torno dos bens e serviços que divulgam é determinante para o sucesso desta ‘classe criativa’ de indivíduos que procura, acima de tudo, atrair o interesse e captar a atenção das suas audiências (Florida, 2012).
Todavia, vale a pena ressalvar que, embora, para muitos, possa significar um emprego de ‘sonho’, os ID enfrentam elevados níveis de instabilidade laboral, salarial e contratual. Um cenário de ‘economia cultural’ ou ‘economia da atenção’ que não assegura quaisquer garantias sociais e económico-financeiras para estes indivíduos, pelo que a sua autopromoção, autodisciplina e marketing pessoal constituem princípios ideológicos neoliberais determinantes para o seu sucesso profissional (Florida, 2012; Marwick, 2015; Khamis et al., 2017; Oliveira, 2018).
Pinheiro e Oliveira (2023), numa pesquisa que avaliou como os ID da área das relações públicas, formados no sul do Brasil, utilizam a produção de conteúdos no Instagram para fortalecerem a sua marca pessoal, concluíram que esta estratégia se mostra eficaz, já que lhes permite destacarem-se no mercado e conquistar visibilidade, novos clientes e oportunidades de negócio, tornando-se referência para os seus seguidores. Num estudo sobre nove mulheres empreendedoras da área da moda, na região de Pernambuco, que utilizam o Instagram para divulgar as suas peças de roupa e aumentar as vendas, Silva et al. (2020) concluíram que estas ID conseguem não só criar uma grande interação com as suas seguidoras (consumidoras), maioritariamente mulheres, como também promover uma maior proximidade e união entre elas, quebrando estereótipos e preconceitos. Também Lemos et al. (2023), ao analisarem vídeos de Youtube publicados por ID das áreas da beleza e moda, encontraram recursos materiais, intelectuais e ideológicos de visibilidade, inclusão e empoderamento nos seus discursos, particularmente dirigidos a todos(as) aquelas(es) que se incluem fora dos padrões estéticos ou em grupos sociais minoritários e marginalizados, habitualmente excluídos dos espaços mediáticos e de poder, como é o caso das mulheres ou das pessoas LGBTQIA+. Discursos que incitam o debate, a sedimentação de ideias e o combate às estruturas hierarquizadas e que constroem novos modos de subjetivação. Contudo, as autoras verificaram alguns traços opressores e valores de consumo típicos da lógica de mercado nestes discursos, o que poderá ser explicado pelo facto de, independentemente das suas narrativas de empoderamento, a própria tendência de democratização da produção de conteúdos estar inserida num contexto capitalista que (re)produz discursos e valores hegemónicos associados ao consumo, ao patriarcado ou à heteronormatividade (Lemos et al., 2023; Deslandes, 2018).
As ideologias políticas
Na última década, as redes sociais emergiram como canais eficazes de divulgação de apelos e campanhas políticas. Se, outrora, os média tradicionais atuavam como os principais disseminadores de valores e ideais políticos, atualmente, esse papel tem sido atribuído aos ID. Por esse motivo, a relação entre esta classe de indivíduos e a disseminação de ideologias políticas tem suscitado um interesse cada vez maior dos investigadores (Shah et al., 2001; Robertson & Vatrapu, 2012). Em termos genéricos, na relação entre os trabalhos de influência e difusão de ideologias políticas, por parte dos média tradicionais e digitais, os autores têm-se posicionado em dois polos antagónicos: uns defendem a complementaridade entre os média tradicionais e digitais, capaz de encorajar os eleitores a envolverem-se mais ativamente na política (modelo de ‘influência social’); outros argumentam que a difusão restrita por parte de canais de comunicação específicos prejudica os conhecimentos públicos, o capital social e o envolvimento político dos cidadãos (modelo de ‘efeitos deslocados’) (Nowak et al., 2010).
Apesar de os trabalhos ideológico e político dos ID parecerem resumir-se a uma atividade individual, a verdade é que estes os ultrapassam, já que são também os próprios seguidores que “exigem responsabilidade e politizam o conteúdo e as colaborações dos influenciadores com base na autenticidade política e promocional.” (Arnesson, 2022, p. 14). Até porque a quantidade (ou número) de seguidores de um ID, além de ser uma mercadoria a ser vendida aos anunciantes, representa um público que pode elogiar ou criticar o seu trabalho (Arnesson, 2022). Goodwin et al. (2023) defendem, inclusivamente, que as práticas desenvolvidas pelos ID envolvem três grupos de atores: os ID, os seus seguidores e as figuras políticas, segundo dinâmicas relacionais situadas em dois patamares. São eles a ‘coordenação’, um nível no qual participam todos os agentes (promovendo e publicando estrategicamente os conteúdos uns dos outros) e a ‘influência relacional’, respeitante às interações específicas entre os ID e os seus seguidores (Goodwin et al., 2023). Enquanto indivíduos que ocupam um lugar de destaque na esfera pública, os ID são igualmente capazes de estabelecer a ponte entre a sua orientação e comportamento políticos e outras figuras de grande relevo na sociedade, sejam, ou não, da esfera política (Kim et al., 2016).
Sejam conservadores, ambientalistas ou progressistas, os ID investem no cultivo e atenção dos seus públicos, em estratégias de marca pessoal e manipulação da atenção tendo por base complexas características técnicas e recursos sociais. Por força de um investimento emocional e relacional, os ID vinculam, geralmente, todas essas estratégias a um conjunto específico de crenças ideológicas, incorporando as suas preferências, identidades e valores políticos nas publicações (Marwick, 2015; Abidin, 2018; Maly, 2020; Lewis, 2020).
Apesar da parca investigação empírica relacionada com a ascensão dos ID políticos, alguns estudos têm salientado a influência destes sujeitos na formação da opinião pública e na educação, informação e envolvimento políticos dos seus seguidores, sobretudo os mais jovens, e na forma como estes veem, compreendem, interpretam e agem em relação às questões políticas. Ao tornarem a comunicação política fácil e acessível, os ID despertam o interesse das suas audiências em torno de assuntos políticos e utilizam a sua popularidade para amplificar debates relacionados com temáticas importantes para a sociedade (Riedl et al., 2021).
Por exemplo, Donhauser e Beck (2021) constataram, nos seus estudos, que certas campanhas políticas, desenvolvidas e promovidas por ID em ambiente digital, podem aumentar o interesse dos estudantes por conteúdos científicos. A capacidade de mobilização dos seguidores em torno de causas políticas específicas constitui outro dos impactos mais eficazes dos ID. Alguns autores atribuem-lhes, inclusivamente, a designação de ‘influenciadores políticos relacionais’, ou seja, “criadores de conteúdo que promovem causas políticas e sociais junto das suas audiências, manifestando o seu apoio a essas causas e apoiando-as implícita ou explicitamente.” (Goodwin et al., 2023, p. 1616). Estes indivíduos podem, por exemplo, incentivar os seguidores a participarem em campanhas e movimentos políticos online ou a envolverem-se em atividades ou movimentos políticos, como protestos ou petições (Goodwin et al., 2023). Outra fileira de estudos empíricos relacionados com os ID políticos sugere que a sustentabilidade e as alterações climáticas constituem outro dos tópicos bastante abordado por estes indivíduos. Apostam numa aparência casual, informal e realista (que mantenha a credibilidade junto dos seus seguidores) e tornam a comunicação política fácil e acessível ao entendimento de qualquer pessoa para influenciarem as opiniões, atitudes e comportamentos políticos das suas audiências (Riedl et al., 2021). No seu estudo, Ziewiecki e Ross (2021) verificaram que os ID políticos, além de produzirem e publicarem vídeos em torno de um certo produto ou empresa, utilizam o seu alcance e popularidade para incentivarem discussões relacionadas com o ativismo político e as alterações climáticas, apelando os seguidores a adotarem uma vida sem plástico, um comportamento de consumo consciente e sustentável e um estilo de vida amigo do ambiente.
Todavia, nem todos os impactos dos ID, ao nível da difusão de ideologias políticas, são positivos. Ao manifestarem opiniões que englobam todo o espectro político, podem promover pontos de vista e ideologias extremistas, antidemocráticas ou teorias da conspiração, aumentando a polarização política dos indivíduos e divisões na sociedade (Riedl et al., 2021). Considerando as orientações políticas dos ID, Lewis (2020) e Maly (2018) verificaram, nas suas pesquisas, que os de direita tendem a construir uma identidade e performance digitais cujos aspetos das vidas privadas estão associados às vicissitudes das suas carreiras e aos seus cargos públicos. Já Kessler et al. (2022), no seu estudo, concluíram que os ID políticos conservadores mais bem-sucedidos são aqueles que articulam a sua autopromoção (marca pessoal), o debate de ideias, as polémicas em que se envolvem, as redes de contactos e as alianças públicas que estabelecem com outros políticos ou figuras de relevo na sociedade, e com a agenda temática que mobilizam. Enquanto fenómeno de natureza comunicativa e movimento antissistema, o populismo tem sido igualmente associado a um modelo ou estilo de comunicação política adotado pelos ID como forma de captar a atenção das audiências. Sempre que se verifica uma crise de hegemonia e representação políticas, ou quando as formações de compromisso vigentes entram em declínio, as estratégias populistas apresentam-se como críticas às elites ideológicas passíveis de compreensão por indivíduos de qualquer estrato social (Sevignani, 2022). Nos discursos políticos tipicamente populistas, a argumentação centra-se no ethos, em palavras/afirmações sobre o carácter moral e as características individuais tendo por base a sua categoria social - por exemplo, um homem, mulher, elemento do ‘povo’, jornalista ou feminista (Freeden, 2012). Neste contexto, os seguidores avaliam os pressupostos de ‘quem’, ‘o quê’ e ‘porque o diz’ com base em processos de categorização moral e social, em que os indivíduos são convidados a tornarem-se fãs de uma política através da identificação com o(s) sujeitos(s) que a encarna(m). Este reforço da importância do ethos permite que os ID satisfaçam, com poucos recursos e a baixo custo, todo o tipo de preferências e gostos políticos (Finlayson, 2022).
Considerações finais
Ao amplificarem vozes, mobilizarem comunidades e influenciarem as suas perceções, crenças, representações, atitudes e comportamentos, não restam dúvidas de que os ID se apresentam como protagonistas comerciais e mediadores simbólico-ideológicos, por excelência, da era digital. Contudo, a sua análise afigura-se complexa e apresenta desafios a vários níveis (Arnesson, 2022). Desde logo, rastrear a autenticidade dos ID exige um esforço que nem todos os seguidores estão em condições, ou dispostos, a enfrentar. Com o aumento do mercado de ID e da sua competitividade, muitos optam por desenvolver práticas questionáveis, comprando seguidores ou criando um estilo de vida artificial apelativo às audiências e aos patrocinadores. Tendências que complexificam e reforçam a permeabilidade da concetualização dos ID, até porque muitos deles autointitulam-se como tal, mas não desenvolvem práticas suficientemente interativas e mobilizadoras de um público alargado (Primo et al., 2021). Identificar ID autênticos requer a adoção de uma postura crítica, de questionamento da sua legitimidade, de verificação e avaliação dos factos e das informações partilhadas, de análise da consistência das suas publicações e padrões de comportamento online, não só ao nível dos conteúdos, mas também das interações e feedback da comunidade (Duffy, 2020; Wellman et al., 2020).
Além da ênfase na autenticidade, os discursos tipicamente neoliberais dos ID incentivam as suas audiências a superarem desafios, ultrapassarem adversidades, procurarem independência, acreditarem em si próprias, explorarem o seu potencial, criarem os seus próprios negócios e assumirem o controlo das suas trajetórias de vida (Banet-Weiser, 2018; Mapes, 2018; Droz-dit-Busset, 2022). Discursos que vão ao encontro do carácter de horizontalidade que os ID associam aos seus públicos, organizando-os e colocando-os numa posição social igualitária ao nível da estrutura social como forma de aumento das relações de proximidade (Karhawi, 2022). Contudo, estes incentivos ocultam o facto de nem todos os ID possuírem conhecimentos e competências económico-financeiras, técnicas, sociais e culturais para serem suficientemente eficazes no seu trabalho, o que acaba por perpetuar várias formas de desigualdade (McRobbie, 2002; Florida, 2012; Annisa, 2022). Urge, por isso, a necessidade de educação e consciencialização de todos(as) aqueles(as) que consomem e interiorizam (muitas vezes, de forma inconsciente), as informações económicas, políticas ou culturais, transmitidas pelos ID, sem qualquer tipo de filtro, como se de verdades inquestionáveis se tratassem. Vale a pena enfatizar, ainda, a responsabilidade social deste lgrupo de indivíduos, incentivando o debate em torno das suas potencialidades no combate às desigualdades sociais, ao preconceito ou discriminação, ao analfabetismo, aos conflitos sociais e à promoção de um consumo informado e consciente (Batista et al., 2020).