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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.48  Porto ago. 2024  Epub 30-Set-2024

https://doi.org/10.21747/08723419/soc48a3 

Artigos originais

Chacinas Estatais: uma análise crítica sobre a vingança policial

State Massacres: a critical analysis of police revenge

Massacres d'Etat : une analyse critique de la vengeance policière

Masacres de Estado: un análisis crítico de la venganza policial

Vyctor Grotti1  2 

Murillo Amboni Schio1 

1Universidade Federal do Paraná (UFPR)

2Escola Superior da Polícia Civil do Estado do Paraná


RESUMO

O Estado brasileiro, através da polícia, é um dos mais repressivos do mundo. Isso se expressa concretamente no número de pessoas executadas pelos agentes estatais ao longo de sua história, alcançando níveis jamais vistos. No presente estudo, buscaremos compreender as especificidades da repressão estatal na sociedade contemporânea, que tem no Estado neoliberal sua forma de regularização social fundamental. Analisaremos as chacinas estatais, fenómenos que se tornaram mais frequentes nos últimos anos, e uma de suas especificidades: a vingança ao assassinato de policial como motivação. Através de casos selecionados, pretendemos contribuir com uma análise crítica desse fenómeno no Brasil.

Palavras-chave: preventiva; Chacinas estatais; Vingança policial.

ABSTRACT

The Brazilian State, through the police, is one of the most repressive in the world. This is concretely expressed in the number of people executed by state agents throughout its history, reaching levels never seen before. In the present study, we will seek to understand the specificities of state repression in contemporary society, which has the neoliberal State as its fundamental form of social regularization. We will analyze state massacres, phenomena that have become more frequent in recent years, and one of their specificities: revenge for the murder of a police officer as a motivation. Through selected cases, we intend to contribute to a critical analysis of this phenomenon in Brazil.

Keywords: Preventive repression; State massacres; Police revenge.

RÉSUMÉ

L'État brésilien, à travers la police, est l'un des plus répressifs au monde. Cela s’exprime concrètement dans le nombre de personnes exécutées par des agents de l’État tout au long de son histoire, atteignant des niveaux jamais vus auparavant. Dans la présente étude, nous chercherons à comprendre les spécificités de la répression étatique dans la société contemporaine, qui a l’État néolibéral comme forme fondamentale de régularisation sociale. Nous analyserons les massacres d'État, phénomène devenu plus fréquent ces dernières années, et l'une de leurs spécificités : la vengeance du meurtre d'un policier comme motivation. À travers des cas sélectionnés, nous entendons contribuer à une analyse critique de ce phénomène au Brésil.

Mots-clés: Répression préventive; Meurtres d'État; Vengeance policière.

RESUMEN

El Estado brasileño, a través de la policía, es uno de los más represivos del mundo. Esto se expresa concretamente en el número de personas ejecutadas por agentes estatales a lo largo de su historia, alcanzando niveles nunca antes vistos. En el presente estudio, buscaremos comprender las especificidades de la represión estatal en la sociedad contemporánea, que tiene al Estado neoliberal como forma fundamental de regularización social. Analizaremos las masacres estatales, fenómenos que se han vuelto más frecuentes en los últimos años, y una de sus especificidades: la venganza por el asesinato de un policía como motivación. A través de casos seleccionados, pretendemos contribuir para un análisis crítico de este fenómeno en Brasil.

Palabras clave: Represión preventiva; Asesinatos de Estado; Venganza policial.

Introdução

Tornou-se algo repetitivo, e até mesmo enfadonho, iniciar qualquer análise sobre a repressão estatal letal1 dizendo que a polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo. Recentemente, foi divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), o qual apresenta que a polícia brasileira matou 6.429 pessoas no ano de 2022, número que, dividido pelo número de dias em um ano, resulta aproximadamente em 17,6, isto é, o Estado brasileiro mata cerca de 0,7 pessoas por hora, um número evidentemente assustador e que em nosso cotidiano, já há alguns anos, tomou ares de naturalidade. Apenas na última década (2013-2022), oficialmente, acumulou-se quase 50 mil homicídios cometidos por policiais.

Em outros estudos (Grotti, 2023; Schio, 2022) buscamos compreender a forma pela qual essa quantidade de assassinatos cometidos pelo Estado percorria suas instâncias policiais e jurídicas não trazendo qualquer responsabilização, administrativa ou criminal, aos agentes policiais, a despeito de um discurso corriqueiro de representantes eleitorais da polícia ou defensores dessa política criminal de que os policiais trabalham sem a alegada falta de segurança jurídica. Em mais de 30 processos analisados, todos arquivados sem qualquer denúncia, constatamos que a construção do discurso acerca da legítima defesa é parte essencial para a manutenção e existência dessa forma de policiamento. À época, nossa pretensão foi analisar então como o Estado legitimava institucional e discursivamente a sua própria repressão letal, tendo em vista o total dos casos ocorridos na cidade de Curitiba/PR, não sendo novidade o respaldo dado pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário para a regularização de tais práticas (Verani, 1996; Misse, 2011; Godoi et al., 2020).

No presente artigo buscaremos avançar no estudo da repressão estatal letal em uma de suas particularidades: o que denominamos "chacinas estatais", com o diferencial de a motivação estar relacionada a uma retaliação ou vingança por um assassinato de policial, predominantemente, ou ataque à instituição policial. Assim, o termo "chacina" será compreendido por nós como a expressão utilizada para designar uma evento em que há três homicídios ou mais, ainda que pese existirem autores que utilizam atualmente a expressão "mega chacinas" quando há oito ou mais homicídios (Hirata, 2022). Essa distinção mega, hiper ou afins não será utilizada por nós no presente estudo, ainda que reconheçamos a diferença entre três ou mais de uma dezena de mortes em uma chacina estatal, por exemplo. Em um levantamento recente do Instituto Fogo Cruzado, a cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana acumula uma média de 3 chacinas mensais desde agosto de 2016 a julho de 20232, dando uma dimensão de sua extensão onde há dados disponíveis.

Quanto ao termo vingança ou retaliação, aponta-se para a reação da polícia através de instrumentos jurídicos e operacionais mobilizados em decorrência da morte de um policial que desencadeia uma série de ações de repressão e violência, extremamente letais, voltadas para e no grupo, comunidade ou território do qual se sabe ou se presume ter vindo o indivíduo que assassinou o policial, como foi o caso ocorrido no dia 27/07/2023, no município de Guarujá/SP, onde um policial da ROTA3 foi morto durante patrulhamento e, nos dias que seguiram a sua morte, a polícia militar paulista desencadeou uma operação denominada "escudo", somando 28 pessoas mortas pela polícia4.

Esses casos habitam o universo total da repressão estatal letal, mas se diferenciam por sua motivação situacional para o cometimento dos homicídios. No estudo da letalidade policial, notou-se que existem as ações letais oriundas do patrulhamento ostensivo, em sua quase totalidade de autoria das Polícias Militares - e que representam a maioria dos números compilados da letalidade policial. Coexistem, também, outras situações que são computadas da mesma forma e têm o mesmo resultado final, mas possuem origens diferentes. De modo geral, são três em nossa análise: homicídios cometidos durante um patrulhamento; as mortes escalonadas em decorrência da morte de um policial durante determinadas operações; e os homicídios cometidos em uma operação policial específica, realizada em decorrência da morte de um policial. Devemos também destacar que a unidade ou força especial do policial assassinado é determinante para a intensidade da reação que se segue - um policial que não seja de uma força especial policial tende a ter sua morte “vingada” com menos corpos do que, por exemplo, um policial da ROTA quando assassinado. Aos destacamentos especiais policiais segue-se uma retaliação também especial.

Abordaremos diversos acontecimentos ocorridos em diversos estados no decorrer do presente estudo, analisando não somente a sua dinâmica, mas também a postura de outras instituições, como o Ministério Público e o Poder Judiciário, diante desses acontecimentos. Contudo, faz-se necessária uma abordagem preliminar, ainda que breve e resumida, acerca de concepções fundamentais à compreensão acerca do que vem a ser a repressão estatal letal e a repressão preventiva. Superada essa fase, concentramo-nos no estudo das chacinas estatais e, finalmente, das chacinas-vingança.

1. A repressão preventiva na contemporaneidade

A compreensão acerca da repressão estatal na contemporaneidade perpassa pelo conhecimento concreto da nossa sociedade ante sua essência: vivemos em uma sociedade capitalista, cujo fundamento está na produção de mercadorias, que contém mais-valor, o qual é produzido pelo proletariado e expropriado pela burguesia. Esse modo de produzir a vida traz a necessidade de sua contínua reprodução e gera consequentemente acumulação de capital em escalas cada vez maiores (Marx, 2017). Em que pese diversas tentativas discursivas em sustentar a superação dessa essencialidade (Touraine, 1971; Beck, 2011), facto é que a produção de mais-valor é pedra angular desta sociedade e se concretiza atualmente em níveis ainda maiores do que em séculos passados.

Todavia, o capitalismo contemporâneo não é o mesmo de outrora. Durante a sua existência, este modo de produção sempre necessitou de certas condições para reproduzir-se e, por isso, está em constante metamorfose. As características do capitalismo mudam de forma sempre que necessário em razão de suas crises, ocorridas pela luta de classes e pela tendência declinante da taxa de lucro médio, alterando um conjunto de relações mais amplas e sendo por estas alterado. A cada crise ocorrida e superada pelo capitalismo, um novo conjunto de características é posto para dar continuidade à reprodução do capital. Em razão disso, podemos dizer que, durante o desenvolvimento do modo de produção capitalista até os dias atuais, identificam-se certos períodos nos quais o capitalismo apresenta um conjunto de características próprias.

Como recurso analítico para que possamos compreender concretamente as relações sociais mais amplas de uma fase histórica do capitalismo, trazemos a noção de "regime de acumulação", definido como determinada forma que o capitalismo apresenta em seu desenvolvimento histórico, marcado por determinada forma de organização do trabalho (processo de valorização), do Estado e da exploração internacional (Viana, 2009). Assim, percebemos que a história do capitalismo é a história da sucessão dos regimes de acumulação5 que são, na contemporaneidade, denominamos como integral (Viana, 2009), em razão da sua "exploração sem limites" (Bourdieu, 1998), cujas características gerais são: a) o toyotismo como forma de organização do trabalho, marcado por uma hiperexploração em razão da intensificação do trabalho no seu duplo aspecto (mais-valor absoluto e relativo); b) exploração internacional marcada pelo neoimperialismo, com destaque ao aumento de remessa de lucros produzidos nos países de capitalismo subordinado aos de capitalismo central; e c) a forma de Estado neoliberal.

A forma de Estado neoliberal emergiu nos países de capitalismo central no final dos anos 70 e início da década de 80, enquanto se desintegrava paulatinamente o Estado integracionista (de "bem-estar social"). Ainda que tenha suas bases ideológicas constituídas na década de 40, especialmente por Hayek (2010) e pela escola austríaca de economia, a sua concretização não se efetivou como uma "adesão" às ideias deste ou de outro autor, mas sim como resultado da luta de classes e de acordo com as necessidades históricas da acumulação capitalista e particularidades de cada país para a reprodução do capitalismo, especialmente nos países de capitalismo subordinado, onde o Consenso de Washington exerceu enorme influência.

O Estado neoliberal emerge como uma nova forma de regularização social e tem como papel principal criar as condições institucionais favoráveis à continuidade da acumulação capitalista, especialmente ao promover a corrosão de direitos trabalhistas, bem como a estabilidade de preços e contas nacionais, a liberalização do comércio e dos fluxos de capital, a privatização de empresas estatais, a desregulamentação das atividades privadas, entre outros (Viana, 2009). Além disso, o Estado neoliberal reduz ao máximo as políticas sociais, especialmente relacionadas ao atendimento de setores como saúde, educação e seguridade social. Essa nova configuração estatal gera diversos efeitos, dos quais destacamos o barateamento da força de trabalho, maior concentração de renda, aumento da desigualdade social e dos níveis de pobreza (Wacquant, 2007; Braga, 2020b). Todas essas características gerais são essenciais, mas aqui chama-se a atenção para a universalização da repressão ou então escalada repressiva.

Visando tornar regular o regime de acumulação integral, uma das características fundamentais e, portanto, imprescindíveis aos fins do Estado neoliberal é a necessidade de contar com a sua mão dura, autoritária e penal, fazendo o que for necessário para "criar um clima de negócios favorável" ou manter a “ordem pública” e a “segurança pública”, dentre outras palavras e termos usados para camuflar a necessidade de se reprimir em maior escala (Wacquant, 2011; Braga, 2020a).

Diante deste novo cenário e momento histórico, o Estado brasileiro passou por grandes mudanças no seu aparato repressivo desde a década de 90, período no qual percebemos a estabilização neoliberal em território nacional. Desde então, altos investimentos no aparato policial, judicial e penitenciário foram realizados, principalmente o acréscimo do efetivo das polícias, seja através de diversas contratações periódicas, seja considerando instituições que antes não eram consideradas policiais como agora sendo, como é o caso das Guardas Municipais6 e Polícias Penais7. No mesmo sentido, observa-se a ampliação do Poder Judiciário, bem como a construção de instituições de vigilância e punição que evidenciam esse movimento. Dentre estas, destaca-se o encarceramento em massa que vivenciamos, que, em 1993, contava com pouco mais de 126 mil pessoas encarceradas (Adorno & Salla, 2007) e que, atualmente, conta com cerca de 826 mil pessoas (FBSP, 2023), ocupando frequentemente o pódio de países com maiores números absolutos de encarcerados, juntamente com outros países tais como China, EUA e Rússia.

Nesse contexto, podemos dizer que a repressão estatal atua em duas frentes (não necessariamente excludentes): a contrainsurgente e a preventiva. A especificidade da primeira reside no emprego da repressão de forma direcionada a um agrupamento organizado que confronta diretamente as políticas oficiais e reclama por seus direitos, ou então se reprime por seu potencial disruptivo da ordem pública. Pode-se citar como exemplo concreto o protesto dos professores do Estado do Paraná no ano de 2015, cujos docentes foram duramente reprimidos pela polícia, deixando mais de 200 pessoas feridas (EL PAIS, 2015). Já a repressão preventiva é aquela que tem por objetivo

“(...) impor o controle social sobre as grandes maiorias que devem ser disciplinadas para que aceitem, como natural, sua subordinação à classe dominante. Trata-se de diferentes modalidades de uma única política de estado que encontra sua origem na necessidade do estado capitalista - governe quem governe - de garantir a opressão através do controle e do disciplinamento social. Esta forma repressiva se “caracteriza por estar dirigida, sem outro critério de seletividade, senão pelo pertencimento de classe, aos setores mais vulneráveis da sociedade, aos mais pobres e, entre estes, aos mais jovens, que são na sua maioria. (...) Esta classe de repressão "preventiva" se caracteriza pelo alto grau de naturalização dentro da classe vitimizada, bem como pela enorme invisibilidade para aqueles que não são seus destinatários habituais.“ (Verdú, 2009, p. 22)

Ao contrário da repressão contrainsurgente, que é constatável sem muito esforço, a compreensão acerca das modalidades de repressão preventiva como uma necessidade e prática sistematizada do Estado capitalista requer um esforço perceptivo maior. Não é raro associarmos a ideia de repressão a práticas exclusivamente de épocas ditatoriais, excluindo sua percepção quando estamos em períodos democráticos. Isso fica evidente quando nos deparamos com estudos que, implicitamente, afirmam essa consequência argumentativa através de ideias como da incompletude democrática ou uma suposta continuidade de tradições autoritárias (Zaverucha, 2005), como se a repressão fosse uma disfunção da democracia, uma doença que necessita ser curada, uma rota a ser corrigida, algo que significaria, ao nosso ver, falsear a democracia ante sua expressão concreta e cotidiana.

Durante sua história, tanto em períodos ditatoriais como democráticos, a repressão sempre foi uma necessidade do Estado capitalista como uma das formas de regularização das relações sociais burguesas, variando de grau e extensão conforme tensionam as lutas sociais e de acordo com cada contexto e período histórico. O véu democrático tende, portanto, a invisibilizar a repressão através da legitimidade que suas instituições têm de facto e de direito. Isso porque, apesar da ilusão da igualdade gerada pela paridade política de cada indivíduo, independentemente de classe social, de onde se extrai o principal eixo argumentativo da cidadania, há de facto uma desigualdade generalizada. O controle e o disciplinamento social, nesse contexto, continuam sendo necessários e imprescindíveis na democracia, todavia agora com suas instituições legitimadas para tanto.

Façamos um breve exercício: em diversas ditaduras latino americanas, que precederam os regimes democráticos atuais, milhares de pessoas foram perseguidas, exiladas, presas, torturadas e mortas pelas forças repressivas de tais Estados. Na ditadura de Pinochet, no Chile, estima-se entre 30 e 40 mil mortes durante os anos de 1973-1988. A ditadura argentina da Junta militar, de 1976 a 1983, vitimou entre 25 e 35 mil pessoas. No Brasil, os números oficiais são baixos, como atesta o Relatório da Comissão Nacional da Verdade e outros trabalhos, no período de 1964-1985 (BRASIL, 2014), mas cujos números desconsideram diversas outras vítimas indígenas e interioranas, tendo mais foco nas vítimas da luta política ou armada. Já no Brasil democrático, durante o período de 2007 a 2022, um total de dezesseis anos, as forças repressivas, especialmente as policiais, mataram mais de 60 mil pessoas sob o argumento da legítima defesa em situações de alegado confronto. A democracia brasileira é, assim, seguramente mais letal que diversas ditaduras de épocas recentes e países de realidade semelhante. Contudo, essa repressão é praticada de forma distinta dos períodos ditatoriais; é representada diferentemente pelos diversos meios de comunicação; e é naturalizada, destacamos, de forma diferente. Nesse exercício superficial, o objetivo não é valorar essa ou aquela repressão, mas sim reconhecer que, tanto lá, quanto cá, a mão dura é sempre presente e há muito mais a se questionar por detrás dos valores e das instituições democráticas.

As milhares de mortes produzidas pela polícia anualmente nas grandes cidades e nos rincões do Brasil geram a naturalização desses eventos, de modo que diariamente as pessoas se deparam com notícias desse gênero sem qualquer espanto, sendo na verdade um nicho muito forte no jornalismo e na televisão, de grande interesse do público, e também nos embates eleitorais. No nosso cotidiano, há uma dispersão generalizada de informações e discursos pelo capital comunicacional, através de diversos meios, que contribuem para que a repressão exercida pelo Estado seja percebida como algo normal e apolítico (Braga, 2020c). A naturalização desses homicídios cria uma percepção de que são factos isolados, decorrentes de ações policiais sem nenhuma conexão entre si, quando, na verdade, estão completamente interligados. Isso dificulta a constatação acerca do que são de facto, isto é, um conjunto de ações estatais destinadas a reproduzir e regularizar as formas sociais burguesas, especialmente a propriedade privada, em que matar se torna mais um recurso possível e disponível.

O recurso discursivo amplamente utilizado, seja pelo próprio Estado ou mesmo pelo capital comunicacional, para tratar os homicídios praticados por policiais como factos "normais" e, portanto, contribuindo para a sua naturalização, é o argumento jurídico-legal da legítima defesa, mencionado anteriormente. Para tanto, adjetivar a ação policial letal como um "confronto", uma "reação policial" em que o "bandido reagiu", é essencial para camuflar uma característica fundamental do Estado capitalista, tornando-a uma questão particular e isolada, desconectada da totalidade das relações sociais. Sabendo disso, o próprio discurso policial no interior dessas investigações são meticulosamente construídos para adequar a ideia de legítima defesa à ação policial letal, ou melhor, arredondar o facto, cujo termo é

“amplamente utilizado pela polícia para sintetizar a construção de um discurso sobre uma determinada situação, de forma a obter algum proveito disso para o investigado - no caso, o policial -, tendo em vista as expectativas de interpretação dos seus interlocutores. Não estar arredondado ou estar quadrado significa, portanto, que um facto narrado no procedimento investigatório possui interpretações dúbias ou tem arestas, isto é, há circunstâncias expostas que comprometerão a cumplicidade interpretativa entre a polícia, promotores de justiça e juízes. O termo arredondamento, assim, decifra uma ordem oculta nas interações formais entre os principais atores das instituições repressoras que visam regularizar a repressão estatal letal” (Grotii, 2023, p. 121).

Quando nos deparamos com casos que destoam do padrão discursivo da normalidade, que não estão arredondados, como uma evidente execução cujo discurso não foi possível readequar para legitimar a ação policial, a primeira reação do Estado é tentar excluir a sua culpa e imputar o facto ao policial, fazendo disso algo isolado, uma decorrência de um problema com o próprio agente, não raras vezes o imputando como psicopata, alguém que foi mal recrutado, enfim, um loquito suelto (Verdú, 2009). Inclusive, é patente observar que é objetivamente impossível precisar a veracidade sobre o que está narrado pelos policiais e legitimado pelas instituições jurídicas quando arquivados ou absolvidos os casos de letalidade policial (a despeito dos raros casos que vão a júri e investigações são realizadas). Sequer há espaço e regras processuais para a contestação da versão policial do homicídio no caminho burocrático-administrativo de tais casos - como não é denunciado pelo Ministério Público, na quase totalidade dos casos, não há possibilidade de manifestação da outra parte (Schio, 2022).

Por fim vale ressaltar que a repressão letal não atinge a todos e todas classes indistintamente: jovens de 12 a 29 anos de classes desprivilegiadas, na sua maioria, negros, residentes de bairros ou regiões periféricas são os principais alvos da polícia numa perspectiva histórica e contemporânea (Cano, 1997; Dias, 2015; FBSP, 2022, 2023).

Assim, a repressão preventiva, que tem como uma de suas modalidades a letalidade policial, sempre foi uma característica intrínseca do Estado capitalista. Contudo, em sua forma neoliberal, constatamos uma escalada repressiva em razão da necessidade, cada vez maior, em controlar as classes desprivilegiadas, que experimentam, a cada dia que passa, uma redução drástica nas suas condições de vida e, por isso, são uma ameaça à propriedade privada. Assim, ainda que os alvos principais da repressão estatal sejam, em primeiro plano, uma parcela do lumpemproletariado chamados pela representação cotidiana de "bandidos", “traficantes” ou “ladrões”, na verdade esse discurso serve, em última análise, como legitimador de um controle social mais amplo, abarcando todas as classes desprivilegiadas, em especial o lumpemproletariado.

Não encontramos um estudo que compila a quantidade de pessoas mortas pela polícia em todo Brasil democrático. Isso se deve, dentre outros motivos, à dificuldade de acesso a essas informações e, quando acessíveis, à sua confiabilidade. É somente ao longo da primeira e segunda década do século XXI que o Estado brasileiro e as instituições policiais aprimoram seus instrumentos de coleta de informação, produção de estatísticas, padronização de categorias, etc. A análise completa desse período poderia nos proporcionar uma ampla visão das fases do Estado neoliberal ante sua estabilização e posterior desestabilização. Contudo, desde 2010 nos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Públicas (FBSP) e da própria produção e disponibilização desses dados pelos diferentes estados brasileiros - diversas polícias, militar ou civil, por exemplo, são de competência estaduais no Brasil - desde o ano de 2007 até 2022, chegamos ao seguinte gráfico (Gráfico 1) sobre a letalidade policial no Brasil:

Fonte: Os autores, com base nos Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023)

Gráfico 1 Pessoas mortas pela polícia no Brasil (2007-2022) 

Há alguns apontamentos a serem feitos antes de prosseguirmos sobre o gráfico acima. Primeiramente, devemos esclarecer que a contabilização e transformação dos casos concretos em estatísticas podem não representar a totalidade dos casos de letalidade policial. Em segundo lugar, devemos ter em vista a progressiva implementação de processos administrativos e da produção de informação e dados por todas instituições que, aqui, não só na polícia, não se concretiza de uma hora para outra. Há algumas instituições que coletam e produzem estatísticas há décadas, enquanto outras, que apesar de sempre produzirem muita burocracia, como a polícia, não compilavam ou tratavam tais informações. Tais reformas, inclusive, se efetivaram com a implicação de orçamento e recursos repassados pelo governo federal aos governos estaduais, a partir de índices de qualidade e cobertura da produção estatística. Ambos esclarecimentos nos ajudam a explicar alguns pontos presentes no gráfico: de um lado, parte da primeira grande subida entre os anos de 2013 e 2015, período em que se efetivam a cobertura e qualidades das estatísticas criminais e policiais, pode ser atribuída a uma maior notificação pelos estados de tais casos, levando a suspeitar que os patamares nos anos anteriores estejam subestimados; por outro, a segunda curva de crescimento de 2015 até 2018, já deve ser lida de outra forma, tendo em vista que as subnotificações diminuíram significativamente, o que nos revela um contínuo crescimento da letalidade como meio de policiamento e controle dos grupos supracitados, chegando a patamares de mais de 6 mil mortes anuais oficialmente reconhecidas em todo território brasileiro (Schio, 2022).

Aponta-se, ainda, falhas ou dificuldades na qualidade das notificações e nos graus de detalhamentos organizado por cada unidade federativa, o que demonstraria ainda enormes disparidades entre as polícias estaduais, ainda que a notificação em si tenha alcançado graus de extensão e confiabilidade seguros para a pesquisa, análise e comparação. Por fim, vale mencionar a dificuldade de acesso aos documentos, relatórios e processos produzidos por cada um desses casos de letalidade, que assim como a própria letalidade, se estendem para os diversos órgãos que compõem o que chamamos de Sistema de Justiça Criminal. Em parte, por isso se explica a pouquíssima e localizada quantidade de trabalhos e pesquisas que lidam com os processos, relatórios de polícia, boletins de ocorrência, etc., em casos de letalidade policial.

No caso paranaense, considerando os apontamentos acima realizados, chegamos ao seguinte gráfico da evolução da letalidade policial no estado (Gráfico 2):

Fonte: Os autores, com base nos Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023) e em Bordin (2009)

Gráfico 2 Pessoas mortas pela polícia do Paraná (1990-2022).  

Pelo gráfico acima e tendo em vista as considerações anteriores em relação à estatística, podemos perceber que a polícia do Paraná matou 19 pessoas no ano de 1990, cuja população contava com 8.415.659 habitantes, mas que pode estar subnotificada. Já no ano de 2000, quando contava com 9.564.643 habitantes, a polícia matou 48 pessoas. Em termos percentuais, nesse intervalo de dez anos a letalidade aumentou aproximadamente 152%, ao passo que sua população cresceu apenas 13,6%. Entre o ano de 2000 e 2010, a letalidade policial saltou de 48 pessoas mortas para 119, representando um acréscimo de 147,9%, enquanto que sua população (em 2010, 10.266.737) aumentou somente 7,3%. Entre o ano de 2010 e 2022, a letalidade policial saltou de 119 pessoas mortas para 488, representando um aumento de 310%, ao passo que sua população (em 2022, 11.443.208) aumentou somente 11.4%, exemplificando como o estado do Paraná vem se destacando na análise histórica da repressão letal levada a cabo por suas forças policiais.

Os números acerca da repressão estatal letal nos últimos anos demonstram que o Estado mata cada vez mais. Essa escalada repressiva está intimamente ligada ao período de consolidação e, principalmente, desestabilização do Estado neoliberal. Os aumentos do número de homicídios cometidos por policiais contra civis podem indicar que, a cada ano que passa com a desestabilização do Estado neoliberal, mais o Estado necessita reprimir através de suas instituições. Não é raro encontrarmos nas representações cotidianas falas como "a polícia não tem segurança jurídica para trabalhar" ou, em termo mais representativo, para matar, algo que diversos estudos já demonstraram ser uma falácia (Verani, 1996; Misse, 2011; Zaccone, 2015; Schio, 2022; Grotti, 2023). Mesmo diante de uma quase total segurança jurídico-institucional, dado que quem interpreta a lei são os representantes do Estado, recentemente, no ano de 2019, o ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública e atual Senador Sérgio Moro, apresentou seu "pacote anti-crime", no qual ampliava a interpretação da possibilidade de reconhecimento de legítima defesa em ações policiais letais, através da inclusão de diversos elementos subjetivos, tais como "medo", "surpresa" ou "violenta emoção”. Além disso, apresentou oficialmente a "legítima defesa policial", criando uma presunção praticamente absoluta da versão policial:

“Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I - o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II - o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes” (BRASIL, 2019)

Apesar de não ter tido prosseguimento, o projeto antecipa uma possível tendência em torno da importância que a “segurança jurídica” adquire nas formas estatais neoliberais, qual seja de salvaguardar o exercício da repressão por meio de instrumentos jurídicos que sirvam a fortalecer a legítima defesa ou ampliar o leque de justificativas jurídicas para emprego de força letal, de acordo com e para as necessidades da reprodução do capitalismo atual. Não é fortuito que as vítimas sejam mais ou menos as mesmas há décadas e isso não é decorrência de um erro de formação policial, de desvios de conduta ou individuais, ou pela falta de certas disciplinas na grade curricular, entre outros argumentos. Ainda, é importante mencionar que, ao contrário de outros setores do Estado, a evolução da letalidade e do aumento da repressão estatal como um todo desconhece cores partidárias ou governamentais, sendo este um ponto importante de mencionar e que alavanca o problema adiante: trata-se de uma necessidade estatal.

2. As chacinas estatais

Apresentado um panorama geral acerca da repressão estatal letal no Brasil e o que compreendemos por repressão preventiva, avançaremos nesta seção no estudo de uma de suas especificidades: as chacinas policiais. Nossa intenção aqui é contribuir para o aprofundamento de sua compreensão frente à surpreendente relevância das chacinas policiais na atualidade como se demonstrará a seguir.

Um primeiro ponto que devemos estabelecer é que chacinas podem ser cometidas tanto por civis, quanto por agentes estatais, policiais especificamente. Em decorrência disto, é esperado que elas aconteçam com roupagens diferentes. As chacinas cometidas por civis, geralmente de grupos e organizações criminosas, se valem de meios (armas, ações, planejamento e execução das pessoas) e motivos diferentes aos das chacinas cometidas por policiais, que, em sua versão mais recorrente, se reveste e se confunde com as Operações Policiais, revelando já o primeiro verniz de sua legitimação institucional. Os homicídios e chacinas estatais tendem a ser tratados ou vistos como resultado de um confronto, ou uma possibilidade que perpassa tais operações devido a sua periculosidade, parecendo extrair qualquer intencionalidade ou disposição dos agentes estatais quando se empilham corpos. Tal percepção definitivamente não se encaixa para as chacinas cometidas por civis, em regra demonstradas como atos frios, sanguinários, vingativos, abomináveis e que revelam os traços mais sombrios daqueles que os cometem.

Não se sabe ao certo quantas chacinas a polícia brasileira é responsável por ano. Isso porque, considerando que essa qualificação depende de três ou mais homicídios no mesmo contexto de ação policial, cada morte é encarada e anunciada isoladamente, evitando-se o rótulo de chacina, o qual traz consigo uma carga negativa, trazendo como efeito não somente questionamentos sobre a forma de atuação da polícia, mas também a sua legitimidade como instituição e, consequentemente, de desnudar a repressão estatal letal em suas versões mais extremas. Nesse sentido, o capital comunicacional é importante ferramenta que contribui para a continuidade da invisibilização desse fenômeno. Ao fazermos uma breve consulta pela Internet, não encontraremos, nos principais meios de comunicação, qualquer notícia que vincule três ou mais homicídios pela polícia como sendo uma "chacina", mas somente como um resultado inevitável de uma ação, operação ou confronto policial. Portanto, essa "falta" de estatística não ocorre por uma impossibilidade técnica, um atraso na forma de coleta e compilação de informações, mas sim, ao nosso ver, por trazer à tona uma ação que é frequentemente associada a grupos criminosos e põe em questionamento a própria polícia e, em última análise, o Estado como detentor do monopólio do uso legítimo da força (Weber, 2013). Um meio de sanar tal lacuna, que não será realizada neste estudo, estaria na análise de todos os casos de letalidade policial para compilar aqueles que se consumiram numa mesma situação e podem configurar o que conceitualmente chamamos de chacina.

No estado do Rio de Janeiro, de forma destoante, o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) acompanha diretamente esses acontecimentos e, recentemente, divulgou um relatório de pesquisa denominado Chacinas policiais no Rio de Janeiro: estatização das mortes, mega chacinas policiais e impunidade (Hirata et al., 2023), estudo este que apresenta a participação da polícia nas chacinas ocorridas naquele estado. De acordo com esse relatório, entre 2007-2022, a polícia do Rio de Janeiro realizou 19.198 operações policiais, 629 das quais ocorreu uma chacina, matando um total de 2.554 pessoas. De acordo com esses números, a polícia do Rio de Janeiro, entre 2007-2022, foi responsável pela prática, em média, de 39,3 chacinas por ano, ou 3,2 por mês. Especificamente em relação à região metropolitana do Rio de Janeiro, o mencionado relatório apresenta o seguinte gráfico (Gráfico 3) comparativo entre a porcentagem de chacinas policiais em relação ao total de chacinas:

Fonte: Hirata et al., 2023, p. 06

Gráfico 3 Percentagem de chacinas policiais do total de chacinas (Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2017-2022).  

Da análise desse gráfico, podemos constatar rapidamente que a polícia do Rio de Janeiro é a principal causadora das chacinas naquele estado, chegando, no ano de 2022, a ser responsável por 80,4% desses acontecimentos ou, em outros termos, a cada cinco chacinas ocorridas na região metropolitana, quatro são cometidas pela polícia. Ao longo dos anos de 2017 até 2022, das 341 chacinas ocorridas, 252 foram cometidas pela polícia. Os dados são acachapantes e nos trazem uma fotografia da realidade em que se captura a regularidade das chacinas na atividade cotidiana da polícia carioca.

Para esses eventos ocorrerem com a frequência que ocorrem é necessária uma motivação prévia por parte do Estado, que vai mobilizar seus policiais para apurarem determinadas circunstâncias que consideram relevantes. Assim, apareceram como principais motivações: a repressão ao tráfico de drogas e armas; as disputas entre grupos criminais; mandado de prisão ou busca e apreensão; retaliação por morte ou ataque a unidade policial; fuga ou perseguição; recuperação de bens roubados; outros e sem informações, sendo que, em média, 3,3% das operações policiais resultam em chacina, conforme exposto abaixo no Gráfico 4:

: Hirata et al., 2023, p. 08

Gráfico 4 Percentagem de chacinas policiais do total de operações policiais segundo motivação (2007-2021, Rio de Janeiro).  

Sendo a disputa entre grupos criminais a principal justificativa para que as polícias subam à favela e cometam chacinas, isso, por si só, já legitimaria a ação policial, deixando de lado as circunstâncias destes homicídios, uma vez que o discurso do combate ao crime e a associação do morto a uma organização criminosa acaba sendo suficiente para arquivar qualquer tipo de investigação criminal (Zaccone, 2015). Ainda nesse aspecto, é muito comum no noticiário mencionar no perfil dos mortos se há passagens ou “ficha” na polícia ou algum tipo de associação com organizações criminosas.

O que as características das chacinas do Rio de Janeiro tem para nos mostrar, através das informações expostas pelo relatório do GENI, é a imprescindibilidade da existência de uma operação policial previamente vinculada a um fim específico no "combate à criminalidade", algo que contribuirá para a sua legitimação futura. Ainda vale ressaltar que, através desse exercício analítico que tem como referência o estado do Rio de Janeiro, não é nossa intenção apresentar suas especificidades como sendo as mesmas dos demais estados e respectivas polícias. Cada qual tem suas próprias singularidades, como é o caso da polícia do estado do Paraná, cujo principal contexto de ações letais ocorre em patrulhamentos e perseguições a veículos roubados ou furtados, resultando em homicídio ou mesmo em chacina por parte da polícia, como foi o caso ocorrido no dia 12 de setembro de 2022 na cidade de Curitiba, em que quatro pessoas foram mortas pela polícia militar paranaense após uma perseguição na qual o veículo teria sido roubado por aquelas pessoas assassinadas8. Neste caso, em acordo com o gráfico acima, seria possível encaixá-lo no segundo principal motivo de chacinas: a categoria fuga ou perseguição.

Pelo discurso oficial, operações policiais são determinadas ações da polícia, com prazo determinado ou determinável, que visam, de algum modo, o combate à criminalidade, seja para prevenir eventual prática criminosa ou para coibi-la. Estaria dentro desta ideia tanto ações constantes, como patrulhamentos diários, bem como ações pontuais e específicas, como o cumprimento de mandados judiciais em um determinado período do dia. Com isso, toda polícia pode realizar uma operação policial que, a princípio, estaria no âmbito de suas atribuições. Faz-se essa ressalva porque não é raro vermos uma instituição policial agir em desvio de função e conforme as atribuições de outra polícia, como foi o caso da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que tem atribuições para patrulhar rodovias federais, mas que, juntamente com o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE/PMRJ), invadiram a favela Vila Cruzeiro/RJ e lá mataram 23 pessoas em maio de 20229. Em razão dessa chacina, o desvio de função da PRF foi questionado pelo Ministério Público Federal, mas não temos notícias de qualquer espécie de responsabilização. Inclusive, essas "parcerias" entre polícias são incentivadas frequentemente pelo próprio Ministério Público, que tem por atribuição constitucional realizar o controle externo das polícias10, mas que, sob o argumento do combate ao crime, permite a constante violação de atribuições constitucionais das polícias, como é o caso da P2 da PM que, apesar de ter atribuição de investigar crimes militares, frequentemente investiga crimes comuns.

Ainda no ano de 2020, o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, através de uma decisão monocrática em um processo (ADPF nº 635)11, já tinha determinado a suspensão das operações policiais no Rio de Janeiro durante o período da pandemia COVID-19. O STF estabeleceu diversas restrições, como a necessidade de justificar a operação policial previamente e com aviso ao Ministério Público. Além dessa decisão neste processo, outra foi proferida no ano de 2022, cerca de três meses antes desta chacina na Vila Cruzeiro/RJ, que teve como participação a PRF: ao Estado do Rio de Janeiro cabia elaborar um plano visando a redução da letalidade policial e o controle de violações de direitos humanos pela polícia fluminense, com cronograma específico para tanto. Além disso, estabeleceu os seguintes critérios para reconhecer como legítima a letalidade:

“(...) só se justifica o uso da força letal por agentes de Estado quando, ressalvada a ineficácia da elevação gradativa do nível da força empregada para neutralizar a situação de risco ou de violência, (i) exauridos demais meios, inclusive os de armas não-letais, e for (ii) necessário para proteger a vida ou prevenir um dano sério, (iii) decorrente de uma ameaça concreta e iminente” (STF, ADPF nº 635, Rel. Min. Edson Fachin, j. 03/02/2022).

Em que pese o suposto “avanço” do reconhecimento do evidente, a matança policial generalizada no Rio de Janeiro continuou durante o ano de 2022. O STF foi instado a se manifestar e, diante dessa situação, dificilmente poderia negar o que se passava no Rio de Janeiro, senão teria sua própria legitimidade enquanto poder da república democrática questionado. Ocorre que, em primeiro lugar, ao estabelecer critérios de justificação da repressão letal, o STF antecipou o discurso aceitável acerca desses acontecimentos, bastando uma adequação discursiva para a sua legitimação. Ademais, com o foco somente na instituição que puxa o gatilho, esqueceu-se daquelas que fazem a sua interpretação, isto é, o Ministério Público e o Poder Judiciário, que diariamente vêm legitimando, em todos os cantos do Brasil, as ações letais. É notório, por esses pontos, que a preocupação estatal reside na aparência democrática, em que matar tem que adquirir uma roupagem diferente de outrora.

Pelo que se apresentou, as operações policiais são uma perfeita oportunidade para que a polícia mate (legitimamente). Tal facto é ressaltado pelo policial da ROTA Silvio Oliveira em seu livro Boa Caçada (2019), que também descreve as atividades rotineiras daquele batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Para Oliveira, quando o policial da ROTA vai patrulhar, vai à busca de sua “caça”, expressão utilizada para relatar que o policial de ROTA sai às ruas para matar. Para o autor, “boa caçada” é o que se diz, entre os próprios policiais, "quando embarcamos em nossas viaturas e saímos às ruas. Afinal, é isso que fazemos, caçamos bandidos. Não atendemos ocorrências rotineiras. Somos uma tropa treinada e preparada para entrar em qualquer lugar da cidade e buscar o ladrão no ninho" (Oliveira, 2019, p.18). A ROTA é conhecida por ser um dos batalhões mais letais do país, estando vinculado a diversas chacinas ocorridas no Brasil, como a chacina do Presídio Carandiru em 1992, que deixou 111 pessoas assassinadas.

Em época não muito distante, os grupos de extermínio atuavam para cometerem chacinas, grupos estes que eram compostos, na sua grande maioria, por policiais e ex-policiais que agiam quando não estavam de serviço. É também neste caldo dos grupos de extermínio e nos grupos justiceiros que se fundam as milícias (Manso, 2020). Atualmente, não há mais a necessidade da existência dos também chamados de esquadrões da mortes, pois a etiqueta "operação policial" parece encobrir e legitimar as chacinas que outrora eram cometidas por grupos de extermínio. É o que Hirata chamou de "desencapuzamento das chacinas" (2023).

As chacinas policiais vêm para compor a face mais violenta do Estado neoliberal, que mostra seletivamente às classes desprivilegiadas a sua capacidade repressiva como forma de regularização social. As chacinas em operações policiais, nesse contexto, não nos parecem mais uma exceção ou efeito colateral não desejado. Pelo contrário, em épocas de desestabilização do capital, a repressão preventiva atua com maior intensidade em todas suas modalidades, inclusive a letal, e consequentemente as chacinas. O Estado aproveita para, nessas oportunidades, e parafraseando o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, "passar a boiada" quando pode.

3. A vingança policial no contexto das chacinas

Ao cometimento de um crime, manda a Constituição Federal que seja seu autor devidamente investigado e, com respeito ao devido processo legal, devidamente punido em alguma das penas previstas em lei, sendo proibidas as de tortura (art. 5º, inc. III) e de morte, a não ser, neste último caso, em situação de guerra (art. 5º, inc. XLVII). Esquecendo-se desses mero detalhes, em maio de 2006, a pretexto de devolver a tranquilidade aos paulistanos e restabelecer a ordem pública ante aos chamados "ataques do PCC", ocasião em que foram mortos cerca de 30 agentes da polícia por esta organização criminosa, a polícia paulista matou em oito dias cerca de 500 pessoas, cujo número ainda beira a inexatidão em razão da existência de pessoas desaparecidas, ocultações de cadáveres, registros de autoria desconhecida e outros. Dentre essas pessoas oficialmente mortas pela polícia, todas são oriundas de classes desprivilegiadas e a grande maioria sequer conta com qualquer ligação aparente com o crime organizado, apesar de assim terem sido rotulados. Sobre a investigação desses factos, pouco se fez, gerando impunidade àqueles agentes estatais que resolveram implantar a pena de morte no Brasil de maneira tão aberta durante alguns dias. Talvez este episódio tenha sido, até os dias atuais, a maior ou senão uma das maiores chacinas policiais da história recente, com o diferencial de a sua motivação ser resultante de uma retaliação aos homicídios de agentes policiais. A cada assassinato de policial, seguiam-se dezenas de assassinatos de civis acusados de associação ou relação com o tráfico de drogas (MÃES DE MAIO, 2011). Entre centenas, alguns de facto integravam a organização.

Diversos outros factos recentes, como o ocorrido em Londrina em 201612, apontam que, uma vez assassinado um policial, a retaliação ou a vingança institucional é praticamente certa. Isso fica mais evidente ante a frase dita por um policial militar paranaense investigado por participação nos homicídios dessa chacina, que ficou conhecida como "noite sangrenta": "vamos para cima, irmãos, não acertaram uma simples abelha, mexeram foi num vespeiro"13. Diante disso, focaremos no que consideramos uma questão crucial para o estudo: em que consiste essa vingança e quais são suas especificidades?

O termo vingança indica uma represália, praticada em nome próprio ou alheio, ante um ato considerado ofensivo e presumidamente praticado por outrem. No tipo de situação em que estamos examinando, a vingança existe por ser o motivo pelo qual um ou mais policiais, a pretexto de dar uma resposta à morte de outro policial, estando este de serviço ou não, mata uma ou mais pessoas. A condição de ser policial, tanto de quem vinga e em nome daquele que se vinga, é o que qualifica essa vingança. Destaca-se neste tipo de retaliação não haver nenhuma outra correspondência em âmbito estatal, pois nenhum homicídio de qualquer outra categoria de servidor público apresenta a mesma reação e consequência quanto a da morte de um policial. Não se trata, portanto, de uma vingança do tipo pessoal, isto é, em razão de laços pessoais entre quem vinga e o vingado, ainda que se considere possíveis amizades advindas da relação profissional. Trata-se, na verdade, de uma vingança ante uma relação institucional e levada adiante em nome da corporação, pois não raras as vezes quem vinga sequer conhecia o vingado.

Se não há necessidade de uma relação pessoal entre os policiais, dado que os une é o vínculo institucional, a vingança policial, por mais paradoxal que possa parecer, não se restringe ao(s) possível(is) agressor(es). Isso fica evidente ao analisarmos o ocorrido na cidade do Guarujá, no Estado de São Paulo. No dia 27/07/2023, dois policiais da ROTA foram baleados durante um patrulhamento naquela cidade, sendo que um deles morreu em decorrência desses disparos - salienta-se que a arma apreendida como sendo do acusado e usada para matar o policial, em divulgação recente, noticiou-se que o exame balístico não apontou ser a bala disparada pela arma apreendida, assim como as mãos do acusado não possuíam resíduos de pólvora, do que inicialmente se noticiou ter sido disparado por “sniper” do tráfico14. Após uma série de operações policiais na região que duraram 40 dias sob o nome de Operação Escudo, o saldo final oficial foi de 28 mortos, 958 prisões, 117 armas e cerca de 970 quilos de drogas15, somados a diversos relatos de moradores que os policiais agiram com capuzes, invadiram domicílios e, inclusive, torturaram pessoas16.

Para salientar a rapidez com que se multiplicam as “exceções”, enquanto escrevíamos o presente artigo, entre os dias 14 e 15 de setembro, dois policiais foram mortos em Recife/PE e, poucas horas mais tarde, o suspeito destes homicídios foi morto pela polícia militar pernambucana, juntamente com quatro pessoas de sua família, entre elas a mãe e a irmã17. Circulou pela Internet, inclusive, um vídeo da irmã que, ao prever ser assassinada, iniciou uma live pelas redes sociais e, por fim, acabou gravando sua própria morte. Executada a tiros, ela filmou duas pessoas sem farda chegando próximo dela e de seu irmão, dando-lhes ordem para levantar a mão enquanto lhes apontava a arma, em semelhança aos padrões de abordagem policial. Ocorre que, mesmo sendo dito que estavam sendo filmados e obedecendo às ordens dadas, não foi suficiente para impedir o desfecho fatal.

Diante dessas duas chacinas, uma ocorrida no Guarujá/SP e outra em Recife/PE, é visível que a vingança não se restringe somente à pessoa que causou a morte de um policial. A vingança institucional transcende essa relação e se impõe diante de uma coletividade maior de pessoas que sequer estão relacionadas a determinado crime em questão, mas que acaba por sofrer suas consequências, sendo indiferente existir qualquer vínculo da(s) vítima(s) da retaliação com qualquer atividade criminosa, dado que muitas das pessoas mortas pela polícia sequer têm passagem ou condenação criminal. Dessa forma, por que a polícia assim age?

Preliminarmente a uma possível resposta, é inegável que os policiais, ao decidirem matar um, dois, três ou vinte pessoas por uma retaliação, contam com respaldo institucional, não somente da instituição policial, mas também - e principalmente - do Ministério Público e Poder Judiciário. Esse respaldo é construído nas relações institucionais diárias de ambos diante de cada homicídio praticado por policial contra qualquer civil, já que arquivar esse tipo de investigação é a regra quase absoluta. A polícia sabe, de antemão, o entendimento de ambas as instituições acerca do discurso esperado sobre os homicídios por ela cometidos e, por isso, realiza uma construção discursiva do relato dos factos a uma determinada compreensão esperada e adequada para promotores e juízes, não sendo em nenhum momento a licitude da ação policial posta em questionamento, via de regra. Na linguagem do brocardo jurídico: "o que não está nos autos, não está no mundo".

Em segundo lugar, a retaliação institucional frente a um homicídio de um policial é certa. Todavia, a polícia possui certa autonomia de escolha quanto à intensidade da retaliação. Isso significa que, ante uma reação, a polícia terá um leque de opções entre não matar ou, se optar por assim fazer, quantos matar, de que modo, em quais locais, dentre outras condições. Quando se opta por não matar e, sim, investigar e prender o suspeito, temos a obediência aos procedimentos legais, mas que não exclui o caráter de prioridade institucional, que na maioria dos casos demanda uma força-tarefa para apurar o ocorrido frente a totalidade de homicídios que também esperam por investigação e solução. Essa autonomia não é aquela resultante de um descontrole governamental (Alzueta, 2014) ou autonomia burocrática autoritária, sustentado por Guillermo O'Donnell (2021), como se o aparato repressivo tivesse regras próprias e automatizadas do Estado.

Em uma entrevista informal realizada no decorrer desta pesquisa, um policial, que já foi baleado duas vezes, foi questionado sobre a postura da polícia sobre esses dois factos em que foi vítima, sendo afirmado por ele que não chegaram a matar qualquer suspeito, todavia resultou em investigação e os seus autores foram presos. Diante dessa resposta, foi feita outra pergunta, qual seja, se ele sabia explicar o porquê agiram assim e acabaram não matando os autores, e fomos respondidos que, como é um policial de rua e não vinculado a determinados agrupamentos, matar não é visto como uma obrigação, mas uma opção, se tiver oportunidade para tanto; já com policiais de batalhões especiais, a vingança institucional letal é certa.

Não podemos perder de vista que a polícia tal qual como a conhecemos hoje, devidamente organizada em uma instituição hierarquizada, é resultado de um processo de produção e reprodução da ordem burguesa historicamente determinada, cujo discurso de segurança por ela buscada camufla a insegurança da propriedade privada e a necessidade histórica de se fabricar a ordem social e impor a disciplina do trabalho, tendo nas classes desprivilegiadas a sua principal preocupação (Neocleous, 2010). A discricionariedade policial (e não autonomia, frise-se) aparece aqui como característica chave no poder de polícia, que vai conferir a ela, através do direito, uma estrutura permissiva para agir de um ou outro modo. Assim, a lei não molda a prática policial, mas, ao contrário, é a prática policial que se amolda à lei em vistas à preservação e reprodução da sociabilidade burguesa:

“A polícia segue regras, mas são regras policiais, e não regras legais. Portanto, ao exercer seu julgamento, a polícia nunca o utiliza para fazer cumprir a lei, como pode nos levar a crer. Em vez disso, os oficiais decidem o que desejam fazer e, em seguida, adaptam seus poderes legais a essa decisão. Portanto, a principal ‘lei’ que os policiais pretendem aplicar é a ‘Lei dos Modos e Meios’, um conjunto de poderes imaginários que eles usam para confundir os suspeitos e a questão de saber se um policial deve deter um suspeito por razões legais é deslocado pela pergunta ‘que razão legal usarei para justificar a prisão desta pessoa’. As regras, exercidas de acordo com critérios policiais em vez de critérios legais específicos, são regras para a repressão da desordem exercidas pela polícia e permitidas por lei. (...) Portanto, o direito penal passa a ser apenas um dos muitos recursos utilizados por um policial, um meio entre muitos para se conseguir uma sociedade civil bem ordenada, o que prova que o exercício do poder do estado em uma democracia liberal é menos uma forma de estado de direito, como sustenta a mitologia liberal, e mais uma forma de governo de homens que usam a lei para legitimar o exercício do poder. O agente é um policial da ordem, e não um policial da lei” (Neocleous, 2010, p. 207).

O homicídio de um policial é visto como um atentado a uma das principais instituições estatais repressivas e também garantidoras e reprodutoras da sociabilidade burguesa. Se há uma afronta direta a essa instituição, afronta-se aquilo que ela representa e a ausência de uma "resposta" à altura poderia significar um reconhecimento indireto da perda do controle na proteção à propriedade privada e um questionamento direto de sua capacidade de controlar a dita ordem pública. Muitas das vezes, como aqui explorado, e cada vez com mais frequência, essa "resposta à altura" ao homicídio de um policial pode se resumir à prática de chacinas, fortalecendo a máxima da representação cotidiana sobre o tema: bandido bom é bandido morto. Inclusive, essa foi a conclusão de uma das manifestações de um Promotor de Justiça do Estado de São Paulo no ano de 2011, amplamente divulgado pela mídia: "bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer. Lamento, todavia, que tenha sido apenas um dos rapinantes enviado (sic) para o inferno. Fica aqui o conselho para Marcos Antônio: melhore sua mira…"18.

Considerações finais

A discussão até aqui desenvolvida e apresentada se propôs a dar continuidade ao debate sobre a repressão estatal, em especial a violência e repressão letal cometida por policiais, e em específico as chacinas levadas a cabo por seus agentes, que aqui denominamos de chacinas-vingança ou chacinas-retaliação. O debate sobre a questão das chacinas no cotidiano da atividade policial não é um assunto novo entre estudiosos e pesquisadores, mas com certeza é um campo que ainda necessita de mais abordagens e problematizações. A relação chacinas e totalidade dos casos de letalidade policial chama muita atenção pela sua extensão, daqueles estados onde é possível diagnosticar tais factos, pois mais do que revelar uma exceção da repressão policial cotidiana ou uma situação localizada e atípica, demonstra que se trata de um padrão de operação que se agrava de acordo com circunstâncias imediatas específicas, mas que já possuí um padrão de recorrência e normalização enquanto meio de controle das classes desprivilegiadas, concretizada em seus indivíduos (no caso tratamos do assassinato de policias, mas há outros gatilhos para tais situações).

A conceituação aqui proposta foi uma primeira incursão na tentativa de revisar o que já foi conceituado e analisado a fim de trazer tais questões sob o foco da análise crítica e através disto, superar certos limites ou insuficiências que possuem as análises feitas até então, além de contribuir para o olhar crítico que necessita ser destinado à polícia e seu papel na sociedade brasileira de capitalismo neoliberal.

Para avançarmos ainda mais nesse debate, estudar tais chacinas do ponto de vista das comunidades, grupos ou territórios que sofreram com as ditas operações, ou então a partir de seus relatórios oficiais e/ou processos judiciais, trariam novas luzes para mais uma das modalidades de controle social e imposição e manutenção da ordem que leva a cabo a polícia. Ainda caberia analisar os discursos que se chocam ou então auxiliam a aceitação e regularização das chacinas sob os argumentos de resposta e combate ao crime, manutenção da ordem e defesa dos valores e indivíduos da polícia e grupos especializados. Neste ponto foi possível notar um acréscimo de violência letal e reação quando se trata de policiais de grupos especiais que são assassinados, como é o caso da ROTA, BOPE e tantos outros.

Menciona-se ainda que os dados trazidos e postos sob análise também rebatem em mais um aspecto o argumento corriqueiro de que as polícias e os policiais trabalham com insegurança e apenas agem na medida necessária de violência que enfrentam. Quando a polícia é a principal executora de chacinas continuamente por anos seguidos, como foi o caso do estado do Rio de Janeiro, tal falatório se desmancha frente à realidade. Outro aspecto a se mencionar a respeito das operações, é que a ação letal e as próprias operações se reforçam mutuamente e se constroem conjuntamente. Matar em operações policiais, ainda mais aquelas motivadas por vingança, é esperado e é visto como sinónimo de resultado positivo da operação, a despeito do poema do uso progressivo da força.

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Notas

1 Expressão que entendemos ser mais adequada em relação aos termos "letalidade policial" ou “morte em decorrência de intervenção policial”, atual termo oficial e que no passado também foi chamado de “autos de resistência” em alguns estados brasileiros. Consideramos possível utilizar o termo letalidade policial, como o faremos no decorrer deste artigo, todavia compreendemos o seu significado inserido em uma totalidade de relações sociais mais amplas, que não somente aquela a ação de matar alguém cometida pelo policial, vista imediatamente apenas como uma reação ou então uma ação/reação de legítima defesa. Ainda, há uma pressuposição no termo "letalidade policial" que designa a possibilidade de mortes “ocorrerem” (i) durante a jornada do policial e (ii) compreendê-las enquanto parte naturalizada dentre as diversas outras ocorrências possíveis. A ação legítima está implícita no termo, ainda que possamos tensionar e criticá-lo.

2 Ao todo foram mortas 1.137 pessoas em 283 incursões de ação ou operação policial. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/11/rio-tem-media-de-tres-chacinas-policiais-por-mes-mostra-levantamento.shtml>

3 ROTA é a abreviação de Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, 1º Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

4 No dia 05 de setembro, o secretário de segurança pública de São Paulo, Guilherme Derrite, anunciava em coletiva para a imprensa o fim da Operação Escudo com um saldo “muito positivo” e “missão cumprida”, além de negar com base nos laudos periciais do IML qualquer indício de execução ou tortura. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/09/05/operacao-escudo-guaruja.htm>.

5 Não aprofundaremos no assunto no presente artigo, pois não é o tema principal da nossa análise, algo que tornaria este trabalho demasiado extenso. Para tanto, sugerimos a leitura da obra Hegemonia burguesa e renovações hegemônicas, de Nildo Viana (2019), e também de Mateus Orio (2020)..

6 Lei nº 13.022.2014.

7 Emenda Constitucional nº 104/2019.

8 Mais detalhes da notícia pode ser encontrado no sítio eletrônico <https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2022/09/12/quatro-pessoas-em-picape-roubada-sao-mortas-durante-confrontos-com-policiais-no-contorno-norte-de-curitiba-diz-pm.ghtml>. Último acesso em 15/09/2023.

9 A notícia pode ser visualizada no sítio eletrônico <https://extra.globo.com/casos-de-policia/operacao-do-bope-da-pf-da-prf-tem-23-mortos-sendo-uma-moradora-na-vila-cruzeiro-25516523.html>. Acesso em 18/09/2023. Neste artigo, não aprofundaremos o desvio de função das polícias no Brasil, algo que será objeto de estudo posterior.

10 Conforme art. 129, VII da Constituição Federal.

11 As decisões podem ser encontradas no sítio eletrônico <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5816502>. Acesso em 18/09/2023.

12 No dia 29/01/2016, em Londrina/PR, um policial militar foi baleado quando estava de folga. Logo em seguida, a PM começou a reação, recrutando inclusive aqueles que estavam de folga, matando 12 pessoas e deixando 14 feridas, todas vítimas de disparo de arma de fogo, facto este que representou 30% dos homicídios do ano de 2015 na cidade. Cinco dessas vítimas fatais sequer tinham passagem pela polícia. Em junho de 2023, policiais acusados de envolvimento com esses homicídios e falsificação de provas foram absolvidos. Informações disponíveis no sítio eletrônico <https://g1.globo.com/pr/norte-noroeste/noticia/2023/06/13/pms-sao-inocentados-por-tentativas-de-homicidios-durante-a-noite-sangrenta-em-londrina-12-pessoas-morreram-mas-investigacoes-nao-avancaram.ghtml#>. Acesso em 20/09/2023.

13 A notícia pode ser visualizada no sítio eletrônico <https://lidianopolisnews.blogspot.com/2019/01/noite-sangrenta-em-londrina.html>. Acesso em 23/09/2023.

15 Conforme notícia exposta no sítio eletrônico: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/governo-de-sp-anuncia-fim-da-operacao-escudo-que-deixou-28-mortos-no-litoral/>. Acesso em 09/11/2023

17 A notícia pode ser visualizada no sítio eletrônico <https://www.metropoles.com/brasil/veja-quem-sao-as-oito-pessoas-assassinadas-em-chacina-de-pernambuco>. Acesso em 23/08/2023.

18 Como dito, o facto foi amplamente divulgado pela mídia e pode ser acessado através de qualquer pesquisa simples na internet. Sugerimos o sítio eletrônico <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1709201108.htm>. Acesso em 23/09/2023.

Recebido: 11 de Janeiro de 2024; Aceito: 27 de Maio de 2024

Vyctor Grotti (autor para correspondência) Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Sociologia pela UFPR. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Capitalismo e Contestação Social (NECCSO/UFPR). Delegado de Polícia. Professor da Escola Superior da Polícia Civil do Estado do Paraná. ORCID: 0000-0001-7555-8437 E-mail: vgrotti@hotmail.com

Murillo Amboni Schio Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Sociologia pela UFPR. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Especialista em Gestão Pública com Ênfase em Direitos Humanos pela UEPG. Bacharel e Licenciado em História pela UFPR. Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Capitalismo e Contestação Social (NECCSO/UFPR). ORCID: 0000-0002-3156-5261. E-mail: murilloaschio@gmail.com

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