O mieloma múltiplo (MM) é uma discrasia plasmocitária, correspondendo a 10% das neoplasias hematológicas.1Em até 15% dos doentes, apenas são detetáveis cadeias leves monoclonais na imunoeletroforese sérica e urinária, não coexistindo produção anormal de cadeias pesadas.2,3No MM, as manifestações cutâneas podem surgir por infiltração direta por plasmócitos monoclonais ou depósito de fragmentos da cadeia leve anormal formando fibrilhas amilóides. O diagnóstico de MM decorrente do estudo de lesões cutâneas é raro dado o envolvimento cutâneo geralmente surgir numa fase tardia de doença.2
Apresenta-se o caso de uma mulher de 55 anos referenciada à consulta de Medicina Interna por quadro com dois anos de evolução de lesões cutâneas no mento e pálpebras. Constataram-se lesões violáceas purpúricas no mento e periorbitárias, com relevo, mantidas à digitopressão (Fig. 1), e ainda lesão violácea na língua e macroglossia (Fig. 2). Negava astenia, perda ponderal ou queixas álgicas associadas. Da história prévia destacava-se síndrome do túnel cárpico bilateral, já intervencionado cirurgicamente.
Dada a elevada suspeição de amiloidose, fez biópsia cutânea que foi sugestiva de vasculopatia amiloidótica. A imunoeletroforese de proteínas séricas e o doseamento de cadeias leves séricas Kappa e Lambda (λ) foram normais, no entanto apresentava uma elevação das cadeias λ livres e proteinúria de Bence Jones tipo λ na urina 24 horas. Analiticamente não apresentava anemia, disfunção renal ou hipercalcémia.
Realizou mielograma que mostrou infiltração medular por 24% de plasmócitos, estabelecendo o diagnóstico de MM de cadeias leves com amiloidose de cadeias leves (AL) associada. Iniciou quimioterapia, tendo realizado autotransplante hematopoiético após 4 meses. Aos 3 anos de seguimento apresentava-se sem recidiva de MM, mantendo estabilidade das lesões vasculíticas.
Os autores realçam a importância da valorização da púrpura facial, bem como da macroglossia, na suspeita diagnóstica de amiloidose AL.4A marcha diagnóstica subsequente deve incluir o doseamento de cadeias leves livres, uma vez que em contexto clínico suspeito uma imunoeletroforese de proteínas séricas normal não exclui MM.2