Introdução
Os cuidados paliativos (CP) surgem como uma ponte facilitadora que permite aos doentes viver tão bem quanto possível até à sua morte, elevando o valor da vida, apesar de todas as complicações e dificuldades inerentes. Os CP ambicionam libertar as pessoas do sofrimento, de forma a que vivam com dignidade.1 Desde a entrada para a União Europeia em meados dos anos 80 que os portugueses experienciam uma melhoria significativa da qualidade de vida e facilidade crescente de acesso aos cuidados de saúde. De facto, o investimento em tratamentos inovadores e os avanços na medicina curativa contribuíram para uma maior esperança de vida e, consequentemente, um envelhecimento populacional com aumento das patologias crónicas, oncológicas e não-oncológicas.1-3Atualmente a população portuguesa é uma das mais envelhecidas da Europa, sendo que as projeções do INE apontam para um aumento do número de idosos (65 e mais anos) de 2,2 milhões em 2018 para 3,0 milhões em 2080 e o índice de envelhecimento passará de 159 para 300 idosos por cada 100 jovens em 2080.3 Os profissionais de saúde são diariamente confrontados com doentes idosos com múltiplas comorbilidades e, por isso, polimedicados, frágeis e, cada vez mais isolados da comunidade. Os CP utilizam uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida dos doentes e suas famílias, que enfrentam problemas decorrente de uma doença incurável e/ou grave, com prognóstico limitado, através da prevenção e alívio do sofrimento, com recurso à identificação precoce, avaliação adequada e tratamento rigoroso dos problemas não só físicos, como a dor, mas também os psicossociais e espirituais.4,5Além disso, deparam-se ainda com os familiares desses doentes cujo conhecimento sobre o prognóstico das patologias crónicas não-oncológicas é frequentemente parco ou inexistente.6,7As vantagens de orientar os cuidados de saúde em função das expectativas do doente são múltiplas: maior satisfação do doente e família, maior adesão e resposta ao tratamento, além de maior satisfação do profissional de saúde e eficiência, com redução do número de exames complementares de diagnóstico.4-7Um dos locais de implementação deste modelo de cuidados são as enfermarias do Serviço de Medicina Interna (MI). A MI, com o seu forte componente de trabalho em equipa nos vários cenários hospitalares, por definição, encontra-se aberta e procura novos modelos de cuidado que melhor se adequam às necessidades dos doentes. É neste contexto que emerge o instrumento NECesidades PALiativas CCOMS-ICO© (NECPAL): criada para responder ao desafio de abordagem do doente em CP.8-10Fruto do trabalho desenvolvido pelo Instituto Catalão de Oncologia (ICO), em Espanha, a sua missão é melhorar a prestação de cuidados no âmbito paliativo e expandir a sua ação. Para atingir este objetivo, o ICO desenvolveu o Proyecto NECPAL CCOMS-ICO© - Identificación y Atención Integral-Integrada de Personas com Enfermedades Crónicas Avanzadas en Servicios de Salud y Sociales, cujo principal objetivo é promover a identificação precoce dos doentes com necessidades paliativas (NPAL) e prognóstico limitado de vida, de forma a melhorar e adequar a qualidade dos cuidados prestados.8 De acordo com um estudo Catalão de prevalência de base populacional, 1,4% da sua população encontra-se na situação de doença crónica avançada/terminal, sendo que destes 26%-40% estão hospitalizados e 60%-70% estão em cuidados domiciliários.8 A vantagem mais relevante desta avaliação prognóstica é o facto de contribuir para a avaliação do doente num determinado momento, possibilitando a redefinição de objetivos terapêuticos e a introdução progressiva e atempada de CP diferenciados.10-15Existem alguns riscos associados, nomeadamente a generalização da aplicação de um risco de uma determinada população a um indivíduo. Outros riscos identificados passam pela perda de oportunidades de tratamento, estigmatização e o impacto no doente e família.10A elaboração deste estudo teve como principal objetivo determinar a prevalência das NPAL dos doentes do internamento do Serviço de MI de um hospital terciário através do instrumento NECPAL. A aplicação do NECPAL teve como objetivo secundário identificar o estádio prognóstico estimado destes doentes. Foi adicionalmente aferido o nível de formação em CP dos profissionais de saúde.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo institucional, clínico, descritivo, observacional e transversal.
Desenho do Estudo e População
Este estudo consistiu na aplicação do instrumento a NECPAL (versão português do Brasil).9 O NECPAL não tem uma versão portuguesa de Portugal validada, apesar de estar em fase de validação por parte de um grupo de trabalho da Universidade Católica Portuguesa.
Esta investigação decorreu no dia 20 de Abril de 2022, encontrando-se 148 doentes internados nas Unidades do Serviço de MI. Tendo em conta os critérios de elegibilidade abaixo descritos, o instrumento NECPAL foi aplicado pelos profissionais de saúde a 122 doentes internados no Serviço de MI do Centro Hospitalar Universitário de Santo António (CHUdSA) nessa data.
O NECPAL é um instrumento que propõe parâmetros objetivos úteis para a identificação de doentes com doença crónica avançada e com necessidade de atenção paliativa, com prognóstico de vida limitado. Pressupõe-se a sua utilização com finalidade não só assistencial, mas também docente e investigativa, possibilitando a criação de protocolos institucionais dirigidos e proporcionando uma prática clínica baseada na evidência, com foco na excelência e propiciando o início de uma mudança cultural no que se refere a esta modalidade do cuidado.8 A utilização prática do NECPAL inclui a identificação dos doentes que preenchem os critérios estabelecidos, a aplicação da pergunta surpresa ao médico e enfermeiro desse doente, e para as respostas negativas aplicar o instrumento. O NECPAL aborda 6 grupos de parâmetros de diagnóstico (cada um com várias perguntas específicas): NPAL identificadas pelos profissionais, declínio funcional, declínio nutricional, multimorbilidade, aumento da utilização de recursos e parâmetros específicos de doenças.8-10Os resultados deste procedimento permitem a inclusão do doente num de três grandes estádios de prognóstico e estimar a sua sobrevivência (Tabela 1).10,15,16
NECPAL: Instrumento para identificação de pessoas em situação de doença avançada e/ou terminais e necessidade de atenção paliativa para uso em serviços de saúde e sociais.
Adaptado de: Turrillas P, et al. NECPAL prognostic tool: a palliative medicine retrospective cohort study. BMJ Support Palliat Care. 2021:bmjspcare-2020-002567.15
O instrumento NECPAL foi aplicado em formato de entrevista, preenchido pelos investigadores, a pelo menos um médico (n = 27) e um enfermeiro (n = 24) responsável por cada doente internado, no mesmo dia aos dois grupos profissionais, mas em espaços diferentes, para que nenhum deles fosse influenciado pelo parecer do outro.
A amostra foi do tipo acidental e o método de amostragem foi do tipo não probabilístico. Não foram realizadas entrevistas ou pedidos para preenchimento de questionários aos doentes internados nem aos seus familiares. Foi garantida a confidencialidade dos doentes através da anonimização dos dados.
Assim, foram considerados como critérios de inclusão todos os profissionais de saúde (médicos e enfermeiros) diretamente responsáveis pelos doentes, onde se incluem os médicos especialistas, os internos de formação específica (em MI ou de outras especialidades a realizar estágio de MI), enfermeiros especialistas e enfermeiros da unidade à data de realização do questionário. Foram excluídos médicos internos de formação geral, estudantes do curso de medicina, estudantes do curso de enfermagem, auxiliares de ação médica e trabalhadores das áreas administrativas inseridos neste Serviço.
Em relação aos doentes, foram excluídos aqueles cuja gestão era da responsabilidade de outras especialidades, que não a MI, e com tempo de internamento inferior a 3 dias úteis.
A colheita de dados foi sustentada pelos seguintes:
• Questionário de dados sociodemográficos dos participantes: idade, sexo, unidade do serviço, categoria profissional, tempo de experiência profissional, formação prévia em CP, conhecimento prévio do NECPAL.
• Questionário do NECPAL CCOMS-ICO© (suplemento 1), que é composto por quatro seções:
• Os doentes com NPAL foram aqueles identificados pelos profissionais de saúde com resposta negativa à pergunta surpresa e, pelo menos, um item afirmativo nos demais itens indagados.
Análise Estatística
A análise estatística foi realizada através de software estatístico IBM SPSS (Statistical Program for the Social Sciences®), versão 26.0. As variáveis categóricas foram apresentadas como frequências absolutas e relativas (%), e as variáveis contínuas de distribuição normal as médias e desvio-padrão (DP). A concordância entre os avaliadores principais na pergunta surpresa foi aferida pelo teste kappa de Cohen (k). O p-value < 0,05 foi considerado como indicador de significância estatística.
Procedimentos
Para a realização do estudo e cumprimento dos procedimentos legais, foram solicitadas as devidas autorizações da autora da versão validada para português do Brasil, a Dr.ª Marcella Santana, assim como obtivemos a autorização para a sua aplicação por parte do seu autor original, o Dr. Xavier Gómez-Batiste. Foi obtida a autorização junto da Comissão de Ética do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, e o consentimento informado junto dos participantes com assinatura de formulário criado para o efeito. O trabalho está em conformidade com os princípios éticos e legais de acordo com as recomendações da Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.
Resultados
Os profissionais de saúde inquiridos encontravam-se responsáveis por 122 doentes, cuja média de idade era de 75 anos (DP ± 15 anos), com uma distribuição equilibrada entre sexos (52,5%, n = 64 do sexo feminino). Mais de metade dos doentes (59%, n = 72) apresentava duas ou mais comorbilidades.
A prevalência das NPAL deste Serviço de MI foi de 88,5% (n = 108). Destes doentes, 15,7% estavam a ser acompanhados em regime de consultoria pela Equipa Intra-hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos (EIHSCP) e 72,2% (n = 78) encontravam-se no estádio 3 de prognóstico do NECPAL, cuja mediana de sobrevivência estimada é de 3,6 meses (Fig. 1).
Os enfermeiros e médicos mais séniores foram concordantes na maioria das suas avaliações em relação à pergunta surpresa de cada doente, com uma concordância considerável (k = 0,271; p-value 0,002). Em todos os doentes em que diferiram (27,9%, n = 34), a doença definidora de prognóstico era não-oncológica.
As características demográficas e nível de formação dos 51 profissionais inquiridos encontra-se sumarizada na Tabela 2. A média de idades dos profissionais de saúde foi de 32 anos e 76,5% (n = 39) eram do sexo feminino. A grande parte dos médicos encontrava-se no internato de formação específica (77,8%, n = 21) e metade (49,0%, n = 25) dos profissionais de saúde apresentavam 5 anos ou menos de experiência profis-sional (Fig. 2). A maioria dos profissionais de saúde (56,9%, n = 29) não tinha formação básica em CP (Fig. 3).
DISCUSSÃO
Este estudo permitiu perceber que as NPAL neste Serviço de MI são elevadas, tal como expectável. Portugal tem atualmente uma das populações mais envelhecidas da Europa, e os avanços na medicina curativa, contribuíram para uma maior esperança de vida e, consequentemente, um envelhecimento populacional com aumento das patologias crónicas.2,3Neste contexto, é essencial compreender as necessidades específicas de cada doente. Instrumentos como o NECPAL são recursos importantes para auxiliar na identificação precoce dos doentes com NPAL e ajuste de planos individuais de cuidados.8-10Os enfermeiros e médicos foram concordantes na maioria das suas avaliações em relação à pergunta surpresa, a destacar que nos casos em que tal não se verificou, a doença definidora de prognóstico era não oncológica, possivelmente revelando a dificuldade de prognosticar estes doentes crónicos. Carneiro et al, já em 2010, num estudo transversal a 50 profissionais de saúde de uma enfermaria de MI revelou que há interesse efetivo na formação em CP (90% dos inquiridos), e que a percepção do benefício de estratégias especializadas nesta área (98% dos inquiridos) não é novidade.4 Constatamos que cerca de metade dos profissionais de saúde não possuíam formação básica em CP. Para facilitar a prestação de CP de alta qualidade, devem ser desenvolvidos programas de formação para fortalecer o conhecimento e confiança nas intervenções, além de atender às necessidades particulares educacionais de cada categoria profissional de saúde.4,13,14Este estudo apresenta como limitação a necessidade de validação do NECPAL para Português de Portugal, e o tamanho da amostra não permitir retirar conclusões estatisticamente significativas em relação à população internada a nível nacional.
Adicionalmente, a escassez de tempo dos profissionais para responder ao questionário é um fator que poderá influenciar o tempo de reflexão dedicado às respostas. Apesar das limitações apontadas, destaca-se o potencial para identificar doentes que possam beneficiar, de forma precoce, de CP diferenciados. São necessários mais estudos para validar este instrumento como apoio na estratificação de prognóstico.10,15,16Pode ainda permitir o desenvolvimento de indicadores de desempenho e servir como ferramenta de gestão de cuidados e de otimização de recursos.15 Outro aspecto que pode ser impulsionado pelo uso do NECPAL é a prática de investigação, possibilitando o desenvolvimento de protocolos institucionais baseados na evidência.9-13
Conclusão
Com a elaboração deste estudo pretendíamos identificar a prevalência das NPAL dos doentes internados no Serviço de MI através da aplicação do instrumento NECPAL pelos profissionais de saúde (médicos e enfermeiros). De acordo com os resultados obtidos verificamos que as NPAL deste Serviço de MI são elevadas, retratando possivelmente a realidade global dos internamentos hospitalares, e que é vital investir em mais formação em CP de todos os profissionais. O desenvolvimento deste trabalho permitiu verificar que a aplicação deste instrumento poderá possibilitar a caracterização das NPAL dos doentes internados nos serviços de MI, a nível local e nacional. A noção de um prognóstico de vida limitado não deve ser sinónimo de niilismo de cuidados para o profissional de saúde, mas uma oportunidade de atualizar e adequar os objetivos e intervenções. É imperativo tornar visível, discutir e refletir ativamente as NPAL da nossa população para uma melhor gestão dos cuidados individuais, recursos humanos e criação de planos governamentais.