Introdução
A doença cardiovascular aterosclerótica (DCVA) corresponde à patologia do aparelho circulatório que tem origem na formação de lesões fibrolipídicas com aspecto de placas nas paredes arteriais.1A DCVA, que tem como manifestações clínicas principais o enfarte agudo do miocárdio (EAM) e o acidente vascular cerebral (AVC) isquémico, continua a ser a principal causa de mortalidade, de morbilidade e de incapacidade globalmente e em Portugal.1-3Associa-se a custos elevados com o sistema de saúde e com perdas de produtividade equivalentes a 11% das despesas em saúde em Portugal.4 É, pois, evidente que a DCVA configura um grave problema de saúde pública para o qual devemos atentar urgentemente.
Vários estudos revelaram que o colesterol LDL (C-LDL) causa de forma evidente DCVA, sendo esta associação gradativa entre o aumento de C-LDL e o risco de DCVA. O risco de DCVA é cumulativo à exposição ao C-LDL sérico, pelo que é de extrema importância a sua redução de forma precoce e consistente.1,5
O tratamento da hipercolesterolemia deve englobar uma estratégia multifatorial, existindo diversos fármacos eficazes que mostraram reduzir a DCVA.6 Contudo, no mundo real os doentes continuam com um baixo controlo dos níveis de C-LDL, para o qual contribuem diversas barreiras já identificadas. Importará então refletir sobre as mesmas e quais as melhores estratégias a adotar na resolução deste problema de saúde com enorme relevância para a população, sistema de saúde e economia do país.
Inclisiran é um fármaco que se poderá revelar como uma estratégia, com um bom perfil de segurança, para contornar várias barreiras ao adequado controlo da hipercolesterolemia na população. Inclisiran permite inibir a síntese de PCSK9 através do mecanismo de RNA de interferência e, com uma administração subcutânea semestral, após administração nos dias 1 e 90, é obtida uma redução do C-LDL superior a 50%.7
Este artigo tem como objetivo rever o estado do controlo da hipercolesterolemia em Portugal, recomendações existentes para o controlo da dislipidemia, os fármacos disponíveis para esta patologia, seus mecanismos de ação e eficácia, resumindo os principais dados sobre inclisiran, principais barreiras identificadas para o adequado controlo lipídico e estratégias possíveis para as ultrapassar.
EPIDEMIOLOGIA E PATOGÉNESE DA DOENÇA CARDIOVASCULAR ATEROSCLERÓTICA
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença cardíaca isquémica é a principal causa de morte a nível mundial, sendo responsável pelo maior aumento de óbitos nas duas últimas décadas.8 Em Portugal as doenças do aparelho circulatório continuam a liderar as causas de óbito, destacando-se a doença cerebrovascular (92,2 mortes por 100 000 indivíduos) e a doença cardíaca isquémica (63,6 mortes por 100 000 indivíduos).9 Os fatores de risco associados à DCVA continuam muito prevalentes em Portugal, nomeadamente: hipercolesterolemia, com uma prevalência de 63,3% entre os 25 e os 74 anos; excesso de peso, presente em 57% dos portugueses; hipertensão, presente em 34% dos indivíduos entre os 25 e os 74 anos; tabagismo, em 20% da população10; diabetes, com uma prevalência estimada entre os 20 e os 79 anos de 14,1%.11 Na Europa a DCV causa uma perda de mais de 64 milhões de anos de vida saudáveis (DALY, disability-adjusted life year),12destacando-se em Portugal a doença cardíaca isquémica (1825 DALY por 100 000 pessoas) e a doença cerebrovascular (1738 DALY por 100 000 pessoas).13 O impacto económico da DCVA em Portugal em 2016 foi de 1,9 mil milhões de euros, o correspondente a 11% das despesas em saúde em Portugal e a 1% do produto interno bruto, com 1,1 mil milhões de euros em custos diretos, 55% dos quais em cuidados de saúde primários, 27% em ambulatório hospitalar, 18% em internamento, e o restante em custos indiretos, sobretudo com o absentismo e a saída precoce do mercado de trabalho.4
A DCVA tem a sua génese na aterosclerose, caracterizada pela formação de lesões fibrolipídicas na parede das artérias e que está presente de forma subclínica em 63% dos adultos entre os 40 e os 54 anos.14 Dependendo do território arterial afetado, o processo aterosclerótico culmina em manifestações clínicas como a morte súbita, o EAM, o AVC isquémico, a claudicação intermitente ou mesmo gangrena.15,16
A aterogénese inicia-se pela disfunção endotelial, induzida pelos fatores de risco de DCVA, e deposição de lipo-proteínas ricas em colesterol que despoletam uma resposta inflamatória e o desenvolvimento do ateroma.17 Ao longo do seu ciclo de vida e circulação, a mesma lipoproteína contendo apoB, constituída por colesterol (CT), triglicerídeos (TG), fosfolípidos e uma única molécula apoB100 possui diferentes designações de acordo com o seu conteúdo lipídico. O fígado produz a lipoproteína de muito baixa densidade (VLDL) que evolui para remanescente de VLDL com a remoção progressiva de TG. À medida que mais TG vão sendo removidos aumenta a sua densidade e evolui para lipoproteína de densidade intermédia (IDL) e posteriormente de baixa densidade (LDL).18 Todas as lipoproteínas contendo apoB até ~70 nm de diâmetro podem atravessar a barreira endotelial, tais como as VLDL e seus remanescentes, remanescentes de quilomícrons (que contêm uma forma truncada da apoB100, a apoB48), IDL, lipoproteína(a) e LDL,1,17,19,20e ficar retidas nas células espumosas após fagocitose pelos macrófagos.21
Consequentemente, o risco de DCVA está principalmente relacionado com a concentração total de partículas circulantes contendo apoB, e o benefício clínico das terapêuticas hipolipemiantes deverá ser proporcional à redução absoluta da concentração destas lipoproteínas.18 Como as LDL são as lipoproteínas contendo apoB mais abundantes no plasma (~90%), são também o principal transportador de colesterol para a parede arterial.19,22Habitualmente, o nível de colesterol das LDL (C-LDL) correlaciona-se bem com o de apoB, mas em determinados casos como obesidade, diabetes mellitus (DM) ou valores de C-LDL muito baixos, os seus níveis podem subestimar o impacto de outras lipoproteínas apoB, nomeadamente das lipoproteínas remanescentes. Nestes indivíduos, o doseamento da apoB ou o cálculo do colesterol de lipoproteínas de não alta densidade (não-HDL) permite uma correlação mais precisa do risco cardiovascular do que o C-LDL.23
Não obstante, o C-LDL é o mais importante fator de risco para a DCVA e facilmente modificável,1,2existindo uma associação dose-dependente consistente entre a exposição absoluta ao C-LDL e o risco de DCVA, cujo efeito no risco é maior com o aumento da duração da exposição.1,5Níveis prolongadamente baixos de C-LDL associaram-se a um risco inferior de DCVA, e a diminuição de C-LDL, mesmo quando os seus níveis já são baixos, permitiu a redução segura do risco de DCVA sem um limiar de benefício clínico.1,24-30Por cada diminuição de 1 mmol/L (39 mg/dL) de C-LDL o risco de DCVA reduz 23% nos es-tudos com estatinas com uma duração média de 5 anos, 33% nos estudos observacionais prospetivos com uma duração de 12 anos e 54% nos estudos de aleatorização mendeliana com uma exposição de 52 anos.1,6Mais ainda, quando o C-LDL é reduzido abaixo de 70 mg/dL, continuamos a observar regressão significativa da aterosclerose coronária e das suas consequências clínicas.31 Estas relações importantes evoluíram recentemente para o conceito de anos de colesterol - o efeito cumulativo da exposição do C-LDL em magnitude e duração. O risco de desenvolver um evento cardiovascular a longo prazo é influenciado significativamente pela exposição cumulativa ao C-LDL desde fases precoces de vida, mesmo que mais tarde com uma redução significativa dos níveis destas lipoproteínas, o referido risco venha a ser substancialmente reduzido.32 Este conceito de risco cumulativo é particularmente importante nos indivíduos com hipercolesterolemia familiar (HF) por estarem expostos a níveis mais elevados de C-LDL desde o nascimento.
TERAPÊUTICAS E RECOMENDAÇÕES PARA O CONTROLO DA HIPERCOLESTEROLEMIA
Para o controlo da hipercolesterolemia é essencial uma abordagem multifatorial, combinando estratégias de mudança de estilos de vida e terapêutica farmacológica.
Quanto à intervenção no estilo de vida, destacam-se a implementação de uma dieta alimentar pobre em gorduras saturadas, rica em fibras, frutas, legumes e vegetais, com baixo teor de sal, reduzir o peso corporal excessivo, reduzir a ingestão de álcool, aumentar a atividade física habitual e cessar o consumo tabágico.33
Para o tratamento da dislipidemia e obtenção dos valores alvo de C-LDL estão disponíveis várias classes farmacológicas com mecanismos de ação complementares (Tabela 1).6
As estatinas são a pedra angular do tratamento da hipercolesterolemia. Inibem competitivamente a 3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA redutase diminuindo a síntese hepática de colesterol com consequente aumento da expressão dos recetores LDL na superfície do hepatócito e aumento da clearance destas lipoproteínas. A terapêutica intensiva com atorvastatina 40/80 mg ou rosuvastatina 20/40 mg pode reduzir o C-LDL em mais de 50%.6
Numerosos ensaios clínicos controlados com placebo, que incluíram cerca de 170 mil indivíduos com e sem DCVA estabelecida, reduziram consistentemente os eventos cardiovasculares (CV) ateroscleróticos fatais e não fatais, independentemente da idade e do sexo.34 As estatinas são fármacos seguros, podendo raramente associar-se a miopatia com elevação da creatinofosfoquinase sérica (0,01% ao ano), lesão hepática e de DM de novo em doentes com predisposição para tal (0,1% a 0,2% ao ano).30 Apesar desta elevada relação benefício/risco, existe uma opinião pública generalizada que as estatinas condicionam sintomas musculoesqueléticos inespecíficos, o que contribui para uma taxa elevada de intolerância (9,1%), efeito nocebo, e interrupção destes agentes na prática clínica diária.35 A ezetimiba reduz seletivamente a absorção do colesterol por inibição do transportador de esteróis Niemann-Pick C1-Like 1 protein e em monoterapia diminui o C-LDL em cerca de 18%.36 Uma metanálise com 7 estudos da ezetimiba versus controlo com 31 048 doentes mostrou uma redução significativa de 13,5% no risco de EAM (RR 0,865; IC 95% 0,801 a 0,934) e de 16% no de AVC (0,840; 0,744 a 0,949), mas não no de morte CV (0,958; 0,879 a 1,044). Estes resultados mimetizam os achados do estudo de maior dimensão Improved Reduction of Outcomes: Vytorin Efficacy International Trial (IMPROVE-IT).37 A hepatotoxicidade associada à terapêutica com ezetimiba é muito rara e esta não parece condicionar sintomas musculares.38
Os inibidores da pró-proteína convertase subtilisina quexina tipo 9 (iPCSK9), dos quais os anticorpos monoclonais alirocumab e evolocumab foram os primeiros a serem aprovados pelas autoridades regulamentares, reduzem o C-LDL em cerca de 60%.39-41 Os iPCSK9 atuam impedindo a destruição dos recetores do C-LDL nos lisossomas induzida pela PCSK9, o que permite a sua reciclagem para a superfície do hepatócito. Uma meta-análise com 28 estudos de comparação de iPCSK9 com placebo e 62.281 participantes, em que os estudos Further Cardiovascular Outcomes Research with PCSK9 Inhibition in Subjects with Elevated Risk (FOURIER) e Evaluation of Cardiovascular Outcomes After an Acute Coronary Syndrome During Treatment With Alirocumab (ODYSSEY-OUTCOMES) contribuíram com a maioria dos doentes, mostrou uma redução significativa de eventos CV (0,83; 0,78 a 0,87).39,40,42Não se observaram diferenças no risco de morte CV (0,94; 0,83-1,07). No entanto, a exposição mais prolongada ao iPCSK9 no FOURIER Open Label Extension mostrou uma redução significativa de 23% no risco de morte CV (HR 0,77; IC 95% 0,60-0,99).43A terapêutica com iPCSK9 pode originar reação no local da injeção (2 a 4%), geralmente ligeira, e não se associou a maior risco de toxicidade hepática, muscular ou diabetes de novo.42
As resinas sequestrantes de ácidos biliares permitem uma redução do C-LDL, na sua dose máxima, de aproximadamente 18%-25%, contudo os seus efeitos adversos gastrointestinais limitaram muito a sua utilidade prática.2,33Os fibratos têm como finalidade a diminuição dos triglicerídeos e não estão recomendados na prevenção da DCVA, podendo ser considerados nos indivíduos tratados com estatinas e cujos alvos de c-LDL foram atingidos, mas que mantêm valores de triglicerídeos superiores a 200 mg/dL. Os óleos de peixe são muito ricos em ácidos gordos poli-insaturaturados ómega-3 e, em doses terapêuticas, permitem a redução dos triglicerídeos, podendo ser considerados (eicosapente de etilo) em doentes de alto ou muito alto risco com triglicerídeos superiores a 135 mg/dL, apesar da terapêutica com estatinas e alterações do estilo de vida.2
As guidelines da European Society of Cardiology (ESC) de 2021 para a prevenção CV recomendam a implementação de medidas de estilo de vida saudável e intensificação gradual da terapêutica hipolipemiante com estatinas, ezetimiba e iPCSK9 para o atingimento dos alvos terapêuticos.2 Não obstante esta abordagem terapêutica, os alvos lipídicos permanecem inalterados face às guidelines da ESC e da European Atherosclerosis Society de 20196 para as dislipidemias, fixados para o C-LDL em <55 mg/dL nos indivíduos de risco muito elevado, <70 mg/dL nos de risco elevado, e uma redução ≥ 50% no C-LDL, pelo que deve ser prescrita terapêutica redutora de lípidos de alta intensidade.44 Os doentes com HF são considerados de risco CV elevado ou muito elevado na presença de outro fator de risco CV major.2
Apesar da eficácia demonstrada pelas estatinas e ezetimiba na redução do C-LDL e do risco de DCVA a longo prazo, um grande número de doentes não atinge os alvos terapêuticos recomendados. A introdução dos anticorpos monoclonais iPCSK9 é um marco no tratamento da hipercolesterolemia, pois a sua administração leva a reduções na concentração de C-LDL sem precedentes, sendo, no entanto, a sua utilização em Portugal residual, o que nos obriga a analisar criticamente a efetividade na prática clínica e a integrar a inovação.
CONTROLO DA HIPERCOLESTEROLEMIA NO MUNDO REAL
Apesar das recomendações de controlo lipídico serem claras, os estudos nacionais e internacionais têm sido reiteradamente desanimadores.
O estudo European Action on Secondary and Primary Prevention by Intervention to Reduce Events V da ESC-EURObservational Registry Programme (ESC-EORP EUROASPIRE V) realizado em 2016-2017 em 27 países europeus, que incluiu 8261 doentes que tiveram alta hospitalar após síndroma coronária aguda ou procedimento de revascularização coronário, mostrou que 71% tinham o C-LDL acima do alvo (≥70 mg/dL) recomendado pelas guidelines da ESC contemporâneas, metade dos doentes não foram medicados com estatina de intensidade elevada e 16% não receberam qualquer terapêutica hipolipemiante.45 Mais recentemente, o estudo EU-Wide Cross-Sectional Observational Study of Lipid-Modifying Therapy Use in Secondary and Primary Care (DA VINCI), realizado entre junho de 2017 e novembro de 2018 numa população de 18 países europeus medicada com terapêutica hipolipemiante em diferentes contextos clínicos, mostrou que apenas 54%dos indivíduos atingiu os valores de C-LDL recomendados pelas guidelines da ESC de 2016, e só 33% atingiu o objetivo do C-LDL baseado no risco pelas guidelines de 2019.46 Os dados do registo Francês de HF, relativos a 781 doentes com diagnóstico clínico (Dutch Lipid Clinic Network score ≥ 6) ou genético entre Novembro 2015 e Março 2018, revelaram que apenas 48% destes doentes estavam medicados com uma estatina. O valor médio do C-LDL era de 144 ± 75 mg/dL sob estatina de intensidade elevada e 223 ± 85 mg/dL naqueles sem terapêutica hipolipemiante.47
O Dyslipidemia International Study (DYSIS) realizado entre Abril de 2008 e Fevereiro de 2009 em 12 países europeus, incluiu 916 doentes tratados com estatinas em Portugal e revelou que na nossa população 62,9% dos indivíduos não apresentava o valor recomendado de C-LDL.48 No estudo epidemiológico observacional transversal Prevalência de Fatores de Risco Cardiovascular na População Portuguesa (eCOR) efetuado em 5 regiões de Portugal Continental entre 2012 e 2014, 31,5% dos participantes apresentavam C-LDL≥160 mg/dL mesmo estando 71,4% sob terapêutica hipolipemiante.49 O estudo DISparidade de GÉNero na abordagem dos LÍPIDos (DISGEN-LIPID), conduzido em Portugal entre Novembro de 2014 e Novembro de 2015, incluiu 368 indivíduos maioritariamente de risco CV elevado e muito elevado sob terapêutica hipolipemiante e revelou que apenas 44% atingiu C-LDL <100 mg/dL. A proporção de doentes com doença vascular ou diabetes que atingiu o valor alvo <70 mg/dL foi de 47%.50 Os dados contemporâneos do mundo real dos cuidados de saúde primários provenientes do estudo Lipid Management in Portugal (LATINO) são ainda mais preocupantes. Apenas atingiram o alvo recomendado do C-LDL 7% das pessoas com risco CV elevado, 3% das com risco CV muito elevado e 5% das com DCVA estabelecida, apesar de 71% estarem sob tratamento hipolipemiante.51,52O panorama da HF no nosso país também não é muito diferente da realidade europeia e mundial, com apenas 3,8% dos doentes com diagnóstico genético, para uma prevalência estimada de 1 caso/500 indivíduos.53
O evidente descontrolo do C-LDL nas populações de risco gera uma necessidade de otimizar a translação do conhecimento para a prática clínica diária e de outras intervenções para a prevenção de eventos cardiovasculares. É imperativo atingir e manter os alvos de C-LDL ao longo do tempo.
Estão identificadas várias barreiras ao adequado controlo lipídico, destacando-se relativamente ao doente a baixa adesão ao tratamento,50,54-56a relutância em aceitar a terapêutica de alta intensidade,46 a preocupação com os efeitos adversos dos fármacos46,57como as reações adver-sas musculares das estatinas,46 a parca literacia em saúde existente em Portugal,58 a contrainformação, e a preocupação com o custo do fármaco, ampliada pelas baixas taxas de comparticipação (37% no caso da terapêutica hipolipemiante, em comparação com 90% para os anti-diabéticos não insulínicos e 69% para os anti-hipertensores). Por parte do médico, aponta-se a inércia terapêutica, com o uso farmacológico em dose subótima e a não intensificação da terapêutica (estratégia fire and forget),50,56,57,59a necessidade de atualização contínua das recomendações,46 e a inadequada comunicação entre médicos e doentes.57 Quanto aos fármacos mais recentes, um dos entraves apresenta-se no custo elevado 46 dos iPCSK9. Apesar das guidelines da ESC definirem quais os doentes que devem receber um iPCSK9 com base na evidência científica, o seu acesso em Portugal está muito limitado por critérios cegos, olhando para custos e ignorando os benefícios. Para superar as barreiras mencionadas poderiam ser desenvolvidas algumas estratégias, tais como melhorar a educação para a saúde de toda a população, tentar combater a contrainformação que gera o efeito nocebo e envolver os profissionais de saúde na promoção da adesão ao tratamento.
A própria doença, ao ser “silenciosa” durante um longo período de tempo, “não se vê e não se sente”, limita o seu diagnóstico à realização de um estudo analítico e/ou imagiológico (score de cálcio coronário, doppler carotídeo, entre outros) e propicia a desvalorização sistemática pelos doentes e profissionais de saúde.
É igualmente necessário o contínuo desenvolvimento de terapêuticas inovadoras que permitam manter ou melhorar a eficácia das existentes, mas com maior efetividade no controlo lipídico.
INCLISIRAN: UM NOVO PARADIGMA NO TRATAMENTO DA HIPERCOLESTEROLEMIA
Inclisiran é o primeiro fármaco que tem por alvo diminuir a síntese de PCSK9. É uma molécula sintética de ácido ribonucleico de interferência (small interfering RNA, siRNA),60 de cadeia dupla, com 44 nucleótidos conjugada com um complexo ternário de N-acetilgalactosamina, que orienta a sua captação pelo hepatócito através dos recetores asialoglicoproteicos após administração subcutânea.60 Inclisiran liga-se ao complexo intracelular RNA-induced silencing complex (RISC) e ativa a clivagem do RNA mensageiro que codifica para a PCSK9 (Fig. 1). A inibição da produção da PCSK9 diminui a sinalização dos recetores LDL para degradação lisossómica, aumentando a sua densidade à superfície do hepatócito. Apesar do seu tempo de semi-vida plasmática curto (9,6 horas), apresenta uma longa duração de ação compatível com a administração semestral.60
Adaptado de: Sinning D, et al. Low-density Lipoprotein-Cholesterol Lowering Strategies for Prevention of Atherosclerotic Cardiovascular Disease: Focus on siRNA Treatment Targeting PCSK9 (Inclisiran). Curr Cardiol Rep. 2020;22:176.62
Inclisiran administrado na dose de 300 mg por via subcutânea (SC) nos dias 1 e 90 e, posteriormente, a cada seis meses reduziu o C-LDL em 51% vs placebo 60 dias após a última administração, em 3660 doentes, 73% medicados com estatina de intensidade elevada e 14% com ezetimiba, incluídos nos estudos ORION-9, ORION-10 e ORION-11 (Tabela 2).7 Observaram-se reduções de 37% no CT, 10% nos TG, 41% na ApoB e 21% na Lp(a) e um aumento de 5,2% no C-HDL.7,61
A utilização de inclisiran revelou-se segura nos estudos controlados com placebo já concluídos, com uma incidência de efeitos adversos, de efeitos adversos graves e de toxicidade hepática ou muscular sobreponível à do placebo. A administração de inclisiran por via SC pode originar uma reação local, como eritema ou tumefação, geralmente ligeira, com uma incidência que variou entre 2,1% e 10,4%.7,61
Estão em curso 2 grandes ensaios clínicos para avaliar o impacto de inclisiran na redução de eventos CV (Tabela 2). No entanto, uma análise conjunta recente dos estudos de Fase III ORION-9, -10 e -11 durante 18 meses revelou que a adição de inclisiran às terapêuticas hipolipemiantes de base foi associada a uma probabilidade 26% menor de eventos CV major [OR (IC 95%)): 0,74 (0,58, 0,94)] e a uma tendência favorável de menor risco de EAM fatal e não fatal em comparação com placebo.63
A Agência Europeia do Medicamento (EMA) aprovou inclisiran em dezembro de 2020 para o tratamento de adultos com hipercolesterolemia primária (familiar heterozigótica e não familiar) ou dislipidemia mista, em combinação com uma estatina ou uma estatina associada a outras terapêuticas hipolipemiantes, em doentes que não atingem os valores recomendados de C-LDL com a dose máxima tolerada de estatina, ou isoladamente ou em combinação com outras terapêuticas hipolipemiantes em doentes intolerantes a estatinas, ou nos quais as estatinas estejam contra-indicadas.64
Tendo em conta as necessidades não satisfeitas na gestão da terapêutica da dislipidemia, a eficácia a não se transpor para a efetividade no mundo real, inclisiran poderá fazer parte da mudança necessária. Este fármaco parece representar a oportunidade que sempre esperamos para o real controlo lipídico dos nossos doentes a longo prazo, e dos seus benefícios na prevenção e controlo da DCVA. A sua administração bianual, com uma longa duração do seu efeito e com efeitos adversos similares ao placebo, permitirá não só vencer a barreira persistente da baixa adesão dos doentes ao plano terapêutico como também manter níveis estáveis e controlados de C-LDL a longo prazo.
Contudo, esta perspetiva otimista que inclisiran traz para a dislipidemia poderá ter outro desfecho. De forma similar ao que aconteceu com os anticorpos monoclonais iPCSK9, as restrições ao seu uso de forma generalizada na população além do indicado por estudos de custo-efetividade poderão impedir a transposição para o mundo real da sua elevada eficácia e promissora efetividade.
Conclusão
A DCVA, sendo a principal causa de mortalidade, morbilidade e incapacidade não só a nível mundial, mas também em Portugal, acarreta um elevado custo económico para o sistema de saúde, o que aliado à perda de produtividade, representa um grave problema de saúde pública.
Numerosos estudos epidemiológicos, clínicos e genéticos geraram evidência extensa que o C-LDL causa inequivocamente DCVA. O benefício na redução de DCVA fatal e não fatal é independente do tipo de estratégia usada para redução do C-LDL, é tanto maior quanto mais prolongada for a exposição a níveis mais baixos de C-LDL e não existe um limiar a partir do qual cesse o benefício de o reduzir. O risco associado ao C-LDL é cumulativo e gerou o conceito de anos de colesterol, que atesta a importância da sua redução o mais precocemente possível. A HF, pelos níveis elevados de C-LDL presentes desde a infância, é o paradigma deste conceito.
As terapêuticas disponíveis na prática clínica para reduzir o C-LDL, as estatinas, a ezetimiba e os anticorpos monoclonais iPCSK9, são eficazes, seguras e demonstraram reduzir a DCVA. A combinação dos três agentes gera uma redução no C-LDL que atinge os 85%, mas o controlo deste fator de risco é claramente insuficiente a nível global e também em Portugal. Estão identificados fatores relacionados com o doente, com o médico e com o tratamento que justificam a escassa translação da evidência científica para o mundo real. Para além da inércia terapêutica por parte do médico e do custo elevado dos iPCSK9, a deficiente adesão ao tratamento pelo doente é um fator crítico para a efetividade daquelas terapêuticas.
Inclisiran atua por inibição da síntese da PCSK9 através do mecanismo de RNA de interferência. Tem uma eficácia e segurança sobreponível à dos anticorpos monoclonais iPCSK9, mas a grande vantagem de possuir um efeito prolongado que permite a sua administração a cada 6 meses por via SC. Neste sentido, inclisiran poderá ter um papel inovador e determinante na eliminação potencial da deficiente adesão ao tratamento com as terapêuticas convencionais e aumentar a efetividade na redução do C-LDL. Admitindo que, optimizando as terapêuticas disponíveis e introduzindo os novos agentes, será possível reduzir, de forma sustentada, o C-LDL em cerca de 50% de uma parte significativa da população, seriam esperadas reduções substanciais de morbi-mortalidade e custos económicos, justificando-se assim políticas de saúde inovadoras.