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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.31 no.3 Lisboa set. 2024  Epub 26-Set-2024

https://doi.org/10.24950/rspmi.2592 

HISTÓRIA DA MEDICINA / HISTORY OF MEDICINE

Raiz de Cascavel: Histórias Cruzadas na Medicina Norte-Americana Colonial (Séc. XVIII)

Rattlesnake Root: Crossed Histories in Colonial North American Medicine (18th Century)

1CHAM - Centro de Humanidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, Portugal


Resumo

Este texto explora dois percursos de vida que se cruzaram sob o signo da raiz de cascavel, uma planta nativa correntemente usada pelos índios Seneca na Virgínia, mas só descoberta e aplicada na medicina de origem europeia já na segunda metade do século XVIII. John Tennent e João de Sequeira comungavam a origem europeia, a influência da medicina boerhaaviana na sua prática médica e o entusiasmo pelas propriedades terapêuticas da raiz de cascavel. Tennent, ao estabelecer-se na Virgínia, tomou conhecimento de como os Seneca usavam esta raiz para curar mordeduras de cascavel e experimentou aplicá-la no tratamento de doenças respiratórias, em particular pleurisias e pneumonias; impressionado com os bons resultados, divulgou sua descoberta na América e na Europa, não sem gerar controvérsia entre a comunidade médica. Sequeira, médico com origens familiares no Brasil e uma infância marcada pela perseguição inquisitorial, estudou medicina em Leiden sob a influência da escola boerhaaviana; acabou por se radicar em Williamsburg, cidade onde começou a usar a raiz de cascavel como um elemento essencial na sua prática médica quotidiana, tal como deixou patente nas suas anotações sobre as doenças prevalentes na Virgínia. O enfoque nas propriedades desta planta no tratamento de uma variedade de patologias é revelador da valorização das práticas médicas indígenas e da busca por soluções terapêuticas inovadoras na época.

Palavras-chave: Fitoterapia; História Século XVIII; Índios Norte-Americanos; Medicina Tradicional; Plantas Medicinais.

Abstract

This text explores two life paths that crossed under the sign of rattlesnake root, a native plant commonly used by the Seneca in Virginia but only discovered and applied in European-origin medicine in the second half of the 18th century. John Tennent and João de Sequeira shared their European roots, the influence of boerhaavian medicine on their medical practice and the enthusiasm for the therapeutic properties of rattlesnake root. Tennent, on settling in Virginia, learnt how the Seneca used this root to cure rattlesnake bites and used it to treat respiratory diseases, particularly pleurisy and pneumonia; amazed with the good results, he disseminated his discovery in America and Europe, although generating some controversy in the medical community. Sequeira, a doctor with family origins in Brazil and a childhood marked by inquisitorial harassment, studied medicine in Leiden under the influence of the boerhaavian school; he ended up moving to Williamsburg, where he began to use rattlesnake root as an essential element in his daily medical practice, as he made clear in his notes on the diseases prevalent in Virginia. The focus on the properties of this plant in the treatment of a variety of pathologies is indicative of the valorization of indigenous medicine and the search for innovative therapeutic treatments at the time.

Keywords: History, 18th Century; Indians, North American; Medicine, Traditional; Phytotherapy; Plants, Medicinal

Introdução

Em 1774, Benjamin Rush (1746-1813) era um dos mais reputados médicos da Pensilvânia antes de se imortalizar como um dos pais fundadores da nova nação. No ensaio An Inquiry into the Natural History of Medicine among the Indians of North-America; and a Comparative View of their Diseases and Remedies with those of Civilized Nations, Rush rejeitou qualquer contributo da medicina indígena para a evolução da materia medica europeia. Mudaria de ideias anos depois, rendido às propriedades terapêuticas de plantas nativas como a ipecacuanha (Psychotria ipecacuanha) ou a erva-tintureira (Phytolacca americana).1

Várias décadas antes, em 1725, John Tennent (c. 1700-1748), um médico inglês recém-chegado à Virgínia, deixara-se maravilhar pelas propriedades terapêuticas de uma planta nativa usada pelos índios Seneca para o tratamento de mordidas de cascavel, a Polygala senega. Os atributos conferiram-lhe um nome mais popular, rattlesnake root, raiz de cascavel. Procurando a fama e a fortuna, Tennent não hesitou em disseminar a sua descoberta junto dos círculos médicos americanos e europeus. Por essa altura, um jovem português, João de Sequeira, estudava em Leiden, então um dos principais pólos da medicina europeia setecentista, que florescera sob a influência de Hermann Boerhaave (1668-1738). O interesse pelo tratamento de doenças pulmonares levaram Sequeira até à medicina indígena, subvalorizada por Rush mas na qual Tennent alicerçou o volte-face da sua carreira. A raiz de cascavel consagrou esse encontro. Nas próximas linhas, irei explorar histórias cruzadas em torno de um novo tratamento que desafiou as lógicas de centro e periferia e os preconceitos em relação a estruturas de conhecimento não-europeias.

A raiz da cura

Em meados do século XVIII, o sistema boerhaaviano dominava a prática médica na Europa e fora do Velho Continente. Boerhaave havia revolucionado o ensino e o exercício da medicina sob o signo da Nova Ciência e do método científico. Seguindo os princípios da iatromecânica, o organismo humano era concebido como um complexo de vasos e tubos que condicionavam a circulação dos fluidos, cuja regularidade ou irregularidade determinava o estado de saúde ou doença. Sangrias, eméticos, purgantes, vesicatórios, sudoríficos e ptialismicos eram aplicados para equilibrar os líquidos e expulsar os maus humores geradores de doença. A partir de Leiden, o sistema de Boerhaave disseminou-se por toda a Europa e não só.2 Acabaria por se popularizar na América Britânica, onde, em meados de setecentos, a maioria dos médicos em actividade tinha como alma mater a Universidade de Edimburgo, cujo curso de medicina fora instituído por antigos alunos da academia holandesa, discípulos de Boerhaave.3

Não sabemos se John Tennent teria estudado em Edimburgo, Leiden ou noutra instituição. O passado do médico inglês antes de se estabelecer na Virgínia em 1725 é quase desconhecido. Certo era que advogava o sistema boerhaaviano e os anos de prática médica na América Britânica consolidaram essa adesão. Numa epístola dirigida ao médico inglês Richard Mead (1673-1754) em 1742, Tennent afirmou que todas as doenças prevalentes na colónia derivavam da “viscosidade e coagulação do sangue”. Logo, a terapêutica residia na administração de um anticoagulante eficaz. Por essa data, Tennent dizia já o ter encontrado.4

Na Virgínia, Tennent deparou-se com uma flora local diversa e cujas aplicações na prática médica eram ainda incipientes. Tal contrastava com o conhecimento e o uso dado pelos povos nativos a algumas espécies, como uma raiz usada pelos Senecas no tratamento da mordedura de cascavel. O próprio Tennent teve a oportunidade de experienciar as suas propriedades quando duas vítimas lhe chegaram às mãos. Cedo, ele traçou um paralelo entre os sintomas destes pacientes e os observados em quem padecia de determinadas doenças respiratórias - o pulso acelerado, a dificuldade respiratória, a tosse e o sangue coagulado na expectoração. Assim, Tennent experimentou administrar a raiz de cascavel no tratamento destas enfermidades. O sucesso entusiasmou-o a dar a conhecer a sua descoberta ao mundo.4

Em 1736, publicava An Essay on the Pleurisy, onde defendia que a causa da pleurisia residia na “viscosidade do sangue” (“viscidity of the blood”) e na sua estagnação nas paredes da veia arterial e na pleura, causando inflamações e sintomas como dificuldade em respirar, dores no peito, tosse, febre e pulso intermitente. Enfatizando as propriedades anti-coagulantes da raiz de cascavel, Tennent apresentava-a como um remédio eficaz no tratamento não só da pleurisia, como também de um sem-número de patologias.3

Este tipo de propaganda gerou controvérsia entre a comunidade médica da Virgínia e valeu-lhe acusações de embuste. Críticas e respectivas respostas disseminaram-se pela imprensa. Por exemplo, a 16 de Junho de 1738, um entusiasta da descoberta de Tennent publicava uma carta aberta na Virginia Gazette, defendendo as propriedades terapêuticas da raiz de cascavel, a qual ele dizia ter experimentado no tratamento das crises de gota de que sofria desde os 13 anos de idade.5

Por essa altura, Tennent já havia tentado introduzir o uso da raiz de cascavel no Velho Continente. Em 1737, regressou à Grã-Bretanha levando consigo amostras da planta, as quais entregou à Royal Society de Londres, a mais prestigiada sociedade científica da altura. Em carta ao presidente Hans Sloane (1660-1753), Tennent enfatizou que as propriedades eméticas, catárticas, diuréticas e diaforéticas conferiam à raiz qualidades inestimáveis no tratamento de várias doenças.6 Além dos círculos médicos ingleses, tentou conquistar a aprovação da Académie des Sciences de Paris, para a qual também remeteu amostras. A boa recepção colhida junto dos pares do Velho Continente não se reflectiu na comunidade médica virginiana. Talvez por esta razão, Tennent acabaria por abandonar a América e radicar-se definitivamente em Inglaterra.7

Mas este não foi o fim da história da raiz de cascavel.

Figura 1.  Raiz de cascavel.  

João de Sequeira, um percurso singular

Enquanto Tennent dava a conhecer a sua descoberta na Europa, um jovem português frequentava o curso de Medicina na Universidade de Leiden. Chamava-se João de Sequeira e tinha iniciado os estudos em Setembro de 1736. João havia nascido no seio de uma família de cristãos-novos oriundos do Rio de Janeiro que, no início do século e ainda antes do seu nascimento, foram forçados a fazer-se ao mar rumo a Lisboa. A Inquisição, voraz no encalço das alegadas “práticas judaizantes” da sua família e de tantos outros fluminenses a quem a remota ascendência judaica os tornava suspeitos a priori, prendeu o seu pai logo em 1706 e embarcou-o para Portugal, rumo aos cárceres do Palácio dos Estaus.8 Francisco de Sequeira Machado, também médico, abandonou assim o seu Brasil natal, fazendo-se acompanhar da família. Seria em Lisboa que João acabaria por nascer.

A prisão do Dr. Sequeira Machado não fez cessar a sede do “fero tribunal” e, nos anos seguinte, a família continuou acossada pela Inquisição. Por alturas do nascimento de João de Sequeira, em 1712, o tribunal capturou o seu irmão mais velho, José de Sequeira Machado - tinha 18 anos de idade e estudava Gramática na Universidade de Coimbra.9 Anos mais tarde, seria a ele que João viria a dedicar a sua dissertação de licenciatura, chamando-o o “mais sábio dos homens”. Segundo Sequeira, o irmão José estaria então em Goa e era o físico-mor do Vice-Rei da Índia.10

No momento em que João de Sequeira se encontrava a estudar em Leiden, a sua família já havia desistido de resistir à constante perseguição inquisitorial e decidido abandonar reino português. No início da década de 1730, Francisco de Sequeira Machado embarcou para Londres. Continuou médico, mas deixou de ser católico e até mesmo Francisco. Chegado à capital britânica, abraçou o Judaísmo e adoptou um novo nome, Abraham. Foi sob esta nova identidade que, a 4 de Março de 1731, voltou a casar com a esposa Catarina de Miranda - então renomeada Sarah - na sinagoga portuguesa de Londres, a Sha’ar Hashamayim, em Bevis Marks.11 Não sabemos se João teria acompanhado os pais na mudança para Londres. É bem provável que sim, dada a sua tenra idade e o facto de se dizer “Anglo-Britannus” no momento da matrícula em Leiden em 1736.12

Quando Sequeira ingressou na universidade, Boerhaave já estava na recta final da sua carreira e da sua vida, mas, ainda assim, continuava uma influência incontornável em Leiden. Durante os dois anos e meio de estudo, Sequeira bebeu das teorias de Boerhaave pela voz dos seus discípulos e experienciou o novo método de ensino clínico implementado pelo médico holandês. No Hospital de Santa Cecília, Sequeira e os colegas acompanhavam o professor na visita aos doentes, durante a qual este sondava o historial clínico e os sintomas do paciente e convidava os alunos a compararem os dados recolhidos com um sistema patogénico pré-estabelecido, seguindo-se o diagnóstico, o prognóstico e, finalmente, a terapêutica.13 A “medicina de cabeceira” de Boerhaave viria a estar sempre presente na prática médica de João de Sequeira, como bem testemunham as anotações que deixou da sua vida clínica na Virgínia.

Voltamos a reencontrar Sequeira - já com o nome anglicizado para John de Sequeyra - em Williamsburg em 1745, cerca de seis anos após terminados os estudos em Leiden. Tendo perdido o diploma durante a viagem para América, na sequência de um ataque da armada francesa contra o navio onde seguia, o jovem médico viu-se impedido de exercer oficialmente a sua profissão nos primeiros anos na colónia britânica. Porém, as suas anotações revelam que, na prática, Sequeira continuou a atender pacientes mesmo antes de ter em mãos a segunda via do diploma, emitida em 1749.12 Logo em 1745, Sequeira anotava que o Outono tinha trazido febres intermitentes (provavelmente, malária) e o Inverno pleurisias, pneumonias e febres parasitárias.14

Apesar de ser uma pequena cidade colonial, Williamsburg albergava um número elevado de médicos. O ambiente era competitivo, mas Sequeira conseguiu vingar. Entre os seus pacientes encontravam-se figuras ilustres da sociedade virginiana como o Barão de Botetourt, governador da Virgínia, ou a enteada de George Washington, Martha Park Custis.12 Thomas Jefferson conhecia-o bem e conta a lenda que teria sido Sequeira o primeiro a alertá-lo para os benefícios do tomate, até então só usado pelos virginianos como elemento decorativo e não alimento.15 A sua reputação profissional seria devidamente reconhecida em 1773, quando foi nomeado visiting physician do recém-inaugurado Hospital for the Maintenance of Idiots, Lunatics, and Persons of Insane or Disordered Minds em Williamsburg, o primeiro na América do Norte destinado ao tratamento de doenças mentais. No ano seguinte, Sequeira entrava para a direcção do hospital, um cargo que exerceu até à data da sua morte.16

As razões que teriam levado Sequeira a fixar-se em Williamsburg, Virginia, permanecem uma incógnita. O seu percurso desafia os padrões tradicionais dos movimentos migratórios que definiram a diáspora sefardita, suportada em redes familiares e solidariedades etno-religiosas. Segundo sabemos, João não tinha nenhum parente a viver na Virgínia e não existia qualquer comunidade judaico-portuguesa estabelecida nesta colónia, ao contrário do que acontecia em Nova Iorque, Newport, Charleston ou Savannah.

Teria Sequeira tomado conhecimento, durante os estudos em Leiden, das milagrosas propriedades da virginiana raiz de cascavel ovacionadas por John Tennent? Teria almejado o jovem médico a testemunhar in loco essa nova terapêutica? A hipótese é tentadora mas escasseiam as provas documentais que a suportem. A dissertação de Sequeira sobre a Peripneumonia Vera indicia um especial interesse nas doenças respiratórias, para as quais Tennent alegava ter encontrado um tratamento eficaz na raiz dos Senecas. Porém, em nenhuma passagem, Sequeira menciona a nova descoberta. Não obstante, já na Virgínia, a raiz de cascavel viria a ser um dos elementos mais copiosamente usados pelo médico português na sua prática clínica.

Figura 2 Retrato de John de Sequeira, por William Dering. Óleo em tela. Original pertencente ao Winterthur Museum and Country Estate. Cópia fotográfica em domínio público via Wikimedia Commons. 

Tratar as doenças da Virgínia

Como já referimos atrás, desde a chegada à Virgínia, Sequeira começou a anotar, ano após ano, as doenças prevalentes na colónia. O manuscrito, conservado entre os papéis do médico John Galt conservados na Colonial Williamsburg Foundation, só viria a ser publicado em 1972 por Harold Gill. A partir de então, vieram à luz outras anotações escritas pela mão de Sequeira e decorrentes da sua actividade clínica, nomeadamente um breve resumo dessas anotações anuais17 e uma lista das enfermidades mais comuns na Virgínia, acompanhadas pela respectiva descrição, sintomas e terapêuticas aplicadas no seu tratamento.16 Estes manuscritos destinar-se-iam simplesmente ao uso do próprio Sequeira e provavelmente também de aprendizes e colegas a quem desejaria transmitir o conhecimento adquirido ao longo de décadas de experiência - os registos compreendem-se entre 1745 e 1781.

A raiz de cascavel surge como um elemento quase om-nipresente nestes manuscritos. Sequeira aconselha um preparado de raiz de cascavel com espermacete e nitro para o tratamento das “febres inflamatórias” que assolavam a colónia no Inverno e na Primavera. Já no Verão e no Outono, eram as febres de tipo “intermitente” e “remitente” que causavam maiores danos no território e, nestes casos, as terapêuticas aconselhadas passavam por eméticos, purgantes, soluções salinas e quinaquina. Além das febres sazonais, outras patologias prevaleciam na colónia, como “febres de tipo misto” (ou seja, remitentes e intermitentes), “febres nervosas” (“slow-nervous fevers”, provavelmente tifóide), escarlatina, disenteria, “febre biliosa maligna” (“malignant fever of the bilious”, febre amarela), sarampo, febres parasitárias, amigdalite (“rooten-quinsey”) e tosse convulsa, as últimas três particularmente graves entre as crianças.17 Em algumas destas patologias, a raiz de cascavel revelava-se muito eficaz. Por exemplo, Sequeira usou decocção da raiz para tratar uma vaga de sarampo e uma febre contagiosa desconhecida que vitimou vários trabalhadores escravizados nas plantações da Virgínia no Outono 1759.14 Raiz de cascavel fervida com casca de romã e alguns grãos de coral foi a receita aplicada no tratamento nas febres parasitárias de 1762; enquanto um electuário de raiz, quinaquina e cinábrio de antimónio (sublimado de antimónio estibnite com sulfeto de mercúrio) serviu com sucesso enquanto purga nas febres quartãs em 1764.14

A importância da raiz de cascavel na materia medica apli-cada por Sequeira surge evidenciada na sua lista das doenças prevalentes da Virgínia, na qual esta planta é a única substância descrita individualmente no final do manuscrito. Escreve o médico que a raiz, fervida com uma pequena quantidade de canela, tem o poder de atenuar a viscosidade do sangue e estimular os vasos. Por vezes, Sequeira acrescentava também espermacete e nitro a este preparado, do qual administrava duas colheres a cada quatro horas a adultos e quantidades menores a crianças. Combinada com sangria, a decocção de raiz era benéfica no tratamento da pleurisia e da asma. No caso da pneumonia, a utilização deveria ser mais cuidadosa - se aplicada numa fase inicial da doença, a raiz constituía um poderoso expectorante, bastante favorável no tratamento; porém, no momento em que a inflamação evoluía para supuração, tornava-se perigosa a sua administração.

Reumatismo, contusões, febres intermitentes (em substituição da quinaquina), febres parasitárias, amenorreia, dropsia, hemiplegia - a variedade de patologias em que Sequeira dizia ter aplicado preparados de raiz de cascavel com bons resultados é vasto e corresponde a uma parte significativa das doenças prevalentes na colónia.16 Tal como Tennent, Sequeira estava convicto de ter encontrado neste simples da medicina indígena a cura para (quase) todos os males.

Conclusão

Não sabemos o que teria levado João de Sequeira a trocar continente europeu pela Virgínia colonial, mas é certo que esta mudança determinou uma transformação profunda na sua prática clínica. O que aprendera nos bancos da Universidade de Leiden e à cabeceira dos pacientes internados no Hospital de Santa Cecília continuou a influenciar a forma como ele via e interpretava a doença e a cura, mas a chegada a um território desconhecido, com condições climatéricas e patogénicas únicas, incutiu-lhe novos conhecimentos baseados na experiência e no contacto com os contextos locais. Continuamos a desconhecer se foi em Williamsburg que Sequeira ouviu falar pela primeira vez da raiz de cascavel e das suas propriedades, ou se já teria lido os escritos ou escutado rumores sobre a descoberta de Tennent ainda na Europa. O mistério fica em aberto. Certa era a forma como o médico português valorizava as qualidades terapêuticas desta planta nativa. Na Virgínia, onde encontrou um novo lar e o repouso derradeiro, Sequeira descobriu a raiz da cura das doenças que haviam instigado a sua curiosidade científica ainda nos verdes anos.

REFERÊNCIAS

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Conflitos de Interesse: Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; Sem revisão externa por pares.

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Provenance and Peer Review: Commissioned; Without externally peer-reviewed.

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Recebido: 21 de Março de 2024; Aceito: 22 de Março de 2024

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