Introdução
A hospitalização domiciliária é considerada uma alternativa ao internamento convencional para doentes agudos ou crónicos agudizados.1,2Constitui uma modalidade de assistência que possibilita o tratamento de doença aguda no domicílio, assegurando cuidados com diferenciação, complexidade e intensidade de nível hospitalar, dependendo da vontade expressa dos doentes,1,3-5aplicado às patologias elegíveis,2 sempre que cumpram critérios clínicos, geográficos e sociais.6,7
Para o internamento dos doentes devem estar garantidos os critérios de admissão definidos na norma da Direção Geral de Saúde (DGS) nº020/2018,8 que passam pela estabilidade clínica da patologia aguda, com comorbilidades controláveis no domicílio, a presença de um cuidador, habitação com condições de higiene e segurança e pertencer à área geográfica de influência da unidade de hospitalização domiciliária (UHD) de referência.6
As vantagens associadas a esta modalidade de internamento são várias, nomeadamente a significativa redução de complicações inerentes ao internamento convencional (infeções nosocomiais, quedas e episódios de síndrome confusional aguda).6,7A comunicação que se estabelece entre a equipa médica, o doente e o cuidador principal permite fomentar a educação e promoção para a saúde de forma personalizada,5 prevenindo a institucionalização ou abandono7 e a humanização dos cuidados prestados. A UHD também gera impacto na sustentabilidade do SNS uma vez que reduz os custos e contribui para a solução do problema de sobrelotação5,7,9,10de camas de agudos.
Encontra-se descrita na literatura, resistência junto do corpo médico em referenciar doentes para UHD, quer pelo receio de que os cuidados prestados no domicílio sejam inferiores aos prestados no hospital,11 quer pela apreensão que surjam complicações que possam exigir o retorno hospitalar e o mesmo não seja ágil. Uma forma de colmatar esta insegurança por parte de quem referencia os doentes, poderá passar pela divulgação dos protocolos e modo de atuação11 assim como pela publicação de indicadores de qualidade e desempenho das diferentes UHD em articulação com o Núcleo de Estudos de Hospitalização Domiciliária da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.
O retorno hospitalar é definido pela transferência de um doente internado no domicílio para o meio hospitalar durante o internamento em UHD. Distingue-se do reinternamento pelo facto deste último ocorrer após a alta da UHD. Pode ocorrer pelos mais variados motivos, tais como, agravamento clínico, necessidade de estudo etiológico ou intervenção impossível de realizar em contexto de UHD, falta de retaguarda social ou recusa do doente/família em continuar o internamento domiciliário.
Dada a parca informação existente na literatura acerca dos retornos hospitalares, os autores decidiram delinear um estudo observacional retrospetivo para aferir a sua incidência e investigar possíveis fatores que se associassem com o retorno.
Material e Métodos
DESENHO E CONTEXTO DO ESTUDO
Estudo observacional retrospetivo de doentes admitidos na UHD do Centro Hospitalar do Baixo Vouga (CHBV), em Portugal, durante um período de dois anos (entre 1 de maio de 2019 e 30 de abril de 2021).
PARTICIPANTES
A referenciação de doentes para hospitalização domiciliária obedece aos critérios definidos pela norma da DGS nº020/2018.8 A avaliação é realizada pela equipa da UHD, podendo não ser admitidos por motivos clínicos, geográficos, sociais, recusa do próprio ou da família, ou por ausência de vaga. Durante a semana, a primeira visita matinal diária é garantida por médico e enfermeiro podendo, conforme as necessidades, totalizar duas ou três visitas diárias por parte do enfermeiro. Ao fim-de-semana, mantem-se a visita presencial por parte enfermeiro, ficando o médico de prevenção.
Os cuidadores são alertados para entrar em contacto com a UHD caso surjam dúvidas ou intercorrências.
O eletrocardiograma e os exames laboratoriais são realizados durante a visita no domicílio, sendo as análises processadas no laboratório hospitalar. Os restantes exames complementares exigem a deslocação do doente ao hospital.
Foram considerados elegíveis todos os doentes admitidos na UHD no período referido.
Foram cumpridos os protocolos para a proteção de dados, tendo sido dado parecer favorável ao projeto por parte do Encarregado da Proteção de Dados, assim como pela Comissão de Ética do CHBV.
FONTES DE INFORMAÇÃO E VARIÁVEIS
Informação obtida a partir dos registos clínicos dos doentes internados na UHD do CHBV, que foi revista pelos autores, evitando dados em falta.
Foram recolhidos dados sociodemográficos (idade, sexo), clínicos (diagnóstico principal, presença de comorbilidades (diabetes mellitus, enfarte agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca, doença arterial periférica, acidente vascular cerebral, doença renal crónica terminal, demência, doença pulmonar obstrutiva crónica, doença do tecido conjuntivo, neoplasia), o nível de independência nas atividades de vida diária - Índice de Barthel (IB),12o índice de morbilidade segundo Charlson Comorbidity Index (CCI)13), e indicadores relativos ao processo de gestão clínica (proveniência, número de visitas diárias, uso de antibioterapia, duração do internamento na UHD, motivo para retorno e destino à data de alta). A escolha das variáveis foi feita com base na literatura consultada. Os motivos para retorno ao internamento convencional foram divididos em: agravamento clínico (causa respiratória ou não respiratória); realização de exames complementares ou intervenções (por diversos motivos, nomeadamente logísticos); transferência para outras especialidades; recusa / dificuldade em assumir retaguarda familiar e por último, impossibilidade de manter isolamento de gotícula. A divisão dos motivos de retorno foi definida no desenho do estudo, com base na literatura e na experiência pessoal dos coautores que exercem funções na UHD do CHBV.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
A análise de dados foi realizada utilizando o software SPSS 24.0,14 definindo-se o valor de significância estatística em α=0,05. A análise descritiva realizada incluiu a apresentação de frequências absolutas e relativas para variáveis qualitativas e a média e desvio-padrão para variáveis quantitativas. A comparação dos dois grupos (‘doentes que se mantiveram em UHD’ vs. ‘doentes com retorno’) foi realizada para cada uma das variáveis anteriormente descritas. Quando se verificaram os pressupostos foi utilizado o teste t de Student para comparar as médias de variáveis quantitativas entre dois grupos, e em alternativa o teste de Mann-Whitney.
Para avaliar a associação entre variáveis categóricas foi utilizado o teste do Qui-quadrado ou o teste exato de Fisher. Para estimar a proporção de retorno ao hospital no período em análise foi considerado no denominador a totalidade dos participantes admitidos na UHD.
Foi realizada uma análise de correspondência múltipla (ACM), uma técnica exploratória de simplificação da estrutura da variabilidade de dados que a partir de tabelas de contingência considera medidas de correspondência entre as linhas e colunas da matriz. Desta forma é possível elaborar gráficos que permitem a visualização da relação entre os conjuntos de categorias, onde a proximidade dos pontos referentes à linha e a coluna indicam associação e o distanciamento o oposto. Foram utilizadas as duas primeiras dimensões na análise, dado que em geral, estas podem explicar a maior parte da variância. Foram categorizadas as seguintes variáveis quantitativas: Faixa etária (18-64 anos, 65-74 anos; 75-84 anos; 85-94 anos, > 94 anos); oes (≤3; 4-7; >7); IB (<100: dependente; =100: independente); duração do internamento na UHD (≤ mediana; >mediana) e destino à data de alta (retorno hospitalar por descompensação respiratória versus não res-piratória, seguimento na consulta externa hospitalar, segui-mento pelo médico de família, óbito).
Resultados
CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES
As características demográficas, clínicas e relativas ao processo de gestão clínica dos participantes são apresentadas na Tabela 1. No estudo foram incluídos 562 doentes, 52,1% do sexo feminino e com idade média de 72,0 ± 17,4 anos. O valor médio do Índice de Barthel foi de 75,4 ± 34,4. Os grupos de diagnóstico principal, classificados com base na classificação ICD11 (Classificação Internacional das Doenças, 11º edição) mais representados, foram os relativos às patologias do aparelho geniturinário (n = 206, 36,7%), respiratório (n = 141, 25,1%) e cardiovascular (n = 75, 13,3%). O uso de antibioterapia esteve presente no tratamento da maioria dos doentes (n = 461, 82%). O Índice de Charlson médio foi de 4,3 ± 2,5, com 413 (73,5%) doentes a apresentarem um valor igual ou superior a três.
Tabela 1: Caraterísticas demográficas, clínicas e relativas à gestão do processo clínico dos doentes admitidos na UHD (maio19-abril21)

Em 49,6% das admissões foi evitado o internamento convencional (n = 279), sendo o doente admitido diretamente a partir do Serviço de Urgência (SU), e nos restantes foi reduzido o tempo de estadia hospitalar ao serem referenciados a partir dos serviços de internamento do CHBV (n = 283), nomeadamente de Medicina Interna (n = 238, 42,3%). A maioria dos doentes recebeu duas (n = 479, 85,2%) a três visitas diárias (n = 77, 13,7%) por parte da equipa da UHD. A mediana para a duração do internamento em UHD prévia ao retorno foi de 6 dias.
À data de alta da UHD, 268 (47,7%) doentes tiveram indicação para manter seguimento no seu Médico assistente, 254 (45,2%) foram orientados para a Consulta Externa do CHBV. Foram registados 30 (5,3%) retornos e 10 (1,8%) óbitos.
RETORNO AO HOSPITAL
Dos 30 retornos, 13 tiveram motivo clínico, 6 por agravamento da insuficiência respiratória, e 7 por causas não respiratórias: hemorragia digestiva aguda com instabilidade hemodinâmica; febre de novo em doente com histoplasmose disseminada a terminar ciclo de antibioterapia; derrame pericárdico de grande volume; insuficiência cardíaca com necessidade de terapêutica inotrópica; emergência hipertensiva, e dois doentes com lesão renal aguda em agravamento.
Quatro doentes retornaram ao hospital para intervenção ou investigação de situações subagudas, que por questões logísticas, não foi possível realizar no domicílio, tendo regressado à UHD posteriormente. Foram eles: um doente com um abcesso renal que teve de repetir tomografia computorizada (TC) e drenar o abcesso, um doente com osteomielite do hallux que agravou, tendo-se procedido à desarticulação do dedo, e dois doentes com queda de hemoglobina sustentada que foram transferidos para realização de exames complementares e vigilância.
A transferência para outras especialidades foi o motivo pelo qual 9 doentes retornaram ao hospital. Destes, 4 ficaram ao cuidado da Cirurgia Geral (colecistite aguda litiásica, isquemia intestinal, hematoma infetado no membro inferior e adenopatias difusas obrigando a uma laparoscopia diagnóstica), um da Urologia (pielonefrite aguda obstrutiva) e um da Ortopedia (fratura do fémur após queda acidental). Quanto aos diagnósticos não cirúrgicos, um doente foi internado na Pneumologia por broncoespasmo de difícil controlo, um na Infeciologia com o diagnóstico de novo de tuberculose peritoneal, e um doente foi orientado pela Hematologia por suspeita de leucemia aguda.
Dos restantes quatro retornos, um resultou da impossibilidade de manter isolamento de gotícula de um doente infetado pelo vírus SARS-CoV-2, pelas características da habitação e três casos em que se constatou que a retaguarda familiar era insuficiente ou inapta para sustentar o internamento domiciliário."
Na comparação entre os doentes que retornaram ao hos-pital versus doentes que permaneceram na UHD até à data de alta, nenhuma das variáveis analisadas foi estatisticamente significativa, tal como se verifica na Tabela 1.
ANÁLISE DE CORRESPONDÊNCIA MÚLTIPLA
Depois de realizada a primeira análise, foram excluídas para o segundo modelo, as variáveis: ‘sexo’, ‘comorbilidades’, ‘número de visitas por dia’, e a ‘duração do internamento’ dado que apresentaram valores de discriminação abaixo de 0,1 nas duas dimensões consideradas. A análise de correspondência múltipla incluiu também os gráficos de categorias e de discriminação, e os valores de variância explicada por cada uma das duas dimensões consideradas (Fig. 1).

Figura 1: Análise de correspondência múltipla: gráfico de categorias e de discriminação das variáveis - Gráficos de categorias e de discriminação. A partir destes resultados é possível diferenciar três grupos segundo o tipo de ‘destino’ associados com a faixa etária. O primeiro inclui as pessoas com mais de 94 anos com o retorno ao hospital a acontecer devido a agravamento do estado clínico por insuficiência respiratória. O segundo grupo, inclui as pessoas com idade compreendida entre os 85-94 anos, com valores de dependência elevada e com o desfecho associado a óbito. O terceiro grupo inclui as pessoas das faixas etárias 18-64 anos e 65-74 anos, com um CCI≤3, IB<100, em que o motivo de retorno ao hospital se associa ao agravamento do estado clínico, por razões não relacionadas com o aparelho respiratório.
A partir destes resultados foi possível diferenciar três grupos segundo o tipo de ‘destino’ associados com a ‘faixa etária’, sendo esta opção de análise justificada pelo impacto do envelhecimento na procura de cuidados de saúde. Um primeiro grupo que relacionou doentes com mais de 94 anos com o retorno ao hospital por agravamento de ‘causa respiratória’. Um segundo grupo que associou as pessoas com idade compreendida entre os 85-94 anos, com dependência elevada e com o destino associado a óbito, e um terceiro grupo que incluiu os doentes das faixas etárias 18-64 anos e 65-74 anos, independentes (IB=100), menos comorbilidades (CCI≤3), em que o motivo de retorno se associou ao agravamento por causas não respiratórias. Este último grupo também se associou a motivos de internamento por doenças infeciosas (ICD11).
Discussão
As características demográficas e clínicas dos doentes internados em UHD foram de encontro aos dados encontrados na literatura,7,9,10tratando-se de uma população envelhecida com pluripatologia e polimedicada. No entanto, globalmente, os doentes tinham ainda algum grau de independência, o que facilitava os cuidados em UHD, nomeadamente por parte dos cuidadores. Apesar de serem tratadas as mais variadas patologias em UHD, os doentes internados foram maioritariamente referenciados pela Medicina Interna, quer do SU, quer do internamento.
Foram testadas múltiplas variáveis, mas o modelo estatístico revelou que nenhuma delas se associou com o retorno hospitalar, não existindo nenhuma variável com resultado estatisticamente significativo na comparação dos dois grupos. Tal poderá ser explicado pela pequena e heterogénea amostra de doentes que tiveram retorno hospitalar e pelas variáveis escolhidas.
Com a análise dos processos clínicos dos doentes, foi possível concluir que todos os retornos foram realizados de forma rápida e segura.
A maioria dos meios complementares de diagnóstico e terapêuticos foram realizados durante o internamento em UHD. No entanto, existiram quatro situações em que houve necessidade de retorno pela dificuldade que existiu em coordenar o agendamento das diferentes intervenções, regressando o doente à UHD alguns dias após.
Todos os casos que necessitaram de avaliação por outras especialidades ficaram internados ao cuidado destas. Apesar de existir discussão multidisciplinar acerca de doentes internados em UHD, os autores consideram que seria benéfica a possibilidade de haver visitas ao domicílio por parte de outras especialidades sempre que fosse necessário.
Destacam-se ainda dois casos de retorno por decisão dos familiares, que tiveram dificuldade em manter-se como cuidadores em situações de fim de vida.
Relativamente à análise da ACM os resultados obtidos foram expectáveis, associando-se os doentes com mais idade à descompensação respiratória dada a sua maior fragilidade. Nos doentes mais jovens os retornos associaram-se a causas não respiratórias, a uma maior independência (IB =100), menos comorbilidades (CCI≤3), a motivos de internamento por doenças infeciosas (ICD11), e à utilização de um antibiótico único. Os doentes com idades compreendidas entre os 85-94 anos associaram-se a um maior grau de dependência (IB <100), e ao desfecho de óbito. Esta análise permitiu comprovar e garantir a veracidade e congruência dos dados recolhidos.
De forma a tentar obter algum grau de comparação com outras UHD, foi analisado um trabalho realizado no Hospital Garcia de Orta, em Portugal, em que a taxa de retorno no primeiro ano de atividade foi de 7,7%,9 com motivos muito semelhantes àqueles encontrados no nosso estudo. Embora a nível internacional existam substanciais diferenças organiza-cionais, particularmente em relação aos serviços oferecidos, os autores referem um estudo australiano de 2021 cuja taxa de retorno foi de 11,9%15 e um estudo americano do mesmo ano, de 7,2%.16
Conclusão
Os autores salientam as inúmeras vantagens do internamento em UHD para os doentes, permitindo o tratamento de doença aguda no seu ambiente habitual, o que facilita a educação para a saúde e evita as complicações do internamento convencional.
Apesar da taxa de retorno ser baixa, é importante que seja feito o levantamento e análise dos retornos, de forma a identificar aqueles que poderiam ter sido evitados, e trabalhar no sentido de aprimorar e colmatar as dificuldades encontradas.
O modelo estatístico revelou que nenhuma das variáveis analisadas se associou com o retorno hospitalar. Os autores acreditam ser possível identificar variáveis que se associem com o retorno, em estudos futuros, quando existir uma maior amostra ou forem analisados outros fatores não considerados no presente estudo. Por outro lado, consideram que o facto de não se terem verificado associações com o retorno terá que ser interpretada de forma cautelosa, dadas as limitações da diversidade e tamanho da amostra, para além da particularidade de que parte do período a que os dados dizem respeito se enquadrar em fase de pandemia por SARS-CoV-2.
Com esta análise, os autores observaram que foi possível realizar o retorno sempre que necessário, pelo que não parece constituir motivo para limitar a referenciação de doentes para UHD.
A comparação entre UHD de diferentes hospitais implica a homogeneização dos indicadores de desempenho, onde se inclui a taxa de retorno, homogeneização essa que deverá ter em consideração a diversidade da carteira de serviços disponibilizada e as caraterísticas da população abrangida.