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Jornal Português de Gastrenterologia
versão impressa ISSN 0872-8178
J Port Gastrenterol. v.17 n.4 Lisboa ago. 2010
Infecção pelo vírus da hepatite B em doentes sujeitos a terapêutica imunossupressora ou quimioterapia citotóxica – a propósito de um caso clinico
Isabel Redondo¹, Maria Isabel Sousa¹, Gonçalo Ramos¹, Ana Teresa Fernandes², Rita Côrte-Real³, Aida Botelho², Manuel Martins Neves¹
¹Serviço de Gastrenterologia, ²Serviço de Hematologia, ³Serviço de Patologia Clínica do HSAC/Centro Hospitalar Lisboa Central, Lisboa, Portugal;
Resumo
A reactivação do vírus da hepatite B em doentes com neoplasias hematológicas é uma complicação frequente da quimioterapia ou da terapêutica imunomoduladora. Os autores descrevem o caso dum doente com linfoma não-Hodgkin e história de infecção passada pelo VHB que desenvolveu hepatite fulminante após quimioterapia. Os mecanismos de reactivação do VHB são discutidos e as recomendações sobre profilaxia são apresentadas.
Hepatitis B virus infection in patients submitted to immunosupressive therapy or cytotoxic chemotherapy – a case report
Abstract
Reactivation of hepatitis B virus in patients diagnosed with hematological malignancies is a frequent complication of chemotherapy or immunomodulatory therapy. The authors describe the case of a non-Hogkin’s lymphoma patient who had a past history of hepatitis B and developed fulminant hepatitis after chemotherapy. Mechanisms of HBV reactivation are discussed and recommendations are reviewed concerning prophylaxis and preemptive therapy.
INTRODUÇÃO
O curso natural da infecção crónica pelo vírus da hepatite B (VHB) é determinado pela inter-relação entre a replicação vírica e a resposta imunitária do hospedeiro.
O VHB pode persistir, mesmo após recuperação serológica de hepatite aguda. Indivíduos expostos ao vírus da hepatite B estão em risco de reactivação da infecção quando a resposta imune se encontra suprimida.
Nos doentes com hemopatias malignas e em particular com o diagnóstico de linfoma, submetidos a terapêutica citotóxica ou imunomoduladora, este problema é especialmente relevante. A prevalência da infecção pelo VHB parece ser superior nestes doentes em relação à população em geral. Além disso, nos últimos anos, a inclusão do anticorpo monoclonal anti-CD20 em vários regimes de tratamento, ao potenciar e prolongar a imunossupressão, constitui um factor de risco adicional.
Existe clara evidência da necessidade da avaliação dos marcadores do VHB em todos os doentes hematológicos, prévia ao início do tratamento, e da importância da profilaxia e monitorização adequada nos doentes de alto risco.
CASO CLINICO
Doente do sexo masculino, com 76 anos, de raça branca, internado no Serviço de Gastrenterologia por icterícia, ascite e edema dos membros inferiores com 3 semanas de evolução.
Tratava-se de um doente com diagnóstico de linfoma não-Hodgkin B, difuso de grandes células, com apresentação extraganglionar como massa da parede torácica. Iniciou tratamento de quimioterapia com R-CHOP (rituximab, ciclofosfamida, doxorubicina, vincristina e prednisolona), tendo completado 5 ciclos, sem toxicidade significativa. Concluíra tratamento 2 meses antes, após documentação de remissão completa.
Dos antecedentes destacava-se hepatite aguda há 30 anos, cancro da próstata diagnosticado há 5 anos, e medicado desde então com acetato de Leuprorrelina e cloridrato de Tamsulosin. De referir ainda existência de hábitos etanólicos moderados (cerca de 40g álcool /dia desde os 20 anos e até há 1 ano) e automedicação esporádica com Nimesulide por queixas osteoarticulares.
À admissão apresentava-se vigil e orientado temporo-espacialmente, apirético, ictérico, hemodinamicamente estável, eupneico, abdómen mole e depressível, com ascite moderada, não tensa, bordo hepático liso, palpável 3 cm abaixo do rebordo costal direito, sem reacção peritoneal, membros inferiores com edema bilateral até à raiz da coxa.
Analiticamente apresentava padrão de colestase e citólise hepática (AST = 2466 U/L, ALT = 2096 U/L, FA = 237 U/L, GGT = 102 U/L, Bilirrubina total = 27,5 mg/dL e Bilirrubina directa = 20,8 mg/dL). Apresentava ainda trombocitopenia (Plaq = 84.000), coagulopatia (INR = 1,6), e insuficiência renal (creat. = 1,41mg/dL, ureia = 76mg/dL). As séries vermelha e branca estavam dentro da normalidade.
A ecografia abdominal revelava “fígado dismórfico e ecoestrutura difusamente heterogénea, vesícula e vias biliares sem alterações, veia porta e supra-hepáticas normais, baço sem alterações, (…) ascite livre moderada, ausência de colaterais porto-sistémicos.”
De entre a avaliação etiológica efectuada destacava-se: serologia IgG positiva para CMV, EBV e HVS 1 e 2; AgHBs negativo com anti-HBs, anti-HBe e anti-HBc positivos; anti-VHC e anti-Delta negativos; B2M aumentada (5,5 mg/dL); ferritina aumentada (9533 mg/dL).
Foi realizada paracentese diagnóstica, sendo o líquido ascítico compatível com um transudado e exame cultural negativo.
Dada a ausência de evidência de doença hepática prévia e, face ao quadro de insuficiência hepática aguda apresentado, foram ponderadas hipóteses de etiologia medicamentosa, infecciosa ou eventual envolvimento hepático secundário ao linfoma.
Foi iniciada terapêutica de suporte e, dadas as hipóteses etiológicas consideradas, e a ausência de evidência de infecção, ao 6º dia de internamento foi iniciada corticoterapia com prednisolona 40mg/dia, constatando-se melhoria progressiva da citólise hepática (ALT = 379 U/L, AST = 193 U/L). Ao 11º dia de internamento chegou a informação de DNA VHB positivo (1,2x105 UI/mL (5,11 Log).
Demonstrada a reactivação de vírus da hepatite B em doente com cicatriz imunológica de infecção passada, iniciou Lamivudina 100 mg/dia, e desmame dos corticóides, mantendo discreta melhoria analítica ao longo das 72h seguintes.
Ao 15º dia de internamento registou-se deterioração do estado clínico, com entrada em choque séptico e morte em 24h, apesar de instituição de antibioterapia de largo espectro e suporte vasoactivo. Isolando-se E. Coli multirresistente no sangue e no líquido ascítico (cujo exame citoquímico se mantinha compatível com transudado com escassas células).
DISCUSSÃO
O VHB é membro da familia dos hepadnaviridae, com genoma DNA circular de dupla cadeia que replica através de intermediário RNA. Após entrada no hepatócito, o DNA do VHB é transportado para o núcleo e convertido em DNA circular covalente fechado (cccDNA) que persistirá no núcleo do hepatócito, cerca de 30-50 cópias/cel, agindo como template replicativo estável para a transcripção viral. A estabilidade e persistência do cccDNA, refractário mesmo aos fármacos antivirais, e a longa sobrevida dos hepatócitos são os responsáveis pela infecção persistente pelo VHB1.
O VHB é um vírus não citopático directo. Induz lesão tecidular de gravidade variável pela estimulação de resposta imune protectora que por sua vez conduz à destruição de células virais infectadas.
A resposta imunológica à entrada do VHB compreende uma resposta humoral e uma resposta mediada por células. A primeira é um processo dependente dos linfócitos B, com produção de anticorpos. A segunda está dependente, por um lado, da activação da imunidade inata (macrófagos, linfócitos T e células NK) levando à produção de citocinas e monocinas, como INF-gama e TNF-alfa, que terão efeitos inibitórios directos na replicação de VHB. (clearence não citopático). Por outro lado, a resposta mediada por células resulta da activação de linfócitos T citotóxicos (LTC), que induzem apoptose hepatocitária via Fas (clearance citopático).
A resposta vigorosa CD4+ CD8+ especifica para o vírus é induzida durante a infecção e persiste décadas após clearence viral. Há evidência de que o VHB persiste em estado latente no figado e células periféricas MN, sendo a sua replicação suprimida por células T antivirais (LTC). Portanto a resolução da infecção não implica erradicação viral completa do VHB mas, provavelmente reflecte um forte controlo imunológico pela resposta celular antiviral CD4+CD8+1-2.
Está documentada a reactivação da infecção pelo VHB com flares e, raramente, com descompensação hepática em 20 – 50% de portadores sob imunossupressão ou quimioterapia, especialmente se corticóides incluídos.
Relativamente poucos estudos investigaram a associação entre infecção pelo VHB e ocorrência de linfomas não-Hodgkin. No entanto, parece haver uma prevalência significativamente maior da infecção nestes doentes em relação à população em geral, quer se tratem de áreas endémicas quer não endémicas. A reactivação da infecção VHB pode necessitar de interrupção da quimioterapia com consequências adversas no prognóstico da doença hematológica2-3.
São factores de risco associados à reactivação do vírus da hepatite B: a presença de Antigénio de superficie detectável (AgHBs), DNA VHB detectável, Antigénio Hepatite B e (AgHBe), Anticorpos para Antigénio do core (anti-HBc), idade jovem e sexo masculino. A corticoterapia é considerada factor de risco para reactivação, estando identificado um receptor glucocorticóide que reconhece uma sequência especifica de nucleótidos no DNA genómico do VHB causando a sua activação3-4.
Nos últimos anos, o anticorpo monoclonal quimérico Rituximab demonstrou a sua eficácia no tratamento de linfomas não-Hogkin que expressam o antigénio CD20. Ao actuar sinergisticamente com os fármacos citotóxicos e tendo poucos efeitos secundários, passou a ser incluído com maior frequência nos regimes de tratamento. No entanto, a terapêutica com Rituximab tem sido considerada um factor de risco para reactivação do VHB, em particular nos doentes AgHBs negativos e anti-HBc positivos, com múltiplos casos descritos de hepatite fulminante5.
A maioria destes casos corresponderão a infecção B oculta, definida como a presença de DNA VHB no fígado (com DNA VHB detectável ou indetectável no soro) de indivíduos AgHBs negativos. A base molecular desta complexa entidade está relacionada com a persistência de cccDNA VHB no núcleo dos hepatócitos. Nestes casos, se DNA HBV detectável, o seu valor é muito baixo (< 200 UI/mL) e a determinação de DNA VHB pela técnica de PCR em tempo real constitui o gold standard6-8.
Os mecanismos envolvidos na reactivação da infecção pelo VHB envolvem a supressão da resposta imunológica específica do vírus, causada pela imunossupressão, favorecendo o aparecimento de alta carga viral. Por sua vez a viremia elevada e a baixa resposta imune facilitam o desenvolvimento de mutantes. A reconstituição imune, que se segue semanas a meses após retirada da imunossupressão e recuperação da neutropenia pode estar associada a lesão hepatocelular de gravidade variável.
A Lamivudina é o fármaco antiviral mais estudado. A Lamivudina reduz a frequência e a gravidade dos flares, e melhora a sobrevida comparativamente a controles históricos4-5,8.Foi demonstrado que a profilaxia com Lamivudina é superior a terapêutica deferida em doentes com hepatite B sujeitos a quimioterapia, reduzindo o risco de reactivação e hepatite pelo VHB em cerca 79%3,9-12.
Está recomendado o tratamento com análogos dos nucleós(t)idos dos doentes com infecção activa, e a profilaxia com anti-retrovirais dos portadores inactivos.
A profilaxia deve-se iniciar, pelo menos, 1 semana antes de iniciar a quimioterapia. A escolha do fármaco pode depender da história antiviral prévia, e se está ou não programado tratamento prolongado. Está actualmente recomendado que os doentes, especialmente aqueles com níveis elevados de DNA VHB, estejam protegidos com análogos com alta potência antivírica e elevada barreira de resistências (Quadro 1)13-14.
Quadro 1. Sumário das recomendações da American Association for the Study of Liver Diseases para monitorização e tratamento dos doentes com infecção pelo vírus da hepatite B sob imunossupressão ou quimioterapia citotóxica . Modificado de Lok at al13.
Habitualmente propõe-se continuar tratamento profilático com anti-retroviral por 6 a 12 meses após o final da quimioterapia. O risco de reactivação após paragem Lamivudina é de 25%11,12. Para prevenir a reactivação tardia é importante conhecer a carga viral no inicio e, se DNA VHB > 2000 UI/mL deve-se fazer terapêutica a longo prazo com os end points habituais da terapêutica para a hepatite B crónica13-14.
Todos os doentes sujeitos a quimio ou imunoterapia devem ser testados para VHB antes de iniciar tratamento e monitorizados, serológica e bioquimicamente (ALT), periodicamente. Não estando nestes doentes indicado tratamento profiláctico antiviral, mas sim a determinação inicial dos níveis de DNA VHB e posterior monitorização cada 2-4 semanas; e tratar com análogos dos nucleós(t)idos logo que confirmada reactivação e antes da elevação de ALT. A vacinação dos seronegativos para o VHB está recomendada13-14.
Após paragem do tratamento com imunossupressor ou quimioterapia deve-se continuar a monitorizar no mínimo por 6 meses. No caso de doentes inseridos em protocolos terapêuticos com Rituximab recomenda-se fazer tratamento até 52 semanas após paragem de quimioterapia5.
Neste caso, tratando-se de um doente com marcadores de infecção passada, a monitorização do status DNA VHB poderia ter permitido antecipar a possivel reactivação da infecção pelo VHB e teria indicado a necessidade da introdução de terapêutica profiláctica.
Apesar dos factores desencadeantes da reactivação espontânea e da recaída clínica da infecção pelo virus da hepatite B serem mal compreendidos, o conhecimento de que se comporta como uma doença imunológica em que a gravidade da doença e a frequência e amplitude da resposta virulógica são influenciados pela capacidade da resposta imune do hospedeiro vão-nos permitir avançar para atitudes terapêuticas que se começam a revelar eficazes na prevenção dos flares e da doença hepática sintomática em portadores inactivos ou com infecção oculta.
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Isabel Redondo
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Tel.: +351 962 565 405
Recebido para publicação: 09/11/2008 e Aceite para publicação: 05/07/2010.