1. Introdução: A desigualdade jurídica e a pandemia da Covid-19
Ao longo da pandemia da covid-19, houve um discurso, classificado como de senso comum, que compôs inúmeros escritos e notícias jornalísticas no começo da sua disseminação, no sentido de que a doença causada pelo referido vírus seria “democrática”, uma vez que este não distinguia as vítimas quanto à cor, ao status ou à classe social, à escolaridade, à localidade, entre outras características. Porém, há pelo menos duas questões que pesquisadores de diversas áreas têm apontado, no sentido do tensionamento dessa afirmação : a primeira é que, embora o vírus não seja seletivo em relação a quem atingirá, suas formas de transmissão, em contraposição às de prevenção, assim como o risco de adoecimento e de morte, são potencializados em certos grupos sociais e em certas localidades (Fiocruz, 2020; G. Silva, 2021) ; a segunda se dá ao observar e analisar como as instituições têm registrado, percebido e administrado esses casos (Lima & Campos, 2021; L. R. C. Oliveira, 2021 ; Ribeiro & V. Oliveira, 2020).
Partindo da segunda questão, nosso objetivo é descrever e problematizar como as instituições judiciárias no Brasil internalizam e (re)produzem desigualdades. Como já apontou Roberto DaMatta (1979), se os cidadãos, nas relações sociais diárias, não se percebem como iguais, o Judiciário brasileiro acaba por reproduzir essa mesma percepção, não os considerando (e tratando) assim. Em outras palavras, a afirmação de que a sociedade brasileira se estrutura juridicamente de forma hierarquizada, reproduzindo um ethos aristocrático em contraposição a uma ordem republicana, permite reconhecer que, no plano jurídico, a desigualdade se opera em dois níveis : no aspecto normativo - por meio da elaboração das leis - e na administração dos conflitos - no momento da aplicação das leis, especialmente pelo Judiciário (Duarte, Iorio Filho & Baptista, 2021).
O papel normalizador que os tribunais desempenham nas sociedades liberais burguesas igualitárias, no Brasil, de forma peculiar, se caracteriza pelo reforço dessa desigualdade, na contramão dos ideais republicanos acolhidos formalmente nos textos normativos (Amorim, Baptista, Duarte, M. L. T. Lima & R. K. Lima, 2021; Duarte, 2006; Duarte & Iorio Filho, 2011; M. L. T. Lima & R. K. Lima, 2020).
Nosso problema, então, pode ser assim desenhado : se os juízes têm o dever de tratar as partes com igualdade, como estabelece a Constituição da República, como é possível se ter como resultado prático, por meio de sua atuação no processo, a aplicação da lei de forma particularizada, reforçando a desigualdade jurídica e implicando a sua atualização e o reforço dos já conhecidos traços da cultura jurídica brasileira ?
Os dados coletados em nossas pesquisas, referenciadas ao longo deste texto, sugerem existir categorias implícitas ao sistema jurídico brasileiro, que organizam o pensamento e impõem estruturas mentais que informam os processos decisórios dos juízes. Isso possibilita que os mesmos façam sentido para aqueles socializados neste sistema, isto é, o do campo do Direito. Ao cabo, essas categorias permitem a atuação desigual do próprio Poder Judiciário, com a manutenção da (des)igualdade jurídica - que segue naturalizada.
Ao conjunto dessas categorias denominamos gramática decisória. A gramática é o conjunto de regras individuais acionadas para determinado uso de uma língua, aqui, especificamente, para o uso da linguagem decisória dos juízes. Ela é o sistema recorrente ao falar, para que os discursos façam sentido para aqueles socializados neste mesmo sistema de significados.
E o contexto da pandemia da covid-19 no Brasil é um fato superveniente que nos ajuda a explicitar como essas formas judiciais de decidir reproduzem a desigualdade, e como a lógica do contraditório orienta a ética corporativa judicial (R. K. Lima, 2013), demonstrando que associações e instituições judiciárias adquirem características de corporações. Tal fato particulariza a interpretação das regras, aplicando-as como se levasse em consideração o que representa como interesse público, em que a noção de público está vinculada a uma perspectiva estatal que, travestida de um discurso representativo da soma de interesses individuais, na verdade reflete interesses particulares de corporações do Estado.
Nos últimos anos temos nos dedicado a pesquisar as representações e as práticas burocráticas e judiciárias da (re)produção jurídica da desigualdade no Brasil e em perspectiva comparada (Amorim, 2017; Angelo & Oliveira, 2021; Baptista, 2013; Corrêa, 2012; Duarte & Iorio Filho, 2015; Ferreira, 2004; Geraldo, 2019; M. L. T. Lima, 2017; R. K. Lima, 2019a; Mendes, 2012; Nuñez, 2020; L. R. C. Oliveira, 2011b). Esse contraste tem nos mostrado como o direito brasileiro hierarquiza tanto os membros das instituições judiciárias quanto nossa população, em termos de atribuição e de aplicação de direitos. Na sociedade brasileira, apesar dos preceitos constitucionais republicanos, não existe ainda uma estrutura jurídica ordinária que assegure um mínimo de direitos comuns e compartilhados por todos os diferentes cidadãos. O que há é a aplicação de um conjunto de privilégios atribuídos a certos segmentos da sociedade, que são chamados de “direitos”.
A diferença em relação às demais sociedades ocidentais é, portanto, que nelas a desigualdade jurídica é vista como um problema (Bisharat, 2018). Tanto assim que, em contraste com o ritual autoritário brasileiro, descrito por DaMatta (1979), em que se enuncia, sem constrangimentos e com aceitação, a frase “Você sabe com quem está falando ?”, para reforçar a hierarquia e a nossa crônica “alergia à igualdade” (DaMatta, 2020, p. 9), nos Estados Unidos, o rito igualitário responderia “Who do you think you are?” e, na Argentina, a reação viria irada, ainda que reforçando, de certo modo, a hierarquia, e contestaria : “¿Y a mí que mierda me Importa?” (O’Donnell, 1984). Em tais sociedades, a inexorável desigualdade econômica produzida pelo mercado é que gera as desigualdades sociais, e a atuação do sistema jurídico pode servir para mitigá-las, compensando-as com um tratamento igualitário, na elaboração da lei e na sua aplicação. Já no caso brasileiro, a desigualdade está inscrita no próprio sistema jurídico, no seu imaginário e na sua operacionalização, como parte integrante e indispensável dele, sistematizando juridicamente as desigualdades sociais, políticas e econômicas. Tal naturalização da desigualdade jurídica, anterior à desigualdade econômica, é uma barreira ao funcionamento regular e regulado do mercado, além de ser uma expressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada. Constitui-se também em referência e suporte para a sua reprodução, em que pode florescer um individualismo perverso, que nunca se identifica com o “outro”, mesmo que este seja seu semelhante, no qual, de forma ambígua, a lei é vista, ora como uma “punição” para alguns, ora como fonte para assegurar tratamentos benéficos para outros, mas não como um instrumento que deve efetivamente assegurar os mesmos direitos e deveres para todos, mantendo assim relações de complementaridade e não de competição social (R. K. Lima, 2019b).
O atual contexto da pandemia da covid-19 evidencia a reiterada naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus variados níveis. Portanto, não é incomum vermos notícias jornalísticas acerca de casos e de decisões judiciais - seja de juízes de primeira instância, seja dos tribunais - que recorrentemente são seletivas tanto na concessão de privilégios, confundidos com direitos diferenciados e especiais, quanto na distribuição desigual de deveres e penalidades ; e que são aparentemente tidas como extraordinárias ou como exceções por essas próprias instituições (Amorim, Baptista, Duarte, M. L. T. Lima & R. K. Lima, 2021).
Partindo desse debate e da descrição de alguns casos, analisamos e demonstramos que, apesar de toda a excepcionalidade atual das novas medidas sanitárias, restritivas de circulação de pessoas e de funcionamento das instituições privadas e públicas, inclusive as judiciárias - foco das nossas reflexões -, estas atingem desigualmente diferentes pessoas. Desta forma, selecionamos alguns eventos que consideramos paradigmáticos na explicitação da justiça brasileira sob medida, ou seja, na medida da sua desigualdade. Isso viabiliza distribuições da justiça a quem merece e em diferentes níveis, dependendo das partes envolvidas, dando assim a cada um o que lhe cabe, como medida de justiça. Nesse cenário, a imprevisibilidade e a insegurança são o preço que pagamos pela manutenção hígida dessa desigualdade jurídica estrutural.
2. A ausência de direitos civis no Brasil: Entre direitos e privilégios
Na ausência de direitos civis - aqui considerados não como um rol abstrato enumerado em textos normativos (pois este rol normativo no Brasil há), mas como um mínimo comum de direitos, distribuídos igualmente para todos os diferentes cidadãos -, o Poder Judiciário brasileiro especializou-se na distribuição desigual de direitos, tornando-os privilégios e seguindo o brocardo jurídico de que “a regra da igualdade é aquinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”, como já desenvolvido por Rui Barbosa em sua “Oração aos Moços”, e assimilado pela doutrina e pela prática jurídica.
O seguimento regular do processo judicial e das suas formas processuais não é visto pelos operadores desse campo como garantidor de direitos ; e tampouco assegura uma previsibilidade do resultado do processo, porque a desigualdade de decisões corresponde à necessária distribuição desigual de direitos em uma sociedade de desiguais juridicamente. Não há, assim, um mínimo de direitos a que todos os diferentes cidadãos sejam igualmente merecedores, mas gradações de direitos segundo seu merecimento, que nos remete ao mundo da pessoa (e não do indivíduo) de Roberto DaMatta (1979) - que se caracteriza pela dimensão da particularidade, da pessoalidade e de distintas posições e hierarquias. E é em razão desse merecimento aquilatado pelo juiz, pela lente da particularização, que os direitos são distribuídos, cabendo a cada um o que lhe é devido, por ser pessoalmente merecido. Como referência, segundo L. R. C. Oliveira (2011b, p. 42), no Brasil, confere-se tratamento desigual e privilegiado às pessoas conforme a sua “substância moral”.
L. R. C. Oliveira (2010, 2011a) associa a concepção de igualdade como tratamento uniforme à igualdade de direitos e a concepção de igualdade como tratamento diferenciado à justificação de privilégios - e destaca que a singularidade brasileira está na arbitrariedade da definição entre os campos de vigência dessas duas concepções de igualdade ou mesmo da indistinção entre o exercício de direitos e de privilégios, constituindo a existência de uma sensibilidade cívica brasileira muito própria.
Diferentemente da cultura jurídica dos países anglo-saxões, que se apresenta a partir de uma perspectiva igualitária e individualista, no Brasil, a posição do direito como mecanismo compensatório da desigualdade social se mostra, em vez de acolhedora e extensiva, como restritiva dos direitos da cidadania brasileira. Marshall (1967, p. 107), quando demonstra que a concepção de cidadania é constituída de direitos civis, políticos e sociais, o faz para explicitar justamente que tais direitos surgiram - nos séculos XVIII, XIX e XX - com o propósito de dar conta da desigualdade (incontrolável) fabricada e produzida pelo mercado capitalista.
Justamente, considerando a desigualdade social inevitável em sociedades de mercado, caberia ao Estado, no âmbito dos direitos de cidadania, promover a igualdade jurídica desses cidadãos socialmente - e inevitavelmente - desiguais. Nos termos de R. K. Lima (2004, p. 50) :
(...) então, afigura-se claramente a ideia de que esse tipo de direito [constituído pelo elemento civil dos direitos da cidadania] e os tribunais são instituídos para a proteção dos indivíduos - antes súditos, depois cidadãos da República. Há diferenças, entretanto, do ponto de vista dos fundamentos da desigualdade, nos dois contextos. Pois, para Marshall, se no Antigo Regime a desigualdade está fundamentada moral e juridicamente no status, afirmando-se jurídica e politicamente o modelo da pirâmide de que falaremos mais tarde, a sociedade republicana, em que se garantiu a igualdade jurídica aos cidadãos, vai justificar a desigualdade pelas diferenças de performance entre os cidadãos no mercado. Assim, é a igualdade jurídica diante da lei e dos tribunais que vai fornecer a justificativa moral da desigualdade econômica, política e social na sociedade, cujo modelo jurídico-político pode ser representado por um paralelepípedo : a ideia de igualdade diante da lei e dos tribunais permite a desigualdade de classes nas esferas econômica, política e social, inerente ao mercado (...).
Esta percepção igualitária dos direitos de cidadania, expressa por Marshall (1967), impediria, portanto, ao contrário do que se verifica no direito brasileiro, o reconhecimento (e a reverberação) da desigualdade existente no mercado como objeto de compensação no âmbito do sistema de justiça, deixando, para a esfera das políticas públicas governamentais, o espaço de atuação das compensações das desigualdades no acesso aos direitos, de forma particularizada.
Ou seja, em resumo, o que interessa pontuar é que, no caso brasileiro, esse movimento não se realizou no campo jurídico de maneira análoga à de outras repúblicas europeias e americanas. Desse modo, o papel compensatório e tutelar do direito, no lugar de fortalecer os direitos da cidadania, tal como aponta Marshall (1967), os amputa, na medida em que trata os cidadãos como eternos menores inimputáveis e incapazes de serem vistos como sujeitos de direitos, carentes de tutela estatal (Carvalho, 2005; Faoro, 2008).
Nesse contexto, o sistema de desigualdades jurídicas explícitas, vigente em nossa sociedade - ilustrado, de um lado, por exemplo, pela prisão especial e pelo foro privilegiado e, de outro, pela proteção dos fracos e hipossuficientes nos processos judiciais -, já internalizado e incorporado por nossas instituições, faz com que a nossa tradição jurídica, em vez de desconstruir privilégios em busca de tratamentos uniformes aos sujeitos naturalmente diferentes, estenda esses tratamentos particularizados ao máximo de segmentos sociais possível, criando, com isso, em plena república federativa, uma ambiguidade incompreensível, que, por sua vez, gera sucessivos e intermináveis mecanismos de desigualdades entre seus cidadãos. É como se funcionássemos, seletivamente, ora como aristocráticos, ora como republicanos. E, na pandemia da covid-19, isso ficou evidenciado de forma bastante pedagógica, para que não restasse nenhuma dúvida sobre a confusão jurídica entre direitos e privilégios que persistimos em manter (L. R. C. Oliveira, 2018).
Na dimensão em que pensamos a questão da desigualdade jurídica no Brasil, a partir da pandemia da covid-19, pretendemos explicitar a desigualdade de tratamento a que fazemos referência, através da descrição de alguns casos administrados pelo Judiciário brasileiro.
Em geral, são situações que selecionamos para nos permitir antever duas relações com a desigualdade jurídica. De um lado, estão as que revelam a compreensão corporativa que o Judiciário tem de si próprio, na defesa de demanda por direitos particularizados, que lhes asseguram uma proteção especial, derivada da autoridade emanada deste Poder e que se explicita na situação de risco sanitário causado pela pandemia da covid-19. E, de outro, trazemos as próprias decisões judiciais, nas quais o tratamento desigual tem sido um vetor na apreciação dos pedidos de liberdade de réus presos em razão da pandemia da covid-19, que ora são concedidos, ora não.
Assim, essas situações estão categorizadas em três tipos de casos que envolvem o Judiciário no atual contexto : casos de auxílio-saúde, casos de “fura-fila” da vacinação contra a covid-19 e casos de tratamento desigual na apreciação de pedidos de liberdade de réus presos.
A primeira categoria de casos decorre da Resolução n.º 04 de 2021, em que o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e a Defensoria Estadual do Estado do Rio Grande do Sul instituíram um auxílio financeiro de saúde suplementar para custear despesas com planos médicos de servidores, incluindo os aposentados. O valor máximo para esse auxílio será de 10 % dos salários, que, no caso dos magistrados, chega a R$ 3.500,00, por exemplo. De forma semelhante, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará implementou a Política de Atenção Integral à Saúde de Magistrados e Servidores do Poder Judiciário. Benefícios análogos também ocorreram em outros estados brasileiros, incluindo o “bônus-covid” de até R$ 1.000 para promotores e procuradores do Mato Grosso, licença-prêmio a juízes do Pará, aumento salarial de servidores públicos e home office até janeiro para funcionários do Supremo Tribunal Federal.
Paradoxalmente, embora a Constituição da República Brasileira de 1988 institua a saúde como um direito social, portanto, para todos os cidadãos, nenhuma política pública estadual ou nacional semelhante à “Atenção Integral à Saúde”, específica para o momento da pandemia da covid-19, foi instituída para custear despesas de saúde para os demais trabalhadores que são de fora do Judiciário e de instituições correlatas. O que tais práticas reforçam é que alguns têm mais direitos civis que outros, inclusive na conjuntura sanitária excepcional atual.
A segunda categoria de casos, que intitulamos de “fura-fila” da vacinação contra a covid-19, é igualmente exemplar para discutir o que DaMatta & Junqueira (2017) chamam de “mentalidade do preferencial”. O “fura-fila” é o cidadão que não respeita a ordem de uma fila de espera e passa à frente dos demais, se apropriando de um lugar privilegiado, e excepcionando a regra da isonomia.
A fila, segundo DaMatta & Junqueira (2017), materializa diversos elementos de como o brasileiro, numa sociedade desigual, vive o sistema democrático, e, em sentido contrário, a aversão às filas e a prática de “furá-las” decorre de nossa cultura avessa à igualdade, que se espraia para além das relações sociais, se reproduz e ganha escala também nas instituições do Estado.
Na pandemia da covid-19 não foram raros os casos de “fura-fila” para vacinação. Porém, aqui, destacamos os pedidos feitos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), através de ofícios institucionais encaminhados aos institutos Fiocruz e Butantan, buscando prioridade para assegurar a vacinação de ministros e servidores. Após a publicização dos pedidos na mídia e a negativa formal da reserva de doses, o Presidente do STJ se manifestou no sentido de que a intenção de compra de vacinas vem sendo manifestada por diversos órgãos públicos que realizam campanhas de imunização entre seus funcionários ; e que se trataria, portanto, de um “protocolo comercial”, visando adiantar um pedido para quando houver disponibilidade. Já no âmbito do STF, a polêmica gerou a exoneração do médico que exercia a função de Secretário de Serviços Integrados de Saúde da Suprema Corte. Segundo o Ministro Presidente do STF, o pedido foi feito sem o seu conhecimento. Já o médico esclareceu que “nunca realizou ato sem a ciência dos seus superiores”. Para além desses ofícios, outros pedidos de prioridade de vacinação foram feitos ou debatidos no âmbito do TST (Tribunal Superior do Trabalho), da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público.
A terceira categoria de casos que ora discutimos articula tratamento desigual na apreciação de pedidos de liberdade de réus presos em razão da pandemia da covid-19.
Esta pandemia, especialmente em razão de seus altos índices de contágio, potencializou o risco sanitário para aquelas pessoas em estado de privação de liberdade, já que os presídios no Brasil, assim como em muitas outras partes, não têm condições de assegurar as medidas recomendadas e necessárias para evitar a transmissão e contaminação pelo vírus. Tanto é que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão incumbido pela Constituição brasileira de zelar e promover o controle e a transparência administrativa e processual, no Poder Judiciário brasileiro, com base nas posições públicas assumidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), expediu, em março de 2020, a Recomendação n.º 62, destinada aos juízes e tribunais no sentido da “adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo Coronavírus (Covid-19) no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo”, inclusive no sentido de reavaliar as prisões provisórias nesse contexto.
A partir desta recomendação, numerosos pedidos de liberdade provisória ou de comutação de regime de cumprimento de pena foram formulados perante os juízos competentes, no intuito de assegurar ao preso interessado sua saúde e liberdade, que por algumas vezes foram concedidos e por muitas outras, não, sem que da leitura das peças processuais se possa ao certo identificar os elementos objetivos que levaram à decisão de soltura e que deveriam ser aplicados em situações análogas se a igualdade de tratamento para casos semelhantes fosse um vetor interpretativo por si só.
Um caso bastante rumoroso e que recebeu muita atenção da mídia foi o de “Fabrício Queiroz e sua mulher”, no qual o STJ, por decisão da Presidência, em 2020, deferiu a prisão domiciliar para ambos, com base em razões humanitárias. Ele, por se encontrar doente, em tratamento contra um câncer, e ela, a despeito de estar foragida, para que pudesse cuidar de seu marido, mostrando-se o tribunal sensibilizado com as condições dos presídios brasileiros.
É de sabença geral que a crise mundial de Covid-19 trouxe triste e diferenciada realidade a ser enfrentada por todos, inclusive pelas autoridades judiciárias. Nesses tempos extraordinários, é preciso atenção redobrada com a saúde em nosso país e dessa preocupação não se podem afastar os riscos naturais do sistema penitenciário nacional - presídios cheios, casas de detenção lotadas, higiene precária. (Decisão do Ministro João Otávio de Noronha, Presidente do STJ, HC N.º 594360-RJ, 2020)
Inclusive este caso foi recebido pela advocacia como uma sinalização de que o STJ, daí para adiante, adotaria essa postura tida como humanitária, sendo o mesmo ainda invocado como precedente no tema. Porém, não foi assim que se passou e, segundo levantamento feito pelo portal G1, junto ao próprio STJ, dos 725 pedidos similares aos do caso Queiroz, o Presidente do STJ concedeu apenas 18 (2,5 %) prisões domiciliares. De acordo com a jornalista Rosanne D’Agostino (2020, p. 8), “Alguns dos 18 pedidos concedidos por Noronha foram de prisão domiciliar a um homem portador de linfoma não Hodgkin abdominal ; a duas mães para cuidar dos filhos menores ; e a uma advogada idosa e portadora de hipertensão aguda grave”.
Um exemplo bastante ilustrativo - e que aponta para a ausência de marcadores objetivos nas decisões - pode ser visto no habeas corpus coletivo (STJ HC. 596189-DF, 2020), impetrado por membros do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADH), e que pedia a prisão domiciliar em favor de todas as pessoas presas preventivamente pertencentes ao grupo de risco decorrente da pandemia da covid-19 e que se encontravam no sistema prisional do Distrito Federal. O pedido se fundamentava nas razões humanitárias que levaram à edição da Recomendação 62, citando expressamente, em sua inicial, o caso Queiroz como referência interpretativa. O pedido foi indeferido, sendo adotada, entre outros argumentos, a necessidade de ponderação de direito e a indispensabilidade de uma “análise atenta a respeito da situação peculiar de cada um” dos presos, a despeito de o relator Ministro Sebastião Reis Júnior consignar que não desconhecia “os dados alarmantes relatados na impetração, a justificar a adoção de medidas efetivas e necessárias à preservação da saúde e da vida de todas as pessoas que se encontram sob a custódia do Estado” (Reis, 2020, p. 30).
Outro caso de indeferimento é o de três habeas corpus coletivos (STJ HCs. 575.315, 575.314 & 576.036, 2020) impetrados pela Defensoria Pública de São Paulo, requerendo a liberdade ou o regime domiciliar para presos idosos custodiados em cidades paulistas. Ao indeferir o pedido, citando a decisão do Ministro Rogerio Schietti Cruz, no HC 567.408 (2020) acima referenciado, o relator destacou (conforme noticiado pelo próprio STJ) que “o entendimento predominante no STJ é de que a pandemia deve ser sempre levada em conta na análise de pleitos de libertação de presos, mas isso não significa que todos devam ser liberados, pois ainda persiste o direito da coletividade em ver preservada a paz social” (STJ, 2020, p. 6).
Gostaríamos também de chamar atenção para o caso do ex-governador do estado do Rio de Janeiro - Sérgio Cabral -, preso desde 2016, por acusação de crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. Seu habeas corpus (STJ HC. 567.408-RJ, 2020), requerendo prisão domiciliar, foi apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça e indeferido, entendendo a Corte que prisões imprescindíveis para a garantia da ordem pública e da ordem econômica, da instrução criminal e da aplicação da lei penal (todos esses conceitos de ambiguidade semântica) devem ser mantidas, a despeito da pandemia e recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Segundo o relator da ação, Ministro Rogerio Schietti Cruz:
A crise do novo coronavírus deve ser sempre levada em conta na análise de pleitos de libertação de presos, mas, iniludivelmente, não é um passe livre para a liberação de todos, pois ainda persiste o direito da coletividade em ver preservada a paz social, a qual não se desvincula da ideia de que o sistema de justiça penal há de ser efetivo, de sorte a não desproteger a coletividade contra os ataques mais graves aos bens juridicamente tutelados na norma penal. (Cruz, 2020, p. 2)
Com esses casos relatados, independentemente dos questionamentos que podem ser feitos em razão da figura do réu, o fato é que, a despeito de serem portadoras de doenças que as colocariam como parte do grupo de risco da covid-19, nem todas as pessoas envolvidas receberam o mesmo benefício penal por conta das razões humanitárias apontadas pelo CNJ. Situações análogas com desfechos desiguais.
3. Considerações finais: O novo é a reafirmação do velho
Como já registramos em outra oportunidade (Amorim, Baptista, Duarte, M. L. T. Lima & R. K. Lima, 2021), tradição e modernidade no Brasil não se sucederam ou se sobrepuseram, como aconteceu em outras sociedades ocidentais, mas convivem em uma conformidade ambígua. Possuímos discursos e práticas que fazem, reiteradamente, do novo a reafirmação do velho, no sentido de travestir práticas tradicionais inquisitoriais e hierárquicas no campo do Direito com discursos acusatoriais, igualitários, universais e inclusivos (M. L. T. Lima & R. K. Lima, 2020). Como se pode ver, dualidades há muito superadas em outras sociedades ocidentais, tais como honra e dignidade, inquirição e inquisitorialidade, desigualdade e diferença, direito e privilégio, ainda persistem no Brasil, inclusive no contexto da pandemia da covid-19, evidenciando que só o exame mais acurado das contradições, dos dilemas e dos paradoxos verificados entre os discursos normativos e as práticas judiciárias permite compreender melhor o campo do Direito brasileiro.
No Brasil, e a pandemia é exemplar nesse sentido, não fomos treinados no exercício da cidadania plena, no sentido de que não fomos socializados a cumprir igualmente as regras, que são sempre particularizadas. Ainda hoje, há uma lógica colonial corporativa, que expressa uma ética em que as instituições judiciárias aplicam as regras de forma particularizada, atrelando à noção de público uma perspectiva estatal que, travestida de um discurso representativo da soma de interesses individuais, na verdade reflete interesses particulares das próprias corporações do Estado.
Nesse sentido, o “abrasileiramento da burocracia” no Brasil se deu de forma peculiar, pois, embora tivessem ocorrido enlaces entre a elite jurídica e a corte, é certo que aqui as instituições judiciárias atualizaram essas relações de forma que mesclaram seu papel público a seus interesses privados, desnorteando essas noções, entre o público e o privado, e reverberando a preponderância de uma ética particularista que vigora desde as raízes do nosso Brasil até hoje (Schwartz, 2011). E os casos que mencionamos aqui, sobre a busca reiterada e naturalizada por privilégios na pandemia, são a mais forte explicitação dessa ordem corporativa, evidenciando especificidades da sociedade brasileira em relação a outras sociedades ocidentais.
Somando-se a essa cultura social, as marcas de nossa cultura jurídica produzem-se em uma estrutura de poder a serviço da desigualdade jurídica e, consequentemente, do tratamento não uniforme, aplicado aos casos concretos e às vidas dos cidadãos desta república, que cada vez mais se fragiliza, quando um dos seus Poderes se estrutura nessa dimensão.