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Forum Sociológico

versão impressa ISSN 0872-8380versão On-line ISSN 2182-7427

Forum Sociológico  no.42 Lisboa jun. 2023  Epub 31-Jul-2023

https://doi.org/10.4000/sociologico.10920 

Artigos

O efeito de Flynn como objecto transdisciplinar1

The Flynn effect as a transdisciplinary object

Sérgio Grácio2i 

iUniversidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: smmgracio@yahoo.com.br


Resumo

O efeito de Flynn descreve a rápida progressão dos níveis cognitivos das populações dos países desenvolvidos que ocorreu sobretudo na segunda metade do século XX, e cujas causas continuam a ser discutidas. Apresento aqui uma possível explicação do fenómeno numa óptica transdisciplinar, cruzando contributos da demografia e da sociologia com os da psicometria e da genética comportamental. O recuo da fecundidade, no quadro da transição demográfica, não tem lugar ao mesmo ritmo nas várias classes sociais. São as classes cognitivamente menos favorecidas que mais reduzem a sua fecundidade. Para que tal resulte na elevação do nível cognitivo do conjunto, basta que a quebra da fecundidade na metade menos favorecida cognitivamente da população seja de grandeza superior àquela que tem lugar na metade mais favorecida, induzindo uma evolução que, a par das transformações sociais de efeitos cognitivamente relevantes na experiência dos agentes, terá contribuído, com o seu efeito próprio, para o efeito de Flynn.

Palavras-chave: efeito de Flynn; transdisciplinaridade; fecundidade; estrutura de classes

Abstract

The Flynn effect describes the rapid progression of cognitive levels in developed countries populations that occurred mostly in the second half of the 20th century, with its causes still being discussed nowadays. I present a possible explanation of this phenomenon in a transdisciplinary view, intercepting contributions from demography and sociology with psychometry and behavioral genetics. The decline in fertility in a demographic transition framework did not occur at the same pace across social classes. Less cognitively favored social classes are those that reduce fertility the most. In order for that to result in the elevation of the conjunct cognitive level, all it takes is that the loss in fertility in the less favored half of the population be that of a superior magnitude than that of the most favored half, generating a process which, side by side with social transformations cognitively relevant in the people experience, would have contributed with its own effect to the Flynn effect.

Keywords: Flynn effect; transdisciplinarity; fertility; class structure

À memória de José Mariano Gago.

Introdução

Não devem ser numerosas as situações do âmbito científico em que um problema à partida sem aparente especial dificuldade não tenha até à data obtido uma solução consistente e consensual, a ponto de nomes dos mais consagrados do campo afirmarem que os ganhos nas pontuações dos testes de QI estão entre “os dados mais intrigantes e controversos em psicologia” (Nijenhuis, 2012, p. 2), e que, se houver um prémio no domínio do estudo da inteligência humana, ele deve ser atribuído a quem consiga explicar o efeito de Flynn (Deary, 2001, p. 112).

No seu balanço sobre os conhecimentos e problemas ligados ao estudo da inteligência, a equipa de especialistas da Associação Americana de Psicologia mostra-se perplexa perante a rapidez na progressão dos níveis de inteligência das populações (Neisser et al., 1996, pp. 89-90). Uns quinze anos mais tarde, novo balanço da mesma Associação, de idêntico âmbito. É rejeitada a hipótese de melhorias no património genético da população, porque os avanços da urbanização teriam aumentado, e não reduzido, a probabilidade de uniões consanguíneas. A explicação proposta aponta assim para os factores de meio: um primeiro passo na modernização teria aumentado um pouco o QI médio da população, criando condições para o próximo passo, que volta a incrementar o QI, e assim por diante (Nisbett et al., 2012, pp. 11-12).

Este artigo está organizado do seguinte modo. Introduzo a distinção entre inteligência fluida e inteligência cristalizada, destacando respectivamente os fundamentos biológicos e culturais de uma e outra, um enfoque essencial na economia da minha proposta. Apresento os relatos dos ganhos nas pontuações dos testes de QI nos países desenvolvidos, com os testes menos contaminados culturalmente e mais voltados para a inteligência fluida na dianteira do crescimento. Seguem-se os dados mais recentes para os países em desenvolvimento, que apresentam uma maior rapidez global nos ganhos que os dos países desenvolvidos. Exponho os fundamentos básicos de um possível modelo explicativo do efeito de Flynn (doravante EF) - a modernização da agricultura e o desenvolvimento das aspirações económicas e sociais. Seguem-se as linhas principais da transição demográfica e do declínio da fecundidade, bem como a caracterização da deformação da estrutura de classes, da modernização da agricultura e das consequências desta naquele declínio. Apresento uma série de trabalhos exibindo a evolução diferenciada da fecundidade segundo as classes sociais em vários países desenvolvidos, com as classes em média menos favorecidas cognitivamente a reduzir mais acentuadamente a sua fecundidade do que as mais favorecidas, conduzindo, necessariamente, à elevação do nível cognitivo do conjunto. Defendo que a homogamia social e cultural na constituição dos casais e a elevada hereditariedade da inteligência são dois suportes básicos dos processos em jogo. Analiso o processo de formação e desenvolvimento das aspirações económicas e sociais e faço ver como ele tem pressionado continuamente as condutas reprodutivas dos agentes no sentido da redução das suas descendências. Mostro como o facto de o EF ser principalmente sustentado pelos testes e provas dos testes voltadas para a inteligência fluida, implicando as realidades biológicas dos agentes, é um argumento adicional a favor da hipótese da alteração dos patrimónios genéticos das populações. Finalmente, sustento que o meu modelo, embora centrado nos países desenvolvidos, pode servir como referência para a análise dos países em desenvolvimento e, para estes últimos, sublinho a importância da qualidade da nutrição para a elevação do nível cognitivo das populações.

Inteligência fluida e inteligência cristalizada

Não foi apenas a considerável rapidez do avanço nas pontuações dos testes, francamente além do que seria de esperar, que chamou a atenção dos investigadores. Foi também a sua muito maior importância nos testes, ou provas dos testes, menos contaminados culturalmente do que nos mais contaminados. Posso acrescentar pela minha parte que isso é tanto mais notável quanto a segunda metade do século XX é palco de uma expansão sem precedentes dos sistemas educativos nos países desenvolvidos. Um aspecto fundamental ao qual voltarei.

Vejamos assim a distinção operada pela psicometria da inteligência humana entre inteligência fluida e inteligência cristalizada. A primeira é relativamente independente da experiência, capacita para resolver problemas novos e está na base da identificação de relações complexas e da realização de inferências. Nos testes, é apreendida por exemplo através de provas em que se apresentam sequências de figuras ligadas entre si por um ou mais princípios subjacentes e se pede para completar as sequências por uma figura de entre várias apresentadas à escolha. O teste das matrizes progressivas de Raven, o teste de Cattell não contaminado culturalmente ou a prova das similitudes do WAIS medem a inteligência fluida. A inteligência cristalizada resulta da experiência, integra conhecimentos, bem como capacidades intelectuais desenvolvidas com o treino. As provas verbais dos testes, por exemplo, avaliam sobretudo esta inteligência.

É muito importante destacar que a inteligência fluida tem uma base biológica: declina aproximadamente a partir dos 21 anos, com a gradual degenerescência das estruturas fisiológicas, enquanto a cristalizada continua a desenvolver-se e alcança um patamar que se mantém até tarde no ciclo de vida. O córtex pré-frontal é activado pela realização das provas da inteligência fluida, contrariamente ao que sucede para as provas mais culturalmente contaminadas (Guisande et al., 2009, pp. 29-42, 81; Lovdén & Lindenberger, 2007, pp. 764-766; Nisbett et al., 2012, pp. 12-13).

Os dados básicos

James Flynn não foi o primeiro a detectar a progressão histórica das pontuações dos testes, mas foi o divulgador do fenómeno, que acabou assim por receber o seu nome e que estudou em profundidade. Um resultado clássico do EF é o da evolução da percentagem de recrutas do exército holandês que acertou em mais de 24 itens sobre 40 no teste das matrizes progressivas de Raven: 31,2 em 1952, 46,4 em 1962, 63,2 em 1972 e 82,2 em 1981/82, o que corresponde a um ganho de 21,10 pontos de QI em 29,5 anos. Os dados existem desde os anos 1930, mas uns poucos situam-se no início do século passado, e a maior parte data do após-guerra. Os testes utilizados, em amostras diversificadas de adultos e jovens, incluem frequentemente a totalidade dos recrutas anuais dos exércitos, e vão desde o Stanford-Binet às matrizes de Raven, passando pelo Weschler e outros. Cobrem a quase totalidade dos países desenvolvidos, incluindo o Japão e Israel. Nas medidas de inteligência fluida os ganhos são de 5 a 7 pontos por década, e nas de inteligência cristalizada de 1 a 3 pontos por década. Na viragem do século, os ganhos abrandam. Ou desaparecem, como no caso dos países escandinavos, com estagnação na Noruega e Suécia e reversão na Dinamarca, país que teve um pico no início dos anos 1990 e subsequente decréscimo.

Mas o EF não se circunscreve aos países desenvolvidos. Vemos, com efeito, os países em desenvolvimento a entrar no século XXI na fase de ganhos maciços nas pontuações dos testes que os países desenvolvidos atravessaram no século anterior (Flynn, 1999, 2013; Nijenhuis, 2012; Pietschnig et al., 2010).

Ilustremos esta universalidade do EF com dois estudos. O primeiro analisou a relação entre as pontuações médias obtidas nas três versões do teste das matrizes de Raven e os anos de publicação dos resultados, consoante o tipo de país - desenvolvido ou em desenvolvimento - e a classe etária - com cinco categorias. O arco temporal foi de 1950 a 2014, com uns 200 000 participantes de 48 países.

Viu-se até que ponto as pontuações médias mudaram através do tempo, mediante regressão linear, com o ano de publicação dos resultados como variável independente. Nos países em desenvolvimento as pontuações são inferiores às dos países desenvolvidos, mas a sua progressão é mais elevada, com uma correlação, estatisticamente significativa, de 0,535, contra 0,271 para os segundos. As correlações com as classes etárias foram todas positivas e significativas (Wongupparaj, 2015).

O segundo estudo traçou o perfil da evolução de várias áreas da inteligência (fluida, espacial, de escala integral ou pontuação total, cristalizada) no período 1909-2013, com base em 271 amostras independentes, envolvendo uns quatro milhões de pessoas, de 31 países repartidos por seis continentes. O crescimento das pontuações nos testes de QI é generalizado. Os ganhos da inteligência fluida estão sempre situados acima dos das outras áreas, com crescente aumento dessa distância desde a segunda metade do século. A inteligência cristalizada apresenta os ganhos mais fracos, com estagnação a partir de meados dos anos 1980, de onde resulta um grande afastamento da fluida. Há uma desaceleração dos ganhos nos anos mais recentes (Pietschnig & Voracek, 2015).

Fundamentos de um modelo explicativo do EF

O EF é contemporâneo de contextos em que se verificam profundas transformações sociais e demográficas, transformações essas solidárias da alteração das condutas reprodutivas de importantes segmentos populacionais diferindo entre si, à partida, nos seus níveis cognitivos. Este aspeto, por sua vez, terá alterado os patrimónios genéticos das populações no sentido do aumento dos seus níveis cognitivos, contribuindo assim, com o seu próprio efeito, para o EF. Sem considerar seriamente esta hipótese, creio não ser possível desbloquear o debate e abrir novas vias à investigação.

Assim, na minha tentativa de contribuir para a explicação do EF, destaco os dois eixos principais daquelas transformações sociais, representando tendências de longo prazo, que se intensificaram após a Segunda Guerra Mundial, e que estarão na origem da referida alteração do património genético das populações: (i) a modernização da agricultura; (ii) o desenvolvimento das aspirações económicas e sociais.

A partir daqui será possível perceber o laço entre a evolução diferencial ao longo do tempo da fecundidade segundo as classes sociais e a alteração dos patrimónios genéticos. Isso implica considerar duas mediações: a transição demográfica, voltada para a evolução histórica da fecundidade, e as alterações da estrutura de classes, associadas à modernização da agricultura. As duas mediações estão presentes nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento, mas são cronologicamente lideradas pelos primeiros.

A transição demográfica

Na fase pré-industrial a fecundidade e a mortalidade são elevadas, e às crises de mortalidade (epidemias, guerras) seguem-se surtos compensatórios da fecundidade provocados pelo acesso rápido das gerações jovens ao património herdado. O crescimento da população é moderado. No segundo estádio, já em plena revolução industrial e na transição do século XIX para o século XX, a mortalidade baixa: há melhores condições de higiene, a produção agrícola aumenta sensivelmente com a selecção do gado, a rotação das culturas e a mecanização. O crescimento das populações acelera. O terceiro estádio caracteriza-se sobretudo pelo declínio da fecundidade, liderado pelas classes altas. O declínio da mortalidade torna-se mais lento. As taxas de fecundidade, à partida mais elevadas entre os agricultores e os proletários, seguidos das classes altas e por fim das classes médias, reduzem substancialmente as diferenças entre si.

No quarto estádio a fecundidade cai abaixo do nível de substituição da população, com processos de decréscimo populacional que podem no entanto ser moderadamente revertidos em certos países, onde a fecundidade aumenta.

Os países e regiões em desenvolvimento registam até determinada altura níveis elevados de mortalidade e fecundidade. Após a Segunda Guerra Mundial, as campanhas de vacinação em massa reduzem fortemente a mortalidade infantil e tem lugar um grande surto populacional. Porém, sobretudo desde finais do século XX, o crescimento económico destes países acaba por se afirmar no quadro da globalização económica, e os processos de modernização que o acompanham levam a uma baixa da fecundidade muito mais rápida do que chegou a ser previsto, com importante redução no ritmo do crescimento populacional. A África (excepto Marrocos, Tunísia, Argélia e África do Sul) e logo depois, nos níveis de fecundidade, o subcontinente indiano e a Península Arábica seguem um pouco mais tardiamente e muito mais moderadamente o processo (Canning, 2011; Lee, 2003; Nazareth, 2004, pp. 40-2, 86-100; Strulik & Volmer, 2015).

Deformação da estrutura de classes e modernização da agricultura

A evolução típica da estrutura de classes nos países desenvolvidos, bem documentada pela sociologia (Blau & Duncan, 1967; Costa et al., 2000; Hammett, 1989), caracteriza-se pelo aumento do volume e da parte das classes médias e altas e pela redução do volume e da parte das classes populares, que integram o proletariado (operariado, serviços proletarizados), os agricultores e os assalariados agrícolas. É uma evolução essencialmente determinada pela variação diferencial da produtividade e da procura final de bens e serviços nos diferentes ramos da produção, bem como pela expansão das actividades do Estado social (sobretudo educação e saúde) e das administrações públicas.

A contracção do volume e da parte das classes populares deve-se acima de tudo aos agricultores e assalariados agrícolas, que podem passar de 30% a 40% do todo a 5% ou menos. A revolução industrial desencadeou esta série de transformações, que aceleram com a segunda revolução industrial e sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Desaparece a agricultura de subsistência, a motorização generaliza-se, a dimensão das explorações aumenta, a produtividade cresce vertiginosamente. Como já referido, os agricultores são em regra a classe com maior fecundidade, facto que, aliado ao seu grande volume inicial, produz uma fortíssima pressão para a redução da fecundidade. O movimento é duplo: os filhos dos agricultores deixam de ser valorizados enquanto força de trabalho auxiliar na economia doméstica e, do mesmo passo, o abandono da actividade agrícola reduz drasticamente o volume da categoria - extinguindo para sempre uma poderosa fonte da elevada fecundidade das classes populares.

Explorando a relação entre classe social e fecundidade

Vejamos como evolui a fecundidade das diversas classes sociais. Um importante trabalho dá-nos um panorama mundial da evolução histórica da relação entre classe social e fecundidade. Baseia-se em 879 amostras provenientes de 129 fontes, repartidas por sete períodos, remontando até ao século XVIII, mas fortemente concentradas de 1950 a 2006. As amostras foram divididas em duas regiões: Europa e América do Norte, onde a redução da fecundidade foi mais precoce, e Ásia, África, América Latina e Médio Oriente, onde foi mais recente. Antes do recuo da fecundidade, as classes altas têm uma fecundidade relativamente elevada. Ao cabo da evolução, as diferenças de fecundidade por classe são muito menores do que as registadas nas épocas mais precoces, com clara convergência nos seus níveis. Com a classe social aproximada pelo rendimento económico, na Europa e América do Norte, e para o período de 1925 a 2006, a classe baixa tem de início uma fecundidade mais elevada que a classe alta, para depois esta superar, moderadamente, a classe baixa. Isso implicou uma redução muito acentuada da fecundidade da classe baixa (Skirbekk, 2008).

Em França, um inquérito realizado em 1975 às mulheres casadas nascidas no período 1925-1929, cuja classe social foi determinada a partir do marido, deu os seguintes valores das suas taxas de fecundidade: agricultores 2,94; operários 2,85; quadros superiores e profissões liberais 2,36; administrativos 2,36; patrões da indústria e comércio 2,19; quadros médios 2,17 (Desplanques & Deville, 1979, p. 28). Os agricultores e operários estão claramente na dianteira, a distância considerável das outras classes. Um trabalho baseado nos inquéritos anuais de 2005 a 2010, identificou entretanto a classe social das mulheres de acordo com as suas próprias ocupações profissionais, devido à generalização do seu trabalho extradoméstico. A nomenclatura das classes não é a mesma que a anterior, mas permite razoavelmente a comparação. As agricultoras estão agregadas a outras categorias, pelo que não é possível individualizá-las. De 2004 a 2010 a fecundidade das profissões intermédias situa-se no intervalo 1,7-1,75, a dos quadros é de 1,7, das administrativas 1,55-1,7 e das operárias 1,4-1,55 (Davie & Niel, 2012, p. 33). Claramente uma inversão da situação anterior, com as operárias agora em último lugar.

Classe social, nível educativo, fecundidade

Dada a correlação positiva entre os níveis de educação e a hierarquia das classes, a classe social pode igualmente ser aproximada pela educação, e os trabalhos que seguem utilizam este indicador. Uma investigação sobre quatro países reconstituiu a relação entre o nível educativo (alto, médio e baixo) e a fecundidade em sete coortes de nascimento, de 1940-44 a 1970-74. Na Dinamarca as mulheres com educação baixa partem com uma fecundidade bem acima das de educação média e alta, mas convergindo acentuadamente com estas até 1955-59, para as igualar tendencialmente a partir daí. Na Noruega e na Suécia a evolução é semelhante, embora com menor distância entre a fecundidade das mulheres de baixa educação e a educação das mulheres dos dois outros níveis educativos. A Finlândia não segue o caminho dos outros três países, com a fecundidade das mulheres de baixa educação um pouco acima das de educação média e superior nas coortes mais recentes (Jalovaara et al., 2017).

Um estudo sobre todos os noruegueses nascidos no intervalo 1940-64 mostrou que a fecundidade das mulheres segundo a sua educação passou de 2,46 para 2,16 no mais baixo nível educativo, entre 1940-44 e 1960-64. Para o secundário inferior e mesmos intervalos, a evolução da fecundidade foi de 2,28 para 2,09. Para os outros três níveis, secundário superior, algum superior e acima, as taxas de fecundidade apresentam sobretudo estabilidade de 1940-44 para 1960-64: respectivamente 1,99, 2,05, 1,65 e 2,01, 1,96, 1,78 (Kravdal & Rindfuss, 2007).

Em Portugal, entre 1995 e 2018, declinou substancialmente o número de nascimentos nas mães com nível de instrução inferior ao secundário, de 73,0% para 24,2% do total, enquanto aumentam os nascimentos entre as mães com o secundário, de 16,0% para 30,7%, e com o superior, de 11,0% para 38,3%. A participação das mulheres com ensino superior, largamente posicionadas nas classes altas e no mercado de emprego, e com o rendimento económico que daí resulta permite-lhes estar mais perto de concretizar os seus projectos de maternidade (Mendes, 2020, pp. 37-38), um fenómeno igualmente assinalado na Suécia (Dribe & Smith, 2020). Ou seja, depois de um primeiro movimento de declínio histórico da fecundidade, o nível de rendimento económico pode tornar-se um importante factor de variação da fecundidade. As mulheres portuguesas com instrução inferior ao secundário, sobretudo concentradas nas classes populares, reduzem fortemente o número de filhos, procurando melhorar a sua condição económica. Contudo, e considerando agora as mulheres de educação superior, não estaria aqui apenas em causa o rendimento económico. A mudança em direcção a uma maior partilha das tarefas domésticas e dos cuidados com os filhos entre os membros do casal terá levado muitas destas mulheres a encarar mais favoravelmente a maternidade (Impicciatore & Tomatis, 2020).

Classe social, fecundidade e alteração do património genético das populações

O dado aqui fundamental é que, à partida, os membros das diversas classes sociais não têm o mesmo QI médio (Saunders, 2010, pp. 58-60). Os agricultores, já o vimos, são a classe de maior fecundidade e também, em média, a menos favorecida cognitivamente. Segue-se nesse desfavorecimento e nível de fecundidade o proletariado. Estamos assim perante uma substancial redução da fecundidade na população mais desfavorecida cognitivamente.

Para que isso se traduza na elevação do nível cognitivo do conjunto, basta que a quebra da fecundidade na metade menos favorecida cognitivamente da população seja de grandeza superior à quebra que tem lugar na metade mais favorecida. Os dados e estudos anteriormente reportados confortam claramente esta proposta (Davie & Niel, 2012; Desplanques & Deville, 1979; Jalovaara et al., 2017; Kravdal & Rinfuss, 2007; Mendes, 2020; Skirbekk, 2008). Designo este contributo para o EF como Contributo I, que será de longe o mais importante, quer pela sua magnitude, quer pela sua precocidade histórica. Acresce o que poderá ser designado como o Contributo II para o EF. Como vimos, depois de liderarem o declínio da fecundidade, as classes altas podem reverter a tendência, a favor da sua condição económica e de uma maior equidade entre os membros do casal na divisão do trabalho doméstico (Dribe & Smith, 2020; Impicciatore & Tomatis, 2020; Mendes, 2020).

Homogamia e hereditariedade da inteligência

Um suporte básico dos Contributos I e II é a homogamia social e cultural na constituição dos casais, desde há muito assinalada pela sociologia (Girard, 1974), e regularmente investigada pelas ciências sociais (Bratsberg et al., 2018; Eika et al., 2014). As mulheres de educação elevada têm maior probabilidade de procriar com homens de educação elevada do que com homens de educação baixa. Se tiverem educação baixa, procriam mais com homens de educação baixa do que com homens de educação alta. O mesmo poderá ser dito no que respeita às suas classes sociais de pertença. Subjacente a esta proximidade entre os membros do casal há a proximidade genética e, com ela, uma certa semelhança entre as capacidades intelectuais, que se traduz numa correlação entre os seus QI, que pode ir, segundo os estudos, de 0,33 a 0,72 (Hugh-Jones et al., 2016, p. 103).

O outro suporte daqueles contributos é a hereditariedade da inteligência, muito elevada nos países desenvolvidos, como o mostram inúmeros estudos, e que assegura a transmissão dos genes de pais para filhos. Durante a infância uns 45% da variância nas pontuações dos testes de QI devem-se à herança genética. Na idade adulta tudo se alterou. Agora, os genes dão conta de uns 75% da variância do QI: o genoma funciona como um potencial, e a progressiva autonomia dos jovens leva-os a enveredar pelas escolhas e actividades que melhor se ajustam aos seus gostos e preferências, permitindo-lhes a expressão dos seus genes, um processo tendencialmente completado logo a seguir à adolescência (Bouchard, 2014). Face a uma hipotética situação em que as uniões teriam lugar ao acaso, a transmissão dos genes de pais para filhos é reforçada pela similitude genética entre os elementos dos casais.

Alterações nas condutas reprodutivas dos indivíduos e seus efeitos no património genético das populações, e as concomitantes transformações sociais de consequências cognitivamente relevantes na experiência dos indivíduos e promotoras do seu potencial genético, terão assim contribuído, conjuntamente, para o EF.

O desenvolvimento das aspirações

O desenvolvimento e a modernização vão a par de processos de incremento das aspirações económicas e sociais sem precedentes históricos. Por um aparente paradoxo que os sociólogos, de há muito, analisaram, os contextos sociais em que as oportunidades de melhoria da condição são reduzidas apresentam também um baixo nível de aspirações direccionadas para tal melhoria, ao passo que o desenvolvimento das oportunidades eleva as aspirações.

Isso não deverá surpreender, se levarmos em conta que a formação e o desenvolvimento das aspirações seguem, no essencial, duas vias principais. A primeira passa pelas redes de interconhecimento pessoal dos agentes, que tendem a organizar-se, em regra, segundo a proximidade social entre eles. Os casos de ascensão económica ou social têm aqui um efeito de demonstração particularmente acentuado, precisamente devido àquela proximidade: porquê ele (ela) e não eu? A segunda via apoia-se no desenvolvimento dos meios de comunicação de massas, incluindo os transportes, e na urbanização, que dão a conhecer conjuntos heterogéneos de itinerários de sucesso em que cada agente se poderá mais ou menos reconhecer, consoante a sua condição social e a natureza, mais ou menos difusa ou precisa, da informação veiculada. Nestes casos, a ausência de conhecimento directo poderá atenuar o efeito de demonstração. Mas isso é de certo modo contrabalançado pela enorme magnitude da escala em que têm lugar estes desenvolvimentos, cujo ponto de partida podemos situar nos confins do século XIX, com o caminho-de-ferro, o telégrafo, a imprensa e a fotografia, e que chegaram aos nossos dias com o automóvel, o telefone, o cinema, a aviação, a rádio, a televisão e a net.

Ambas estas linhas de desenvolvimento das aspirações desenham uma vigorosa inflexão para cima na segunda metade do século XX. Em particular, a aceleração do crescimento económico e a expansão das oportunidades de mobilidade social ascendente induzidas pelo aumento da parte das classes altas e médias na estrutura de classes multiplicam os casos, com forte efeito de demonstração de melhoria das condições sociais. O crescimento, sem precedentes, dos sistemas educativos é, em simultâneo, uma consequência e uma causa da expansão das aspirações.

Essa expansão exerce uma pressão contínua e poderosa nas condutas reprodutivas dos agentes. Daí a redução generalizada da fecundidade, uma forma indirecta de melhorar a condição económica das famílias, sobretudo no caso das classes populares, e também, sem descurar o aspecto económico, de alocar mais tempo disponível para os adultos, e antes de mais as mulheres, desenvolverem estratégias de ascensão social, ou de consolidação do estatuto social, o que terá prevalecido nas classes médias e altas. Do mesmo passo, são favorecidas as oportunidades sociais dos descendentes, cujo reduzido número lhes permite agora beneficiar de mais recursos familiares. Já vimos que nas classes altas esta tendência poderá ter sido revertida a partir de certa altura, devido à condição económica e a um maior equilíbrio na divisão do trabalho doméstico.

De qualquer modo, considerando apenas as grandes linhas do modelo desenvolvido, é possível formular uma hipótese explicativa do declínio mais acentuado da fecundidade das classes populares. Ela apontaria para uma configuração peculiar do efeito combinado do nível das aspirações económicas e sociais, da condição económica e da posição social. Pode até generalizar-se e avançar que, ao longo do tempo, a fecundidade de qualquer classe social dependeria deste tipo de configuração, envolvendo aqueles três factores.

Sobre o modelo proposto

Esta proposta é uma tentativa de contribuir para a compreensão do EF. Como qualquer documento deste teor, está obviamente aberta à crítica e à discussão. Em todo o caso, ela explicaria dois aspectos essenciais do EF. (i) A progressão nas pontuações dos testes tem lugar sobretudo nas provas menos contaminadas culturalmente e, assim, mais dependentes das realidades biológicas individuais. Se o património genético das populações fosse estável, e portanto sem efeito no incremento das capacidades cognitivas, os factores de meio, repercutidos nas provas culturalmente contaminadas, teriam prevalecido, especialmente numa época de fortíssima expansão dos sistemas educativos. (ii) A intensidade das transformações na estrutura de classes e o declínio da fecundidade reduzem-se fortemente e acabam por esbater-se, a partir de determinada altura, na evolução das sociedades desenvolvidas. Tal é particularmente visível no esgotamento dos efeitos da modernização da agricultura, o que é compatível com a paragem do EF em países do Norte da Europa nos finais do século passado.

Notas conclusivas

A análise das consequências da modernização da agricultura refere-se sobretudo aos países da Europa ocidental, e apenas se ajusta em parte aos países que se constituíram maciçamente através da imigração, como os EUA, a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia, onde os agricultores tiveram à partida largas oportunidades de ocuparem importantes extensões de terra. Tal terá favorecido uma mais rápida concentração da terra, a mecanização e sobretudo a motorização e a especialização das produções em vastas áreas do território, além de que a distância em capacidade cognitiva que os separava das outras classes era talvez menos importante. De qualquer modo, independentemente do contributo da modernização da agricultura para a redução da fecundidade das classes populares, tal redução foi, como vimos, e mais geralmente, um efeito do desenvolvimento das aspirações económicas e sociais.

A referência aos relativamente rápidos progressos do EF nos países em desenvolvimento não deve sugerir, sob esse ponto de vista e o do próprio desenvolvimento, que estes países se estão a aproximar dos países desenvolvidos. Aliás, e como é bem conhecido, eles são um conjunto muito mais heterogéneo do que os segundos, o que, só por si, bastaria para afastar uma tal leitura.

O enfoque interdisciplinar adoptado mobilizou contributos da demografia e da sociologia que permitiram o acesso à informação que faltava à psicometria e à genética comportamental para constituir o EF como um objecto transdisciplinar, com autonomia e coerência próprias.

O EF resulta, no essencial, de dois processos que se desenrolam conjuntamente, num duplo movimento entrelaçado: (i) o desenvolvimento e a modernização, com os seus efeitos profundos e diversificados na expressão dos potenciais genéticos das populações; (ii) a alteração desses potenciais, devida às condutas reprodutivas diferenciadas de categorias de agentes com níveis cognitivos diferenciados.

O modelo proposto está centrado nos países desenvolvidos, mas isso não implica que estes, no essencial, não devam ser uma referência para a análise dos países em desenvolvimento que, tendencialmente, embora com importantes variações, seguem as mesmas linhas de transformação histórica dos primeiros. Pode admitir-se que, para certos níveis intermédios de desenvolvimento, coexistam características que nos países desenvolvidos surgiram sobretudo numa sequência temporal. Por exemplo, em certos países latino-americanos, uma maior equidade na repartição das tarefas domésticas entre os membros do casal, em segmentos das classes altas, com incidência positiva na fecundidade, poderá eventualmente coexistir com 10% a 15% dos activos na agricultura.

Podemos seguir grosso modo os especialistas da Associação Americana de Psicologia (Nisbett et al., 2012) quando afirmam que a qualidade da nutrição teve possivelmente alguma influência no EF nos países desenvolvidos na primeira metade do século XX, mas não depois. Para os países em desenvolvimento, é seguramente um factor a ter em conta. Uma revisão de literatura mostra que a subnutrição, mesmo moderada, da mãe durante a gravidez e a da criança, duas condições estreitamente associadas, influenciam negativamente o raciocínio, as funções visual-espaciais, o QI, o desenvolvimento da linguagem, a atenção, a aprendizagem e o aproveitamento escolar (Nyaradi et al., 2013). A melhoria das condições materiais de existência e os seus efeitos na qualidade da nutrição nos países em desenvolvimento devem ter aí uma influência importante no EF.

Referências

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Notas

1 Artigo escrito conforme a antiga ortografia da língua portuguesa.

2 Sérgio Grácio é sociólogo e docente aposentado da NOVA FCSH.

Recebido: 20 de Março de 2022; Aceito: 14 de Fevereiro de 2023

Sérgio Grácio é o responsável pela conceitualização, metodologia, análise formal e redação - escrita do rascunho original e revisão e edição do texto final - deste trabalho.

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