Introdução
Os Enfermeiros, em particular de serviços de urgência ou de equipas extra-hospitalares, são dos primeiros profissionais de saúde a contactar com o crime violento e o trauma, consistindo o seu foco a assistência à vítima priorizando cuidados de saúde (Ferreira, 2018). Além da assistência em si, existem uma multiplicidade de situações que necessitam de abordagens específicas por forma a que os processos de peritagem não sejam ser adulterados. Em particular salientam-se mais comummente os casos de violência doméstica, vítimas por armas de fogo e agressões, mas também os cuidados às vítimas de acidente de viação e de trabalho (Gomes, 2016).
Com o confinamento imposto pela situação pandémica da Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2), verificou-se uma diminuição do número de acidentes de viação. Em 2020, ocorreram 26 501 acidentes, comparativamente aos números tendencialmente crescentes desde 2012 até 2019, com a ocorrência de 35 704 acidentes em 2019 (Pordata, 2021). Porém, este mesmo isolamento social levou igualmente a um desvio comportamental das pessoas, potenciando situações de violência doméstica. Registou-se um aumento de 60% nas chamadas e emergência de mulheres vítimas ou ameaçadas de violência doméstica por parte dos parceiros, em comparação com período homólogo de 2019 (Organização Mundial de Saúde, 2020).
A valorização do papel do enfermeiro neste âmbito ainda está muito aquém. O papel do enfermeiro forense é determinante na prestação de cuidados à pessoa, família sujeitos a estes tipos de cenários, na promoção e proteção da saúde, mas igualmente no processo de investigação (Ordem dos Enfermeiros, 2021). Se a primeira abordagem à vítima ou ao agressor consiste numa prestação de cuidados de enfermagem promotora de vida, redução de lesões físicas, psicológica e da dor, também devem estar associados cuidados médico-legais que respeitem a colheita, preservação e documentação de vestígios passíveis de futura investigação jurídica (Cruz, 2017).
Pela panóplia de casos forenses que surgem no quotidiano da prática de enfermagem, por a primeira abordagem ser assegurada frequentemente por estes profissionais e pela especificidade da prestação de cuidados, urge identificar os conhecimentos e as práticas dos enfermeiros portugueses na execução de procedimentos forenses. Deste modo, esta investigação tem como objetivo avaliar as práticas e os conhecimentos dos Enfermeiros Portugueses sobre Enfermagem Forense. Foi definida como questões de investigação: Qual o nível de conhecimentos dos enfermeiros portugueses sobre enfermagem forense? Quais as práticas forenses dos enfermeiros portugueses?
1. Enquadramento teórico
Considerado um problema de saúde pública, o crime violento e os traumas associados requerem uma atuação dinâmica da equipa multidisciplinar, evolvendo igualmente profissionais de saúde (Gomes, 2016). Em particular, a Enfermagem Forense resulta da interseção do sistema de saúde com o sistema legal, originando um processo de simbiose entre a enfermagem e as ciências forenses. Nesse sentido, a enfermagem forense dedica-se à investigação e interpretação clínica de lesões forenses em pessoas vivas ou cadáver em resultado de maus-tratos, abuso sexual e outras formas de violência em colaboração com o sistema judicial, podendo desta forma auxiliar também com o seu parecer no processo de investigação de uma morte (morte de causa violenta ou indeterminada) (Gomes, 2014a; 2014b).
Situações de trauma, de asfixia e intoxicação, de violência interpessoal, de violência coletiva, de psiquiatria e detenção, e investigações de morte constituem algumas das situações forenses com que o Enfermeiro do serviço de urgência se pode deparar (Ferreira, 2018). Para além destas situações é de ressalvar que só em 2019 ocorreram em Portugal 89 crimes de homicídio voluntário consumado, 16 872 crimes de condução de veículo com uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2g/L, sendo que 182 portugueses perderam a vida com uma taxa de álcool no sangue superior a 0,5g/L, foram identificadas 33 472 vítimas de violência doméstica e 26 573 agentes ou suspeitos de crimes de violência doméstica (Pordata, 2021).
Com vista a uma primeira abordagem de cuidados de saúde à vítima de violência, privilegiam-se a assistência pré-hospitalar e os serviços de urgência. Nestes serviços, os enfermeiros têm um papel fundamental neste tipo de vítima cuja necessidade de cuidados diferenciados é inerte. Os enfermeiros constituem o grupo profissional mais prevalente, possuem uma diferenciação de conhecimentos, têm presença 24 horas e são os primeiros profissionais no atendimento à pessoa, nomeadamente através do gabinete de triagem (Donaldson, 2020).
O enfermeiro tem papel de assistência à vítima promovendo cuidados de saúde. Porém, também é seu dever proceder à preservação dos vestígios que, à posteriori poderão ser alvo de prova pericial em Tribunal como relevância médico legal (Berishaj et al., 2020; Cruz, 2017). Consideram-se vestígio qualquer material útil para relacionar um certo crime com um presumível suspeito da prática do mesmo, com uma arma ou um lugar (Ferreira, 2018). Estes, considerados prova física, podem ser considerados inviáveis em caso de erro de interpretação, de recolha ou caso não sejam encontrados. O Princípio de Locard, que estabelece que sempre que existe contato entre dois objetos, irá haver uma permuta (“um rasto ou vestígio”), deve orientar a colheita e preservação forense - no local do crime ficam inevitavelmente, vestígios do criminoso que por sua vez transporta consigo voluntária ou involuntariamente vestígios do local onde se praticou o ato criminoso (Cruz, 2017). De modo que qualquer prova seja considerada plausível em termos jurídicos, devem existir garantias da não manipulação por parte de terceiros. Esta prática é denominada de “Cadeia de custódia” refere-se à “criação de um registo permanente de documentação do nome e função de cada pessoa responsável pela preservação da evidência forense em cada etapa de sua colheita, armazenamento e transporte para avaliação” (Cruz, 2017, pp. 38). Nesse sentido e perante uma vítima de violência ou trauma, o Enfermeiro tem um papel ativo e fulcral tanto na preservação da vida podendo a recolha e manutenção de potenciais indícios judiciais correrem riscos de serem descorados, levando a uma quebra da cadeia de custódia e consequentemente à perda de evidências forenses necessárias para a investigação. Deste modo, o Enfermeiro intervém na identificação de lesões ou vestígios, na preservação dos últimos e na garantia de cumprimento da cadeia de custódia não esquecendo do seu papel na articulação com as autoridades e a medicina legal.
2. Métodos
O estudo quantitativo, descritivo-correlacional de matriz transversal foi realizado com Enfermeiros inscritos na Ordem do Enfermeiros (OE) que exercem funções em Portugal Continental e Arquipélagos. Dados mais recentes fornecidos pela OE, informam que população alvo é constituída por 73912 Enfermeiros (Ordem do Enfermeiros, 2018). Foram excluídos enfermeiros que exercem funções no estrangeiro e aposentados. A amostra, não probabilística por conveniência (os sujeitos foram selecionados porque estavam disponíveis e responderam ao questionário e não através da aplicação de critérios estatísticos), contou com 403 Enfermeiros representando apenas 0,55% % da população que constitui o corpo de enfermagem inscrito na OE de Portugal, denotando uma baixa adesão ao estudo.
A recolha de dados realizada entre os dias 6 a 31 de maio de 2021, teve por base um instrumento de colheita de dados constituído por três questionários:
Questionário Geral Enfermagem Forense (QGEF) de Cunha & Libório (Libório, 2012; Felipe et al., 2019), que integrou questões sociodemográficas, académicas, profissionais e formativas no âmbito da Enfermagem Forense;
Questionário sobre Conhecimentos e Práticas de Enfermagem Forense (QCPEF), que possui 74 perguntas dicotómicas que avaliam os conhecimentos sobre conceitos, situações e vestígios forenses, comunicação e documentação das evidências e cuidados na preservação de vestígios. A cada item com resposta correta é atribuída uma cotação de um ponto (se errada, zero pontos), tendo um score global de 74 pontos. Quanto maior o score global melhor o nível de conhecimentos. Os autores não realizaram o estudo dimensional do instrumento (Coelho et al., 2016);
Questionário sobre as práticas de enfermagem forense, que foi realizado para o presente estudo tendo por base o QCPEF e é constituído por 25 questões com o objetivo de averiguar se os enfermeiros executam ou não uma determinada prática.
Para o estudo da consistência interna das escalas e respetivas subescalas utilizadas no presente estudo utilizámos o coeficiente Alpha de Cronbach (α). Este coeficiente pode apresentar valores compreendidos entre 0 e 1, sendo que a maioria dos autores (Marôco, 2007), refere que são aceitáveis resultados iguais ou superiores a 0,70. Os resultados demonstram que nas subescalas do QCPEF obtivemos valores de α muito baixos (α<0,7) e, na maioria delas, inferiores aos encontrados por Libório (2012). No global do questionário observamos um valor, que embora inferior ao referenciado por Libório (2012), é superior ao limite atrás mencionado. Estes resultados levaram-nos a optar por não considerar as subescalas e realizar as análises estatísticas, apenas, para o global do questionário. Para o questionário das práticas sobre enfermagens forense obtivemos um valor bastante elevado (α= 0,96) pelo que se justifica o cálculo de um score global (Tabela 1).
O estudo obteve parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde do Instituto Politécnico de Viseu (n.º10/SUB/2021). Os questionários foram elaborados através da plataforma Google Forms e divulgados via OE. Todos os participantes foram voluntários e informados dos seus direitos e do objetivo do estudo tendo assinado consentimento livre.
Os dados foram explorados através de estatística descritiva recorrendo a frequências absolutas e percentuais e a medidas de tendência central (média ou mediana) e de dispersão (desvio padrão). Este estudo possui um erro amostral de 4,9% e um grau de confiança de 95%. Também foi aplicada estatística inferencial, nomeadamente o teste U de Mann-Whitney e de Kruskal-Wallis (na presença de dados contínuos) e do teste Qui-quadrado (X 2) ou equivalente teste de Fisher (na presença de dados dicotómicos ou ordinais). Para correlacionar duas variáveis contínuas utilizámos o coeficiente de correlação de Spearman. Para definirmos os grupos/ pontos de corte de classificação dos conhecimentos sobre práticas de enfermagem forense e da execução destas mesmas práticas, seguimos os métodos propostos por Pestana e Gageiro (2014), para definição de grupos extremos, e atendendo que ambas as variáveis apresentaram distribuição não normal (teste de Kolmogorov-Smirnov, p<0,001), utilizámos a fórmula: mediana ± 0,25 × amplitude inter-quartil. Na escolha das técnicas estatísticas, nomeadamente dos testes, atendemos à natureza e características das variáveis envolvidas e às indicações apresentadas por Pestana e Gageiro (2014) e por Marôco (2007). Em todos os testes, fixámos o valor 0,05 como limite de significância, ou seja, rejeitamos a hipótese nula quando a probabilidade do erro tipo I era inferior a 5% (p(0,05). Para realizar o tratamento estatístico utilizamos o software IBM Statistical Package for the Social Science (IBM SPSS), na versão 26.0.
3. Resultados
A amostra contou com 403 Enfermeiros Portugueses, maioritariamente do género feminino (81,1%; n=327) e com uma média de idade de 41,18 anos (±9,71). Possui Mestrado/ Especialidade 44,9% (n=181) enquanto que 61,5% (n=248) estão na carreira de Enfermeiro, a maioria trabalha na região Centro de Portugal (72,5%; n= 292), possuem uma média de 17,82 anos de experiência profissional (±9,96) e 10,33 anos de experiência no atual serviço onde exercem funções (±8,76), sendo que a generalidade não trabalha em contexto de urgência (65,3%; n=263) (Tabela 2).
A análise das características da prestação de serviço e da formação, revela que (45,7%; n=184) dos inquiridos afirmam contactar raramente com casos forenses e que as situações clínicas mais frequentes são as relacionadas com traumatismo (73%; n=294), acidentes de viação (66,0%; n=266) seguido das lesões por armas de fogo ou brancas (52,1%; n=210). A existência de protocolos institucionais relacionados com intervenção forense apenas é confirmada por 7,7% (n=31). Os Enfermeiros consideram a formação na área forense de importante a muito importante (90,6%; n=365) e 90,3% (n=364) gostaria de frequentar este tipo de formação, sendo que apenas 9,7% (n=39) adquiriam formação em serviço com uma média de 6,78h (±9,0) e que 69,5% (n=280) não assistiram a formações extrainstitucionais por: desconhecimento da sua existência (59,3%; n=166), pouca oferta formativa (29,6%; n=83), desinteresse (7,5%; n=21) ou falta de tempo (3,6%; n=10). Os enfermeiros que frequentaram formação extrainstitucional neste âmbito, tiveram uma média de 35,66h (±87,32) sendo que a maioria, 39,8% (n=49) a obteve em ações de formação. A maioria dos inquiridos considera de importante a muito importante a existência do enfermeiro forense em Portugal (93,5%; n=377), e classifica a sua intervenção igualmente como tal (94,1%; n=379). De realçar que classificam o seu nível de conhecimento nesta temática inexistente a pouco apropriado (65,7%; n=265). Quanto à existência de material específico para a abordagem de casos forenses, 63% (n=254) afirma não existir no seu serviço e 7,7% (n=31), possuem sacos de papel, material para abordagem à pessoa vítima de violação sexual, câmara fotográfica, entre outros (Tabela 3).
A análise da classificação dos conhecimentos sobre práticas de enfermagem forense e da execução destas mesmas práticas, patenteia que as pontuações que variaram entre 46 e 74 pontos, sendo o valor médio 65,95±4,71 pontos. Metade dos profissionais obteve pontuações iguais ou superiores a 67,0 pontos. Observou-se que 40,2% dos enfermeiros foram classificados no grupo extremo designado por “nível insuficiente” de conhecimentos sobre práticas de enfermagem forense, seguidos de 30,5% que foram incluídos no “nível razoável” e dos restantes 29,3% que obtiveram pontuações que posicionaram os conhecimentos evidenciados no “nível excelente”.
Os resultados dos scores para as práticas de enfermagem forense variaram entre 0 e 25 pontos, tendo como valor médio 14,03±8,35 pontos. Contatou-se que 40,7% dos enfermeiros executam práticas de enfermagem forense, de forma muito adequada, seguindo-se 35,5% que integraram o grupo extremo inferior, isto é, evidenciaram execução menos adequada das práticas de enfermagem forense. (Tabela 4).
O cálculo dos quartis para os resultados do QCPEF, mostra que as 25% de questões com maior percentagem de respostas corretas no QCPEF, ou seja, cujo resultado é superior ou igual ao Quantil 3, são: nº 41, nº 47, nº 23, nº 25, nº 66, nº 21, nº 12, nº 29, e nº 30. Segundo o autor original do instrumento, estas questões relacionam-se com “Cuidados de Enfermagem Gerais”, “Vestígios Forenses” e “Situações Forenses” (Libório, 2012). Ao invés de as 25% de questões com menor percentagem de respostas corretas, ao seja cujo cálculo é inferior ou igual ao quartil 1, são: nº 63, nº 57, nº 62, nº 7, nº 71, nº 1, nº 69, nº 56, nº 4, nº 70, nº 46, nº 9, nº 5, nº 16, nº 43, nº 3, nº 73, nº 36 e nº 52 sendo que a maioria se relaciona com a “Preservação de Vestígios” e os “Conceitos de Enfermagem Forense” (Libório, 2012).
Quanto ao QPEF, averiguamos que as 25% de questões com maior percentagem de práticas executadas são: nº 7, nº 8, nº 6, nº 5, nº 14, nº 19 e nº 16 (igual ou superior ao quartil 3). As com maior percentual de exequibilidade são a nº7 (Considera que a identificação de casos suspeitos de maus tratos/ negligência ocorre com o envolvimento de outros elementos da equipa multidisciplinar?), com 90.6% (n=365) e a nº.8 (Regista com rigor os locais de punções venosas, drenagens e outros procedimentos invasivos?), com 86.1% (n=347). Contrariamente, as 25% de questões com menor exequibilidade são: nº 15, nº 18, nº 1, nº 17, nº 10, nº 22 e nº 4. As práticas menos aplicadas na prática dos enfermeiros são a nº4 (Procede à recolha de vestígios materiais (tais como vidros, tintas, entre outros) de acordo com os devidos procedimentos médico-legais?) com 36,7% (n=148) e a nº 22 (Fotografa as lesões físicas ou outros vestígios com consentimento da vítima, identificando-os com régua no campo fotográfico?), 39,7% (n=160). Os inquiridos justificam estas não práticas com a falta de conhecimentos, informação, formação, protocolos, recursos, tempo ou pela não aplicabilidade no contexto de serviço onde se inserem/ inexperiência com casos forenses.
Por fim, analisámos a associação entre as práticas de enfermagem forense e o nível de conhecimento, e outras variáveis (Tabela 5).
A associação entre o nível de conhecimentos dos enfermeiros sobre enfermagem forense e as suas práticas é muito fraca e não é estatisticamente significativa (p>0,05). Por outras palavras, não existe evidência de que o nível de conhecimentos dos enfermeiros sobre enfermagem forense esteja relacionado com as suas práticas nesta área.
A hipótese das características sociodemográficas (género, habilitações académicas e idade) dos enfermeiros portugueses influenciarem o nível de conhecimentos e as práticas de Enfermagem Forense confirma-se com a existência de diferença estatisticamente significativa nas práticas de enfermagem forense (p =0,016) e a comparação dos valores das medidas de tendência central revela que os enfermeiros do género masculino tendem a efetuar mais as práticas de enfermagem forense. As correlações com a idade dos enfermeiros são muito baixas e não significativas (p>0,05) e a comparação do nível de conhecimentos sobre práticas de enfermagem forense e das práticas de enfermagem nesta área revelou a não existência de relação (p>0,05). Nesse sentido a hipótese é, parcialmente, confirmada.
Ao analisar-se se a área de exercício profissional dos Enfermeiros tem impacto nos conhecimentos e nas práticas de Enfermagem Forense verifica-se a existência de diferenças estatisticamente significativas (p=0,001 e p<0,001, respetivamente). Assim, os enfermeiros que exercem funções em SU tendem a evidenciar maior nível de conhecimentos e a ter melhores práticas de enfermagem forense.
Adicionalmente apurou-se que os enfermeiros que exercem funções em serviços onde existem protocolos no domínio da área forense tendem a evidenciar melhores práticas de enfermagem forense (p=0,014).
Por fim, verificou-se que os enfermeiros que frequentaram formação na área de enfermagem forense tendem a evidenciar maior nível de conhecimentos e a ter melhores práticas (p<0,001 e p=0,015, respetivamente).
4. Discussão
Os profissionais de saúde em contexto de urgência ou de cuidados de situações agudas são mais propensos na identificação de situações forenses/legais o que se traduz em ansiedade e insegurança quando existe falta de conhecimentos e de formação na área (Rahmqvist et al., 2019).
A amostra deste estudo é constituída maioritariamente por mulheres adultas com uma experiência profissional média de 18 anos, o que é consistente com os dados de vários estudos sobre o tema (Donaldson, 2020; Cruz, 2017). A maioria afirma que raramente contactou com vítimas forenses (45,7%), o que é concordante com os dados de Ferreira (2018). A inexperiência e déficit de conhecimento sobre estes tipos de cuidados contribui para um aumento da ansiedade das equipas de Enfermagem relativamente às suas funções e responsabilidades, para além de que pode ser interpretado pela vítima como desinteresse, insensibilidade e indiferença favorecendo vivências traumáticas e potenciando o seu sofrimento (Donaldson, 2020).
No presente estudo 69,5% dos inquiridos afirmam não possuírem formação específica no domínio da Enfermagem forense e 9,7% obtiveram-na em serviço, e estes dados são corroborados por vários estudos (Ferreira, 2018; Cruz, 2017; Gomes, 2016). Contudo, o mesmo não se verifica a nível pré-hospitalar, pois segundo Susano (2019), 78,8% dos enfermeiros afirmam ter tido formação em serviço ou extrainstitucional. A justificação para estes resultados pode relacionar-se com o facto de este tema não constar nos planos curriculares dos cursos de Licenciatura em Enfermagem em Portugal e porque esta área de formação não é considerada relevante em contexto de alguns serviços (Coelho et al., 2016). Os enfermeiros autoavaliaram os seus conhecimentos nesta área como inexistente a pouco apropriada (65,7%) ao contrário dos enfermeiros que exercem funções no pré-hospitalar (41,5%). Estas circunstâncias justificam a necessidade de os inquiridos realizarem formação na área (90,3%) e a importância que lhe atribuem (93,5% importante a muito importante). É de salientar que a nível internacional, o interesse que é dado a esta área pela Enfermagem é igualmente significativa, por exemplo, na Nova Zelândia 84% dos inquiridos considera igualmente importante ter conhecimentos sobre o tema em apreço (Donaldson, 2020). Sugere-se assim, o desenvolvimento de programas/ formações académicas e institucionais de modo a otimizar os cuidados forenses prestados, proteger as vítimas e a salvaguardar juridicamente os Enfermeiros.
A existência de protocolos institucionais para abordagem de casos forenses no quotidiano dos enfermeiros ocorre em apenas 7,7%. Todavia, nem todos os estudos existentes a nível institucional ou regional estão em consonância com estes dados. Na região centro, Cruz (2017) afirma que 12,6% dos inquiridos confirmam a existência de protocolos, Susano (2019) apontou 31,3% a nível pré-hospitalar e, por fim, Ferreira (2018) 40,8%. É de referir que a existência de protocolos forenses é fundamental para a prestação de cuidados, mas o seu conhecimento, divulgação e treino são igualmente importantes para uma correta praxis.
A concretização das práticas forenses pelos inquiridos deste estudo acontece com adequabilidade variável, pois 35,5% dos inquiridos têm práticas menos adequadas, o que é corroborado por vários estudos (Donaldson, 2020; Susano, 2019; Cruz, 2017).
Discutidos os principais resultados, importa referir que este estudo possui algumas limitações. O tamanho da amostra, apesar de ser elevado e se ter procurado incluir o maior número possível de participantes, não é representativa da população em estudo. Existe um erro amostral de 4,9% e constitui apenas 0,55% da população. Uma possível justificação poderá prender-se com o reduzido limite temporal de colheita de dados do estudo que foi prejudicado devido à agilização dos processos de autorização dos diversos intervenientes. O tempo médio de preenchimento do questionário também pode ter sido um fator dificultador. Contudo, este foi o primeiro estudo a debruçar-se sobre o tema aplicado a nível nacional. Por fim, o facto de existirem poucos estudos a nível internacional e nacional leva a que existam poucos instrumentos/escala para medir o fenómeno e por outro lado que as mesmas estejam validadas, dificultando a comparação de resultados. Não obstante, este estudo sugere essa necessidade e mesmo para a criação de uma escala validada de modo a permitir a realização de estudos longitudinais, que por exemplo permita ser utilizada aquando da realização de formações e aplicação de protocolos. O reconhecimento da entidade reguladora de Enfermagem constitui um primeiro passo neste processo, sendo que a recente possibilidade de validação e reconhecimento da Competência Acrescida Diferenciada em Enfermagem Forense será favorável para o desenvolvimento da prática e da investigação neste domínio (Portugal, Regulamento 728/2021).
Conclusão
O presente estudo permitiu inferir que 40,2% dos enfermeiros possuem o nível de conhecimentos de é baixo / insuficiente, contudo 40,7% executam práticas muito adequadas no domínio da Enfermagem Forense. Constatou-se que não existe relação entre o nível de conhecimentos e as suas práticas e que as características sociodemográficas também não as influenciam. Porém, o exercício de funções em SU, a existência de protocolos e de formação na área estão associados um maior nível de conhecimentos e a mais práticas.
Em termos de implicações para a prática clínica, estes resultados sugerem a necessidade de maior investimento no domínio da Enfermagem Forense tanto a nível académico (com a inclusão da disciplina nos planos curriculares) como a nível institucional (com a realização de formações de serviço e a criação de normas de procedimento) não esquecendo a importância da criação de diretrizes a nível nacional baseadas nas mais recentes evidências com objetivando assim a prestação de cuidados de saúde seguros a toda a Pessoa, em prol dos seus direitos médico-legais e na salvaguarda jurídica do Enfermeiro. A criação de equipas multidisciplinares dedicadas nas unidades de saúde (primárias ou hospitalares) poderá traduzir-se numa mais-valia.
Por último, e tendo por base as implicações para a investigação sugerimos a realização de mais estudos nacionais que permitam dados mais generalizados da população portuguesa. A validação de um instrumento comum e posterior utilização poderá melhorar o potencial de comparação dos resultados.
Agradecimentos
Os autores agradecem o apoio da Ordem dos Enfermeiros na disseminação do questionário. De igual forma, agradecem o apoio da Escola Superior de Saúde de Viseu (ESSV) e da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA: E), acolhida pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC) e financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).