Introdução
A Doença Inflamatória Intestinal (DII) engloba um grupo heterogéneo de patologia intestinal de caráter crónico, cuja etiologia permanece incerta e o prognóstico é variável entre os grupos etários. Nos últimos anos verificaram-se progressos na descoberta da fisiopatologia da doença e a importância de vários fatores, com destaque para os fatores genéticos (Morna, 2016).
Nesta definição incluem-se três grupos distintos: a Doença de Crohn (DC); a Colite Ulcerosa (CU); e a Colite Não Classificável (CNC). A DC é um processo inflamatório transmural, idiopático e crónico, que pode ser isolado a um segmento do tubo digestivo ou afetar mais do que uma porção, contíguas ou não. A CU, embora também seja um processo inflamatório crónico, limita-se à mucosa e afeta o reto, podendo ter extensão proximal e contínua. Na CNC enquadram-se as situações em que a avaliação diagnóstica não permita a sua inclusão nos outros grupos.
A DII, enquanto doença crónica, exige do doente um processo de adaptação às mudanças por ela impostas, e a melhoria da qualidade de vida é condicionada pela forma como cada pessoa é capaz de se auto-cuidar e integrar no seu dia-a-dia a gestão de um regime terapêutico, por vezes complexo (Santos, Ramos, & Fonseca, 2017). O desenvolvimento natural desta doença é imprevisível e uma variedade de complicações podem surgir, sendo imperativo adquirir estratégias adaptativas. Para atingir esse fim é importante que estes doentes tenham um conhecimento abrangente sobre a DII.
Yoon et al. (2019) relataram que maiores níveis de conhecimento reduzem os custos de saúde com os doentes. Além disso, conhecimentos incorretos diminuem a qualidade de vida destes doentes. Programas de educação para corrigir comportamentos inadequados na DII são fundamentais, sendo útil a existência de ferramentas para medir o nível de conhecimentos de forma objetiva, avaliando a eficácia destes programas de educação.
Neste contexto, definiu-se como objetivo geral do estudo: avaliar o conhecimento sobre a patologia nas pessoas com DII.
1 - Enquadramento teórico
No virar do século XXI, a DII tornou-se uma doença global com incidência acelerada nos países recentemente industrializados, cujas sociedades se tornaram mais ocidentalizadas. Estes dados sublinham a necessidade de investigação na prevenção da DII e inovações nos sistemas de saúde para gerir esta doença complexa e dispendiosa (Ng et al., 2017).
A pessoa com doença crónica é desafiada a integrar e a desenvolver no seu dia-a-dia comportamentos de autocuidado que promovam a qualidade de vida e o bem-estar, nomeadamente a integração no seu quotidiano de regimes terapêuticos complexos (regimes medicamentoso, dietético e de exercício físico). É por isso necessário aprender sobre a doença e a gerir os vários regimes, sendo o défice de conhecimento uma das principais barreiras a este desafio. Cabe ao enfermeiro o papel de facilitador neste processo de adaptação, estimulando e fortalecendo a capacidade de autocuidado, assumindo-se como elemento vital na gestão da doença e do regime terapêutico (aconselhamento, orientação, educação e suporte) (Oliveira, 2015).
Perspetiva-se que os cuidados centrados na pessoa (CCP) e as intervenções de enfermagem dirigidas, poderão melhorar os resultados em saúde, nomeadamente a satisfação dos utentes e a alteração de comportamentos que se traduzam na capacitação da pessoa para o autocuidado na gestão do regime terapêutico.
Colocar a pessoa com um papel central nos cuidados prestados implica, considerar como fundamentais na tomada de decisão dimensões como as tradições culturais, as preferências, os valores, a situação familiar e os estilos de vida, etc. Os níveis de conhecimento relacionados com a doença em doentes com DII são importantes porque podem afetar a capacidade de autogestão e as estratégias de adaptação (Park, Yoon, Shin, Park, Kim, Lee, 2020).
Os CCP refletem acima de tudo uma atitude e não um procedimento, baseiam-se na comunicação efetiva entre os utentes e todos os membros da equipa prestadora de cuidados de saúde, formando e informando continuamente acerca do seu processo saúde-doença e incorporando a família sempre que necessário, na definição do plano individual de cuidados.
A família, a comunidade e as organizações de doentes devem ser entendidos como parceiros privilegiados na gestão da doença crónica e na promoção da adesão aos regimes terapêuticos (Conselho Internacional de Enfermeiros, 2010). Programas estruturados de educação podem ajudar a melhorar os conhecimentos dos doentes, aumentar a adesão ao regime terapêutico e diminuir a necessidade de escalar as medicações usadas no tratamento da DII (Park, Yoon, Shin, Park, Kim, Lee, 2020).
2. Métodos
Questão de investigação
- Quais os conhecimentos das pessoas com Doença Inflamatória Intestinal de um Hospital Universitário Português?
O estudo descritivo, correlacional e transversal, com abordagem quantitativa, teve como população-alvo os doentes com diagnóstico de DII, seguidos em Hospital de Dia de Gastrenterologia de um hospital universitário português, que aceitaram participar no estudo (amostra por conveniência).
2.1 Amostra
Conforme apresentado na tabela 1, a amostra é composta por 142 doentes, com idades compreendidas entre os 18 e 78 anos de idade, com uma média de idade de diagnóstico inaugural de 27 anos de idade. Destes 142, 72 (50,7%) são do sexo masculino e 70 (49,3%) são do sexo feminino. Relativamente ao grau de escolaridade, apenas 1 (0,7%) é analfabeto, 10 (7%) possui o ensino básico, 22 (15,5%) o segundo ciclo, 51 (35,9%) o ensino secundário, sendo que 58 (40,8%) são detentores de formação universitária. No que respeita ao estado civil, maioritariamente são casados/união de facto 70 (49,3%), 62 (43,7%) são solteiros, 9 (6,3%) são divorciados e apenas 1 (0,7%) é viúvo. Quanto à situação laboral da amostra em estudo, 93 (65,5%) são empregados, 9 (6,3%) estão desempregados, 20 (14,1%) são estudantes e outros 20 (14,1%) são reformados.
Características demográficas da amostra | |
---|---|
Característica | n (%) |
Idade, média (anos) | 40,03 |
Idade de diagnóstico, média (anos) | 27,26 |
Sexo | |
Masculino | 72 (50,7) |
Feminino | 70 (49,3) |
Grau escolaridade | |
Analfabeto | 1 (0,7) |
Ensino Básico | 10 (7) |
Segundo Ciclo | 22 (15,5) |
Ensino Secundário | 51 (35,9) |
Ensino Universitário | 58 (40,8) |
Estado Civil | |
Solteiro | 62 (43,7) |
Casado/União facto | 70 (49,3) |
Divorciado | 9 (6,3) |
Viúvo | 1 (0,7) |
Situação laboral | |
Empregado | 93 (65,5) |
Desempregado | 9 (6,3) |
Estudante | 20 (14,1) |
Reformado | 20 (14,1) |
2.2 Instrumentos de recolha de dados
Os dados foram obtidos a partir da aplicação de questionários às pessoas que recorreram ao Hospital de Dia, nos meses de Março a Agosto de 2020, foram excluídos os que recusaram participar e com diagnóstico há menos de um ano.
1. Questionário Sóciodemográfico
Foi construído um questionário sóciodemográfico para a recolha da seguinte informação: idade cronológica, idade do diagnóstico inaugural, sexo, grau de escolaridade, estado civil e situação laboral.
2. Questionário “Inflammatory Bowel disease knowledge (IBD-KNOW)”
O questionário IBD-KNOW (Yoon et al., 2019) foi desenvolvido para avaliação do conhecimento de vários aspetos da DII (anatomia, função, epidemiologia, dieta/estilo de vida, conhecimentos gerais, medicação, complicação, cirurgia, reprodução e vacinação) composto por um total de 24 itens, com um alpha de Cronbach total de 0,96.
O questionário foi submetido a um processo de tradução e retro tradução para português uma vez que originalmente se encontrava na língua inglesa, após autorização dos autores do instrumento e de acordo com as guidelines internacionais (Beaton, Bombardier, Guillemin & Ferraz, 2000). Este processo foi desenvolvido em 5 etapas: tradução, sintetização, retroversão ou retro-tradução, reunião de peritos, e pré-teste. Encontra-se operacionalizado segundo uma escala de Likert de 5 pontos que varia entre campos semânticos (discordo totalmente a concordo totalmente).
Cada um dos 24 itens que caraterizam a IBD - KNOW definem o grau de conhecimento dos doentes sobre as várias dimensões da DII, através de uma escala do tipo V (Verdadeiro) quando a pessoa concorda com a afirmação, F (falso) quando a pessoas discorda da afirmação ou o NS (não sei) quando não tem opinião formada sobre a afirmação. Os 24 itens do questionário IBD-KNOW distribuem-se por 10 dimensões correspondentes a áreas de conhecimento especifico da DII (Anatomia, item 1 e 2; função, item 3 e 4; dieta e estilo de vida, item 5 e 6; epidemiologia, item 7 e 8; conhecimentos gerais, item 9, 10, 11, 12, 13 e 14; medicação, item 15, 16, 17 e 18; complicações, item 19; cirurgia, item 20 e 21; reprodução, item 22 e 23; vacinação, item 24).
2.3 Análise estatística
A análise de dados foi realizada com recurso ao software Statistical Package for the Social Sciences (versão 23.0, SPSS).
A análise descritiva dos dados foi obtida através de frequências absolutas e relativas, medidas de tendência central (média, mediana e moda) e o recurso a medidas de dispersão, como o desvio padrão e variância. Para a análise inferencial foram aplicados os testes adequados à natureza das variáveis em análise, para um grau de significância p<0,05.
2.4 Procedimentos
Foram respeitados todos os princípios éticos. Todos os participantes assinaram consentimento livre e esclarecido. Para o desenvolvimento do trabalho de investigação foi solicitada aprovação à Comissão de Ética dos CHUC que emitiu parecer favorável através do documento com a referência CHUC-033-02.
3. Resultados
Da análise ao nível de conhecimentos específicos em DII, com a aplicação do questionário IBD-KNOW, a taxa média de respostas corretas do total de 24 questões foi de 57,1%, similar aos valores obtidos no estudo original (55,7%). Nas dimensões “reprodução“ e “função” obtiveram-se os valores mais baixos de respostas corretas, respetivamente 25,4% e 32,4%.
Os itens em que a taxa de respostas corretas foi a mais alta e a mais baixa, foram respetivamente 74,6% na dimensão “vacinação”, e 25,4% na dimensão “reprodução.”
O questionário IBD-KNOW mostrou excelente consistência interna (Cronbach α = 0,744).
Verificou-se uma correlação positiva forte entre o conhecimento da DII e a idade de diagnóstico (r=0,717, p<0,02), uma correlação negativa moderada entre o conhecimento sobre DII e o grau de escolaridade (r= -0,513, p<0,01) e uma correlação negativa fraca entre o grau de conhecimento e a idade das pessoas com DII (r=-0,201, p <0,017). As pessoas do sexo masculino têm menor conhecimento sobre DII (H=1936, p<0,017), a situação laboral não tem influência no nível de conhecimento sobre a DII (p>0,7).
4. Discussão
O estudo destaca um baixo nível de conhecimento da pessoa com DII de um Hospital Universitário Português, resultados equiparados aos obtidos nos estudos de Yoon et al. (2019) e Park, Yoon, Shin, Park, Kim, Lee (2020). Apontamos como limitação deste estudo, a aplicação do questionário ter acontecido apenas num momento.
A taxa de resposta correta do IBD-KNOW foi de 57,1%. Entre os 10 domínios do IBD-KNOW, a taxa de resposta correta dos domínios reprodução, função e cirurgia, obtiveram taxas inferiores a 50%, respetivamente 25,4%, 32,4% e 41,2%. Acima de 70% de respostas corretas, encontramos apenas os domínios dieta e estilos de vida (70,8%) e vacinação (74,6%).
Este estudo revela-se um importante contributo, pioneiro na investigação nesta área, dado que a caracterização dos níveis de conhecimento da pessoa com DII, a nível nacional e internacional, é diminuto. Sugerimos a criação duma consulta de Enfermagem destinada a pessoas com DII, neste Hospital Universitário, como estratégia para aumentar o conhecimento relacionado com a doença, adesão da pessoa ao regime terapêutico e facilitar a transição do processo saúde/doença. A população-alvo desta consulta serão as pessoas com DII com mais idade, com menos habilitações literárias, com menos tempo de diagnóstico e do sexo masculino.
Os resultados obtidos terão inevitavelmente implicações para a prática. Os défices de conhecimentos têm uma influência negativa na gestão da doença, porque podem afetar a capacidade de autogestão e estratégias de cooping (Park, Yoon, Shin, Park, Kim, Lee, 2020).
A consulta de enfermagem revelar-se-ia numa mais-valia, com foco na transição saúde-doença, assistindo a pessoa na aceitação do estado de saúde, na gestão do regime terapêutico e na promoção de comportamentos de adesão. Vernon-Roberts, Gearry, & Day,(2020) referem que uma maior capacitação das pessoas com DII se traduz em motivação para aprender mais sobre a própria doença e a uma melhor compreensão do seu estado de saúde.
Colombara et al. (2015) demonstraram que os níveis de conhecimento nos doentes com DII influencia positivamente a redução de custos.
Os cuidados de saúde devem ser reorganizados no sentido de dar resposta a outras áreas como a sexualidade, gravidez e orientação psicológica.
Conclusão
A maioria dos doentes não demonstra conhecimentos sobre a DII, nem evidencia comportamentos de adesão. Torna-se premente capacitar para o autocuidado terapêutico com a implementação da Consulta de Enfermagem.
A adesão ao regime terapêutico e o acompanhamento regular são os principais fatores para a gestão bem sucedida da DII, com redução da frequência de recaidas.
A avaliação dos conhecimentos destes doentes deve ser contínua, e realizada em diferentes tempos, antes e após sessões de educação para a saúde, seguimento em Consultas de Enfermagem.
Dada a escassez de estudos sobre a temática do conhecimento na doença inflamatória intestinal realçamos a necessidade de efetivar outros estudos sobre a gestão/adesão nesta doença.