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Sociologia, Problemas e Práticas
versão impressa ISSN 0873-6529
Sociologia, Problemas e Práticas no.78 Lisboa maio 2015
https://doi.org/10.7458/SPP2015783640
ARTIGO ORIGINAL
Delinquência juvenil feminina a várias vozes: contributos para a construção de uma tipologia de percursos transgressivos
Multiple faces of female juvenile delinquency: contributions to the construction of a transgressive path typology
Délinquance juvénile féminine à plusieurs voix : contributions à la construction d’une typologie de parcours transgressifs
Delincuencia juvenil femenina a varias voces: contribuciones para la construcción de una tipología de trayectos transgressivos
Vera Duarte*
* Instituto Universitário da Maia, Departamento de Ciências Sociais e do Comportamento, área de Criminologia. Av. Carlos Oliveira Campos — Castêlo da Maia, 4475-690 Avioso S. Pedro, Maia, Portugal. Investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.Nova, Pólo UMinho). E-mail: vduarte@docentes.ismai.pt
RESUMO
Em resposta ao predomínio masculino nos estudos sobre delinquência juvenil, este artigo explora uma das suas faces invisíveis, aquela que é praticada por raparigas. Discutindo a “história única” que se tem construído sobre a delinquência juvenil feminina, apresentam-se resultados de uma pesquisa qualitativa, realizada no âmbito de uma tese de doutoramento, sobre experiências e significados da transgressão nos percursos de vida de raparigas em cumprimento de medidas tutelares educativas em Portugal. A elaboração de retratos sociológicos, a partir da análise dos processos individuais e das entrevistas realizadas, permitiu traçar perfis de percursos transgressivos que mostram a heterogeneidade da delinquência feminina e (re)colocam as jovens como sujeitos sociais.
Palavras-chave delinquência juvenil feminina, percursos transgressivos, retratos sociológicos, pesquisa qualitativa.
ABSTRACT
In response to the predominance of the male in studies on juvenile delinquency, this article explores one of the latter’s invisible faces — delinquency by girls. A discussion of the “single story” that has been constructed about female juvenile delinquency is accompanied by the presentation of results from qualitative research conducted as part of a doctoral thesis on experiences and meanings of transgression in the life paths of girls subject to youth custody, protection and re-education measures in Portugal. An analysis of individual processes and interviews allowed the author to draw up sociological portraits that in turn made it possible to outline transgressive paths which show the heterogeneity of female delinquency and (re)situate the young women as social subjects.
Keywords female juvenile delinquency, transgressive paths, sociological portraits, qualitative research.
RÉSUMÉ
En réponse à la prédominance masculine dans les études sur la délinquance juvénile, cet article aborde l’une de ses faces invisibles, celle qui est pratiquée par les filles. À contre-pied de “l’histoire unique ” construite autour de la délinquance juvénile féminine, cet article présente les résultats d’une recherche qualitative, menée dans le cadre d’une thèse de doctorat, sur les expériences et les significations de la transgression dans les parcours de vie de filles faisant l’objet de mesures éducatives au Portugal. L’élaboration de portraits sociologiques, à partir des dossiers individuels et des entretiens réalisés, a permis de tracer des profils de parcours transgressifs qui montrent l’hétérogénéité de la délinquance féminine et (re)situent ces jeunes filles en tant que sujets sociaux.
Mots-clés délinquance juvénile féminine, parcours transgressifs, portraits sociologiques, recherche qualitative
RESUMEN
En respuesta al predominio masculino en los estudios sobre la delincuencia juvenil, este artículo explora una de sus caras invisibles, aquella que es practicada por jovencitas. Discutiendo la “historia única” que se ha construido sobre la delincuencia juvenil femenina, se presentan resultados de una investigación cualitativa realizada en el ámbito de una tesis de doctorado sobre experiencias y significados de la transgresión en los trayectos de vida de jovencitas bajo contexto de medidas tutelares educativas en Portugal. La elaboración de retratos sociológicos a partir del análisis de los procesos individuales y de las entrevistas realizadas permitió trazar perfiles de trayectos transgresivos que muestran la heterogeneidad de la delincuencia femenina y (re)ubican a las jóvenes como sujetos sociales.
Palabras-clave delincuencia juvenil femenina, trayectos transgresivos, retratos sociológicos, investigación cualitativa
Introdução
A delinquência juvenil e as suas causas têm sido extensivamente estudadas e, apesar de o género surgir como uma das dimensões de diferenciação mais consistentes nos estudos da delinquência, isso tem significado estudar predominantemente os mundos masculinos. Quando a figura feminina surge na literatura — primeiro as mulheres e depois as raparigas — a teorização é feita de uma forma estereotipada e sexista (Burman, Batchelor e Brown, 2001), ignorando a importância do género e a forma como os fatores de risco da delinquência podem eles mesmos ser genderizados (Belknap e Holsinger, 2006; Zahn, 2009). Isto começou a alterar-se, na maior parte dos países ocidentais, a partir da década de 1990, quando as raparigas começam a estar mais visíveis nas estatísticas oficiais (Chesney-Lind, 1997) e os estudos realizados começam a explicar as dinâmicas e as (in)consistências desta presença. Também aqui, quando se começou a considerar as raparigas como sujeitos de investigação, o que se tornou mais visível foi, em primeiro lugar, a sua sujeição e os seus percursos e vitimação, e só depois foi a sua subjetividade e agencialidade. Nesta esteira, compreender como percursos de transgressão e subjetividades juvenis femininas se entrecruzam é uma forma de penetrar nesta invisibilidade da delinquência cometida por raparigas, cuja pesquisa, segundo alguns investigadores de variados países,[1] é ainda insuficiente e tem trazido limitações no campo analítico-conceptual e nas esferas da intervenção.
Em Portugal, a delinquência cometida por raparigas tem sido pouco investigada, quer ao nível das estatísticas, ainda pouco sensíveis às questões de género,[2] quer no âmbito do desenvolvimento de estudos que, em regra, se restringem a investigações de caráter mais descritivo ou a pequenos parágrafos sobre o papel da rapariga na cena da delinquência e nos contactos com a justiça juvenil (Gersão, 1990; Duarte-Fonseca, 2000; Carvalho, 2003, 2010). Na senda de uma maior presença das raparigas no sistema de justiça juvenil português e nos meios de comunicação social,[3] abordagens mais qualitativas têm sido propostas (Matos, 2008; Duarte, 2012; Duarte e Carvalho, 2013; Duarte e Cunha, 2014), e é neste contexto que este artigo ganha fôlego.
Discutindo e criticando a construção de uma “história única”[4] sobre a delinquência juvenil feminina, pretende-se apresentar alguns resultados de uma pesquisa qualitativa que procurou compreender as experiências e os significados da transgressão nos percursos de vida de raparigas em conflito com a lei. Aceitando a provocação dos estudos mais recentes que subscrevem a necessidade de investigações exploratórias que deem voz às raparigas, apresenta-se uma tipologia de percursos transgressivos que alertam para a importância de se pensar a delinquência feminina como um fenómeno heterogéneo. Dimensionando as jovens como sujeitos sociais, dá-se espaço à forma como elas constroem diferentes espaços de agencialidade, em contextos de constrição social e acumulação de riscos.
O perigo de uma “história única” sobre delinquência juvenil feminina
Durante séculos foi construída uma “história única” sobre delinquência juvenil feminina: a história da invisibilidade e da construção de imagens estereotipadas relacionadas com a ideia de que a mulher/rapariga delinquente é vítima do seu passado, do seu ambiente e da sua condição feminina (Schoemaker, 1996). Os motivos apresentados para a construção desta história única são vários.
A comunicação social, os discursos públicos e políticos e as estatísticas, partilhando a convicção de que os desvios juvenis femininos são poucos, pouco importantes e não constituem problema social, têm reafirmado a delinquência como uma experiência masculina e masculinizante e, neste contexto, os conteúdos de género têm sido virtualmente ignorados (Messerschmidt, 2004). As expectativas e os papéis tradicionais de género, não devem ser descurados, também, neste processo de invisibilidade social. A construção de imagens estereotipadas sobre a figura feminina tem tido consequências na forma como ela tem sido percebida na sociedade e nos sistemas de justiça criminal e juvenil: como um “pião da biologia”; “impulsiva e com pouca capacidade analítica”; “passiva e fraca”, e por isso mais vulnerável à vitimação e à influência da figura masculina; “necessitada de proteção”; “masculina” quando empreende ações mais ativas; e “má” quando delínque (Rafter e Stanko, 1982, citados em Belknap, 2000: 21). Imagens que reforçam a mensagem societal sobre o comportamento apropriado de género, encorajando as raparigas a ocupar um lugar na sociedade de acordo com as expectativas sociais (Naffine, 1987), que tradicionalmente as refletem como vítimas passivas do risco (Batchelor, 2007). A estes motivos podemos acrescentar o predomínio da figura masculina nas disciplinas científicas que estudam o comportamento desviante, não esquecendo que os estudos clássicos sobre delinquência juvenil utilizaram, maioritariamente, amostras masculinas. Até recentemente, os modelos teóricos e empíricos do comportamento transgressivo feminino eram escassos e, por esse motivo, ainda se sabe pouco sobre as trajetórias femininas na delinquência.
As insuficiências das teorias da delinquência juvenil, no que à presença das raparigas diz respeito, foram muito bem documentadas por algumas feministas ao longo dos últimos 30 anos (e.g. Campbell, 1981 Naffine, 1987; Chesney-Lind, 1997; Belknap, 2000; Miller, 2001; Alder e Worrall, 2004). E nessa revisitação há duas situações que tendem a prevalecer: por um lado, a imagem da figura feminina “submergida” nas explicações da delinquência masculina, ou seja, as grandes teorias (psicossociais) explicativas da delinquência,[5] que foram desenvolvidas para explicar a delinquência masculina, seriam adequadas para explicar também a delinquência feminina; por outro lado, o retrato da delinquência feminina reduzida a problemas de costumes e de moral sexual (Cowie, Cowie e Slater, 1968), isto é, a delinquência feminina assume, predominantemente, a forma de comportamento sexual e promíscuo ou de patologização, na medida em que por detrás desses comportamentos estaria a presença de uma perturbação. Como reflete criticamente Campbell (1981), a delinquência feminina foi sendo amplamente explicada como uma reação de raparigas e mulheres a forças que estavam além do seu controlo, i.e. forças biológicas e psicológicas.
A forma como a figura feminina foi sendo vista nas teorias tradicionais não deixou de ter um profundo impacto sobre a forma como raparigas e mulheres têm sido processadas nos sistemas de justiça juvenil e criminal, respetivamente (Chesney-Lind, 1997). Neste campo, também se tem construído uma história única sobre a relação entre feminilidade e ofensa, marcada por viés de várias naturezas (género, raça e etnia, idade, classe social…), que têm tido impacto na aplicação dos procedimentos judiciais e na manutenção de situações de discriminação (Hoyt e Scherer, 1998; Holsinger, 2000; Matos, 2008).
No sistema de justiça juvenil, as raparigas pobres e pertencentes a grupos étnicos minoritários estão sobrerrepresentadas e tendem a receber punições mais duras do que as raparigas ricas e brancas (Moore e Padavic, 2010). Além disso, o sistema continua a manter atitudes paternalistas e protecionistas em torno das “necessidades femininas”, que continuam a estar relacionadas com estereótipos femininos ligados à fraqueza, à submissão, à passividade e à domesticidade (Chesney-Lind, 1997; Belknap, 2000). Como consequência, mostram os estudos, as raparigas, comparativamente aos rapazes, tendem a ser punidas mais severamente por ofensas menos graves e têm mais probabilidade de ser institucionalizadas para fins de proteção em situações relacionadas com comportamentos “imorais” e “desviantes”, como inadaptação na família e na escola, vadiagem, prostituição, libertinagem, etc. (Duarte-Fonseca, 2000; Belknap e Holsinger, 2006). No julgamento da prática delinquente Steffensmeier e Allan (1996) mostram que as raparigas estão menos sujeitas aos procedimentos judiciais aplicados aos rapazes e os tribunais tendem a mostrar alguma relutância em internar as raparigas, optando antes por medidas de supervisão ou outras alternativas ao internamento. A juntar a isto, os/as profissionais da justiça continuam a ter a opinião de que é mais difícil trabalhar com raparigas do que com rapazes, por as considerarem menos controláveis, menos obedientes e mais problemáticas (Baines e Alder, 1996).
Em suma, a história única destas jovens está ligada aos efeitos da estratificação de género e do patriarcado nas suas trajetórias de vida e a um sistema que foi desenhado para lidar com os problemas dos rapazes e que negligenciou as necessidades das raparigas.
A emergência de uma literatura mais sensível ao género tem sido fundamental no construir de uma nova conceptualização do agir delinquente, onde a variável género, efetivamente, passa a ser um eixo de análise, ao permitir conceptualizar a delinquência juvenil (masculina) como uma questão de género e revelar considerações importantes sobre as diferenças de género nas expressões da transgressão. Rapazes e raparigas têm muitos fatores de risco comuns, no entanto, alguns fatores têm mostrado idiossincrasias de género (Zahn et al., 2010; Wong, 2012).
Esta literatura surge como crítica às abordagens teóricas clássicas que defendem uma neutralidade de género e se opõem à existência de mecanismos específicos de género. Uma das suas principais abordagens é a chamada female-only-focused approach,[6] que, procurando um saber que provenha do universo social feminino, assume que as raparigas têm diferentes fatores de risco e diferentes experiências na vida, por causa da pertença de género (e.g. vulnerabilidade à vitimação e a problemas de saúde mental, maior controlo e supervisão familiar e social, a relação com a mãe, as fugas de casa, a influência dos namorados/ parceiros sexuais…); e por estes motivos defendem a necessidade da existência de modelos de análise e teorias próprias que consigam explicar os comportamentos delinquentes cometidos pelas raparigas. Este foco nas experiências femininas foi fundamental porque permitiu olhar sem comparar e, desta forma, captar as dinâmicas da trangressão feminina a partir de dentro. Este esforço permitiu mostrar que a visão de vítima e agressora como dois seres totalmente independentes é inapropriada para a compreensão da infração feminina, que vê emergir o risco e a experimentação como eixos estruturantes das suas ações (Batchelor, 2007; Duarte e Carvalho, 2013).
É fundamental que a investigação continue a estudar, de perto, os fatores de risco específicos da delinquência feminina mas, segundo Wong (2012), não se devem descurar abordagens e modelos teóricos que integrem estudos comparativos e integrados. A autora defende que, uma vez que a delinquência juvenil feminina continua menos aprofundada e compreendida, torna-se fundamental estudar todos os fatores possíveis que possam estar relacionados com o comportamento delinquente, sejam eles partilhados por ambos os géneros ou idiossincráticos. Ser capaz de explicar porque é que as raparigas delinquem menos do que os rapazes pode facilitar a compreesão da delinquência feminina.
Apesar de um dos achados mais consistentes e robustos da criminologia ser o facto de as raparigas cometerem menos crimes e crimes menos graves do que os rapazes (Steffensmeier et al., 2005), nas últimas décadas as estatísticas oficiais dos países ocidentais têm evidenciado um crescimento da presença de raparigas nas ocorrências de ilícitos e um aumento da opinião pública de que elas estão a tornar-se mais propensas à delinquência. A questão sobre se estas tendências refletem um aumento real da delinquência praticada pelas raparigas ou mudanças nas respostas societais ao comportamento das mesmas permanece (Luke, 2008; Zahn et al., 2010).
Apesar de as raparigas estarem menos invisíveis no sistema de justiça juvenil e ter havido um incremento nos estudos sobre esta temática, a delinquência juvenil continua a ser explicada, essencialmente, pelos parâmetros da etiologia da delinquência masculina. As expressões da delinquência feminina continuam a ser poucas vezes trazidas para a discussão (Duarte e Carvalho, 2013), talvez porque, como refere Adichie (2009), as formas como as histórias “… são contadas, quem as conta, quando são contadas, quantas histórias são contadas, estão realmente dependentes do poder. O poder é a capacidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva dessa pessoa”.
Enquadramentos da investigação
A investigação realizada, que assumiu as estratégias da pesquisa qualitativa, teve como principal objetivo estudar as experiências e os significados da transgressão nos percursos de vida de raparigas em conflito com a lei, abrangidas pela intervenção do sistema de justiça juvenil, enquadrada na Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de setembro). Assumindo como referente empírico jovens raparigas a cumprir medidas tutelares educativas institucionais (internamento em centro educativo) e medidas não institucionais (executadas na comunidade), analisaram-se 27 processos tutelares individuais e realizaram-se 19 entrevistas. A pesquisa decorreu em duas instituições[7] da Direção-Geral de Reinserção Social,[8] do Ministério da Justiça. Do cruzamento das duas técnicas construíram-se retratos sociológicos que permitiram traçar perfis de percursos transgressivos. A leitura e a discussão dos dados foram feitas nas interfaces do interacionismo simbólico, das teorias da ação estruturada e das perspetivas feministas que, embora situadas em níveis analíticos distintos, permitiram situar o debate na perspetiva do sujeito (feminino), não perdendo de vista que as subjetividades são permeadas pelas contingências sociais que moldam as trajetórias e as escolhas.
Considerando que este artigo se alicerça nos discursos das jovens entrevistadas, é importante referir que se construiu um roteiro ético que incluiu o consentimento informado dos participantes, o anonimato e preservação das suas identidades — foram utilizados nomes fictícios — e a adequação dos métodos e dos procedimentos utilizados. Recorreu-se à observação presencial como estratégia metodológica de entrada no terreno e de criação da relação com as jovens. Utilizou-se um guião de entrevista flexível, orientado por tópicos. As entrevistas foram gravadas em áudio e foram realizadas nos próprios locais da pesquisa.
O tratamento da informação foi feito em duas etapas. Numa primeira privilegiou-se a análise de conteúdo (categorial e temática); e numa segunda etapa avançou-se para a análise de discurso, pela constatação de que os usos da linguagem assumem importância na construção dos discursos e na forma como as jovens se posicionam face aos mesmos. Como refere Bakhtin (1997), a este respeito, os discursos dos sujeitos transportam marcas profundas da sua sociedade, do seu núcleo familiar, das suas experiências, mas também das suposições feitas sobre o que o/a interlocutor/a gostaria ou não de ouvir. Foi neste espaço relacional e dialógico que se construíram os retratos sociológicos (Lahire, 2004) das jovens entrevistadas e se procuraram os repertórios interpretativos presentes nos seus discursos.[9]
Das 19 entrevistadas, dez jovens estavam internadas em centro educativo e nove estavam a cumprir medidas na comunidade. Tinham idades entre os 14 e os 18 anos (M = 16,31). Eram maioritariamente de nacionalidade portuguesa (n = 13), ainda que seja de considerar, dentro destas, o número significativo de jovens de origem africana (n = 6), oriundas dos países africanos de língua oficial portuguesa. Para todas, o 2.º ciclo surge como um obstáculo difícil de transpor e onde se intensificam as situações de absentismo, reprovação e indisciplina. Antes de entrarem no sistema de justiça, há uma presença evidente de jovens (n = 11) com processos no âmbito da promoção e proteção; e entram na justiça, principalmente, pela prática de ilícitos contra a propriedade (e.g. roubo e furto) e contra a integridade física (e.g. agressão).
Afinal são muitas as histórias… A polifonia de vozes na construção dos discursos e percursos transgressivos
Elementos para a compreensão dos discursos
As histórias das jovens entrevistadas nesta pesquisa contam percursos realizados sobre um conjunto de constrangimentos estruturais que pautam as suas vidas, dão conta das transições possíveis e das (im)probabilidades de seguir trajetos padronizados, e são marcadas por consecutivas escolhas aparentes, que refletem não só os constrangimentos à sua ação autónoma, como também à sua posição, enquanto sujeitos que fazem escolhas.
Atribuindo às jovens a condição de “autoras da sua vida” e assumindo que é a partir das narrativas que constroem as suas experiências (a partir de si mesmas, do lugar de onde falam e do que intentam fazer ver), os discursos dominantes sobre a transgressão foram construídos levando em consideração três principais elementos: (a) o cruzamento dos eixos vitimação/agencialidade, que permitiu encaixar os discursos e as trajetórias que se afastavam de representações mais estereotipadas do papel da rapariga na delinquência; (b) as estratégias e os discursos de autoapresentação, i.e., a forma como as jovens contam as suas histórias; e (c) as ambivalências e incoerências narrativas. Vejamos o contributo de cada um destes elementos para a construção da tipologia de percursos transgressivos.
Cruzamento dos eixos vitimação/agencialidade
Este primeiro elemento apoiou a leitura e a compreensão de partes das narrativas destas jovens que não se encaixavam no grande discurso teórico sobre o papel da rapariga na delinquência, como vimos na discussão teórica. Este primeiro recorte permitiu perceber como os motivos da transgressão são diversificados e como as jovens se (re)posicionam face a eles. Umas mostram como a transgressão surge da gestão de sentimentos negativos, angústias e lutos mal resolvidos, originados pelas histórias de maus-tratos, abandonos e institucionalizações. Expressões como “tenho de explodir”, “senti-me traída”, “chorava muito”. “algo me dizia para não parar”, “senti-me com muita raiva”, “não tenho apoio de ninguém, a minha mãe nunca acreditou em mim” são utilizadas pelas jovens com o objetivo de descrever esses sentimentos que estariam por detrás do seu comportamento transgressivo.
Para outras foi a procura do “risco-aventura” (Spink, 2001), da experimentação e da adrenalina. “Curtir a vida”, “viver a vida como se fosse o último dia”, “saber qual é o teu limite”, “vida sem risco não é nada”, “eu sou mais rebelde”, “é a juventude” — são expressões utilizadas pelas jovens para realçar a importância do risco na construção de sensações de autoeficácia e controlo das suas vidas, o que faz que atribuam uma certa “normalidade” às suas ações. A heteroautodeterminação é um discurso que dá conta da ambiguidade de posicionamento das jovens face à transgressão. Os discursos da heterodeterminação (foram as drogas, o namorado/companheiro, os sentimentos de revolta e raiva, a passagem pela instituição…) frequentemente se cruzam com os discursos do “fui porque quis” ou “foi por vontade própria”. Para outras ainda, a transgressão surge como uma exceção — “não sabia o que estava ali a fazer”; “foi reação”; “era para minha defesa, por causa do que me tinha acontecido”.
Estratégias de autoapresentação
Este elemento permitiu ter presente que as práticas discursivas são uma interface entre os “aspetos performativos da linguagem” (quando, em que condições, com que intenção, de que modo) e as condições de produção (entendidas aqui tanto como contexto social e interacional) (Spink, 2010: 26). Nesta esteira, foi possível identificar dois principais discursos: o discurso da conformidade com as expectativas de género em torno de uma “normalidade” socialmente construída; e o discurso da vitimização, associado às explicações e justificações dadas para o seu comportamento e para os sentimentos de injustiça sentidos.
Encontramos o discurso da conformidade em três principais eixos.
O primeiro refere-se às narrativas sobre os papéis de género e as feminilidades. As jovens tendem a utilizar conceções tradicionais de masculinidade e feminilidade para exprimir os seus pontos de vista sobre as responsabilidades familiares e os papéis domésticos (“rapariga… é estar em casa, trabalhar, ser mãe…” [Vera, 16 anos]); para justificar o maior controlo que os pais tendem a exercer nas suas vidas (“cá fora pode engravidar… e por isso reservam mais as filhas dentro de casa” [Elisabete, 14 anos]); para falar sobre as vivências da maternidade e como esta tem um efeito de “mudança” (“ver o mundo com outros olhos” [Marta, 18 anos]); para se referirem aos projetos de futuro, também estes trespassados pelas marcas de género (“ter marido, filhos… dois… porque é o que toda gente gosta, acho eu!” [Fátima, 16 anos]); e para se exprimirem sobre o papel da rapariga na transgressão (“é rapaz, é normal, eles começam a andar em grupos, nessa vida… mas rapariga…é muito feio” [Vera, 16 anos]). Os discursos das jovens exaltam as diferentes soluções que elas encontraram na busca de uma liberdade (que consideram ser masculina) sem, contudo, enveredarem pela construção de uma identidade masculina, mesmo quando ultrapassam e desafiam as noções (que elas próprias têm) do que é considerado adequado para as raparigas.
O segundo eixo prende-se com os discursos para o futuro. Aqui as jovens tendem, igualmente, a passar a imagem da conformidade com o socialmente esperado, ou seja, tendem a reproduzir e a evidenciar valores sociais hegemónicos que representam a normalidade, a felicidade e a realização. Todas as jovens projetam ter uma vida “normal” — leia-se normativa — e mudar os comportamentos. A maioria delas exprime o desejo de casar, ter filhos, estar com a família e arranjar um trabalho estável. As jovens com filhos aspiram a ser boas mães e educar bem. Afinal, não é isso que a sociedade espera delas?
Um terceiro eixo retrata as reflexões em torno do arrependimento face à transgressão e aos discursos de encaixe nas expectativas do “sistema”.[10] Quer as reflexões, quer os discursos devem ser analisados levando em consideração que as jovens entrevistadas estavam a cumprir medidas tutelares educativas, o que significava a exposição ao processo de “normalização” da Educação para o Direito, prevista na Lei. Espera-se das jovens mudanças significativas, por exemplo, na inculcação dos interditos, na capacidade de determinar as consequências dos seus atos, de dimensionar o impacto desses atos sobre terceiros, na capacidade de descentração e na responsabilização pelos seus atos. Neste contexto, as construções funcionais de arrependimento e os discursos adaptativos e em conformidade podem significar ter benefícios e recompensas. Por exemplo, para Anita [16 anos] pode significar recuperar a filha que está acolhida num lar de infância e juventude. Para Ivone [16 anos], cuja reavaliação da medida estava próxima, podia significar o encerramento do processo.
O discurso da vitimização — o segundo tipo de discurso de autoapresentação — constrói-se por referência a um sistema social (económico, cultural e judicial) que as rotula. Para Vera [16 anos]: “estou mais sujeita a estas situações por ser pobre, por ser negra, por morar em zonas menos boas”; para Anita [16 anos]: “[o] tribunal inventou bué de cenas, que não ia ao curso, às entrevistas […]”; para Elisabete [14 anos] a narrativa constrói-se por referência a terceiros: “eu apanhei dois anos fechada aqui dentro e elas [coautoras na prática dos ilícitos] apanharam acompanhamento educativo”.
Estes discursos de vitimização não deixam, contudo, de ser acompanhados de um discurso de superação, de força e de dureza, como algo que as caracteriza. Ser donas do seu destino, dar uma reviravolta na vida, seguir em frente ou lutar por aquilo que querem são figurações recorrentes nos seus discursos.
Ambivalências narrativas
As dissonâncias narrativas são um traço característico dos discursos e são bastante visíveis em dois principais aspetos: na idealização discursiva e nas oscilações entre discursos normativos e desviantes. É idealizando coisas, pessoas e relações que estas jovens constroem e dão sentido às suas vidas. É comum, neste processo, procurar modificar ou evitar retratar determinadas situações ou comportamentos das figuras das suas narrativas, devido à necessidade de afastar o confronto com as emoções negativas que possam emergir. Este mecanismo de regulação emocional, enquanto processo afetivo, faz com que as jovens imaginem como gostariam que fosse o “seu mundo”, construindo narrativas pautadas por comportamentos “justificados” e emocionalmente neutros.
Se na análise dos seus percursos de vida as jovens tendem a oscilar entre discursos mais normativos ou mais desviantes é, particularmente, no seu posicionamento face à transgressão e na condenação moral dos seus atos que esta oscilação é mais evidente. Ao mesmo tempo que ouvimos os discursos do “eu fui porque quis”, há a preocupação em transmitir discursos de conformidade (com a construção social do desvio feminino) e de condenação moral aparente, precedida da desculpabilização das ações.
Percursos de transgressão
A partir dos discursos (e dos seus recortes) e do cruzamento das dimensões apuradas[11] — vitimação familiar, percursos de institucionalização, percursos transgressivos, motivações e significados da transgressão e condenação moral da mesma — construíram-se quatro perfis de percursos transgressivos, a saber: transgressão enfatizada (por revolta ou por escalada), transgressão rebelde, transgressão-influência e transgressão circunstancial. Esta tipologia deve ser entendida numa perspetiva dinâmica e aberta, capaz de captar as situações de fronteira (histórias e trajetórias de vida que se constroem nas margens destes percursos-tipo) e de abrir a possibilidade de mudanças de trajetória.
Transgressão enfatizada
RETRATO 1: Elisabete, 14 anos, nacionalidade portuguesa, de origem africana, residente na Amadora. Tem nove irmãos de outras relações do pai e da mãe. Os pais separaram-se e Elisabete ficou ao cuidado da avó materna. Aos sete anos foi viver com o pai e a sua companheira. A vivência neste agregado foi bastante conturbada, situação que ela conta com grande revolta: “dos sete aos dez anos o meu pai retirou-me da minha mãe e começaram os maus-tratos, por parte da minha madrasta e comecei a ser uma miúda muito agressiva e revoltada. […]. Para mim não havia regras. […] O meu pai não me dava ouvidos e então arranjei meios de chamar a atenção… na escola, pela agressão”. O caso foi sinalizado pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), tendo ficado acordado que Elisabete passaria a ir viver com a tia. O comportamento de Elisabete agrava-se e a explicação que dá para isso é: “Eu tenho de explodir, tenho de explodir”. Esta atitude acabou por marcar todo o seu percurso escolar. “Íamos para a escola [ela e as amigas], faltávamos às aulas da parte de tarde. Chumbámos todas por faltas. Eu era agressiva, mas não pensava em roubar ou fumar. O que me dava adrenalina era ver as pessoas no chão a chorar… por mais louco que isso pareça. O que me vinha à cabeça era: fizeram-me a mim, tenho de fazer aos outros, porque se não fizer ninguém vai sentir aquilo que eu senti”. É aberto um novo processo de promoção e proteção que conduz Elisabete para um lar de infância e juventude. Lá, integrou-se num grupo de pares conotado com práticas de comportamento desviante: “Eu já me portava mal, mas lá tinha muita mais liberdade, andávamos por onde queríamos”. Entra na justiça pela prática de crime de roubo agravado e coautoria material de crimes de ameaça, com mais duas colegas: “fiz três assaltos e tenho oito processos de agressão. E tudo foi a partir da entrada no lar, onde estive durante nove meses”. Elisabete cumpre uma medida tutelar de internamento em regime semiaberto, por 18 meses.
Este é um percurso que reúne quase metade das jovens entrevistadas (9/19)[12] e a quase totalidade das jovens com medida de internamento em centro educativo (7/10). Apelidou-se enfatizada por ser um percurso onde a transgressão das normas é o eixo em torno do qual as jovens organizam as suas narrativas e constroem as suas identidades. Reúne as situações de maior vitimação familiar, maior quantidade e diversidade de práticas delinquentes, histórias de institucionalizações sucessivas, em regra desencadeadas pela ação de organismos externos (escola, CPCJ e polícia), relacionadas com situações de negligência e maus-tratos familiares, problemas disciplinares e de comportamento na escola e fugas de casa. A permanência na(s) instituição(ões) é marcada pelas fugas consecutivas e pelo agravamento dos comportamentos transgressivos.
É um percurso bifurcado. Na transgressão enfatizada por revolta as jovens organizam as suas narrativas em torno dos sentimentos de revolta, que se materializam na auto e heteroagressividade. São estes sentimentos que explicam e justificam os comportamentos desviantes, nas suas diversas expressões. Há uma condenação moral aparente da transgressão, mas que é legitimada pelos sentimentos negativos. Na transgressão enfatizada por escalada há a perceção de que o comportamento transgressivo se foi agravando e reforçando ao longo das trajetórias de vida. A motivação para a transgressão não está apenas na gestão dos sentimentos negativos (ainda que esteja presente), mas também na experimentação e no divertimento que retiram disso, e que surge relacionado com as vivências de rua e as socializações dos pares. À heterodeterminação no envolvimento criminal juntam-se discursos de iniciativa, controlo e prazer associados à prática transgressiva, e pela qual não evidenciam uma condenação moral, mas apenas um arrependimento pós-medida.
Transgressão rebelde
RETRATO 2: Inês, 17 anos, nacionalidade portuguesa, de origem africana, residente em Sintra, num bairro de realojamento com a filha, a mãe, o irmão e uma tia. O pai faleceu quando Inês tinha 15 anos, situação que agravou o seu comportamento transgressivo: “comecei antes, mas com a morte agravou-se muito mais. Procurava diversão… divertimento em primeiro lugar. Eu sou mais rebelde. […] O meu objetivo é curtir a vida, viver cada dia que passa como se fosse o último”. Viver situações de risco é o que dá sentido à vida de Inês: “acho que toda a gente tem de experimentar alguma coisa p’ra saber com’é q’é. Tudo nesta vida tem risco… ver onde chegas, qual é o teu limite! Eu sou assim, gosto de saber qual é o meu limite”. O seu percurso escolar foi sendo marcado pelo absentismo e pelo fraco aproveitamento, que conduziu a duas retenções, e que, associado à gravidez, desencadeou o processo de abandono. Os amigos assumem uma importância muito grande na vida de Inês. São uma importante fonte de interesse e, por norma, são mais velhos do que ela. Praticava crimes com o pai da sua filha mas, segundo Inês “ele praticava o dele e eu praticava o meu”. Sem registos de passagem por instituições de proteção, entra na justiça por crime de furto e ofensas à integridade física: “comecei a experimentar os furtos e os assaltos… vi uma amiga minha a fazer e quis experimentar, não é? Depois disso comecei a fazer, a fazer, fazer, fazer… foi para experimentar, para saber com’é que é. […]”
Neste percurso, as jovens (3/19) não apresentam históricos de vitimação familiar significativa, nem registos de permanência em instituições de promoção e proteção. As motivações para a transgressão são encontradas nos/as amigos/as, na rebeldia de se ser jovem e no querer testar limites. A procura do risco-aventura e dos sentimentos de adrenalina é o que as leva a iniciar e a manter comportamentos transgressivos. Os discursos apelam para uma certa autodeterminação no envolvimento transgressivo, não apenas pela normalidade que lhe imputam, associada ao ser jovem, mas também a um certo controlo e domínio sobre os seus comportamentos, estando nas suas mãos a decisão do início ou do fim. Este percurso não deixa, contudo, de intercetar outros percursos, não porque a rebeldia e a aventura sejam o desencadeador da ação, mas porque surgem na manutenção desses comportamentos, como vimos na transgressão enfatizada por escalada, e como vamos ver na transgressão-influência.
Transgressão-influência
RETRATO 3: Sónia, 18 anos, nacionalidade portuguesa, residente em Cascais. Considera que teve uma infância feliz e que o relacionamento familiar só se deteriorou a partir da altura em que começa a namorar com um rapaz que os pais não aprovaram. Além de ter afetado o relacionamento familiar, o início do namoro foi, também, o despoletar dos comportamentos transgressivos de Sónia: “quando comecei a namorar com o rapaz, comecei a faltar à escola, ia de manhã cedo para a casa dele, ia ter com ele. Chamaram a minha mãe à escola, disseram que eu não ia”. Sónia engravida e faz um aborto. A decisão de interromper a gravidez foi tomada em consequência da reação do namorado e por prever a reação dos pais: “queria estar com o meu ex e a minha mãe e o meu pai não me deixavam… então comecei a fugir de casa p’ra poder estar com ele. Fugia só p’ra ir ter com ele. Comecei a fazer porcarias, a falar mal aos meus pais, a tratar mal os meus pais. Foi tudo por causa dele…” Face a esta situação, e a pedido dos pais, Sónia é acolhida numa instituição de promoção e proteção. Começou a relacionar-se com jovens da instituição: “pedi para ir com elas e fui ter com o meu ex. Depois é que assaltei a casa com elas.” Estas experiências foram causa e consequência de um percurso escolar insatisfatório. Entretanto conheceu um outro rapaz, com quem iniciou coabitação e de quem tem um filho. Cumpre medida de imposição de obrigações, por 18 meses.
Reunindo as histórias de vida mais divergentes (4/19), a característica central desta trajetória é a heterodeterminação no envolvimento transgressivo e a ideia de que este é resultado da influência de fatores externos (e.g. drogas, namorados e amigos/as). A centralidade do fator influência neste percurso tende a secundarizar o peso de outras variáveis como os percursos transgressivos, as motivações e significações da transgressão e a condenação moral da transgressão. Sem históricos de vitimação familiar significativa, os problemas relacionais com a família agravam-se devido a esses fatores de influência externa.
Apesar de contarem com a passagem por instituições de promoção e proteção ou por mudanças de escola, a grande diferença relativamente às outras jovens é que qualquer um destes processos é desencadeado pelos próprios pais, como uma tentativa de controlar o comportamento das filhas. Se o início da ação transgressiva é heterodeterminado, a manutenção dessas práticas reflete e reforça as singularidades discursivas, mostrando como na manutenção dos comportamentos transgressivos o sujeito é simultaneamente heteroautodeterminado, como nos mostra, por exemplo, Ivone [16 anos], que inicia o seu percurso transgressivo por causa do namorado, entra numa instituição de promoção e proteção na altura em que o namorado é preso, e mantém esses comportamentos transgressivos em nome da diversão: “fugia do colégio quase todas as noites para ir para o Bairro Alto com as minhas amigas, aparecia no dia à seguir e pronto… divertíamos, ficávamos lá a conviver, a dançar. Mas depois tínhamos consequências… mas reagíamos bem, porque no dia seguinte já estávamos a fazer porcaria [risos]. Compensar, não compensava, mas já era mesmo por gozo”.
Transgressão circunstancial
RETRATO 4: Anabela, 17 anos, nacionalidade portuguesa, residente em Lisboa, vive com o pai, a madrasta e o irmão consanguíneo. Os pais de Anabela separaram-se quando ela tinha um ano. Apesar de sempre ter vivido com a mãe, há cerca de dois anos integrou o agregado paterno, devido ao agravamento da situação de saúde da mãe. Os problemas desta e a transição para a casa do pai criaram em Anabela sentimentos ambivalentes. Por um lado, incompatibiliza-se com a mãe, mas sente a necessidade de a proteger e de estar ao seu lado: “Eu sei que ela precisa de mim, e às vezes sinto isso”. Por outro lado, a relação com o pai é difícil. Não aceita a sua supervisão e a imposição de normas e regras, sente que é preterida em relação ao irmão mais novo e entra em conflito com a madrasta. O agravamento da situação da mãe coincidiu com o início de um percurso escolar de menor sucesso: “chumbei duas vezes… foi várias coisas, foi a falta de estudo, foi falta de interesse… eu culpo-me mesmo, porque é verdade, não quis mesmo saber…” Os amigos e os namorados são elementos muito valorizados por Anabela e apresentam estilos de vida normativos. Sem registos de institucionalização ou outros processos, entra na justiça por crime de roubo na forma consumada, roubo na forma tentada e agressões corporais, que Anabela justifica dizendo: “nessa noite a minha mãe começou a […] e eu saí. E foi logo com pessoas que eu não devia ter saído […] Só pensava que estava metida numa embrulhada e que não sabia o que estava ali a fazer.” Cumpre uma medida tutelar de imposição de obrigações, que Anabela considera justa.
Este percurso reúne jovens (3/19) que organizam as suas narrativas em torno do caráter de exceção e de casualidade que é conferido ao comportamento transgressivo, demarcando-se de qualquer identidade desviante ou percurso transgressivo. Exceção porque o ilícito é descrito como uma situação ocasional e acidental. Exceção pois as suas vidas não se organizam em torno da prática transgressiva.
Os discursos sobre o contexto familiar têm significações predominantemente positivas. Como todas as outras jovens, é com os amigos que estruturam os seus quotidianos, marcados, predominantemente, por atividades de lazer, tendencialmente normativas e comuns entre os jovens: “mandamos mensagens pela net, vamos sair sempre para a discoteca; namorar; tomar café todos os dias e aos sábados e sextas saímos à noite.” Fica clara a fronteira que tendem a estabelecer entre elas, os amigos e os “amigos” desviantes (“São conhecidos, são pessoas que já andaram comigo na escola e num sei quê. Eu não os considero amigos” [Anabela, 17 anos]; “conhecíamos ela, mas não era muitas confianças… falávamos mas não era nada de… falávamos” [Fátima, 16 anos]). Apesar de apresentarem percursos escolares marcados por dificuldades e pela falta de identificação com os currículos académicos formais, a escola não surge como um espaço de indisciplina ou de problemas comportamentais. Em todo o discurso tendem a demarcar-se de um percurso transgressivo.
Notas finais
Ao descrever os diferentes tipos de discursos e percursos transgressivos, este estudo sublinhou a importância de olhar para a delinquência feminina como um fenómeno heterogéneo, e como esta perceção é fundamental na (re)categorização conceptual, que tem implicações no debate em torno da construção da sua visibilidade social; nos questionamentos em torno das juventudes femininas e das novas feminilidades; nos debates de superação dos discursos dicotómicos — vitimação vs agencialidade; e na produção de políticas e práticas de intervenção.
Os resultados são importantes não apenas para a teoria, mas também para a prevenção e para as respostas à delinquência. O aumento dos estudos realizados sobre a relação entre género e delinquência, seja em torno das especificidades, seja numa perspetiva comparativa, não tem sido acompanhado, igualmente, de uma agenda política e de intervenção, especificamente no contexto português. É importante que as instituições e os vários profissionais diretamente envolvidos sejam sensíveis aos repertórios interpretativos utilizados pelas jovens e reconheçam como estes podem ampliar ou limitar as possibilidades de sentido sobre a transgressão.
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Receção: 31 de março de 2014 Aprovação: 22 de setembro de 2014
Notas
[1] E.g. Leschied et al. (2000) no Canadá; Campbell (1981), Chesney-Lind (1997), Hoyt e cherer (1998), Miller (2001), Steffensmeier et al. (2005), e Zahn (2009) nos EUA; Burman, Batchelor e Brown (2001) na Escócia; Gelsthorpe eWorrall (2009), Arnull e Eagle (2009) na Inglaterra; Assis e Constantino (2001) no Brasil; Arnott (2010) na Nova Zelândia; Duits (2008) e Wong (2012) na Holanda; Matos (2008) e Duarte (2012) em Portugal.
[2] No que à delinquência juvenil e à sua distribuição por género diz respeito, a Difusão Estatística da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) é o instrumento de observação mais rigoroso; contudo, refere-se apenas à evolução e natureza dos pedidos executados pela DGRSP—não fornece nem a extensão da criminalidade participada (polícias), nem a dimensão da criminalidade julgada —, e tem uma divulgação pública inconstante e tardia, o que não permite ter uma visão global do fenómeno.
[3] Segundo as estatísticas da DGRSP, o número de raparigas em cumprimento de medidas de internamento em centro educativo em Portugal tem apresentado um crescimento tímido desde 2005 [dez. 2005: 5,6%; dez. 2008: 9,4%; dez. 2010: 10,2%; out. 2012: 11,3%; dez. 2013: 8,8%; jul. 2014: 11.3%].
[4] Expressão retirada de Chimamanda Adichie (2009).
[5] Podemos incluir as teorias da anomia, da aprendizagem social, do controlo social, da rotulagem e do curso de vida propostas por Moffitt.
[6] Como são exemplos os trabalhos de Campbell (1981), Naffine (1987), Chesney-Lind (1997), Burman, Batchelor e Brown (2001), Miller (2001), Alder eWorrall (2004), Batchelor (2005), Zahn et al. (2010).
[7] À data da investigação, em Portugal só existia um centro educativo com unidade residencial feminina, com lotação para 12 jovens do sexo feminino. No caso das equipas tutelares educativas, a investigadora só teve autorização para aceder à informação e entrevistar as jovens acompanhadas pelas equipas da área da Grande Lisboa.
[8] Atualmente Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.
[9] Segundo Potter e Wetherell (1987), os repertórios são o conjunto, de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem agrupadas em torno de imagens, usado na linguagem quotidiana.
[10] Considera-se “sistema”, neste contexto, o conjunto de instituições judiciais e os seus corpos profissionais.
[11] Estas dimensões foram apuradas a partir da combinação dos diferentes métodos e técnicas de investigação utilizados nesta pesquisa: entrevistas individuais, análise de processos tutelares e observação participante.
[12] Deve ler-se: nestas nove jovens de entre as 19 entrevistadas.