Introdução
Nos últimos anos, os conflitos judiciais em torno das crianças registaram um aumento expressivo nas sociedades ocidentais (Beck, 2005; Boyd, 2003; Smart, 2004).1 A justiça da família e das crianças, em Portugal, acompanhou esta tendência, observando-se, desde meados da década de 1990, um aumento exponencial das ações tutelares cíveis de regulação, alteração, incumprimento e limitação do exercício das responsabilidades parentais (Pedroso e Branco, 2008; Pedroso, Casaleiro e Branco, 2011; Casaleiro, 2017).
Este artigo procura compreender e enquadrar a evolução do movimento processual da justiça de família e crianças, em Portugal, tendo em atenção fatores exógenos e endógenos ao sistema judicial, designadamente as transformações sociojurídicas da família e do direito e justiça da família e das crianças. À luz deste enquadramento discutem-se ainda as motivações subjacentes aos processos tutelares cíveis relativos ao exercício das responsabilidades parentais, dividindo-as em três categorias não excludentes: acesso à(s) criança(s) (convívios e guarda/residência), pensão alimentar e certificação administrativa (apoios sociais e/ou legalização).
Para tal recorre-se à análise de indicadores estatísticos sobre a justiça tutelar cível e à análise de conteúdo de 54 processos de regulação, alteração ou incumprimento da regulação das responsabilidades parentais com decisão judicial ou acordo homologado em sede de audiência de discussão e julgamento findos em 2014, elaborada no âmbito da dissertação de doutoramento da autora (Casaleiro, 2017). A seleção e recolha dos processos teve lugar numa secção de família e menores, entre junho e julho de 2015, que se optou por não identificar para garantir o anonimato das famílias e crianças envolvidas nos processos, pelo que todos os nomes, números de processo e referências geográficas foram substituídos por nomes e números fictícios e/ou eliminados. O processo de recolha e seleção dividiu-se em dois momentos: um primeiro de consulta, seleção e recolha de sentenças a partir dos livros de sentenças da secção; e, um segundo momento, de consulta dos processos e recolha das peças processuais,2 perfazendo um total de 961 peças processuais.3 Esta pesquisa utilizou um sistema categorial com cerca de 60 categorias construído a partir de quatro categorias temáticas base: família, perícias judiciárias, processo e regime de regulação das responsabilidades parentais. Para a categorização dos motivos, em particular, consultaram-se as petições iniciais, as atas de conferência e os relatórios sociais onde são identificadas, claramente, as motivações dos requerentes para a abertura do processo ou/e os aspetos em que não conseguem chegar a acordo.
A família contemporânea: transformação sociojurídica das relações conjugais e parentais
A família da segunda modernidade traduz, em termos gerais, um aprofundar do processo de individualização, iniciado no fim do século XIX, marcado pela emancipação dos atores sociais das tradições e determinismos que caracterizaram a sociedade industrial (Bauman, 2006; Beck e Beck-Gernsheim, 2002; Giddens, 1992). A família contemporânea que emerge do processo de individualização é, simultaneamente, individualista e relacional, ou seja, a família torna-se um espaço privado ao serviço dos indivíduos (Singly, 2011). Esta constrói-se com base no amor, mas o fundamental não é a instituição e sim os seus membros, permitindo a individualização dos seus elementos (Portugal, 2014). É o amor que dá sentido à relação amorosa, findo o amor nada mais há a unir os membros do casal, isto é, sem amor não faz sentido manter o casamento ou a união (Beck e Beck-Gernsheim, 2002).
Neste contexto as relações conjugais são caracterizadas pelo risco e fragilidade e os indivíduos veem-se apanhados num paradoxo, no qual o amor e a intimidade são cada vez mais centrais e cada vez mais difíceis de manter (Bauman, 2006; Beck e Beck-Gernsheim, 2002). Neste sentido, Torres (1996) defende que conjugalidade e divórcio são duas faces da mesma moeda, pois o divórcio resulta da transformação das expectativas e das finalidades colocadas na conjugalidade, mais viradas para a realização afetiva individual e o encontro de si no relacionamento amoroso, a negociação e a igualdade de género. Assim, a família contemporânea compõe-se, decompõe-se e recompõe-se na tensão entre o relacional e a autonomia (Portugal, 2014; Singly, 2011).
Esta mudança que a socióloga francesa Irène Théry (2001) apelidou de démariage, está intimamente ligada à progressiva contratualização das relações entre adultos, ou seja, as decisões de casar ou não casar, divorciar ou não divorciar, passaram a ser questões do foro privado. Verificando-se, assim, a tendência da passagem do casamento de instituição social para contrato privado (Théry, 2001), que já não é estipulado no interesse da comunidade e da família enquanto unidade, mas sim no interesse do indivíduo, de forma a poder conquistar a própria felicidade e sendo, deste modo, revogável se e quando tal finalidade não se atinge, ou não se atinge em pleno (Cunha, 2007; Singly, 2011). As normas sociais e jurídicas passam a ser vistas como uma intrusão indevida na vida privada e na esfera da autonomia individual. O estado reduz o controlo exercido em relação aos modos como as uniões se formam e se selecionam, havendo uma evolução para novas formas de contratualização das relações familiares (por exemplo, a união de facto) e para a desjudicialização da resolução dos conflitos civis de família4 (Pedroso e Branco, 2008; Pocar e Ronfani, 2008).
Neste processo de individualização e sentimentalização da família, as formas de relacionamento conjugal e parental estatutárias, institucionalistas e hierárquicas foram dando lugar a novas formas de relacionamento mais “modernas” focadas no valor da relação pessoal, dos afetos, da intimidade e da igualdade (Beck e Beck-Gernsheim, 2002; Giddens, 1992; Singly, 2006). Para o que contribuíram as transformações políticas e legislativas no campo da família em vários países europeus e em Portugal, no sentido do apoio aos valores de partilha, de cooperação e de igualdade entre homens e mulheres na família, da proteção e do apoio à maternidade e paternidade no mercado de trabalho e da promoção de uma paternidade mais participativa, em que autoridade paternal absoluta (pater familiae), a autoridade masculina na família, foi dando lugar à autoridade parental e marital partilhada no casal, mesmo após a separação (Almeida, 2003; Marinho, 2011; Wall, 2010). Esta evolução traduziu-se, também, nas transformações sucessivas do regime de regulação das responsabilidades parentais e dos critérios de bem-estar das crianças nas sociedades ocidentais e em Portugal, ao longo do século XX, desde o poder paternal absoluto em que a criança era vista como um pequeno adulto propriedade do pai, até à afirmação do superior interesse da criança e partilha de responsabilidades parentais do final do século XX, início do século XXI (Boyd, 2003; Sottomayor, 2011).
As crianças no centro dos conflitos judiciais das famílias contemporâneas
Na segunda modernidade, perante a instabilidade associada ao compromisso amoroso, o compromisso parental surge, então, como o último reduto da estabilidade afetiva e emocional para o indivíduo, uma espécie de garantia de amor eterno (Beck, 2005). A conjugalidade continua a ser desejada e procurada como ideal de gratificação afetiva, contudo, a perceção da maior contingência do laço conjugal contrasta com o caráter indissolúvel do laço parental (Cunha, 2007), reforçado também pelas alterações legislativas que afirmam o princípio da manutenção dos laços da criança com ambos os pais e exigem permanência do casal parental mesmo após a separação (Singly, 2011). Irene Théry (2001: 123) defende que “à ideia da indissolubilidade do casamento, o tempo do démarriage substitui progressivamente a da indissolubilidade da filiação, enquanto pivot da segurança simbólica”. Nas palavras de Beck (2005: 114): “Os parceiros vêm e vão. As crianças ficam. Tudo o que é desejado, mas não é realizável num relacionamento é direcionado para a criança”.
Este contexto de valorização dos laços afetivos e (consequente) fragilidade das relações amorosas em que as crianças se tornaram um reduto afetivo, de relação perene e indissolúvel, pode, assim, explicar (em parte) o aumento consistente das disputas judiciais pela guarda e acesso das/às crianças (Beck e Beck-Gernsheim, 2004; Neale e Smart, 1997). Contudo, Beck (2005) aponta razões culturais, económicas e históricas mais profundas que ajudam a explicar porque é que as crianças se estão a tornar um “bem disputado” no divórcio, designadamente a passagem do modelo ganha-pão masculino para o modelo de duplo emprego em que há um afastamento dos papéis tradicionais das relações conjugais e uma redistribuição das oportunidades e encargos. Com a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, os homens perdem a sua função de provedores “exclusivos” da família, enquanto as mulheres continuam a desempenhar o tradicional papel de cuidadoras ao mesmo tempo que trabalham. Assim, num contexto de divórcio, as mulheres ficam com o rendimento e com os/as filhos/as e os homens ficam com o rendimento e sem os/as filhos/as, o que é visto como um fator de desigualdade de género.
À medida que a desigualdade económica entre homens e mulheres diminui, os pais tomam consciência da sua desvantagem, em especial quando o seu trabalho não é satisfatório, realizador ou seguro. Perante estas condições, características da modernidade tardia, Beck (2005) sugere que as crianças são reavaliadas pelos homens e que existe uma maior probabilidade de eles quererem ficar com as crianças após o divórcio, o que é também potenciado pelas leis atuais. Ou seja, a forma tradicional de organização da guarda parental, após o divórcio, caracterizada pela atribuição da custódia da criança à mãe, deixou de ser atrativa para os homens, emergindo as disputas pela guarda e visitas das crianças.
Nesta linha, as abordagens sobre a divisão do poder parental, sobre as dinâmicas de “apropriação masculina” e de “resistência” feminina e masculina (Gatrell, 2007; Modak e Palazzo, 2002) e gatekeeping feminino e masculino (Allen e Hawkins, 1999; Fagan e Barnett, 2003) podem ser úteis para compreender os conflitos judiciais em torno das crianças e como estas se tornaram objeto dos jogos de poder gendrificados no casal (Gatrell, 2007; Marinho, 2011). Por um lado, no âmbito da transformação das relações parentais e de reconfiguração da divisão tradicional de género, autores como Modak e Palazzo (2002), Gatrell (2007) e Marinho (2011) dão conta da emergência de dinâmicas de “apropriação masculina” em que há uma competição masculina pelo laço afetivo com a criança e pelos papéis e competências parentais tradicionalmente esperados da mulher. Por outro lado, as mulheres tendem a resistir à perda de liderança na parentalidade e a restringir quer a relação direta pai-filhos/as, quer a participação do homem na partilha parental, num conjunto de crenças e comportamentos que tem sido designado gatekeeping (Allen e Hawkins, 1999; Fagan e Barnett, 2003; Marinho, 2011). As práticas de resistência ocorrem, contudo, não só no feminino, mas também no masculino, existindo autores que defendem a existência de “resistências” masculinas à partilha com a mulher de alguns dos seus papéis e identidades tradicionais na família, como o de provedor e de autoridade sobre a criança (Collier, 2008; Collier e Sheldon, 2008; Gatrell, 2007; Marinho, 2011).
Collier (2009) defende que o direito tem um poder central na mediação destas disputas, operando como um discurso simbólico crucial na ratificação e legitimação do papel e identidades dos pais e da igualdade formal entre homens e mulheres. Para além disso, estudos têm revelado como após a separação tanto pais como mães procuram negociar e equilibrar as exigências das novas políticas e leis de família de partilha das responsabilidades parentais enquanto sujeitos gendered (com uma classe, raça, etc.) e indivíduos com uma história pessoal (Collier e Sheldon, 2008; Neale e Smart, 1997). Negociar esses processos num contexto de rutura e transição, como é o divórcio, pode resultar numa tensão entre as mensagens contidas no direito de cooperação e manutenção do vínculo parental, as normas familiares que devem presidir à vivência da família e aquelas que as famílias efetivamente experienciam, podendo agravar conflitos. Com efeito, de acordo com Neale e Smart (1997), o argumento da “verdadeira igualdade” não só assenta numa interpretação completamente errada das condições sociais em que supostamente se funda, como pode sustentar conflitos de género, uma vez que as desigualdades de género entre homens e mulheres, quer no mercado de trabalho, quer na esfera familiar, persistem, apesar das profundas transformações sociojurídicas.
Os estudos sociojurídicos têm ainda relacionado o aumento dos conflitos sobre a regulação das responsabilidades parentais com as alterações jurídicas no sentido da partilha das responsabilidades parentais. Neale e Smart (1997) argumentam que a transformação legal dá aos pais o ímpeto para se envolverem num conflito que antes pareceria infrutífero, sendo que, de acordo com Collier e Sheldon (2008), para homens e mulheres, o modelo do divórcio responsável obriga-os muitas vezes a posicionarem-se em relação a discursos concorrentes enquanto pais. Acresce que diferentes autores, como Scott e Emery (2014) e Kruk (2011), argumentam que o facto de o superior interesse ser um conceito indeterminado e, consequentemente, as decisões judiciais terem uma maior discricionariedade, contribui para aumentar o conflito entre os progenitores, minando a sua capacidade de colaborarem.
Regulação das responsabilidades parentais em Portugal
O regime jurídico português de regulação do exercício das responsabilidades parentais abrange, entre outras providências tutelares cíveis, a definição da residência habitual do/a filho/a, a determinação sobre a quem compete decidir sobre as questões de particular importância do/a filho/a e os atos da vida corrente, a fixação do regime de convívio do progenitor a quem o/a filho/a não é confiado e a fixação dos alimentos a prestar pelo progenitor não guardião, abrangendo, eventualmente, a administração de bens (artigos 1905.º e 1906.º da Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro) e respetivos incidentes. Sendo que a ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais pode ser requerida por um dos progenitores ou pelo Ministério Público em representação dos interesses da criança (artigos 3.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, alínea a), do Estatuto do Ministério Público).
Entre 1995 e 2015, no âmbito da justiça de família e das crianças portuguesa, os processos tutelares cíveis entrados aumentaram, consistentemente, de 20.685 para 54.952 (cf. figura 1), enquanto os processos cíveis de família, como as ações de divórcio e separação de pessoas e bens, diminuíam, refletindo a dualidade do direito da família português entre a desregulação e desjudicialização dos laços conjugais e a regulação dos laços parentais e publicização dos direitos da criança (Pedroso e Branco, 2008; Pocar e Ronfani, 2008). Sendo de salientar que enquanto as ações tutelares cíveis duplicaram na primeira década do século XXI de 23.607, em 2000, para 55.073, em 2015, de acordo com o INE (2016), o número de crianças e jovens entre os 0 e os 19 anos de idade diminuiu cerca de 10%, de 2.368.474, em 2000, para 2.021.195, em 2015. Assim, a taxa de ações tutelares cíveis entradas por 10.000 crianças e jovens entre os 0 e os 19 anos de idade passou de 87,3, em 2000, para 271,9, em 2015. De acordo com a DGPJ (2021), em 2014, o número de processos entrados foi invulgarmente elevado, consequência das transferências internas decorrentes da aplicação do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, que procedeu a uma reorganização dos tribunais judiciais de 1.ª instância e da Lei n.º 62/2013, de 28 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
Para a análise das transformações no movimento processual devem considerar-se de acordo com Pedroso (2006: 266) duas ordens de fatores: os fatores endógenos, isto é, próprios do sistema judicial; e os fatores exógenos, exteriores ao sistema judicial. Os primeiros consistem em alterações legislativas (substantivas ou processuais), institucionais e técnicas. Os segundos dizem respeito às transformações sociais, económicas, políticas e culturais e ao seu impacto na administração da justiça, em geral, e no movimento processual, em particular (por exemplo, desenvolvimento económico, variação da população, etc.). Neste caso, e tendo em conta os contributos anteriores, importa considerar que o aumento da procura dos processos deve ser enquadrado, por um lado, no contexto das transformações sociojurídicas mais amplas e interligadas da família, do lugar da criança, e das relações parentais de género (fatores exógenos), e do direito e justiça da família e das crianças (fatores endógenos).
Note-se, todavia, que nos últimos anos, parte do crescimento dos processos tutelares cíveis deu-se nas ações de incumprimento e de alteração do exercício das responsabilidades parentais, o que pode estar associado ao contexto de crise económica e financeira e de políticas austeritárias que afetaram Portugal desde 2008, podendo ser considerado outro fator exógeno.5 De forma geral, neste período houve um recuo no apoio económico do estado às famílias. A partir de 2010, o acesso a todas as prestações sociais do regime não contributivo que dependem do rendimento das famílias, como sejam o abono de família, a ação social escolar, os subsídios sociais de parentalidade, o rendimento social de inserção (RSI) e o subsídio social de desemprego, ficou mais restrito, não só em termos do número de famílias beneficiárias, mas também dos montantes atribuídos, resultando em menos famílias elegíveis (UNICEF, 2013: 22; Wall et al., 2015: 75). A título de exemplo, desde 2010 o número de famílias a receber RSI diminuiu progressivamente de 206 mil famílias para 160 mil, em 2012, e 148 mil famílias, em 2013 (Wall et al., 2015: 82).
Dos dados disponíveis por espécie de processo tutelar cível, entre 2011 e 2013, enquanto o número de ações de regulação das responsabilidades parentais se mantém praticamente inalterado, o número de ações de alteração e incumprimento das responsabilidades parentais regista um aumento de 18%, passando de 18.396, em 2011, para 21.765, em 2013 (cf. quadro 1), sendo que representam quase 50% do total de ações tutelares cíveis entradas (46.994). Ora, de acordo com Pedroso et al. (2012), os alimentos a menores são responsáveis por grande parte da conflitualidade nos processos de incumprimento e de alteração das responsabilidades parentais.
(*) A DGPJ não disponibiliza informação estatística por espécie de processo e o relatório da APIPDF apresentaos dados apenas para o período de 2011 a 2013, pelo que não foi possível aceder a informação estatística anterior a 2011.
Fonte: APIPDF (2014).
Os processos e as famílias da amostra, que se analisa em seguida, refletem as tendências mais amplas de transformação sociojurídica da família e o contexto socioeconómico e político português de crise económica e financeira, tanto na caracterização demográfica e socioeconómica das famílias, como nas motivações subjacentes à instauração do processo.
Breve caraterização das famílias que vão a tribunal
Os processos analisados correspondem a um total de 119 indivíduos requerentes e requeridos/as (e 73 crianças e jovens), verificando-se uma ligeira prevalência das mulheres (cf. quadro 2), o que é consonante com a tendência conhecida de feminização da mobilização da justiça de família e das crianças (Pedroso et al., 2012). A maioria dos requerentes e requeridos/as é o/a progenitor/a das crianças (45,4% mães e 44,5% pais), porém, 10% dos requerentes e requeridos/as correspondem a outros familiares diretos, nomeadamente, avós que têm a guarda das crianças (oficialmente reconhecida ou não).
A amostra pelas suas especificidades6 dá visibilidade aos “novos” tipos de família que têm emergido, em Portugal, na sequência do processo de individualização e desinstitucionalização dos laços conjugais e que se desviam do padrão tradicional de casal (de direito) com filhos/as, como sejam as famílias monoparentais, famílias recompostas e pessoas sós (Wall, Cunha e Ramos, 2014). Com efeito, a maioria dos requerentes e requeridos/as integrava à data do processo famílias monoparentais (31), em especial femininas, 21 reconstituíram família (casais com/sem filhos/as) e 15 vivem sós (12 homens) (cf. quadro 3).
(*) Entende-se por agregado familiar o grupo de indivíduos vinculados por relações jurídicas familiares, que vivem em comunhão de mesa e habitação com o requerente e em economia familiar com o mesmo (INE, 2016).
(**) Para a caracterização demográfica e socioeconómica de requerentes e requeridos/as foram consideradas as informações sobre o agregado familiar e a situação na profissão vertidas nas certidões de nascimento das crianças e nos relatórios sociais, pelo que a referência temporal varia de processo para processo.
Fonte: Casaleiro (2017)
A valorização da independência económica e residencial em diferentes fases da vida, terá, de acordo com Wall et al. (2014), conduzido, nas últimas décadas do século XX, não só a um reforço da família nuclear de casal com ou sem filhos/as mas, também, a uma maior individualização da vida privada, reduzindo a dependência do indivíduo em relação à família e à rede alargada de parentes próximos, sobretudo em fases da vida como o pós-divórcio. Note-se, contudo, que 20 dos requerentes e requeridos/as da amostra reintegraram o seu núcleo familiar de origem, quer sozinhos - casal com filhos/as maiores de 25 anos -, quer com os/as filhos/as - famílias alargadas com mais de um núcleo. A nível nacional, a corresidência dos pais e das mães sós com outras pessoas (família alargada) ou com outros núcleos familiares (família múltipla) diminuiu na última década. Porém, a sua relevância persiste, o que não pode ser dissociado da prevalência da dependência económica, social e residencial de familiares mais próximos, ou seja, da vulnerabilidade das famílias monoparentais (Marinho, 2014). Este dado, poderá, eventualmente também, encontrar uma explicação no agravamento das condições de vida das famílias na sequência da crise económica, uma vez que a precariedade económica e o difícil acesso a um alojamento próprio é hoje a principal motivação para a corresidência em famílias complexas (Wall, Cunha e Ramos, 2014: 49). A crise surge, assim, como um fator de limitação do processo de modernização das famílias.
O processo de modernização familiar é também percetível no estado civil dos progenitores requerentes e requeridos/as dos processos à data de nascimento da criança (cf. quadro 4). Não obstante o casal seja a forma predominante de organização da vida familiar, a amostra reflete a crescente informalização e diversificação da vida conjugal. A percentagem de pais em regime de união de facto (46,2%) na amostra é, como se percebe no quadro 4, superior à dos casados (37,5%) (sendo de salientar que 17 dos requerentes e requeridos/as não formavam um casal de direito ou de facto à data de nascimento da criança). Este dado é consistente com o aumento dos nados vivos nascidos “fora do casamento” e a diminuição dos casamentos.
No que concerne à situação profissional, mais de metade dos requerentes e requeridos/as da amostra estão inseridos no mercado de trabalho (52,9%). Não obstante, a percentagem de requerentes e requeridos/as desempregados/as é muito expressiva (29,4%), sendo indissociável das consequências do contexto de crise económica e do paradigma austeritário (cf. quadro 5). Ao que acresce o facto de 13 dos requerentes serem mesmo beneficiários do rendimento mínimo de inserção social.
Por que motivo vão as famílias a tribunal?
Os motivos que levam as partes a instaurar um processo tutelar cível relativo às responsabilidades parentais (ou a dirigir-se ao Ministério Público) emergem no discurso não só de advogados/as e partes nas alegações e requerimentos, mas também nos relatórios periciais, em especial nos relatórios sociais da EMAT.7 Em termos gerais, podem dividir-se as motivações em três tipos não excludentes: acesso à(s) criança(s) (convívios e guarda/residência); patrimonial (pensão alimentar); e certificação administrativa (apoios sociais e/ou legalização). No quadro 6 observa-se uma prevalência das questões relacionadas com o acesso às crianças entre os motivos para a instauração dos processos de regulação, alteração, incumprimento ou limitação do exercício das responsabilidades parentais. A leitura deste quadro deve, porém, ter em conta a opção tomada na construção da amostra de excluir os processos de incumprimento e alteração relativos exclusivamente à pensão de alimentos,8 o que pode justificar o peso superior dos motivos relacionados com o acesso à(s) criança(s). Na verdade, os dados disponíveis a nível nacional apontam, como referido anteriormente, para um aumento dos processos de incumprimento e de alteração das responsabilidades parentais relacionados com alimentos a menores.
(*) ARP-processo de alteração do exercício das responsabilidades parentais; IRP-processo de incumprimento do exercício das responsabilidades parentais; LRP-processo de limitação do exercício das responsabilidades parentais; RRP-processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Fonte: Casaleiro (2017).
Nos processos de regulação, alteração e incumprimento do exercício das responsabilidades parentais que visam regular o acesso à(s) criança(s), os progenitores assumem posições distintas quanto à fixação da residência principal da criança e/ou o regime de convívios, sendo que a determinação da pensão alimentar decorre da fixação da residência, duas questões que surgem muitas vezes associadas. De um modo geral, nestes processos os pais-homens procuram assegurar o cumprimento dos tempos de convívio com os/as filhos/as, estabelecer a residência alternada das crianças ou (caso não seja possível a residência) aumentar o tempo de convívio com os/as filhos/as.
Assim, as relações parentais e as identidades de género são produzidas e negociadas não só no dia a dia familiar, como também nos tribunais nos processos tutelares cíveis de regulação das responsabilidades parentais. Estes processos assumem-se como um espaço de luta discursiva e identitária (Chunn e Lacombe, 2000), onde o direito opera como um discurso simbólico na ratificação e legitimação do papel e identidades de género relacionadas com a maternidade e a paternidade (Smart, 1999; Collier, 2009). Tome-se como referência o exemplo seguinte. Vicente, o pai, instaura um processo de regulação das responsabilidades parentais onde pede a fixação da residência alternada, enquanto a mãe pretende que a residência seja fixada junto de si, com um regime de convívios alargados com o pai. Vicente que delegou na mãe a maioria das funções de cuidado durante o casamento, recorre, então, ao tribunal para reconstruir o seu papel no cuidado dos filhos após a separação:
Vicente apresenta-se como um pai afetuoso e preocupado com os filhos verbaliza que, tudo tem feito, para adaptar a realidade profissional a’ vida familiar atual para poder ter os filhos no regime em que estão, e que no passado os seus horários profissionais não lhe permitiam ter a mesma envolvência. […]
A mãe sempre se posicionou como uma figura presente junto da educadora que a acompanhava às consultas. Mostrou-se sensível às características do filho tendo precocemente solicitado apoio para ele.
Relativamente ao pai, é referenciado que este, numa fase inicial, delegou na mãe todos os cuidados para com o Vasco tanto ao nível escolar como de saúde. Depois da desagregação familiar, o requerido começou a ter uma postura participada e de envolvência na vida do filho, aceitando as orientações que lhe são facultadas no que a ele diz respeito.
Dos indicadores recolhidos para avaliação regista-se que, Vicente se apresenta como um pai interessado e atento aos seus filhos, tendo vindo, desde a desagregação familiar, a adaptar as suas rotinas, designadamente o seu horário profissional em função das necessidades deles. [Relatório social do pai, processo 111]
O relatório social relativo a Vitória, mãe do Vasco, dá conta da resistência da mãe, revelando a competição afetiva, simbólica, prática e identitária entre o casal em relação aos/às filhos/as patente nestes processos, potenciada pelas transformações legais:
Relativamente à matéria em análise, e concretamente à reorganização do tempo dos filhos, vertente da parentalidade onde se centra o principal desacordo, num primeiro momento, Vitória discorda da residência alternada, uma semana em casa da mãe outra em casa do pai, por entender que não será a situação mais estável para os filhos, em especial para o Vasco. A este propósito releva como pontos negativos que existem diferentes orientações educativas, e alterações de rotinas de uma casa para a outra, situação que considera não ser benéfico. Assinala também como aspeto importante o facto de dispor de maior disponibilidade de tempo para se dedicar aos filhos e estar mais próxima do Vasco, acompanhando-o, em contraponto com o pai, cujo horário de trabalho não lhe permite, já que, por vezes, tem que se deslocar para fora [do concelho de residência]. [Relatório social da mãe, processo 111]
No processo seguinte, o pai, descontente com a regulação das responsabilidades parentais estabelecida inicialmente por acordo no âmbito do processo de divórcio, onde se definiu a guarda e residência da filha junto da mãe e o direito de visitas quinzenais aos fins de semana, com pernoita, requer a guarda alternada, procurando aumentar a sua participação na vida da filha.
No entanto, o progenitor vem requerer alteração do regime ora fixado, por considerar insuficientes os tempos de convívio que mantém com a filha, requerendo uma guarda conjunta/partilhada, situação que a requerida rejeita de imediato. Este desacordo tem-se revelado bastante problemático, na medida em que não tem sido possível estabelecer uma base sólida de comunicação entre as partes o que precipitou o presente processo judicial. [Relatório social da EMAT, processo 101]
Neste sentido, os conflitos em torno do acesso às crianças são indissociáveis, por um lado, do facto das crianças se terem tornado reduto afetivo, de relação perene e indissolúvel num contexto de crescente valorização dos laços afetivos e (consequente) fragilidade das relações amorosas (Beck, 2005; Théry, 2001; Cunha, 2007). E, por outro lado, da forma tradicional de organização da guarda parental, após o divórcio, caracterizada pela atribuição da guarda da criança à mãe se ter tornado menos atrativa para os homens, com o afastamento dos papéis tradicionais de género e a redistribuição das oportunidades e encargos (Beck, 2005). Em Portugal, se a manutenção na esfera da família das desigualdades entre homens e mulheres é indubitável, é certo que também se evidencia um movimento de reconfiguração das identidades e práticas da paternidade com a entrada dos homens no universo da produção doméstica e parental (Wall, Aboim e Marinho, 2010; Marinho, 2011), patente nos processos que revelam modelos de paternidade mais participada pré e pós-rutura familiar:
Em seguida, a Exma. Juiz passou a ouvir os presentes, em declarações. Patrício e Paula, no restante já identificados nos autos. Inquiridos disseram:- Por ambos foi dito que enquanto viveram juntos o Pedro era levado para o infantário de manhã pelo pai, sendo este que habitualmente o ia buscar ao infantário entre as 16:30 e as 17:00 horas. […] Geralmente o pai ficava com os filhos até a mãe chegar a casa, exceto nos dias em que a mãe fazia serviço noturno, o que sucedia em média 5 vezes por mês, ocasiões estas em que o Paulo ia para casa da empregada pernoitar. Assim, fora esses dias de serviço noturno, a progenitora, em média duas vezes por semana, ia buscar o Pedro ao infantário; nos restantes chegava a casa depois de eles estarem deitados. Nestes dias o pai dava-lhe o jantar e punha-os a dormir. O banho das crianças era dado na presença do pai sempre que este se encontrava em casa. [Ata de conferência dos pais, processo 119].
Contudo, e à semelhança do estudo realizado por Bren Neale e Carol Smart (1997), que concluiu que os pais pareciam efetivamente querer as crianças a viver com eles depois do divórcio, sobretudo, quando tinham uma relação menos estável com o mercado de trabalho, a amostra inclui processos em que o pedido de guarda partilhada emerge na sequência do desemprego do pai, de que é exemplo o processo seguinte:
O Requerente na impossibilidade de fazer face às suas despesas, designadamente com os alimentos previstos no acordo de regulação, dada a inexistência de rendimentos, teve que recorrer a fundo de desemprego da Segurança Social. […] E naturalmente que, mesmo reduzindo ao máximo todas as despesas, o Requerido tem tido muitas dificuldades económicas. […] Face ao exposto vem-se requerer que o acordo de regulação do poder paternal homologado seja alterado nos seguintes termos: Art.° I.º Os Menores ficam confiados à guarda do pai e da mãe, que exercem conjuntamente o poder paternal. […] Art.° 8.º A mãe contribui a título de alimentos aos menores com a quantia mensal de euros 300,00, sendo cento e cinquenta euros para alimentos a cada um dos menores. [Petição inicial, processo 141]
Deste modo, as motivações subjacentes aos conflitos judiciais ilustram os conflitos de género emergentes, mas revelam, também, as desigualdades de género que prevalecem na sociedade portuguesa, em especial os processos de regulação, alteração ou incumprimento das responsabilidades parentais relativos à pensão alimentar. As mulheres-mães continuam a ser as principais cuidadoras das crianças após a rutura do casal, consequentemente são elas que, em geral, recorrem aos tribunais para assegurar o pagamento da pensão de alimentos. Veja-se o exemplo seguinte de um processo de regulação das responsabilidades parentais intentado pelo Ministério Público, a pedido da mãe, cuja principal motivação é a fixação da pensão alimentar a pagar pelo pai, que regressou ao país de onde era natural para trabalhar, deixando de comparticipar nas despesas dos/as filhos/as. Neste processo, a mãe, desempregada e a frequentar um curso de formação profissional, com direito a bolsa (no valor de 250 euros), constitui uma família monoparental com os três filhos menores e os dois maiores:
Em abril de 2013, o requerido terá informado a companheira da sua intenção de regressar [ao seu país de origem] […]. Não comparticipa nas despesas dos filhos, alegando não possuir condições económicas para tal. […]
A situação laboral […] do agregado familiar, é bastante precária, não só pela fragilidade do contrato de trabalho de Isilda, como também pela carência de rendimentos que auferem para fazer face às despesas do quotidiano. Parecem-nos existir algumas repercussões na capacidade de prover às necessidades materiais e relacionais do agregado familiar no seu todo, que estão a ser colmatadas com o apoio da rede local, no caso concreto, da Cáritas Diocesana […]. O conflito que existe ao nível do cumprimento do pagamento da pensão de alimentos, por parte do requerido, poderá em nosso entender, responder às dificuldades apresentadas pelo agregado a esse nível. [Relatório social da mãe, processo 128]
O elevado índice de não pagamento ou de pagamentos meramente parciais ou de periocidade irregular da obrigação de alimentos9 (Pedroso et al., 2012; Casaleiro e Santos, 2018) pode agravar a já conhecida vulnerabilidade à pobreza das famílias monoparentais femininas (Bruto da Costa et al., 2008: 111). Simultaneamente, as situações de desemprego súbito ou prolongado, e/ou agravamento das condições socioeconómicas das famílias, a par da diminuição dos apoios às crianças e às famílias com as reduções das transferências sociais no contexto de crise económica e políticas austeritárias que afetaram Portugal desde 2008, constituem em fator determinante para o aumento do risco de pobreza de mulheres e crianças. A este propósito, note-se que desde o início da crise, o fosso entre os agregados familiares com e sem crianças dependentes tem vindo a aumentar (UNICEF, 2013: 14). Veja-se o exemplo deste processo em que o pai, desde o nascimento do filho em 2009, nunca contribuiu para o seu sustento, mas só em 2012, na sequência da situação de desemprego prolongado da mãe, o Ministério Público vem intentar a ação.
Até à data, o pai da criança não a terá procurado nem lhe terá facultado qualquer apoio económico para o seu processo de crescimento. […] O agregado familiar em que a criança se integra, mantém, ao que tudo indica, uma atitude empenhada em relação ao processo de crescimento do Gabriel, com 4 anos e meio de idade. No entanto, denuncia algumas fragilidades relacionadas nomeadamente com a situação económica do agregado. A este nível foram indicadas falhas nos pagamentos de alguns dos encargos do agregado […], nomeadamente nos compromissos relacionados com a vida escolar e o processo educativo das crianças. [Relatório social da mãe, processo 127]
Desta forma, observa-se uma judicialização da questão social, colocando novos desafios aos tribunais de família e menores enquanto garantes dos direitos fundamentais das famílias e, em especial, das crianças, como o direito à alimentação ou o direito à proteção da sociedade e do estado, com vista ao seu desenvolvimento integral.
Por fim, nos processos relativos a questões de certificação administrativa, as famílias mobilizam a justiça de família e menores para regularizar a situação para aceder a benefícios sociais (como RSI e o abono de família) e/ou regularizar documentação. Ora, nestes processos os tribunais cumprem, essencialmente, uma das suas funções instrumentais identificadas por Santos et al. (1996), a função administrativa, que diz respeito ao conjunto dos atos de certificação e notariado que os tribunais realizam por obrigação legal em situações que não são litigiosas.10
Em primeiro lugar, a opção política de redução do estado social torna a mobilização dos tribunais para a regulação ou alteração das responsabilidades parentais a única forma de aceder a apoios sociais, os quais passaram a ter critérios de acesso mais restritos e a exigir nomeadamente a regulação das responsabilidades parentais (RSI, abono de família, etc.). Tal resulta na criação de um litígio judicial onde outrora não existia, como no exemplo seguinte:
Jéssica e João mantêm uma relação tranquila. Ambos conseguem dialogar nas questões relativas ao Jorge e, frequentemente mantêm contactos via internet. A requerente teme que a instauração da presente ação possa vir a ter repercussões negativas nesta relação, pela fixação de uma pensão de alimentos, a ser eventualmente paga de forma coerciva. […] Pretende com este processo regularizar a situação do Jorge, para que, em termos processuais, continue a beneficiar dos apoios sociais [rendimento social de inserção]. [Relatório social da mãe, processo 117]
Veja-se, ainda, o exemplo abaixo de um processo promovido pelo Ministério Público, por iniciativa da avó com quem a criança reside, no sentido de aceder ao abono de família:
Somos informados pela avó paterna de que a presente ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais decorre das diligências por ela efetuadas no sentido de conseguir abono de família para a neta e da necessidade de se definir do ponto de vista jurídico o que na prática se vem já verificando. [Relatório social da EMAT, processo 146]
Em segundo lugar, a regulação do exercício das responsabilidades parentais é também necessária para a regularização da documentação de famílias e crianças de outros países residentes em Portugal, como nos dois exemplos seguintes.
Com a interposição do presente processo, a requerida manifesta expectativa que o Tribunal normalize a regulação das responsabilidades parentais dos filhos junto de si. Segundo a mesma, a formalização da situação tutelar cível dos filhos através do presente processo será importante para a renovação dos documentos pessoais dos filhos, nomeadamente, passaportes e autorizações de permanência em Portugal, junto dos serviços portugueses competentes, bem como em casos em que a requerida viaje com os filhos para o estrangeiro, nomeadamente, para [outro país]. [Relatório social da EMAT, processo 135]
A presente ação foi interposta com o objetivo de regularizar judicialmente uma situação de facto (fixar a residência da jovem junto da mãe) e permitir à Verónica [à jovem] renovar o seu passaporte para assim poder visitar a família [num país estrangeiro]. [Relatório social da EMAT, processo 126]
Os processos de certificação administrativa não são indiferentes ao contexto de crise económica, em especial os relacionados com as prestações sociais. Porém revelam, igualmente, o controlo administrativo e judicial das famílias, em particular as mais desfavorecidas através das crianças, como já identificado no trabalho clássico de Jacques Donzelot (1977). A proteção da infância assume, desde o início, um caráter disciplinador, repressivo - de “polícia da família” (Donzelot, 1977) - na medida em que cria um conjunto de mecanismos que penetram no seio da família, intervindo nela, procurando conformá-la e moldá-la à sociedade capitalista.
Conclusão
O aumento dos conflitos familiares judicializados relativos a crianças em Portugal deve ser compreendido e enquadrado, por um lado, no contexto das transformações sociojurídicas mais amplas e interligadas da família, do lugar da criança, das relações parentais de género e do direito e justiça da família e das crianças. E, por outro lado, no contexto socioecónomico e político do país, de crise e austeridade, que potencia o aumento dos incumprimentos do pagamento da pensão alimentar e, consequentemente, os conflitos judiciais associados, tornando a mobilização dos tribunais a única forma de aceder a algumas prestações sociais.
A emergência da família moderna, individualista e relacional e a crescente fragilidade das relações familiares, a par do recuo da mortalidade e natalidade infantil e da promoção e proteção dos direitos das crianças e da partilha, cooperação e igualdade de responsabilidades parentais na família pelo estado estão intimamente interligados e são indissociáveis da crescente valorização social e familiar da infância e do aumento da demanda dos tribunais para a resolução de litígios sobre as responsabilidades parentais.
Contudo, os motivos que levam as famílias a instaurar um processo revelam como a mudança e a continuidade, o moderno e o tradicional, se entrecruzam nas relações familiares e parentais, em especial no momento de rutura familiar. Os processos tutelares cíveis relativos ao acesso às crianças refletem a diversificação de estilos de paternidade e de funcionamento conjugal e parental com a adoção de dinâmicas mais igualitárias de parentalidade, em que a criança se torna objeto da competição afetiva, simbólica, prática e identitária entre o casal após a separação, sustentada, também, pelas alterações legais no sentido da partilha das responsabilidades parentais. Os processos relativos à pensão alimentar e de certificação administrativa, por sua vez, refletem a subsistência do modelo tradicional da parentalidade separada no pós-divórcio, moldado por uma dualidade e desigualdade profundas de género, em que as mulheres continuam a assumir a maioria dos cuidados às crianças com os sacrifícios e as penalizações económicas e profissionais inerentes.
O direito e a justiça configuram-se num espaço de luta discursiva sobre as identidades parentais de género mas, também, num meio de acesso ao estado social, no contexto de crise e austeridade, que pode funcionar simultaneamente como um meio transformador e/ou reprodutor de desigualdades sociais. Assim, num contexto de aumento destes processos e de judicialização da questão social, os/as profissionais da magistratura não devem perder de vista o “poder-dever” primordial do tribunal de promoção e proteção dos direitos das crianças, como o direito à alimentação ou o direito à proteção da sociedade e do estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, e de proteção dos cônjuges, sobretudo, daquele que fica com a guarda do/a filho/a. Nesta medida, torna-se necessário um controlo efetivo dos regimes de regulação das responsabilidades parentais estabelecidos no âmbito destes processos e a promoção de um acesso ao direito e à justiça da família e das crianças democrático e cidadão.