Introdução
A literacia e a inclusão digital dos adultos têm sido colocadas no centro das políticas públicas europeias (EC, 2011) e nacionais (Portugal INCoDe.2030), sobretudo as que se relacionam com a educação e formação de adultos (EC, 2020; AA.VV., 2019). Estas áreas de desenvolvimento pessoal e social têm também constituído objeto de estudo central na investigação em ciências sociais e, particularmente, em sociologia (Eynon, 2021; Henriques et al., 2020; Lopes e Henriques, 2017; Quan-Haase et al., 2018). O presente estudo situa-se numa zona de interseção de várias dimensões de análise, que têm atraído menor atenção por parte dos investigadores. Referimo-nos em concreto à análise das competências digitais e da inclusão digital de adultos diplomados em cursos oferecidos online, quer dizer, em regime de educação digital.
O desenvolvimento das competências digitais dos adultos ocorre em diferentes contextos, entre os quais, no quadro das instituições de ensino superior (IES), nas suas ofertas e nos planos de formação e qualificação no seu ciclo de vida (Atchoarena et al., 2017). A estratégia Europa 2020 reconhece a aprendizagem ao longo da vida (ALV) e o desenvolvimento de competências enquanto elementos decisivos de resposta aos atuais constrangimentos económicos e sociais (EC, 2011). Paralelamente, as competências para o século XXI são, entre outras, competências digitais, que passam transversalmente pelos cenários da educação formal (escolar), informal (extracurricular ou complementar) e não formal (atividades espontâneas, livres ou não orientadas) (Donoso et al., 2020).
Interessa, pois, perceber: quem são estes adultos com licenciatura em regime de educação digital? Que competências, com destaque para as competências digitais, desenvolveram? Que indicadores de inclusão digital manifestam?
Partindo destas questões de investigação, no presente artigo, propomo-nos contribuir para um conhecimento mais aprofundado sobre o desenvolvimento de literacia e de competências digitais numa população adulta com formação superior realizada em contexto totalmente digital. Tendo situado a nível introdutório o problema, cabe estabelecer o enquadramento, que resulta da mobilização de um modelo de análise que convoca contributos da literacia e inclusão digital, da aprendizagem ao longo da vida, da educação digital em rede e da empregabilidade.
Literacia digital, inclusão digital, aprendizagem ao longo da vida
A disseminação à escala global das tecnologias digitais tem implicações nas várias dimensões da vida dos sujeitos (social, laboral, de aprendizagem…), o que pressupõe o desenvolvimento de competências digitais. Mas tal não significa apenas a capacidade manusear de modo instrumental um dado programa, sistema ou dispositivo. Antes implica a aquisição e desenvolvimento de um conjunto de habilidades e atitudes que permitam gerir o manancial de informação digital disponível e, com base nessa informação selecionada e criticamente analisada, tomar decisões que permitam resolver problemas, fazer escolhas, assumir posições… (Allmann e Blank, 2021). A nível europeu, no Quadro Dinâmico de Referência de Competência Digital, as competências digitais são definidas como “o conjunto de conhecimentos, capacidades, habilidades, estratégias e atitudes necessárias para utilizar as tecnologias e meios digitais” (AA.VV., 2019: 15). Compreende-se assim, que Santos, Azevedo e Pedro (2015), na sua revisão de literatura, salientem que se trata de um conceito dinâmico e multidimensional.
Uma vez que as ferramentas e processos digitais suportam um número crescente de tarefas e recursos nas sociedades atuais, as fronteiras com os domínios do não digital têm tendência a esbater-se. O Manifesto Onlife (Floridi, 2015) defende precisamente o fim da distinção entre offline e online, característico de uma nova realidade hiperconectada. Nesta linha, o conceito de literacia digital tende a integrar as competências que remetem para o uso dos média em rede e participativos evidenciando a “… sua importância para novas formas de comunicação, expressão, viver, aprender e trabalhar” (Santos, Azevedo e Pedro, 2015: 30). Os autores defendem, assim, que “… o conceito de literacia digital parece ser aquele que melhor transmite a ideia de uma framework que integra várias outras literacias e conjuntos de competências para lidar com o ambiente digital que caracteriza a sociedade da informação.” (Idem: 41)
A literacia digital corresponde a uma combinação de técnicas, procedimentos, habilidades e competências cognitivas, emocionais e sociais (Liu et al., 2020). Ou seja, exige saber como aceder, pesquisar e analisar criticamente a informação (Farias-Gaytan, Aguaded e Ramirez-Montoya, 2022).
A inclusão digital é também um conceito complexo, mas que tende a corresponder a um estádio em que todos os membros de uma sociedade conseguem aceder aos recursos proporcionados pelo uso das tecnologias digitais (Seale, 2010; Selwin e Facer, 2007). A inclusão digital está, pois, diretamente focada nas desigualdades, na medida em que os que não têm acesso estão em desvantagem: encontram-se em situação de infoexclusão. No entanto, os estudos recentes sobre inclusão e exclusão digital tendem a ultrapassar a dicotomia (acesso versus não acesso), reconhecendo e evidenciando que se trata de um conceito complexo e multifacetado, determinado por fatores como as redes de suporte social, a participação na sociedade, os estágios do ciclo de vida, entre outros (Asmar, Mariën e Audenhove, 2022). O que fica por estabelecer é o modo como todos estes elementos se combinam para exercerem influência, positiva ou negativa, sobre a inclusão na sociedade digital (idem). Procurando responder a este desafio, Asmar, Mariën e Audenhove (2022) propõem a existência de um contínuo entre a profunda exclusão e a profunda integração no sentido de captar a natureza dinâmica dos mecanismos de inclusão e exclusão. Trata-se de um modelo que, ao integrar fatores adicionais, para além do rendimento e educação, realça as condições e estruturas que tornam os indivíduos e grupos vulneráveis à exclusão social e digital. Neste sentido, a inclusão digital engloba conceitos como acesso, uso, empoderamento e participação (Seale, 2010).
Nas sociedades atuais, caracterizadas pelas redes digitais em rápida evolução, a aprendizagem ao longo da vida assume particular relevância, na medida em que facilita a adequação a novas exigências. Tal tem reflexo nas políticas públicas europeias, como é o caso do Plano de Ação sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais,1 onde se destaca a educação, formação e aprendizagem ao longo da vida. Ou seja, a educação de adultos, especialmente daqueles que, estando inseridos no mercado de trabalho, têm mais idade e menos qualificações, visa promover a sua adaptação às mudanças no mercado de trabalho e na sociedade e, deste modo, a sua inclusão social (EC, 2011). A conceptualização da educação de adultos tem-se baseado em teorias de aprendizagem ao longo da vida e traduz-se num conceito de educação para o desenvolvimento humano em todas as fases da vida (Delors et al., 1996; Glendenning, 2001; Morin, 2002; UNESCO, 2019, 2016).
De um modo geral, as alterações no mercado de trabalho exigem aos indivíduos uma atualização constante e as alterações na sociedade exigem a adequação das competências transversais para o exercício de cidadania ativa, em ambientes digitais, e para o desenvolvimento pessoal. Neste quadro destacamos algumas das prioridades que a Agenda Europeia 2015-20202 define para a aprendizagem ao longo da vida:
aumentar significativamente a oferta e a procura de formação de elevada qualidade, especialmente em literacia, numeracia e competências digitais;
oferecer aos adultos oportunidades de aprendizagem mais flexíveis, designadamente melhorando o acesso a formações em contexto com uso de tecnologias digitais;
melhorar a qualidade da aprendizagem de adultos, monitorizando o impacto das políticas e reforçando a formação dos educadores de adultos.
A Comissão Europeia lançou, entretanto, uma nova Agenda Europeia de Competências para a competitividade sustentável,3 justiça social e resiliência, que estabelece, até 2025, objetivos de melhoria das habilitações existentes e formação em novas competências. Em síntese, a literacia digital remete para um conjunto de competências essenciais ao mercado de trabalho e à inclusão social.
Educação digital e empregabilidade
O fenómeno das desigualdades escolares entre a população adulta em Portugal assume diversos contornos com implicações noutros domínios, designadamente na integração e mobilidade no mercado de trabalho (Martins et al., 2016). A educação na sociedade digital coloca desafios e exigências às instituições de ensino superior no sentido de dotar os seus diplomados de competências digitais facilitadoras desses processos de integração e mobilidade (Vázquez-Cano et al., 2020). O desenvolvimento das redes de comunicação digitais veio alterar os contextos sociais de educação enquanto sistema social, com reflexos diretos nas formas de ensinar e aprender e nos ambientes em que ocorrem.
Entendemos a educação digital como o conjunto dos “… processos de ensino e aprendizagem que se constituem na relação entre diferentes tecnologias digitais […] que apoia a cooperação, a partilha do conhecimento…” (Moreira et al., 2020: 5). Ou seja, um ecossistema digital em contexto educacional em rede, assente na comunicação e na interação tecnologicamente mediadas. A estrutura de um ecossistema digital de ensino e aprendizagem em rede integra componentes humanas, os sujeitos (professores, estudantes), componentes digitais (os conteúdos e recursos), que operam num ambiente digital. Compreende ainda as interações complexas entre todos, componentes e ambiente (idem). Tal estrutura deverá responder, simultaneamente, às necessidades dos seus destinatários e aos resultados da aprendizagem que se pretendem alcançar (Davis, Little e Stewart, 2008; Goulão, 2012).
A educação digital refere-se a processos de ensino e aprendizagem através das tecnologias digitais envolvendo múltiplas abordagens pedagógicas e métodos instrucionais específicos (Car et al., 2019). Na aprendizagem ao longo da vida, a educação digital remete para modelos baseados na comunicação, na interação e na autonomia. Entende-se assim que os sujeitos que frequentam ofertas em educação digital têm perfil que permite ter a capacidade de estar consciente e ativamente envolvido no seu próprio processo de construção do conhecimento enquanto comunica e interage num ecossistema digital (Monteiro, Leite, e Lima, 2012; Gunn, 2011). Trata-se, pois, de um modelo educacional que não se limita à transmissão de conteúdo, antes se constitui como uma ferramenta de promoção de cidadania, qualidade de vida, melhores interações e relações, dignidade, pensamento crítico e outros, muito para além do foco na profissão e no mercado de trabalho (UNESCO, 2019 e 2016).
Dito de outro modo, a educação de adultos e a aprendizagem ao longo da vida proporcionam oportunidades de desenvolvimento humano (UNESCO, 2019 e 2016; Glendenning, 2001). Neste sentido, o conceito de empregabilidade tem de ser discutido, num quadro de transição digital, impulsionado por políticas públicas europeias (Objetivos Digitais para 2030)4 e nacionais (Plano de Ação para a Transição Digital de Portugal),5 mas também na sua relação com os modelos educativos no ensino superior e, particularmente, em ofertas de educação digital. Ou seja, a empregabilidade de adultos graduados em cursos oferecidos em educação digital.
Convocamos, pois, modelos de empregabilidade que correspondem
… ao potencial que o estudante possui para adaptar e flexibilizar os seus conhecimentos, competências e atitudes ao mercado de trabalho, promovendo a sua inclusão social e garantindo qualidade à sua vida. Ao nível prático, a empregabilidade é o potencial operacionalizado através da aplicação de competências no mundo do trabalho. (Henriques et al., 2020: 54)
Trata-se de uma empregabilidade que é, sobretudo, vivida no momento presente e menos projetada no futuro, ao contrário do que tende a acontecer na generalidade dos estudos no ensino superior (e.g.Alves e Morais, 2021).
Metodologia
Em Portugal, existe uma única universidade dedicada exclusivamente à educação digital: a Universidade Aberta (UAb). A oferta educativa desta Universidade é desenhada com base num Modelo Pedagógico Virtual(r) próprio, que assenta em quatro pilares fundamentais (Mendes et al., 2018; Pereira et al., 2007). A centralidade no estudante, reconhecendo-lhe autonomia e conferindo-lhe um papel ativo na construção do seu processo de conhecimento e desenvolvimento. Outro dos pilares é a flexibilidade proporcionada por um modelo de comunicação predominantemente assíncrono, o que se traduz na ausência de barreiras de espaço e constrangimentos temporais. A interação diversificada, entre estudantes, estudantes e docentes, entre estudantes e recursos. Finalmente, o pilar da inclusão digital, enquanto competência essencial de cidadania nas sociedades atuais (idem). Estes quatro pilares “orientam a organização do ensino, o papel do professor, a planificação, conceção e gestão das atividades de ensino e aprendizagem, o tipo de materiais e recursos pedagógicos e a avaliação das competências adquiridas” (Henriques et al., 2020: 54).
Esta universidade conta na sua estrutura com um Observatório dos Percursos Profissionais e de Vida dos Diplomados, que visa conhecer os impactos da formação realizada nos percursos profissionais e pessoais dos licenciados. O estudo aqui apresentado beneficia da análise aos dados recolhidos no âmbito deste observatório. Designadamente, os dados recolhidos através das três edições de um inquérito por questionário - 2015, 2017 e 2020 - aplicado aos licenciados da Universidade Aberta, dois a quatro anos após a conclusão do curso (Abrantes et al., 2021, 2018 e 2016).
O questionário integra cinco grandes dimensões: perfil sociográfico, percurso académico, balanço de competências, impacto da licenciatura, projetos de futuro. Em todo o processo se respeitam as orientações relativas à proteção dos dados e o consentimento de uso das respostas, de acordo com a legislação em vigor e os princípios éticos em investigação (Mainardes e Carvalho, 2019; SPCE, 2020). Designadamente:
O caráter voluntário da participação e a possibilidade de desistência. As respostas foram voluntárias, podendo o preenchimento do questionário ser interrompido a qualquer momento (Bassey e Owan, 2019).
A confidencialidade e privacidade. As respostas são anónimas e os dados são trabalhados em bloco. Os resultados destinam-se apenas a responder aos objetivos da investigação em curso (Bassey e Owan, 2019; Creswell, 2007).
Benefícios e respeito pela integridade. Os dados recolhidos e os resultados obtidos não representam qualquer tipo de constrangimento para os participantes (Linder e Farahbakhsh, 2020). Ao contrário, acreditamos que o aumento do conhecimento sobre estas temáticas se traduz em benefícios.
Nas várias edições, o questionário foi aplicado remotamente, com recurso ao programa informático LimeSurvey, tendo sido enviado um convite a todos os indivíduos que se licenciaram na UAb nos anos em referência, com o respetivo link de acesso ao preenchimento do questionário. A gestão do processo através deste programa assegura que a cada indivíduo é atribuído um link distinto, permitindo apenas uma única resposta e garantindo a fiabilidade dos dados.
Os questionários de aplicação online têm como vantagem abranger populações numerosas e dispersas, em termos territoriais, como é o caso dos licenciados da Universidade Aberta. Esta mais-valia foi reforçada na última edição (2020), devido às restrições de circulação e interação presencial associadas à pandemia de Covid-19. O facto de os licenciados da UAb terem já realizado os seus estudos superiores num ambiente digital é um elemento que, obviamente, facilita o preenchimento de questionários em plataformas informáticas (Abrantes et al., 2021).
O quadro 1 apresenta o processo de recolha de dados, nas suas várias fases, donde destacamos as taxas de resposta globalmente superiores a 30%, o que, para um intervalo de 95% de confiança, assegura, em cada edição, uma margem de erro entre 3,5% e 3,9% nos resultados.
Responderam diplomados dos 12 cursos de licenciatura disponíveis, embora, ao longo destes dez anos tenha havido alterações. Naturalmente, alguns cursos foram descontinuados e outros foram surgindo.
O tratamento das respostas desenvolveu-se primeiramente numa análise estatística descritiva de totais e frequências, complementada com o cruzamento de variáveis/fatores que auxiliaram a procura de padrões, de diferenças e o estabelecimento de comparações. Foram realizados testes de associação baseados no teste de c2 e indicadores associados - coeficientes de contingência, para avaliar a significância estatística de algumas relações entre variáveis/itens, que se encontram categorizadas em menos de cinco categorias, na sua maioria, e, quando possível, avaliar o sentido dessa associação, em valor e na evolução temporal. Foi considerado um nível de significância de 5% em todos os testes estatísticos realizados.
Licenciados da UAb (2011 a 2018): resultados e discussão
Perfil dos diplomados
O perfil dos adultos com diploma de graduação em licenciaturas em regime de educação digital, da UAb, foi traçado a partir da amostra de 1358 diplomados que responderam ao questionário, nas suas três edições, correspondendo a uma taxa de resposta global de 34,3%.
Quase todos vivem em Portugal (95%), sendo que 43% residiram durante o curso na região de Lisboa e Vale do Tejo. Setenta e dois por cento (72%) dos diplomados têm idades entre os 40 e os 54 anos. A maior concentração regista-se no grupo etário entre os 40 e 44 (cerca de 27%) nas duas primeiras edições e entre os 45 e os 49 anos (cerca de 22%) na terceira edição, refletindo a tendência de evolução etária verificada na sociedade portuguesa. Estes dados indicam que se trata de indivíduos que completam a sua graduação num estádio intermédio da sua vida ativa. Este aspeto é particularmente relevante considerando que 87% trabalharam a tempo integral durante a licenciatura, 67% em posições intermédias (40% em trabalhos administrativos). Parece, pois, que a escolha dos estudantes pela educação digital está fortemente associada às vantagens que oferece para conciliar a educação superior com o trabalho e a vida familiar.
A tendência para a feminização das estudantes da UAb é consonante com a tendência mais alargada do ensino superior português (e.g.Alves e Morais, 2021). Entre os respondentes, 57% são mulheres, sendo predominantes em todos os grupos etários, exceto no grupo dos 60 e mais anos. Apresenta, no entanto, uma tendência com pouca evolução quanto às áreas de educação e formação em que se diplomaram. Nos cursos de gestão, informática, história e estudos europeus predominam os homens, enquanto nos cursos mais ligados às ciências sociais, humanidades e educação predominam as mulheres (Alves e Morais, 2021; Vázquez-Cano et al., 2020) (quadro 2).
Do total de respondentes, 42% dos diplomados frequentaram licenciaturas em Ciências Sociais e História, com uma tendência crescente das licenciaturas na área de Ciências, Tecnologias, Engenharia e Matemática (STEM). Esta tendência de crescimento das áreas STEM reflete as indicações da UNESCO (2017).
A maioria dos diplomados da UAb (95%) foram admitidos no ensino superior por via da conclusão do ensino secundário e exames de acesso específico da UAb, registando-se com alguma expressão os que foram admitidos por via de formação profissional ou processo prévio de reconhecimento de competências (13%).
De notar que 6% tinham já outro grau e 4% outra licenciatura, enquanto 34% tinham já frequentado o ensino superior, sem que tenham concluído o curso.
Capacitação digital
Aliando o perfil traçado à relevância do ambiente digital de ensino e aprendizagem resulta numa ligação potencialmente direta com o desenvolvimento de competências digitais, entendidas enquanto competências-chave necessárias para a aprendizagem ao longo da vida e a empregabilidade (Vázquez-Cano et al., 2020; EC, 2019a e 2019b). Os resultados (quadro 3) mostram elevados graus de concordância com a experiência de educação digital.
Os diplomados desenvolveram relevantes soft skills, ou competências interpessoais, comportamentais, sociais ou emocionais, relacionadas com a forma como os sujeitos de comportam ou lidam com diferentes situações (Wats e Wats, 2009) - de acordo com os resultados apresentados (quadro 3). Ao mesmo tempo, desenvolveram também competências ligadas ao domínio tecnológico, decorrentes da educação em ambiente digital e da usabilidade da PlataformaAberta (Moodle), ou seja, o ambiente virtual de aprendizagem onde decorrem as atividades (Dias, 2013). Todas as edições do estudo revelaram, para estes dois itens, percentagens de concordância superiores a 90%, consideradas estatisticamente idênticas (p > 0,05 no teste de c2). Retomamos a este propósito o conceito de fluência digital que, segundo Canchola-González e Morales (2020), corresponde a um certo domínio das tecnologias digitais, que permite aos sujeitos usar, manipular, dinamizar tais tecnologias tendo em vista responder a objetivos específicos e estratégicos. Conceito que se aproxima do de literacia digital, na medida em que pressupõe um domínio que vai para além do uso instrumental das tecnologias (Lopes e Henriques, 2017; Santos, Azevedo e Pedro, 2015; Area-Moreira e Ribeiro-Pessoa, 2021).
* Diferenças estatisticamente significativas entre as três edições do inquérito, obtidas no teste X2
Ainda em relação às competências digitais (quadro 3), destaca-se o elevado grau de concordância, em todas as edições do estudo, com o facto de a licenciatura ter permitido desenvolver competências de comunicação e interação com outros relevantes (colegas e professores) em ambientes digitais, em linha com os resultados de outros estudos (Almerich et al., 2019; Gargallo et al., 2018). Neste caso, embora variação ao longo das três edições seja estatisticamente significativa no sentido negativo, ou seja, a concordância desce cerca de 9 pontos percentuais na 3.ª edição do inquérito, de 87,0% para 78,6%, o tamanho do efeito (effect size) é considerado pequeno, pois o coeficiente V de Cramer (V = 0,1) é inferior ao valor de referência para o efeito médio (V = 0,21), para dois graus de liberdade (Cohen, 1988). É a partir daqui que surge o desenvolvimento de comunidades virtuais de aprendizagem que resultam do envolvimento em processos sociais partilhados de desenvolvimento científico, profissional e pessoal (Wenger-Trayner et al., 2014). Tal é o resultado apresentado nas três edições do estudo, em que mais de 88% dos respondentes concordam que, ao longo do curso, foram criando sentimentos de pertença a uma comunidade.
Nesta linha, importa reforçar que a Comissão Europeia6 se refere a competências transversais para identificar o grupo de competências gerais que complementam e facilitam a aquisição de novas competências e a adaptação às diversas alterações nos contextos organizacionais, e ao desenvolvimento da própria carreira profissional. As competências digitais encontram-se neste grupo e constituem-se como um dos indicadores de inclusão.
Inclusão digital
A inclusão digital, sendo um fator cada vez mais relevante na empregabilidade (Portugal INCoDe.2030,7 Falloon, 2020; McAfee e Brynjolfsson, 2018), é aqui analisado e discutido a partir dos objetivos alcançados através do curso (quadro 4) e da preparação dada pelo curso para a vida profissional (quadro 5).
Considerando aspetos como os fundamentos do campo científico, as capacidades de análise e síntese, a ampliação da autonomia e sentido crítico, as capacidades de comunicação e as competências tecnológicas, destaca-se a concordância (nuns cursos mais elevada do que noutros, mas ainda assim, em níveis expressivos) em todas as edições do estudo de modo consistente (cf.quadro 4).
* Diferenças estatisticamente significativas entre as três edições do inquérito, obtidas no teste X2. Tamanho do efeito é considerado pequeno (V de Cramer = 0,096, dois graus de liberdade), apesar da variação de 62,6 na 1.ª edição para 73,5 na 3.ª edição do inquérito na posição mais favorável.
Trata-se de aspetos que reforçam o papel ativo do estudante adulto, no seu próprio processo de desenvolvimento, capacitação, participação, empoderamento (Seale, 2010). Numa lógica de ALV e de empregabilidade, referimo-nos ao potencial que estes estudantes possuem de adaptação e operacionalização de conhecimentos, competências e atitudes a contextos profissionais (Henriques et al., 2020). Neste sentido, considerando o grau de satisfação com a preparação dada pelo curso para a sua vida profissional (quadro 5), a aquisição de métodos de trabalho (entre 60% e 73%, variação média anual de 6,7% numa evolução crescente, estatisticamente significativa, p < 0,05, e tamanho do efeito pequeno, V = 0,114), a capacidade de interagir e intervir sobre problemas concretos (superior a 72%) e o desenvolvimento de capacidades críticas, de planeamento e inovação (acima de 77%) apresentam níveis elevados e consistentes em todas as edições do estudo.
Outros aspetos foram tendo uma evolução favorável e considerável ao longo das várias edições do curso. Referimo-nos concretamente à satisfação com o desenvolvimento de capacidades para explorar possibilidades de emprego (passou de 47% na 1.ª edição para 58% na 3.ª, evolução estatisticamente significativa, em particular entre a 1.ª e 2.ª edições p < 0,05,V = 0,091), à satisfação com a progressão na carreira como resultado do aumento das qualificações (31,7% na 1.ª edição passou para 57,6% na 3.ª, estatisticamente significativa, p < 0,05, V = 0,216, valor que já reflete um tamanho do efeito médio, para dois graus de liberdade da tabela) e o aumento da capacidade de uso das tecnologias digitais em contexto laboral (47% na 1.ª edição e 60,8% na 3.ª, estatisticamente significativa, p < 0,05, V = 0,112).
Encontramos pistas para a compreensão desta evolução de tendência positiva, em aspetos que se relacionam com a crise económica mundial de 2008, acentuada durante o período de assistência económica em Portugal, entre 2010 e 2014, e nas melhorias que se foram tornando visíveis em Portugal (como na União Europeia) a partir de 2015 (EC, 2016; Costa e Caldas, 2013). Outros aspetos com potencial explicativo desta evolução positiva dos indicadores por parte dos estudantes, prendem-se com as alterações e atualizações que vão sendo realizadas ao nível dos cursos e das próprias unidades curriculares, orientadas por propósitos de aproximação ao mercado de trabalho no sentido de favorecer a empregabilidade e mobilidade dos seus diplomados (Alves, 2015).
Retomando o modelo proposto por Asmar, Mariën e Audenhove (2022), estes resultados evidenciam uma evolução positiva no contínuo, no sentido da integração plena. Ao demonstrar que, além dos fatores sociodemográficos, a formação contínua e o desenvolvimento de competências pessoais e profissionais contribuem também para a redução dos riscos de exclusão e, consequentemente, o aprofundamento da inclusão digital.
* Diferenças estatisticamente significativas entre as três edições do inquérito, obtidas no teste X2
A capacidade de uso das tecnologias nas práticas laborais merece uma nota adicional. Embora o valor de respondentes que considera “pouco ou nada” tenha vindo a decrescer ao longo das três edições de uma forma estatisticamente significativa (p < 0,05), numa taxa média de 7 pontos percentuais de redução entre edições, entre os diplomados de 2016 a 2018 que responderam ao questionário, 39% consideram que o curso pouco ou nada aumentou a sua capacidade de uso das tecnologias nas práticas laborais. A tendência decrescente não oculta uma certa prevalência de um padrão que encontra justificação em fatores económicos e estruturais. Económicos, relacionados com a crise financeira que levou à redução do investimento em tecnologias e inovação em geral, onde se inclui o aumento das qualificações (Dias, Kovács e Cerdeira, 2020). Estruturais, relacionados com o peso excessivo e persistente de baixas qualificações de empregadores e trabalhadores por conta de outrem (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020).
Cabe ainda destacar um aspeto aparentemente paradoxal e que se prende com fracos níveis de satisfação com o contributo do curso para alargar a rede de contactos profissionais a quem se pode socorrer quando surge algum problema laboral (mais de 60% dos respondentes mostram-se pouco ou nada satisfeitos nas três edições do estudo). Isto pode parecer surpreendente, dados os elevados níveis de satisfação relacionados com a capacidade de trabalhar em grupo (quadro 4) e com a criação de um sentimento de pertença a uma comunidade (quadro 3). Este aparente paradoxo requer maior aprofundamento do estudo, no entanto, podemos antecipar que se trata de alterações na relação durante e após o curso. Ou seja, se durante a frequência do curso existem estímulos diversos à criação de interações e pertenças construídas em torno de objetivos comuns, no final, os diplomados voltam a estar mais focados nas suas rotinas (laborais, familiares e outras) fora do círculo da formação. Embora haja laços de amizade que perduram, nem sempre estes se preservam na dimensão de rede profissional para a qual a questão aponta. Dito de outro modo, parece-nos que se trata, mais uma vez, de estarmos em presença de uma empregabilidade muito mais projetada no presente do que assente em projetos de futuro (Henriques et al., 2020).
A análise dos indicadores aqui abordados converge para o Pilar Europeu dos Diretos Sociais.8 Designadamente, o primeiro princípio, relativo à educação, formação e aprendizagem ao longo da vida enquanto vias para adquirir as competências necessárias para participar plenamente na sociedade, adaptar-se às mudanças garantindo o seu bem-estar e gerir com êxito as transições no mercado de trabalho. Trata-se assumidamente de uma estratégia que visa a redução da pobreza e exclusão, a redução das desigualdades. E, ao mesmo tempo, visa o reforço do bem-estar, coesão e inclusão sociais e do desenvolvimento sustentável a nível social e económico.
Capacitação e inclusão digital em diferentes perfis de diplomados
Neste ponto procuramos evidenciar o papel da licenciatura realizada em regime de educação digital, com a capacitação e inclusão digital. Para tal, tendo percebido que o sexo dos respondentes não parece ter valor explicativo para a relação em análise, destacamos a categoria profissional (quadro 6), os rendimentos no início do curso (quadro 7) e a área de licenciatura (quadro 8) enquanto variáveis relevantes para o aprofundamento do uso das tecnologias por parte dos diplomados e, consequentemente, contribuindo para a sua inclusão digital.
De um modo transversal em todas as categorias profissionais e na globalidade das três edições do estudo, se evidenciou um forte contributo da licenciatura para o aprofundamento do uso das tecnologias (quadro 6). Ainda assim, esse contributo afigura-se mais transversal no caso dos diplomados com inserções laborais menos qualificadas. Estes resultados surgem em linha com a nova Agenda Europeia de Competências para a competitividade sustentável e resiliência,9 onde se defende a promoção do reforço das habilitações, qualificações e competências essenciais ao mercado de trabalho e à inclusão social.
No que se refere ao aprofundamento das competências e do uso das tecnologias em função do rendimento mensal líquido no momento do ingresso na licenciatura (quadro 7), os resultados indicam também uma perceção positiva em todos os escalões de rendimento. No entanto, destacam-se os respondentes que no início da licenciatura já se encontravam no escalão mais elevado de rendimento mensal (mais de 1500 euros) que referem ter sentido menor impacto da formação no uso das tecnologias nas práticas laborais. Uma das explicações para estes valores pode residir no facto de se tratar de profissionais já com um enquadramento profissional compatível com uma utilização de tecnologias cada vez mais sofisticada e diversificada (Vázquez-Cano et al., 2020; Magano et al., 2016).
* Diferenças estatisticamente significativas entre as categorias de rendimento obtidas no teste de X2 (p < 0,001). V = 0,142, o que reflete um tamanho do efeito quase médio (valor de referência é 0,15, para quatro graus de liberdade da tabela).
Da análise destes dois quadros (6 e 7) destaca-se que os licenciados que, no momento do ingresso na universidade, desempenhavam funções mais desqualificadas e com rendimentos mais baixos, apresentam valores mais elevados no desenvolvimento de competências digitais. Assim, parece plausível assumir que esta relação ocorre precisamente porque estes diplomados, ao apresentarem competências digitais de partida mais baixas, no momento de ingresso, beneficiaram de modo mais efetivo da frequência da licenciatura. Ou seja, a frequência e conclusão da licenciatura terá desempenhado um papel democratizador.
Poder-se-ia pensar que as licenciaturas online não serão um instrumento efetivo de inclusão digital, uma vez que implicam que os estudantes tenham já recursos educacionais, económicos, cognitivos e digitais para os poderem frequentar. Ou seja, que estas licenciaturas excluem os segmentos da população que deveriam ser abrangidos pela inclusão digital. No entanto, tal argumento não encontra sustentação nos resultados deste estudo (Abrantes et al., 2022) nem nos resultados de outros estudos (Vázquez-Cano, et al., 2020). A frequência destes cursos pressupõe apenas o acesso a computador com ligação à internet, não pressupõe a existência de competências iniciais específicas. Mesmo nos casos em que os estudantes não dispõem dos recursos tecnológicos a nível pessoal, o acesso é feito a partir do local de trabalho ou de pontos comunitários (Abrantes et al., 2016).
De um modo geral, todas as licenciaturas, agrupadas nas grandes áreas de estudo, proporcionaram o desenvolvimento da capacidade de uso das tecnologias (quadro 8).
* Diferenças estatisticamente significativas entre as licenciaturas obtidas no teste de X2 (p < 0,001). Tamanho do efeito pequeno em ambos os testes, considerando o valor de referência para três graus de liberdade da tabela (V < 0,17).
Da análise deste quadro 8 destaca-se um aspeto mais complexo, o facto de este desenvolvimento de competências ser mais evidente na licenciatura de Educação do que nas restantes áreas de formação da UAb. Isso poderá decorrer das condições de partida dos estudantes dessa licenciatura e/ou da própria experiência educativa proporcionada. Num estudo realizado especificamente com base nestes licenciados, foi possível concluir que os licenciados em Educação reconhecem e valorizam de modo muito evidente a capacitação digital como forma de desenvolvimento profissional, pessoal e cívico (Neves e Henriques, 2020).
No caso da Gestão, muitos dos graduados já estavam inseridos no mercado de trabalho à entrada, em atividades que usam amplamente a tecnologia (banca, contabilidade, por exemplo) o que justifica o menor desenvolvimento destas competências durante o curso. A área STEM integra estudantes de Informática (que, apesar de tudo, são em menor número), mas também das Ciências do Ambiente, que estavam à partida menos familiarizados com a tecnologia, e os de Matemática, também em número reduzido de graduados.
Notas conclusivas
Pretendemos, com o presente estudo, contribuir para aprofundar o conhecimento sobre as competências digitais e inclusão digital associadas a adultos diplomados em cursos oferecidos em regime de educação digital. Reconhecendo que se trata de uma problemática que, entre as políticas públicas de literacia digital e de educação de adultos e a investigação sociológica, tem tido menor atenção.
A análise dos resultados aponta que os diplomados nesta modalidade de educação digital revelam um conjunto de competências de interação, trabalho e aprendizagem em ambientes digitais, o que tem sido recentemente concebido como literacia digital. A relevância do curso para esse desenvolvimento surge mais notória entre os estudantes com inserções socioprofissionais menos qualificadas e em áreas de estudo mais afastadas do âmbito tecnológico, o que reforça o caráter de inclusão digital desta oferta formativa. Por seu lado, no plano do desenvolvimento de competências tecnológicas mais específicas, o impacto do curso parece não ser tão generalizado, sobretudo ao nível da sua aplicação no plano laboral. Isto pode remeter para alguns obstáculos à inovação tecnológica ainda existentes nas organizações produtivas, mas apresenta-se igualmente como uma área de melhoria no âmbito da educação digital, sobretudo, no modo de desenvolver ambientes e experiências formativas que compatibilizem altos níveis de acesso e inclusão digital com oportunidades de aprendizagem de competências mais avançadas e diversificadas, no plano tecnológico.
Globalmente, os resultados deste estudo longitudinal com diplomados que realizaram cursos nas mais diversas áreas em educação digital corroboram as orientações das políticas públicas (como o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, a Agenda de Competências da Comissão Europeia 2020-2025, a Policy in the Field of Adult Learning, ou o Portugal INCoDe.2030). Seguem ainda os resultados de outros estudos (Alves e Morais, 2021; Atchoarena et al., 2017; Alves, 2015; Swiatkiewicz, 2014). Em síntese, os resultados evidenciam que as competências de literacia digital e os níveis de inclusão digital são positivamente impactados pela frequência do curso. E que tal tem reflexos positivos ao nível da empregabilidade e da mobilidade laboral.
Apesar do contributo teórico e empírico dado, o presente artigo apresenta algumas limitações. Desde logo, as que decorrem do aprofundamento do estudo com base na exploração analítica de outros indicadores e noutras perspetivas complementares (em particular as centradas no percurso académico). Considerando as especificidades dos percursos dos diplomados em análise, futuras investigações poderão aprofundar as formas como estes diplomados efetivamente evidenciam nas suas práticas e vivências competências que decorrem da licenciatura online. Ou seja, a realização de um estudo intensivo, qualitativo complementar, capaz de proporcionar um entendimento mais aprofundado sobre de que forma as competências digitais explicam diferentes perfis de percurso profissional e de integração digital.