Introdução
Ao longo das últimas duas décadas o défice de investigação sobre a elite administrativa portuguesa foi sendo superado, por exemplo, com estudos sobre papéis e atitudes de políticos e burocratas, modelos de relacionamento político-administrativo (Teixeira, 2010; Bilhim, 2014; Ferraz, 2020; Silveira, 2021) ou até a partir do conceito de patrocinato (Silva e Jalali, 2016).
Procurámos também contribuir para esta dinâmica de investigação com análises mais centradas nos padrões de recrutamento durante o Portugal democrático (Nunes, 2003, 2012), em linha com o que tem vindo a ser feito para as elites ministeriais (Almeida e Pinto, 2006; Silveira 2021; Pinto, 2020) ou até para a elite administrativa da segunda metade do século XIX (Almeida, 1995, 2005).
Do ponto de vista dos padrões de recrutamento, há 20 anos, a elite administrativa portuguesa apresentava-se como predominantemente masculina, algo envelhecida e em muitos casos nascida na capital e nos distritos onde o sector privado era menos dinâmico, e certamente com origem em segmentos mais privilegiados das classes médias (Nunes, 2003).
Era uma elite dominada por juristas, engenheiros e economistas, maioritariamente formados na Faculdade de Direito de Lisboa, no Instituto Superior Técnico, ou no Instituto Superior de Economia e Gestão. Sendo uma elite altamente qualificada, por comparação com o resto da população ou até com a restante administração pública, revelava ainda assim insuficientes competências em gestão pública (era ainda pouco relevante o papel do Instituto Nacional de Administração à época) (Nunes, 2003).
Nas últimas duas décadas, o universo dos dirigentes de topo da administração pública (diretores-gerais, subdiretores, gestores públicos e equiparados) foi atravessado por mudanças de natureza diferente. Desde mudanças institucionais, pautadas por processos de reestruturação da administração do estado,1 por incentivos à representação equilibrada entre homens e mulheres nos cargos de topo2 e pela introdução de novas regras e exigências ao nível da formação em gestão pública3 e do próprio recrutamento,4 com alargamento dos procedimentos concursais aos cargos de direção superior,5 até mudanças que lhe são exteriores, associadas à menor competitividade salarial destes cargos, à democratização e descentralização do acesso ao ensino superior (e da respetiva oferta) ou ao crescente envelhecimento da população portuguesa em geral e dos funcionários públicos em particular (Público, 2022).
Que impacto tiveram as reformas do estado e as mudanças sociais nos padrões de recrutamento da elite administrativa portuguesa? Como se compara o atual perfil dos dirigentes de topo com o perfil registado há 20 anos? Como evoluiu a presença de mulheres, a média etária, a origem geográfica ou o peso relativo das diferentes licenciaturas e instituições do ensino superior? Que papel desempenha hoje o Instituto Nacional de Administração nas carreiras dos dirigentes de topo? As variações institucionais, verificadas entre tipos de ministérios, mantêm-se inalteradas ao longo destas duas décadas?
O objetivo do presente artigo é precisamente dar resposta a estas perguntas, colocando em confronto os perfis dos dirigentes em funções durante dois governos do mesmo partido (PS) e do mesmo tipo (maioria relativa) em dois momentos diferentes (1999-20016vs 2019-2021), não deixando de comparar os dados deste confronto com as conclusões de um outro estudo anterior dedicado a todo o período de 1999 a 2009 (Nunes, 2012).7
Basicamente vamos aqui defender a ideia de que houve algumas mudanças significativas ao longo deste período, nomeadamente ao nível do acesso das mulheres a estes cargos de topo, ou do papel de instituições de ensino superior mais recentes - e do INA - na formação e recrutamento deste grupo de poder. No entanto, há tendências de vêm de trás e que persistem, como o relativo envelhecimento da elite administrativa, ou o peso dos juristas e dos dirigentes que nasceram ou estudaram em Lisboa.
Operacionalização
A questão do recrutamento das elites políticas e administrativas é, já sabemos, tudo menos irrelevante do ponto de vista sociológico, tanto pelo que nos pode dizer acerca do sistema político em que se processa como pelo que nos sugere sobre o sistema social em que se insere: “A origem social dos membros da elite é menos relevante para prever o comportamento individual do que como indicador da estrutura do poder social”, diz Putnam (1976: 43).
Ao estudarmos o seu recrutamento estamos não só a desenhar um perfil mas também a analisar padrões de relacionamento entre atores sociais e instituições (administrativas e políticas) em que atuam e com as quais interagem. É isso que explica que a análise dos perfis das elites e dos padrões de recrutamento surja como dimensão essencial em estudos de referência sobre a relação entre políticos e burocratas,8 uma questão que evidentemente não se esgota em dimensões como os papéis desempenhados no processo de decisão ou as atitudes políticas.
No estudo das elites administrativas temos seguido a perspetiva da análise posicional, isto é, uma identificação baseada nas posições (cargos) que as pessoas ocupam (Nunes, 2012).9
Assim, e considerando a estrutura administrativa portuguesa, por elites administrativas devemos entender o conjunto das pessoas que exercem na administração do estado cargos de diretores-gerais, subdiretores-gerais e equiparados dos serviços e organismos da administração direta e desconcentrada do estado, bem como os dirigentes dos institutos públicos equiparados a diretores-gerais ou a gestores públicos, para além dos próprios membros de gabinetes ministeriais (chefes do gabinete, adjuntos e “assessores”).10
A obrigatoriedade legal da publicitação curricular dos nomeados para este tipo de cargos dirigentes não foi revogada por reformas legislativas posteriores (pelo contrário) e encontra-se consagrada desde a Lei nº 49/1999, de 22 de junho.
É justamente a partir dos elementos fornecidos pelos currículos que traçamos o perfil dos referidos dirigentes: sexo, idade, origem geográfica, licenciatura, instituição de ensino superior frequentada, formação e carreira profissional.
No fundo, trata-se aqui do método da prosopografia, cujo objetivo é basicamente o de investigar estatisticamente as diferentes dimensões dos percursos de um determinado grupo social num determinado momento (Charle, 2001) - precisamente o que se pretende aqui.11
Por uma questão de gestão dos recursos disponíveis para o desenvolvimento deste trabalho e de comparabilidade com investigações anteriores (Nunes, 2003, 2012), optou-se por analisar aqui apenas os currículos dos dirigentes equiparados a diretores-gerais (a grande maioria) ou a gestores públicos: diretores-gerais, secretários-gerais, inspetores-gerais e presidentes de institutos públicos.
O quadro 1 mostra-nos o número de estruturas dos serviços centrais e desconcentrados da administração (direta e indireta) do estado existentes antes e depois das reestruturações da administração do estado referidas atrás, e o número de dirigentes cujos currículos foram obtidos através de pesquisas no Diário da República.12
Para aprofundamento das lógicas e dinâmicas de recrutamento (ocultas na informação curricular publicitada) optámos por recuperar aqui entrevistas realizadas com os gatekeepers (Nunes, 2012), isto é, com membros dos governos (formal e posicionalmente) responsáveis pela escolha de alguns membros destas elites administrativas.
Foram então (2012) entrevistados 15 membros de governos aqui em análise, uma pequena amostra que, apesar de tudo, representa a diversidade dos ministérios (políticos, económicos, sociais e técnicos) e dos perfis ministeriais (independentes e partidários).13 A ideia foi procurar perceber como estes processos de recrutamento se desenvolvem nos bastidores ministeriais; a informação obtida nessas entrevistas será exposta em paralelo com a análise quantitativa dos dados curriculares, excluindo aqui a questão do género dada a aprovação, entretanto (2019) dos referidos incentivos à promoção de um maior equilíbrio entre homens e mulheres no topo da administração pública.
Caracterização sociodemográfica
Esta caracterização sociodemográfica da elite administrativa envolve variáveis como o sexo, a idade e a naturalidade, e é neste ponto que se fará ainda uma aproximação à origem social deste grupo dirigente.
Comecemos pela questão do género.
Na viragem do século, antes da aprovação da Lei da Paridade nas candidaturas à Assembleia da República (X Legislatura), a percentagem de mulheres na elite administrativa era superior à registada para a sua presença na elite parlamentar (Freire, 2001) ou na elite ministerial da democracia (Almeida e Pinto, 2006).
É possível que a entrada precoce das mulheres neste tipo de cargos esteja associada ao facto de serem em geral cargos menos compensadores do ponto de vista remuneratório. Repare-se que, quando isolámos em estudos anteriores o acesso das mulheres aos institutos públicos, com chefias frequentemente abrangidas pelo mais generoso estatuto do gestor público, verificámos que nesses casos a presença de mulheres era francamente inferior (Nunes, 2012).
Seja como for, podemos dizer que a presença de mulheres, que já se verificava na viragem do século, foi uma boa base de partida para se chegar ao cenário atual de quase igualdade no acesso a este tipo de cargos dirigentes de topo.14
Já anteriormente havíamos observado que, à medida que se avançava na década de 1999-2009, especialmente na passagem dos governos Barroso/Santana para o governo Sócrates15 a presença de mulheres subia: de 21% no governo Barroso para 27,3% no primeiro governo Sócrates (Nunes, 2012).
O salto mais notável é, contudo, o que se verifica nos últimos dez anos, com uma subida de quase 20 pontos percentuais ao nível da presença de mulheres nestes cargos de topo, que faz com que o número de diretoras-gerais seja hoje sensivelmente o dobro do que era no início do século.
Deste ponto de vista, não poderemos deixar de admitir que a aprovação de incentivos a um recrutamento mais equilibrado entre homens e mulheres para os cargos de topo tenha dado aqui o seu contributo, ainda que a legislação seja bem menos impositiva do que sucede com a Lei da Paridade. A Lei n.º 26/2019, de 28 de março, dispensa a CRESAP e o governo de observarem esse equilíbrio se: (1) “o conjunto de candidatos, selecionados em função das suas competências, aptidões, experiência e formação legalmente exigíveis, não o permitir”; (2) se a lista de candidatos apresentada pela CRESAP não o permitir.
Para além das diferenças entre governos ao longo do tempo, a desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres manifesta-se com intensidade diversa consoante o tipo de ministérios em que as funções dirigentes são exercidas: como era de esperar, as áreas da segurança e defesa nacional, da magistratura e da diplomacia, para além dos ministérios técnicos onde a força das engenharias afeta as oportunidades das mulheres, continuam em parte a ser vistos como “tradicionais bastiões de masculinidade” (Viegas e Faria, 1999: 43).
De facto, analisando a situação ministério a ministério no período de 1999 a 2009, havíamos concluído que na Defesa Nacional o peso das mulheres nos lugares de topo era praticamente nulo, e bastante abaixo da média nos Negócios Estrangeiros (MNE) e na Administração Interna (MAI) (Nunes, 2012).
Pelo contrário, era no topo dos ministérios sociais (Educação, Saúde, Trabalho, Cultura) que se notava uma concentração mais frequente de mulheres dirigentes: era aí que estavam 43,1% das mulheres dirigentes de topo, apesar de esse tipo de ministérios só representar 27,3% da nossa amostra para o período de 1999 a 2009 (Nunes, 2012: 139).
Por exemplo, durante o governo Guterres aqui em análise, 35,6% dos diretores-gerais dos ministérios sociais eram mulheres. Hoje (XXII Governo Constitucional) essa percentagem reforça-se e sobe para 42,6%, mas está até abaixo da média - o que revela uma mudança interessante, não só em termos quantitativos como qualitativos.
De facto, o confronto entre os dois momentos políticos aqui em análise torna-se mais sugestivo quando voltamos a olhar para alguns dos tais “bastiões da masculinidade”: em 20 anos, no topo do Ministério da Justiça a percentagem de mulheres subiu de 18,2% para 50,0%; nos Negócios Estrangeiros de 21,4% para 28,6%; e na Defesa Nacional passou-se de uma presença nula para 1 diretora-geral em sete possíveis.
Considerando os défices acumulados no acesso das mulheres a licenciaturas nas áreas das engenharias e das ciências económicas (Rodrigues, 1993; Carapinheiro e Rodrigues, 1998) não deixa de ser notável a incursão recente em ministérios técnicos e económicos: 50,0% de mulheres no Ministério das Infraestruturas; 25,0% no Ambiente; 37,5% nas Finanças e 33,3% na Economia, durante o governo de António Costa.
Passemos agora à variável idade. É visível a elevada percentagem de diretores-gerais recrutados com 50 ou mais anos. Eram 66,2% no segundo governo Guterres e representam agora 65,9%, o que está em linha com o que já se registara para o período mais largo de 1999 a 2009 (Nunes, 2012: 140).
Esta aparente estabilidade nos padrões etários de recrutamento não nos deve levar a ignorar o facto de estarmos a assistir agora a uma certa travagem da tendência para o rejuvenescimento que se manifestara nos governos Barroso/Santana Lopes e Sócrates: 8,5% de diretores-gerais com menos de 40 anos durante esses governos PSD/CDS e 9,6% nesse primeiro governo de maioria absoluta PS. Vinte anos depois do segundo governo Guterres, essa percentagem volta a ser pouco mais do que residual: 0,7%. Pelo contrário, a percentagem de diretores-gerais com mais de 60 anos, agora nomeados para uma comissão de serviço de cinco anos, até sobe durante os governos de António Costa, para 21,7%.16
A importância da renovação geracional era vista com cautela pelos membros do governo em funções no período de 1999 a 2009: entre os entrevistados, alguns consideravam a relevância do assunto, mas tinham de ter em conta outros aspetos aquando das nomeações do pessoal dirigente: “procurei compensar as sobrerrepresentações de homens e dirigentes mais idosos, mas com moderação, em ambos os critérios”, revela um antigo ministro. Até porque, diz outro, “quando nomeamos cargos de alta direção, temos sempre de ter o fator experiência e capacidade de liderança como critério indispensável…” (Nunes, 2012: 141).
Vejamos ainda a questão da origem geográfica da elite administrativa. Se em 2002, tínhamos 42,4% dos dirigentes na base de dados a declarar a sua naturalidade nos currículos publicados em Diário da República, em 2022 esses casos nem chegam a representar um terço da amostra (27,9%).
Ainda assim, podemos dizer que os dados relativos à origem geográfica confirmam a tendência para uma frequente seleção da elite administrativa entre pessoas nascidas no distrito de Lisboa, embora menos agora do que há 20 anos: 33,3% contra 44,9%.
A persistência relativa do peso de Lisboa mantém-se ainda assim como um dado relevante do ponto de vista da igualdade de oportunidades no acesso a cargos de topo, sendo de notar que, em 1981, quando já alguns dos atuais dirigentes haviam iniciado ou estavam prestes a iniciar a sua carreira profissional, o peso de Lisboa no conjunto da população residente em território nacional era de apenas 8,7% (Almeida e Pinto, 2006).
* Nota: não se incluem no quadro mais distritos porque em nenhum caso chegam indivualmente aos 4%.
Fonte: elaboração própria do autor.
A moderação do fator Lisboa parece ter-se acentuado com os governos Barroso e depois Sócrates, já que para todo o período de 1999 a 2009 a percentagem de lisboetas havia caído para os 35,1% (Nunes, 2012).17
Contudo, se juntarmos os dirigentes com origens em Lisboa aos que nasceram no distrito do Porto, ficamos nos dois momentos (1999-2002; 2019-2022) com cerca de metade do total dos dirigentes, portanto acima do peso populacional dos dois distritos no conjunto nacional.18
A par da presença desproporcional de lisboetas e do somatório Lisboa+Porto, regista-se ainda uma sobre-representação de Castelo Branco, Coimbra e Santarém, distritos menos dinâmicos do ponto de vista económico, em contraste com os distritos do norte litoral.
Como já notámos em estudos anteriores (Nunes, 2003), este dado é particularmente significativo, pois vai ao encontro da tese avançada por Adérito Sedas Nunes (1970) sobre os anos 60, segundo a qual a opção pelo ensino universitário - a única via para hoje se ser dirigente da administração do estado -, tendo uma base de classe (dominada por diferentes segmentos da burguesia), não correspondia ao nível de desenvolvimento económico dos distritos de origem, mas sim a uma estratégia pessoal face às oportunidades que os distritos proporcionam.19
Note-se que distritos mais populosos e industrializados, ou com universidades mais recentes, como Aveiro e Braga, estão claramente sub-representados face àqueles cujas oportunidades no sector privado são relativamente menores, como os referidos distritos de Bragança e Santarém, ou onde já exista uma cultura universitária consolidada há muito mais tempo, como Coimbra.
A este respeito, é impossível não recordar o que nos sugeria Tavares de Almeida sobre as oportunidades que Lisboa gerava para quem quisesse ter uma carreira no estado durante o período da Regeneração liberal: nascer e viver em Lisboa afigurava-se como a situação ideal para estabelecer as redes sociais e políticas necessárias ao acesso a altos cargos no estado (Almeida, 2005: 444). São legados que se mantêm algo presentes.
Refira-se também, a este propósito, que um dos antigos membros do governo entrevistados se confessava aliviado por ter nascido e vivido em Lisboa. Sentia-se em vantagem face aos seus colegas que vinham de outras partes do país, onde as “forças vivas”, nomeadamente das estruturas partidárias locais, faziam sentir a sua presença com muito maior força e insistência: “O facto de ser de Lisboa dava-me liberdade e distância em relação às reivindicações locais, por comparação com outros membros do governo que conheci e que vinham de outras regiões do país” (Nunes, 2012: 144).
Analisada a origem geográfica, tentemos agora uma aproximação à questão da origem social da elite administrativa portuguesa.
A partir da leitura dos seus currículos, ficamos a conhecer a idade e sabemos que são obrigatoriamente pessoas (no mínimo) licenciadas. Estas são informações relevantes do ponto de vista da abordagem à questão da origem social dos dirigentes, pois como lembram Tavares de Almeida e Costa Pinto, a propósito da elite ministerial, “é indiscutível que as qualificações escolares têm atuado como um poderoso mecanismo social de restrição do campo de recrutamento da elite” (2006: 37).
Deste modo, tendo em conta que a esmagadora maioria dos dirigentes se concentra sempre na faixa etária dos 40 aos 60 anos, podemos estimar que a grande maioria dos dirigentes do XIV Governo Constitucional se terá licenciado entre as décadas de 1970 e 80 e que, no caso do XXII Governo Constitucional, a passagem pela universidade ter-se-á verificado essencialmente entre as décadas de 1980 e 90.
Temos disponíveis estudos sobre a origem social da população universitária relativos à primeira metade da década de 1960 (Nunes, 1970) e à segunda metade da década de 1980 (Machado et al., 1995). Considerando o que esses dados nos dizem acerca das origens sociais da população universitária à época, será de admitir que a esmagadora maioria dos dirigentes provirá dos estratos médios-superiores,20 para utilizar as categorias de Sedas Nunes (1970: 669), e da média burguesia e da pequena-burguesia técnica e de enquadramento, recorrendo agora à terminologia de António Firmino da Costa, Fernando Luís Machado e João Ferreira de Almeida, para analisar a população universitária da segunda metade da década de 1980 (1990: 195).
Note-se, contudo que, nos anos de 1960, o peso destas camadas médias e superiores no conjunto da população era ainda bastante reduzido, ao contrário do que sucede a partir dos anos 80 e 90: não ultrapassava então os 12,5% (Estanque, 2012: 60). O que nos pode sugerir, uma vez mais, a existência de uma tendência para o gradual alargamento das oportunidades de acesso a este tipo de cargos de poder ao longo do período aqui em análise.
Ao mesmo tempo, devemos olhar para o sistema universitário também enquanto espaço de criação de redes de socialização e solidariedade que se prolongam ao longo da vida, por vezes com uma dimensão interclassista, principalmente à medida que o acesso ao ensino superior se vai democratizando (Costa, Machado e Almeida, 1990: 198).
Ou seja, não devemos descartar a hipótese de que, além da origem social, também as redes que se estabelecem no ensino superior estarão a atuar como filtro nas escolhas que se fazem mais tarde, quando alguém chega a cargos de decisão política.
É isso mesmo que nos confirmaram alguns membros do governo que exerceram funções entre 1999 e 2009. As redes que se estabelecem na universidade, uma fonte privilegiada de recrutamento de ministros (Almeida e Pinto, 2006), também funcionam para a elite administrativa: “colegas de trabalho, ex-alunos - o recrutamento é feito aí” (Nunes, 2012: 145). Outro exemplo de uma leitura deste tipo: “A verdade é que as pessoas pensam sempre primeiro nas pessoas de quem são mais íntimas ou mais próximas. E não têm de ser próximas no partido, pode ser uma confiança que vem dos bancos da escola” (Nunes, 2012: 145).
Formação académica e profissional
No que se refere à formação académica das elites administrativas, observa-se desde logo uma consolidação reforçada do peso dos licenciados em Direito:21 representava um quarto deste universo durante o governo Guterres e representa agora mais de um terço.
Outra área relevante é a das engenharias, embora aí a tendência seja para uma gradual perda de influência: 20,2% no governo Guterres, 16,2% agora, tendo já no governo Sócrates descido para 17,7% (Nunes, 2012).
Já a influência das ciências económicas mantém-se perfeitamente estável: precisamente a mesma percentagem 20 anos depois, após anos de significativo crescimento - 24,6% no governo Barroso e depois 35,4% no governo Sócrates.
Entre a elite ministerial, observava-se para o conjunto do período democrático que a distribuição não era substancialmente diferente: também aí as áreas de estudos universitários com maior peso são o Direito, as Engenharias e a Economia (Almeida e Pinto, 2006).22 Mais um sinal de que as afinidades universitárias se mantêm ativas ao longo da vida política e profissional.
É evidente que o peso do Direito é hoje menos relevante do que era durante a segunda metade do século XIX ou mesmo na primeira metade do século XX: por exemplo, a elite administrativa da Regeneração era composta em 60% dos casos por juristas (Pinto, 2001; Almeida, 2005). Este peso esmagador do Direito explicava-se pelo prestígio social da profissão de jurista e por este curso apresentar à época “vantagens consideráveis para o prosseguimento com êxito das carreiras da administração pública e da política” (Gonçalves, 1991: 119-120).
A segunda metade do século XX fora, no entanto, marcada por uma forte viragem industrialista que implicou um aumento da procura e das ofertas formativas nas engenharias e ciências económicas (Gonçalves, 1991), que se refletiu depois nos perfis dos dirigentes em funções na primeira década deste século (Nunes, 2012).
O que se terá passado na última década para assistirmos a tamanha travagem na tendência para o crescimento das ciências económicas e das engenharias enquanto áreas privilegiadas de recrutamento da elite administrativa?
Há que verificar em estudos posteriores se esta travagem veio para ficar. Nesse caso, não serão de descartar duas hipóteses explicativas: o reforço do peso das mulheres pode ter trazido consigo um reforço do Direito e das Ciências Sociais (áreas onde as mulheres têm estado mais presentes); outra explicação pode estar no facto de o estatuto remuneratório dos cargos dirigentes da administração pública ser muito menos competitivo do que os que se praticam no sector privado, onde a procura de licenciados em economia, e especialmente gestão de empresas e engenharia é bastante valorizada.23
Importa ainda ver como evoluiu o peso relativo das diferentes instituições de ensino superior na formação dos quadros superiores do estado português.
Deste ponto de vista, não deixa de ser assinalável o reforço do papel da Faculdade de Direito de Lisboa, especialmente se pensarmos que nas últimas décadas surgiram novas faculdades de Direito pelo país, e mesmo em Lisboa.
Depois, em coerência com a travagem da ascensão das engenharias e das ciências económicas, assistimos a uma relativa queda do peso dos licenciados pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e pelo Instituto Superior Técnico (IST) na comparação entre 2000 e 2020, tendo a presença do ISEG no total dos diretores-gerais atingido os 23,2% durante governo Sócrates e o IST os 16,0% no governo PSD/CDS (2002-2005).
Temos ainda influências específicas de certos cursos superiores em certos ministérios. Sem surpresas, nota-se, mesmo durante o recente XXII Governo Constitucional, o “corporativismo” a funcionar ainda na Saúde, onde metade dos diretores-gerais são médicos de formação;24 na Agricultura, onde metade dos diretores-gerais tem formação em engenharia agronómica; ou no Trabalho e Solidariedade Social, onde se concentram praticamente metade dos diretores-gerais licenciados em ciências sociais e políticas.
Os próprios ministros entrevistados apercebem-se da influência diferenciada das instituições universitárias e da coesão e solidariedade geracional que isso gera entre os dirigentes de determinados ministérios e, dentro dos ministérios, entre dirigentes de determinadas áreas. Atente-se no que nos conta, por exemplo, um antigo ministro do Trabalho: a propósito de carreiras, “havia claramente áreas com afinidades bem definidas. Por exemplo, pessoas formadas no ISCSP na segurança social, pessoas formadas no ISEG na área dos estudos, estatísticas e planeamento e o caso das assistentes sociais na ação social” (Nunes, 2012: 152).
Por outro lado, a par da possível seletividade social, que referimos atrás, temos aqui de novo em pleno funcionamento uma significativa seletividade geográfica, isto é, mais um indicador da relevância de se nascer e - neste caso - viver ou estudar em Lisboa para aceder a cargos de topo no estado (normalmente sediados na capital administrativa do país): apesar de terem uma dimensão bem menor do que as Universidades de Coimbra e Porto no seu conjunto, vimos no quadro 6 que, quer há 20 anos quer agora, três das quatro instituições universitárias mais frequentadas pelos dirigentes da administração do estado têm sede na capital, e que mesmo atualmente mais de metade dos percursos escolares passaram por instituições que funcionam em Lisboa.
Ou seja: a distribuição regional das instituições universitárias parece ser ainda mais desigual que a origem regional dos licenciados,25 algo já notado por Hermínio Martins para o período da ditadura (1998: 119).
Era expectável que a criação mais recente de institutos politécnicos e instituições universitárias (incluindo privadas) em vários pontos do país viesse a mudar este estado de coisas, tendo em conta que muitos dos atuais dirigentes de topo da função pública, mesmo que relativamente envelhecidos, já se terão licenciado durante ou mesmo depois dessas transformações no ensino superior, operadas a partir da segunda metade da década de 1980.
E de facto o mesmo quadro 6 mostra-nos que mais de 40% dos atuais dirigentes de topo já passaram por outras instituições de ensino superior, que não aquelas que dominavam o panorama na viragem do século: representam, mais exatamente, 41,4% dos casos.
Isto sugere-nos um certo impacto do reforço da pluralidade institucional e geográfica na oferta de ensino superior ao nível dos percursos dos dirigentes da administração do estado, e convida-nos, evidentemente, a perceber quais são essas novas instituições de ensino superior que estão hoje a formar quase metade dos diretores-gerais, em contraste com o que se passava há 20 anos.
Sem contrariar essa maior diversidade de percursos, o atual quadro mostra-nos, ainda assim, a persistência da referida seletividade regional: nesses 53 casos de dirigentes do XXII Governo Constitucional que passaram por “outras” instituições na sua formação superior, 31 identificam-nas nos seus currículos. Desses 31 casos identificados, 24 continuam a dizer respeito a instituições de ensino superior que funcionam totalmente ou em grande medida em Lisboa: Universidade Católica Portuguesa (13 casos, 10,2%) e outros estabelecimentos privados ou cooperativos (8 casos); Universidade Nova de Lisboa (6 casos, 4,7%) e ISCTE, para já não falarmos das instituições de ensino superior militar ou policial, com algum relevo na Administração Interna e na Defesa Nacional (5 casos).
A par do peso do Direito e do nascimento ou estudo em Lisboa, há outra característica que, aparentemente, se mantém:26 o peso dos professores universitários verificado na elite do salazarismo (Pinto, 2001) ainda persiste, não só no governo (Almeida e Pinto, 2006) como, em parte, na própria administração do estado.
Nas respostas dos entrevistados é frequente a referência à universidade como campo de recrutamento privilegiado. Como bem nos lembra um antigo ministro professor universitário, “Algumas escolhas resultaram do conhecimento do trabalho académico… A academia continuava a ser uma importante fonte de recrutamento” (Nunes, 2012: 155).
Para além do peso histórico e atual dos professores na elite ministerial, há outro fator que pode ajudar a explicar a significativa presença de docentes no topo da administração, que se prende com o facto de o problema remuneratório não se colocar quando se trata de requisitar quadros dentro da administração pública - especialmente professores de carreira que podem acumular os rendimentos do cargo dirigente com o regime da dedicação exclusiva.
No entanto, temos de reconhecer que é visível nas últimas décadas uma tendência para o peso dos professores diminuir - esse peso caiu cerca de 15 pontos percentuais em 20 anos. Estamos hoje, portanto, um pouco mais longe do “império do professor” ou da “osmose político-académica” que caracterizava historicamente a elite política e administrativa desde o Estado Novo (Pinto, 2001, 2012 e 2020; Nunes, 2003; Teixeira, 2010).
Regista-se, apesar disso, e ao longo do mesmo período um assinalável reforço das qualificações académicas do pessoal dirigente de topo, que acompanha tendência semelhante na administração pública.27
Como se pôde ver no quadro 7, a percentagem de dirigentes de topo com pós-graduações ou mestrado praticamente duplicou nos últimos 20 anos, tendo a percentagem de doutorados crescido, apesar do peso dos docentes do ensino superior já não ser tão frequente hoje como no início do século, o que é porventura mais um sinal do reforço das qualificações académicas da população portuguesa e de segmentação e autonomia das diferentes componentes das elites portuguesas, que contrastam um pouco com o que se passava durante o período da ditadura e mesmo já durante as primeiras décadas da democracia.
Estamos, pois, cada vez mais, perante uma elite bastante qualificada do ponto de vista académico, muito diferente do perfil dos dirigentes intermédios do estado na fase inicial da democracia.28
No entanto, as referências às qualificações académicas nem sempre são acompanhadas por informações curriculares acerca do seu percurso formativo ao longo da carreira. Quando isso sucede, é mais frequente a referência às áreas temáticas do que às entidades responsáveis pelos cursos de formação profissional. Será, por isso, legítimo discutir se as elevadas qualificações académicas serão sempre acompanhadas por competências em gestão pública.29
De facto, só agora o Instituto Nacional de Administração (INA) parece estar a assumir o papel que lhe fora destinado na formação em gestão dos quadros e dirigentes da administração pública. Não será fruto do acaso o contraste entre 1999-2002 e 2019-2022, revelado no quadro 8; é que, entretanto, foi aprovada a obrigatoriedade legal de frequência de cursos do INA para se aceder a cargos dirigentes intermédios,30 etapa habitual do cursus honorum dos diretores-gerais.
Com efeito, muitos quadros técnicos do estado viram-se a partir de então obrigados a frequentar (e a valorizar nos seus currículos) esses cursos, para poderem aspirar a cargos dirigentes;31 e muitos dos atuais dirigentes de topo passaram antes por cargos de nível intermédio e por esses cursos de formação obrigatórios, entretanto alargados ao universo dos dirigentes de topo.32
Conclusões
As mudanças que atravessaram a sociedade portuguesa nas últimas duas décadas tiveram impacto, como não poderia deixar de ser, nos padrões de recrutamento da elite administrativa.
Temos hoje uma maior igualdade de acesso entre homens e mulheres aos cargos de topo da administração pública, porventura ajudados pelos incentivos legais referidos;33 a tendência geral para o envelhecimento da população e do próprio funcionalismo do estado refletiu-se na composição etária deste grupo dirigente; a centralidade de Lisboa enfraqueceu um pouco quando olhamos para as suas origens universitárias e especialmente geográficas; a diversificação da oferta no ensino superior refletiu-se numa maior pluralidade de percursos académicos; e o reforço das qualificações da população portuguesa e da administração pública em geral foi acompanhado pelo reforço das competências em gestão pública e das qualificações académicas das pessoas que ocupam os cargos de direção superior, bastante acima aliás das competências e qualificações médias nacional e estatal (Público, 2022).
O reforço significativo da presença de mulheres e de dirigentes que frequentaram os cursos do INA não poderá deixar de ser associado aos incentivos legislativos entretanto aprovados, e a que fizemos referência.
Por outro lado, há legados históricos que persistem e que até se intensificaram nos últimos 10, 20 anos. Desde logo, a dificuldade das mulheres em acederem a cargos de chefia nalguns dos ministérios que executam as funções de soberania do estado: à cabeça, Defesa Nacional, Negócios Estrangeiros e Administração Interna.
Ao mesmo tempo, prevalece e intensifica-se a prevalência do critério experiência em detrimento da aposta na renovação e rejuvenescimento do pessoal dirigente de topo, que chega a estes cargos muitas vezes já na fase final da carreira.
É igualmente surpreendente a recuperação de influência do Direito depois de décadas de progressiva partilha de palco com outras áreas consideradas mais relevantes para a moderna gestão pública. Isto é algo que poderá estar associado ao crescente recrutamento de mulheres (que continuam a enfrentar bloqueios culturais e sociais no acesso às licenciaturas de Engenharia e Gestão) ou até à queda do prémio remuneratório associado a estas funções dirigentes no estado.
A sobreposição entre carreiras académicas e dirigentes no estado continua a registar níveis significativos, embora com tendência de queda, o que faz adivinhar uma progressiva autonomização (profissionalização, especialização) dos diferentes segmentos (académicos, políticos, administrativos) das elites portuguesas.
Finalmente, a diversificação dos percursos ao nível dos estudos superiores não significará à partida uma diversificação territorial ou uma maior desconcentração das fontes de recrutamento, já que muitas das escolas de formação emergentes continuam a ter sede em Lisboa.
Legislação
Lei 262/88, de 23 de julho.
Lei n.º 13/97, de 23 de maio.
Lei n.º 49/99, de 22 de junho.
Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro.
Lei n.º 51/2005, de 30 de agosto.
Lei nº 64/2011, de 22 de dezembro.
Decreto-Lei n.º 121/2011, de 29 de dezembro.
Decreto-Lei n.º 86-A/2016, de 29 de dezembro.
Lei n.º 26/2019, de 28 de março.