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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.102 Lisboa ago. 2023  Epub 23-Out-2023

https://doi.org/10.7458/spp202310227750 

Artigo Original

Conciliação trabalho-vida pessoal e familiar em profissões sob elevada pressão: o caso dos enfermeiros, polícias e jornalistas

Work-life balance in high-pressure professions: the case of nurses, police officers and journalists

L’équilibre entre vie professionnelle et vie privée dans les professions à forte pression: le cas des infirmières, des policiers et des journalistes

Conciliación de la vida laboral y familiar en profesiones de alta presión: el caso de los enfermeros, los policías y los periodistas

Catarina Egreja1  , Concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, visualização, redação do original, revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1396-1102

Sara Melo2  , Investigação, visualização, redação do original, revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-5670-3424

1 Egas Moniz Center for Interdisciplinary Research (CiiEM); Egas Moniz School of Health & Science, Caparica, Almada, Portugal

2 Instituto de Sociologia, Universidade do Porto (ISUP); Instituto Superior de Serviço Social do Porto, Porto, Portugal


Resumo

O presente artigo aborda a temática da conciliação da esfera pessoal/familiar com a esfera laboral, a partir de dados de um estudo sociológico realizado em Portugal, junto de três grupos profissionais com particular pressão para o desempenho - enfermeiros, polícias e jornalistas -, assente numa metodologia de métodos mistos. Os resultados elucidam de que forma algumas características da natureza do trabalho (nomeadamente, o tipo de horário de trabalho, os ritmos de trabalho e o índice de exigência da atividade) têm impacto na gestão do tempo, no sono e na conciliação com a vida pessoal/familiar. Conclui-se pela preponderância da índole totalizante do trabalho.

Palavras-chave: conciliação trabalho-vida pessoal e familiar; natureza do trabalho; tempos de trabalho; enfermagem; polícia; jornalismo.

Abstract

This paper addresses the issue of work-life balance based on data from a sociological study carried out in Portugal among three professional groups under high pressure to perform - nurses, police officers and journalists - based on a mixed-methods approach. The results elucidate how some characteristics of the nature of work (namely the working hours, the pace of work and the level of demand of the activity) have an impact on time management, sleep and conciliation with private/family life. The main conclusion is that there is prevalence of a totalizing nature of work.

Keywords: work-life balance; nature of work; work times; nursing; police; journalism.

Resumé

Cet article aborde la question de la conciliation de la sphère personnelle/familiale avec la sphère professionnelle, en se basant sur les données d’une étude sociologique menée au Portugal auprès de trois groupes professionnels soumis à une pression particulière - les infirmières, les policiers et les journalistes - selon une méthodologie mixte. Les résultats élucident comment certaines caractéristiques de la nature du travail (à savoir le type d’heures de travail, le rythme de travail et l’indice de demande d’activité) ont un impact sur la gestion du temps, le sommeil et la conciliation avec la vie personnelle/familiale. La conclusion est que la nature totalisante du travail est prépondérante.

Mots-clés: équilibre entre vie professionnelle et vie privée; nature du travail; temps de travail; soins infirmiers; police; journalisme.

Resumen

Este artículo aborda la cuestión de la conciliación de la esfera personal/familiar con la laboral, a partir de los datos de un estudio sociológico realizado en Portugal entre tres grupos profesionales con especial presión para rendir - enfermeros, policías y periodistas - basado en una metodología de métodos mixtos. Los resultados dilucidan cómo algunas características de la naturaleza del trabajo (a saber, el tipo de horario, el ritmo de trabajo y el índice de demanda de actividad) repercuten en la gestión del tiempo, el sueño y la conciliación con la vida personal/familiar. La conclusión es que la naturaleza totalizadora del trabajo es preponderante.

Palabras-clave: conciliación de la vida laboral y familiar; naturaleza del trabajo; tiempo de trabajo; enfermería; policía; periodismo.

Introdução

A conciliação da esfera pessoal/familiar com a esfera laboral é um tema amplamente estudado pelas ciências sociais. Este debate ancorado na asserção genérica de Work Life Balance tem vindo, ao longo do tempo, a deslocar-se do conflito latente entre estas duas esferas da vida (Greenhaus e Beutel, 1985) para uma perspetiva de pendor mais positivo, entendida como facilitação, isto é, para abordagens menos deletérias centradas nos efeitos positivos bidirecionais entre trabalho e vida pessoal/familiar, em termos de bem-estar e enriquecimento individual (Frone, 2003; Greenhaus e Powell, 2006; Stephens e Grzywacz, 2014).

A centralidade do trabalho no quotidiano também tem assumido importante destaque na investigação, muito devedora dos impactos que essa centralidade tem na vida privada dos indivíduos, sobretudo quando as suas profissões os colocam num contexto de elevada pressão social para a performance (Tavares, Lopes e Gonçalves, 2022). Isso significa que, em grande medida, o trabalho acaba por invadir os espaços-tempos fora do contexto de trabalho, seja de forma ativa, por exemplo, quando não existe uma rutura entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer, ou passivamente, quando afeta a dimensão mais biológica da existência, por exemplo, a duração e a qualidade do sono, ou a dimensão mais relacional, como sejam os tempos livres ou a qualidade do tempo dedicado à vida familiar.

A centralidade do trabalho e a sua interferência na esfera pessoal é também fruto das mudanças profundas no mercado de emprego em várias sociedades, incluindo Portugal, decorrentes de fatores em crescimento, tais como: o impacto das novas tecnologias, particularmente da informação e da comunicação, no mundo do trabalho; a flexibilidade das formas e dos locais de trabalho; a precarização dos contratos de trabalho; a importância do setor dos serviços; e a massiva incorporação das mulheres no mercado de trabalho, que levou ao predomínio de famílias nas quais ambos elementos de um casal exercem uma profissão (Guerreiro e Pereira, 2007; Tavares, Lopes e Gonçalves, 2022).

Procurando ir além de temas já amplamente estudados, o aspeto inovador deste artigo reside na análise dos efeitos do trabalho na conciliação com a vida pessoal/familiar em profissionais com uma elevada pressão para o desempenho, mais concretamente, enfermeiros, polícias e jornalistas. O artigo apresenta resultados de um estudo1 cujo objetivo principal foi obter conhecimento sobre as dinâmicas sociais subjacentes aos consumos de performance (consumo de medicamentos, suplementos alimentares e outros produtos naturais, para a melhoria do desempenho físico, intelectual e social) em contextos laborais, no qual alguns aspetos da conciliação das esferas laboral e pessoal/familiar também foram abordados.

Embora seja comum abordar esta temática a partir de eixos de análise sociológica centrados no género, que têm vindo a demonstrar a incontornável pertinência desta variável, não será esse o nosso foco principal, ainda que não seja descurado nas análises realizadas. Procuramos antes integrar contribuições de estudos existentes que se tenham debruçado sobre a relação entre trabalho e vida pessoal/familiar, primeiro tendo por referência, de um modo geral, os contextos profissionais de elevada pressão para o desempenho, mas também, especificamente, em cada uma destas profissões. Segue-se a análise dos dados obtidos através de uma abordagem de métodos mistos (questionário e entrevistas), que permite elucidar como é que algumas das características relacionadas com o trabalho (nomeadamente, o número de horas de trabalho, os ritmos de trabalho e a exigência da atividade) têm impacto no sono e no tempo dedicado à vida pessoal e familiar. Analisamos também de que forma é que os indivíduos avaliam a conciliação destas duas esferas (em sentido bidirecional). Por fim, são apresentadas as principais notas conclusivas.

A centralidade do trabalho em contextos profissionais de elevada pressão e a conciliação com a vida pessoal e familiar

Nas sociedades contemporâneas, a centralidade do trabalho assume um papel fundamental na maior parte das famílias, com consequências na saúde, no domínio relacional, no domínio da participação cívica, entre outros. Segundo Cabral (2011), nas sociedades modernas assiste-se a diferentes discursos, por vezes não consensuais, sobre a importância atribuída à vida privada e à vida profissional. Alguns autores defendem que o trabalho assume um papel central na vida dos indivíduos, influenciando os campos de integração familiar, escolar, profissional, política e cultural. Outros defendem a perda relativa da importância atribuída ao trabalho ao longo dos últimos anos, em detrimento do investimento noutras esferas da vida social, como a família, a religião, o lazer e as atividades sociais. A intensificação da carga e do ritmo de trabalho e, em particular, o aumento do tempo de trabalho, a irregularidade e flexibilidade dos horários laborais colocam cada vez mais os profissionais em contacto permanente com o trabalho, quer em termos temporais quer espaciais, pois, com os recursos tecnológicos disponíveis, este pode ser realizado a qualquer hora e em qualquer local, assumindo um caráter de continuidade permanente (Tavares, Lopes e Gonçalves, 2022). Neste sentido, o trabalho tem uma índole totalizante. O contacto permanente com o trabalho estabelece uma continuidade entre o domínio profissional e a esfera privada, gerando uma sobreposição e uma relativa diluição de fronteiras entre os tempos dedicados ao trabalho e ao lazer, o espaço doméstico e o local onde se exerce a profissão, não se estabelecendo uma separação clara entre os domínios do trabalho e das outras esferas da vida dos indivíduos. Como Greenhaus e Beutel (1985) sugeriram, decorre daqui uma sobreposição de papéis que torna eminente a consideração de que o trabalho exerce um impacto negativo sobre a vida privada dos indivíduos. A dificuldade ou impossibilidade de planear os tempos em que decorre a atividade profissional e, em consequência disso, os tempos extraprofissionais, geram acentuados desequilíbrios entre o trabalho e a esfera privada (Casaca, 2013).

É habitual considerar-se a conciliação entre a vida pessoal/familiar e a vida profissional como um problema difícil de contornar, sendo que, com mais frequência se considera que o trabalho interfere no domínio familiar, do que o contrário. Portugal é um país que se caracteriza por níveis elevados de interferência do trabalho na família, onde os contextos organizacionais tendem a ser adversos à conciliação do trabalho com a vida familiar, sobretudo quando as exigências profissionais desses contextos têm impactos particularmente negativos (Guerreiro e Rodrigues, 2009; Rodrigues, Barroso e Caetano, 2010).

Um dos elementos que maior impacto tem na conciliação entre vida pessoal/familiar e profissional e que, por esse motivo, também tem sido um dos mais estudados, diz respeito aos horários de trabalho. Mais concretamente, características como “horários antissociais” (ou seja, que dizem respeito a funções desempenhadas ao fim de semana), alterações horárias inesperadas ou folgas rotativas são causadoras de perturbações na vida pessoal, sobretudo devido à necessidade de constantes “rearranjos” na articulação entre as esferas laborais e privadas (Casaca, 2013). Num estudo coordenado por Perista et al. (2016a), estes horários atípicos abrangem uma parte importante dos trabalhadores inquiridos: 46,5% afirmam trabalhar pelo menos um sábado por mês; 26,8% trabalham por turnos e 20,5% trabalham pelo menos um domingo por mês. Quase uma em cada três pessoas afirma que, pelo menos uma vez por mês, tem de retirar tempo à sua vida pessoal e/ou familiar para dar resposta a exigências do trabalho. São as pessoas com horários de trabalho noturno quem mais expressa dificuldades de articulação entre vida profissional, pessoal e familiar, seguindo-se as pessoas que trabalham por turnos e aquelas com horários de trabalho longos (acima das 10 horas diárias).

A atividade profissional exige, em muitos casos, um investimento de tempo que vai para além do horário de trabalho contratualizado (Perista et al., 2016b). São sobretudo as pessoas de famílias com crianças menores de 15 anos (e entre estas as mulheres), bem como as pessoas que se inserem em famílias com casais de duplo emprego e as que têm trabalho por turnos (sobretudo os homens), quem mais negativamente classifica a adequação dos horários de trabalho aos seus compromissos de natureza familiar, pessoal e social. Por outro lado, Perista et al. (2016b) salientam que uma melhor ou pior adaptação do horário de trabalho está, naturalmente, relacionada com o número de horas trabalhadas por semana, em particular no caso das mulheres. A pressão da distribuição quantitativa e qualitativa do tempo pode condicionar a satisfação na articulação entre as duas esferas, facto que é apontado maioritariamente pelos indivíduos com profissões mais qualificadas e em cargos de responsabilidade (Guerreiro e Rodrigues, 2009). As profissões percecionadas como sendo demasiado exigentes, quer em termos da sua natureza e de tarefas substantivas, quer em relação ao número de horas trabalhadas e prazos estão associadas a avaliações mais negativas de interferências bidirecionais e a uma menor concordância com uma divisão equilibrada do tempo individual e dos recursos.

Os estudos têm vindo ainda a evidenciar os efeitos negativos associados ao trabalho por turnos e ao trabalho noturno, nomeadamente ao nível da saúde, tais como a falta de qualidade do sono e as alterações de humor (Perista et al., 2016a). O horário de trabalho por turnos, especialmente quando envolve a realização de trabalho noturno e/ou períodos muito valorizados familiar e socialmente pode representar para o trabalhador dificuldades acrescidas do ponto de vista biológico, psicológico e/ou familiar/social (Silva, Prata e Ferreira, 2014). Uma parte considerável das dificuldades experienciadas resulta, por um lado, da necessidade de inversão do ciclo sono-vigília (i.e., ter de dormir de dia e de trabalhar à noite) e, por outro, do desfasamento entre a estruturação do tempo social e certos horários de trabalho, por exemplo, os períodos ao final do dia e os fins de semana.

Nos últimos anos, porém, temos assistido à proliferação de estudos que vêm acrescentar, além do foco sobre as dimensões negativas de uma esfera sobre a outra, uma incidência sobre os efeitos positivos decorrentes desta relação. Stephens e Grzywacz (2014), por exemplo, exploram o fenómeno como facilitação trabalho-família, inicialmente cunhado por Frone (2003), definindo-a como o contributo de uma dimensão para o enriquecimento da outra num sentido bidirecional. De acordo com Rodrigues, Barroso e Caetano (2010), quando os recursos são adequados perante as necessidades e exigências, o indivíduo pode alcançar o equilíbrio entre as duas esferas, seguindo a perspetiva de Greenhaus e Powell (2006), segundo a qual trabalho e família passam a ser aliados, abandonando a sua condição de inimigos.

Recuperando dados do Eurofound (2017) - Sixth European Working Conditions Survey, em 2015, quatro em cada cinco trabalhadores (82%) reportaram um bom ajuste entre o seu trabalho e a sua família ou compromissos sociais, com apenas 18% a reportarem que o ajuste era fraco. Os valores para Portugal situavam-se nos 80%. Os trabalhadores são mais propensos a dizer que conseguem equilibrar as horas de trabalho com outros compromissos fora do trabalho se uma ou mais das seguintes condições estiverem presentes: trabalharem um menor número de horas, poderem tirar uma hora livre para as suas necessidades, terem horários de trabalho regulares e previsíveis, e poderem trabalhar a partir de casa.

O caso dos enfermeiros, polícias e jornalistas: breve revisão de literatura

No âmbito do presente artigo, interessa-nos evidenciar a conciliação destas esferas em três profissões com elevada pressão para o desempenho profissional. São profissões facilmente caracterizáveis como exigentes, seja especificamente pela natureza das funções de cada uma delas, seja pelas longas horas trabalhadas, a que se associa um acelerado ritmo quotidiano. A literatura, tanto internacional como nacional, revela alguma disparidade na atenção dada à conciliação entre vida profissional e vida pessoal/familiar junto destes três grupos-alvo. É na enfermagem que radica o maior número de estudos empíricos onde as características do trabalho, especialmente o número de horas de trabalho e o trabalho por turnos, são mais evocadas como estando na origem de alguma disrupção relativamente às questões do bem-estar físico e social. Esta disrupção é, na maioria dos estudos, investigada a partir das consequências para a saúde dos enfermeiros. Conclui-se que as mulheres e os portadores de doença crónica são os indivíduos mais afetados com os turnos de trabalho rotativos, em particular no que se refere ao sono, à fadiga crónica, problemas digestivos e cardiovasculares, ansiedade cognitiva e somática, entre outros (Korompeli et al., 2014). As mulheres mais velhas e aquelas com responsabilidades domésticas são ainda severamente afetadas, nomeadamente no que se refere a alguma desorganização da vida pessoal. Waage et al. (2014), por seu lado, desenvolveram uma investigação longitudinal com o objetivo de explorar os preditores do desenvolvimento de um distúrbio provocado pelo trabalho por turnos. Os resultados dessa investigação apontam para uma redução do distúrbio junto dos enfermeiros quando os mesmos deixam de desenvolver trabalho noturno.

Num sentido mais lato, em que o foco da análise se centra na conciliação entre a esfera laboral e a esfera pessoal, Steege e Rainbow (2017) direcionam o enfoque para a dinamização de uma cultura profissional onde o enfermeiro é visto como um ser sobrenatural capaz de enfrentar todas as adversidades, enquanto Ejebu, Dall’Ora e Griffiths (2021) assumem que o trabalho por turnos, as experiências e as preferências de cada indivíduo parecem variar de acordo com as suas características pessoais (por exemplo, idade, responsabilidade de cuidados, anos de experiência na função). Em qualquer um dos casos, as implicações para a prática incidem sobre a necessidade de encontrar dimensões motivadoras (no plano da cultura profissional) e soluções de organização do trabalho do enfermeiro (no plano institucional) que permitam inverter um conjunto de consequências negativas sobre o bem-estar pessoal de cada indivíduo. A este respeito é percursor o trabalho de Trinkoff e Storr (1998), por incidir sobre as estratégias de coping dos enfermeiros no que se refere a uma resposta individual ao mal-estar provocado pelo excesso de trabalho, em particular o trabalho por turnos e o trabalho noturno. Os autores debruçaram-se sobre o consumo de substâncias que lhes permitem suportar não só a variabilidade de horários a que estão sujeitos por trabalharem por turnos, com incidência sobre o trabalho noturno, mas também a intensidade do trabalho e a articulação com as exigências da vida privada, sobretudo se forem mulheres.

A realidade dos enfermeiros é também aquela que encontra maior eco nos estudos realizados em Portugal, os quais concluem no sentido de que os enfermeiros têm pouco controlo sobre os seus tempos de trabalho, o que é um fator acrescido de pressão, sobretudo quando se tem um cargo de chefia (Bäck-Wiklund et al., 2018). Gonçalves (2012) constatou a existência de diferenças no tempo dedicado à vida privada segundo as características sociodemográficas (idade, género e estado civil) e segundo as características laborais / profissionais dos enfermeiros portugueses (tempo de exercício profissional, categoria profissional, área de trabalho, modalidade de horário de trabalho e carga horária total semanal). A vida conjugal, em particular, pode ser bastante afetada, sobretudo se houver lugar a situações de duplo emprego e/ou os cônjuges também trabalharem por turnos. Porém, apesar de os aspetos negativos serem os mais comuns e os mais abordados, existe também espaço para a reflexão sobre aspetos positivos relacionados com o trabalho por turnos, que pode ser encarado como um meio que possibilita a integração do trabalho e família e que estimula um relacionamento mais próximo entre pais e filhos.

A investigação produzida com incidência sobre o grupo profissional da polícia consensualiza que o trabalho, especificamente, os horários de trabalho e o trabalho por turnos têm um impacto negativo sobre o sono e uma tendência para o aumento da fadiga, o que provoca, consequentemente, um decréscimo da performance profissional (Eriksen e Kecklund, 2007; Riedy et al., 2021). Os horários de trabalho irregulares e os turnos de trabalho noturno, bem como distúrbios de sono e o volume de horas de trabalho estão relacionados com um risco acrescido de burnout neste grupo profissional (Peterson et al., 2019).

Já no que se refere aos jornalistas, Snyder, Johnson e Kozimor-King (2021) concluíram que, num conjunto de indivíduos empregados em diferentes organizações noticiosas, os homens tinham mais dificuldade em separar a esfera profissional da esfera familiar do que as mulheres. Com efeito, esta diferenciação de género tem ainda impactos de outra ordem. Para além de serem assinaladas repercussões positivas desta interferência do trabalho na vida privada, as mulheres entrevistadas declararam que a tecnologia digital aumentou a sua capacidade de equilibrar a vida profissional e familiar. Encontramos neste trabalho um dos exemplos em que o impacto do trabalho na vida familiar é positivo. Em Portugal, apesar de existirem vários estudos sociológicos sobre o grupo profissional dos jornalistas, não é habitual que se debrucem sobre estas questões. Contudo, numa obra coordenada por Rebelo (2011), encontramos referências discursivas às dificuldades de conciliação destas dimensões entre os jornalistas, na análise de histórias de vida.

Em suma, o suporte teórico que enquadra o presente artigo evidencia de forma bastante clara os principais aspetos que contribuem para dificultar a conciliação das esferas profissional, pessoal e familiar, em grupos profissionais com elevada pressão no trabalho: o trabalho por turnos, o trabalho noturno, a rotatividade e os ritmos de trabalho intensos. No entanto, coexistem com perspetivas mais otimistas, segundo as quais tais desvios à norma podem proporcionar vantagens ao nível de uma mais satisfatória gestão do tempo, mais flexível e facilitadora do quotidiano.

Metodologia

O estudo na origem do presente artigo recorreu a uma triangulação metodológica, com recurso a técnicas qualitativas e quantitativas, designadamente grupos focais, questionários e entrevistas semidiretivas.

O trabalho de campo decorreu em Portugal, nas cidades de Lisboa e Porto. Procurou-se garantir o máximo de homogeneidade possível dentro de cada grupo profissional, tendo como alvo, enfermeiros em serviços hospitalares de urgência, agentes da PSP em funções operacionais e jornalistas de imprensa escrita. Estas características foram observadas nos grupos focais (n = 7), realizados entre fevereiro e junho de 2019. Na fase seguinte, aplicou-se um questionário2online (n = 539), entre janeiro e dezembro de 2020. Os três grupos profissionais encontram-se representados de forma equilibrada. Os enfermeiros representam 36,9% da amostra, os polícias 36,2% e os jornalistas, 26,9%. Os participantes foram convidados a responder mediante uma colaboração estabelecida com sindicatos e associações profissionais.3 Os dados do questionário foram analisados e o conhecimento adquirido informou ainda a construção do guião utilizado na realização das entrevistas semiestruturadas, entre junho e setembro de 2021, num total de 42 (14 por grupo). Os inquiridos tinham a possibilidade de deixar os seus contactos num formulário próprio, indicando que estariam disponíveis para serem entrevistados, tendo depois sido contactados nesse sentido. Em todas as etapas, o anonimato dos participantes foi assegurado.

Procedendo a uma breve caracterização sociográfica dos participantes, os inquiridos têm uma distribuição de género bastante equitativa, em que 43,4% são mulheres e 56,6% são homens. A idade foi recodificada em três escalões etários: até aos 39 anos (35,6%), entre os 40 e os 49 anos (34,7%) e 50 anos ou acima (29,7%). Quanto aos entrevistados, 27 são homens e 15 são mulheres. Cerca de metade situa-se no escalão entre os 40 e os 49 anos, um terço até aos 39 anos e os restantes, em menor número, nos 50 anos ou acima.

Resultados

Apresentam-se, de seguida, os principais resultados obtidos procurando compreender de que forma vão no mesmo sentido, ou não, dos estudos aqui mencionados, ao nível dos impactos na gestão do tempo livre e no sono, e da conciliação das esferas pessoal/familiar e profissional. O horário de trabalho, os ritmos de trabalho4 e os níveis de exigência5 foram relacionados com aspetos da vida privada, de modo a tentarmos compreender melhor as suas interconexões. Os dados são sempre analisados para a amostra global, enquanto conjunto representativo de profissões com elevada pressão para o desempenho, apontando-se as especificidades de cada grupo profissional sempre que se justifique o seu destaque.

Modos de organização e natureza do trabalho: impactos na gestão do tempo livre e no sono

A observação do tipo de horário de trabalho praticado pelos inquiridos permite-nos confirmar que a situação mais comum é o trabalho por turnos (56,0%), com forte incidência de trabalho noturno. O horário fixo diurno é apontado por cerca de um quarto dos participantes (24,1%). É ainda importante referir que 18,4% dos inquiridos indicam ter um horário flexível ou isenção de horário (na sua maioria, jornalistas). Tanto a análise dos dados quantitativos, como a análise de conteúdo das entrevistas, produziram resultados que apontam no sentido de o trabalho por turnos ter um forte impacto na vida pessoal/familiar dos indivíduos. Isto é visível, por exemplo, nas respostas à pergunta sobre quantas horas dispunham para o seu tempo livre. Em média, nos dias de trabalho, mais de metade dos inquiridos (67,2%) reserva menos de cinco horas para a sua vida pessoal/familiar (excluindo o tempo de sono), o que é ilustrativo do peso que a esfera laboral tem no seu quotidiano. Esta realidade é também evidenciada nas entrevistas. Em todos os grupos, a previsibilidade de terem de trabalhar em alturas pouco convenientes em termos familiares ou sociais, nomeadamente durante a noite, fins de semana ou épocas festivas, é abordada. Às vezes, a dificuldade é acentuada no sentido em que o cônjuge, se tiver a mesma profissão, provavelmente também irá trabalhar por turnos, pelo que a descoincidência dos horários contribui para uma maior dificuldade de gestão da vida familiar. Esta realidade é mais visível nos enfermeiros.

Eu tenho um filho de dois anos e picos, a minha mulher também é enfermeira, também trabalha por turnos, [...] antes do nosso filho, trabalhar por turnos tinha menos desvantagens, trabalhar ao fim de semana incomodava-me menos e agora, como é óbvio, o trabalhar fim de semana, o trabalhar de noite cria-me mais algumas complicações familiares. [Enf., E10, M, 38 anos]

[O trabalho] Tem de condicionar sempre [a vida familiar], porque se ela [esposa] e os miúdos têm um horário considerado normal, todas as noites estão em casa, todos os dias jantam em casa, todos os fins de semana, sábados e domingos estão em casa, eu não estou, ando um bocadinho ao contrário deles. [Pol., E5, M, 46 anos]

Já me aconteceu estar de fim de semana e receber uma chamada a dar uma notícia, a gente não vai dizer “depois na segunda-feira eu faço a notícia”. [Jor., E13, M, 53 anos]

Procurou-se também perceber qual o impacto que os ritmos e horários de trabalho implicam numa vertente específica da vida pessoal, importante para o bem-estar e qualidade de vida: o sono. Em dias de trabalho, mais de metade dos inquiridos (60,7%) refere dormir uma média de até seis horas por dia, com os restantes a assinalarem quase na totalidade sete a oito horas por dia (38,6%). Em dias de folga, esta tendência inverte-se e 22,8% chegam mesmo a conseguir dormir nove horas ou mais. No mesmo sentido, os inquiridos tendem a classificar a quantidade das suas horas diárias de sono como suficiente ou mais do que suficiente com expressão bastante mais elevada quando se referem aos dias de folga (42,9%) do que quando se referem aos dias de trabalho (11,5%). Adicionalmente, os inquiridos tendem a classificar de forma mais positiva a qualidade do seu sono em dias de folga, comparativamente com os dias de trabalho, sendo boa ou muito boa em 38,4% e 13,4% dos casos, respetivamente. Estes resultados, aqui apresentados para o conjunto da amostra, são muito semelhantes em cada grupo profissional, ainda que os jornalistas avaliem globalmente as suas horas de sono como mais equilibradas e satisfatórias do que os polícias e os enfermeiros.

A análise foi aprofundada através da realização de alguns cruzamentos, tomando-se como referência as respostas relativas aos dias de trabalho. O cruzamento das horas de sono com o tipo de horário de trabalho permite-nos identificar uma relação estatisticamente significativa entre as variáveis, no sentido em que um menor número de horas de sono é mais frequente junto de quem trabalha por turnos (73,5%) (quadro 1). Tal relação é evidente não só na amostra global, como em cada grupo profissional.

Quadro 1 Cruzamento entre número de horas de sono em dias de trabalho e tipo de horário de trabalho (% e teste do qui-quadrado) 

X2; p < 0,001.

Encontramos ainda uma associação estatisticamente significativa entre a adequação da quantidade de horas diárias de sono (em dias de trabalho) e o tipo de horário de trabalho. Mais concretamente, quem trabalha por turnos tende a considerar, em maior proporção que os restantes, que aquela é muito insuficiente ou insuficiente (43,0%). Vemos, além disso, que quem refere dormir um menor número de horas tende a assinalar uma média mais elevada de ritmos de trabalho e de exigência no trabalho, sendo as diferenças estatisticamente significativas (quadro 2). A mesma conclusão é aplicável a todos os grupos, embora as diferenças não sejam estatisticamente significativas nos polícias, de acordo com o nível de exigência, e nos jornalistas, em qualquer dos casos.

Quadro 2 Médias atribuídas aos ritmos de trabalho e à exigência no trabalho, segundo o número de horas de sono em dias de trabalho (amostra total) 

t-test; p < 0,050.

São também os indivíduos que classificam a quantidade das horas diárias de sono (em dias de trabalho) como muito insuficientes ou insuficientes, que atribuem uma média mais elevada aos ritmos de trabalho e ao índice de exigência no trabalho (quadro 3), conclusão que também se aplica a cada grupo profissional (ainda que as diferenças não sejam estatisticamente significativas junto dos polícias, com a variável ritmos de trabalho, nem junto dos jornalistas, com a variável índice de exigência).

Quadro 3 Médias atribuídas aos ritmos de trabalho e à exigência no trabalho, segundo a classificação da quantidade das horas diárias de sono (amostra total) 

Em suma, parece existir uma repercussão comprovada do trabalho por turnos, dos ritmos de trabalho acelerados e de um elevado índice de exigência no trabalho, ao nível do sono, o qual, por sua vez, afeta a capacidade de descanso e de recuperação física e emocional destes profissionais. Estes efeitos são ilustrados ao longo das entrevistas e são atribuídos não apenas à variabilidade do horário, mas sobretudo a uma experiência acumulada de vários anos a trabalharem neste ritmo intenso e irregular.

Há dias cansativos, pela parte física também, porque trabalhamos por vezes, muitas horas seguidas, turnos que têm pouco tempo de descanso entre um e outro. Muitas vezes, entram pela noite dentro, horários a acabar às duas da manhã, a começar logo às seis, é cansativo. A nível psicológico, a qualidade do sono, também a nível físico, porque com poucas horas de sono e com a idade a avançar, a gente já não recupera tão bem. [Pol., E8, M, 47 anos]

[referindo-se a colegas com mais experiência] Já são muitos anos a fazer turnos noturnos, a fazer turnos sem ritmo nenhum, sem ciclo nenhum de sono [...] estes horários, ao longo de vinte anos, destroem-nos o nosso ciclo de sono, completamente. [Enf., E14, F, 28 anos]

Combinar jantares, às vezes também era difícil, porque nunca sabia a que horas estava despachada e muitas vezes quando saía, estava de tal forma exausta, que já não queria ir, já não me apetecia ir, só queria ir para casa dormir. [Jor., E14, F, 43 anos]

Conciliação do trabalho e vida pessoal/familiar: autopercepção dos profissionais

Um dos segmentos do questionário, baseado numa das questões formuladas no sexto ECWS (Eurofound, 2017), colocava perante os inquiridos uma série de cenários relativos às possíveis dificuldades de conciliação entre as esferas do trabalho e da vida pessoal/familiar com que se poderiam deparar, solicitando-lhes que indicassem com que regularidade tinham vivenciado essas situações, no último mês. A análise dos resultados (quadro 4) leva-nos a concluir que o aspeto relativo à conciliação entre vida profissional e pessoal/familiar que mais sobrecarrega os inquiridos é o sentimento de cansaço em demasia após o trabalho para fazer algumas das tarefas domésticas/familiares necessárias (67,5% referem que essa situação ocorreu várias ou muitas vezes no último mês e, para 16,1%, ocorreu constantemente; média de 4,43, numa escala entre 1 - nunca, e 6 - constantemente). Esta é a principal preocupação dos enfermeiros (média de 4,56). Também se manifesta globalmente o sentimento de que o trabalho os impede de dedicar à família o tempo que gostariam (principal preocupação junto dos polícias, com uma média de 4,27) e uma preocupação contínua com o trabalho quando não estão a trabalhar (aspeto com maior relevância para os jornalistas, com uma média de 4,84). Verifica-se, ainda, que o trabalho e/ou a família os impedem de ter tempo para outras atividades que gostariam de realizar. Porém, a situação oposta, em que se procurava saber em que medida é que as responsabilidades familiares tinham impacto no trabalho, gera um posicionamento algo polarizado entre os respondentes, com maior tendência para responderem negativamente. Estes resultados vão ao encontro dos obtidos pelo sexto EWCS (Eurofound, 2017).

Tendo por base estes indicadores, avançou-se a título exploratório com a criação de duas novas variáveis a partir de itens detalhados no quadro 4 - “impacto da profissão na vida pessoal/familiar” e “impacto da vida familiar no trabalho”.6 O impacto da profissão na vida pessoal/familiar é bastante frequente (média total de 4,34; Enf. = 4,37, Pol. = 4,09, Jor. = 4,64), o que não se verifica tanto em relação ao impacto da vida familiar no trabalho (média total de 3,17; Enf. = 3,12, Pol. = 3,26, Jor. = 3,13).

Quadro 4 No último mês, com que frequência lhe sucedeu o seguinte? (% em linha e média, amostra total) 

Foram realizados cruzamentos e testes estatísticos de forma a tentar perceber se as médias destes índices variam em função do número de horas reservadas para a vida pessoal/familiar, ou do horário de trabalho. Os resultados permitem-nos concluir que existem diferenças estatisticamente significativas (p < 0,050) (quadro 5). Mais concretamente, se observarmos as médias, verificamos que existe uma tendência para sentir com maior frequência a interferência do trabalho na vida pessoal/familiar quanto menor for o número de horas reservadas para o tempo livre, no total e em cada grupo profissional. No caso do horário de trabalho, quem trabalha com um horário fixo ou com um horário por turnos não se diferencia muito entre si; aqui, a diferença situa-se nos participantes com um horário flexível ou isenção de horário, que tendem a sentir com mais frequência a dificuldade de conciliação entre as duas esferas.

A mesma análise, mas dirigida à variável compósita que agrega os itens diretamente relacionados com o impacto da vida familiar na esfera do trabalho (quadro 5), demonstra que esta varia de forma estatisticamente significativa (p < 0,050) consoante o número de horas reservadas para a vida pessoal/familiar - se observarmos as médias, verificamos que existe uma tendência para sentir com maior frequência a interferência da vida familiar no trabalho quanto menor for o número de horas reservadas para o tempo pessoal/familiar - mas não com o tipo de horário de trabalho (p< 0,050). As conclusões são iguais em cada grupo profissional, embora as diferenças por número de horas não sejam estatisticamente significativas nos polícias e jornalistas.

Quadro 5 Teste à diferença de médias (Oneway-Anova) para o impacto da profissão na vida pessoal/familiar e o impacto da vida familiar no trabalho, por número de horas reservadas para a vida pessoal/familiar e por tipo de horário de trabalho (amostra total) 

De forma a compreender se existe uma relação entre estas variáveis e os ritmos e exigência do trabalho, foram realizadas análises de correlações. Os resultados mostram claramente que existe uma associação entre estes indicadores a todos os níveis, sendo mais forte entre os ritmos de trabalho e o impacto da profissão na vida pessoal/familiar (quadro 6), não só no total como em cada grupo profissional.

Quadro 6 Correlações entre os ritmos de trabalho e a exigência do trabalho, com o impacto da profissão na vida pessoal/familiar e o impacto da vida familiar no trabalho (amostra total) 

Os índices foram também cruzados com variáveis sociodemográficas, especificamente, os escalões etários, o sexo e ter ou não filhos menores (quadro 7). Os mais jovens e as mulheres são os que mais frequentemente sentem o impacto da vida profissional na vida pessoal/familiar, o que estará relacionado com a posição ocupada na sua trajetória de vida, ou seja, presumivelmente por se encontrarem numa fase em que as solicitações e exigências a nível pessoal e familiar, sobretudo se existirem filhos muito novos, tendem a ser mais intensas. A importância da exigência das funções desempenhadas e o maior impacto sentido pelas mulheres foram anteriormente identificados e discutidos por Perista et al. (2016b), para a realidade portuguesa. Por grupo, estas diferenças apenas são sentidas no caso dos jornalistas, o que se explica pelo facto de o grupo dos enfermeiros ser maioritariamente constituído por mulheres (70,9%) e o dos polícias, por homens (92,8%), o que dificulta uma comparação por sexo intragrupo nestes casos. No entanto, de acordo com os resultados do nosso estudo, ter filhos menores (o que se verifica em 45,5% da amostra total) não afeta significativamente o índice de impacto da vida profissional na vida pessoal/familiar.

Quadro 7 Teste à diferença de médias (T-test) para o impacto da profissão na vida pessoal/familiar e o impacto da vida familiar no trabalho, por variáveis sociográficas 

Sobre o impacto da vida familiar no trabalho, não existem diferenças estatisticamente significativas por sexo ou escalões etários (p > 0,050); porém, elas existem dependendo da existência de filhos menores, sendo que os inquiridos com esta configuração familiar apresentam um nível mais elevado de impacto da vida familiar no trabalho (quadro 7).

Além dos aspetos já referidos, relacionados com o sono, o cansaço ou os horários irregulares, que geralmente não coincidem com a disponibilidade das pessoas com quem se relacionam, os discursos permitem ir mais longe e ajudam a concretizar os efeitos do trabalho sentidos por estes profissionais, na sua vida pessoal/familiar. Estes efeitos referem-se, sobretudo, à dificuldade de se estar presente para a família e amigos na medida desejada, assim como à centralidade que o trabalho assume nas suas vidas. Adicionalmente, aborda-se o facto de se irem reduzindo as amizades fora do círculo profissional, sendo mais fácil manter relações sociais com pessoas que percebam melhor aquilo por que passam estes indivíduos, por via de uma experiência comum. Outro aspeto reflete-se na descrição do impacto emocional da natureza do trabalho, sobretudo entre polícias e enfermeiros. O impacto emocional das situações com que têm de lidar no dia a dia também afeta a sua disposição quotidiana, pois é difícil “desligar” as emoções quando o trabalho acaba.

De há uns anos para cá, percebi que perdi muito, perdi o crescimento dos meus filhos [...]. Durante anos, não conseguia acompanhar reuniões de escola, festas de escola, [...] perdi quase tudo, conta-se pelos dedos de uma mão as vezes que fui. [Pol., E8, M, 47 anos]

Se eu faço uma noite, não descansei, tenho de ir buscar o miúdo ao meio-dia, tenho de ir levá-lo à escola à uma da tarde, tenho de aproveitar para descansar [...]. O ritmo é intenso e o impacto em termos familiares é brutal... [...] a minha esposa na altura, também era enfermeira e os ritmos de trabalho não dá, quer em planeamento de férias, tenho de respeitar hierarquias, porque não posso marcar férias quando quero, é tudo muito limitado. [Enf., E12, M, 44 anos]

Quando eu estou a trabalhar, o meu jornal vem primeiro e depois, tudo à volta tem de ser reorganizado, isso é verdade, e não é sempre bom, mas é assim que funciona. [Jor., E2, F, 46 anos]

Apesar de os aspetos mencionados apontarem para uma ênfase mais negativa na conciliação das esferas profissional e privada nestes grupos profissionais, esta não é a única realidade, tal como também sugere a literatura associada à facilitação trabalho-família (Frone, 2003; Greenhaus e Powell, 2006; Stephens e Grzywacz 2014). Isto é, apesar dos múltiplos constrangimentos, nem todos os inquiridos ou entrevistados fazem uma avaliação negativa da sua realidade. Por exemplo, há quem aponte o lado positivo de trabalhar por turnos ou ao fim de semana, pois assim consegue ter tempo livre em alturas que podem ser mais convenientes ou, simplesmente, de exercer uma profissão que não segue uma rotina e que, por esse mesmo motivo, se torna mais estimulante.

Apesar de condicionar a vida social e familiar, eu até gosto de trabalhar por turnos, permite ter tempo a meio da semana, fazer outras coisas, permite ir às compras a meio da semana, permite ir à praia a meio da semana, pronto permite fazer coisas que de outra forma seria difícil se tivesse um trabalho fixo, de segunda a sexta. [Enf., E7, M, 35 anos]

Nós somos todos uns viciados em adrenalina. Nós só vivemos com o prazo e isso dá prazer. Pode não ser saudável, isso é outra parte, mas ninguém quereria trabalhar num semanário, acho eu, deve ser uma seca. [Jor., E2, F, 46 anos]

Notas conclusivas

O presente estudo permite aprofundar o conhecimento acerca da conciliação entre vida profissional e vida pessoal/familiar em profissões com elevada pressão para o desempenho, designadamente para o caso dos enfermeiros, polícias e jornalistas. Concluímos, na senda de outros autores, que em grande parte das profissões com elevada pressão para o desempenho, ao elevado número de horas de trabalho acresce o predomínio dos horários irregulares, flexíveis, por turnos com horário noturno e ao fim de semana. Os resultados desta investigação reforçam, para o total dos profissionais e em cada um dos grupos isoladamente, que os ritmos de trabalho e o grau de exigência são sempre assinalados como mais elevados (em média) por quem dorme menos e por quem classifica as suas horas de sono como insuficientes, estando também correlacionados com os índices que medem as (in)compatibilidades entre vida pessoal/familiar e trabalho.

O impacto da profissão na vida pessoal/familiar é bastante elevado, nomeadamente entre quem trabalha com horário flexível ou isenção de horário, nos mais jovens e nas mulheres, sendo sentido um pouco mais fortemente, em média, junto dos jornalistas. Numa realidade em que as exigências de ambas as esferas se inter-relacionam e são geridas de acordo com os recursos e com as disposições individuais, fica patente que, nestas profissões, as características da organização e da própria natureza do trabalho, com uma exigência própria que é simultaneamente física, intelectual e emocional, colocam os profissionais sob uma pressão acrescida que, de modo geral, atua no sentido de causar efeitos negativos sobre a vida privada.

Ainda que vários estudos venham incidindo a sua atenção sobre efeitos bidirecionais ou mesmo positivos do trabalho na vida pessoal, e que tenhamos encontrado também no discurso dos entrevistados algumas considerações positivas a esse respeito, que nos levam a identificar uma linha de investigação a ser desenvolvida em trabalhos futuros, a principal conclusão do nosso estudo vai no sentido de uma confirmação da tendência para a existência de uma índole totalizante do trabalho, nestas profissões. Ou seja, verifica-se uma centralidade do trabalho que tem impactos a nível de saúde, relacional, familiar e social, associada a uma intensificação da carga e do ritmo de trabalho, à flexibilidade dos horários e à imprevisibilidade associada às suas funções, em que o trabalho acaba por invadir os espaços-tempos que deviam ser reservados para a vida privada. Em síntese, é importante que as características da natureza do trabalho e que os contextos que o enquadram continuem a ser considerados como um dos principais elementos que podem gerar dificuldades na conciliação da esfera laboral com a pessoal/familiar, sendo que a sua gestão adequada é fundamental para o bem-estar dos indivíduos.

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1Projeto “Medicamentos e suplementos alimentares em consumos de performance: práticas sociais, contextos e literacia” (PTDC/SOC/30734/2017) — ConPerLit, financiado pela Fundação para a CiênciaeaTecnologia, coordenado pelo CIES-Iscte,emparceria com o Instituto Universitário Egas Moniz e o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.

2O questionário foi sujeito a um pré-teste (n = 74) e teve a aprovação da Comissão de Ética do Instituto Universitário Egas Moniz (código CE 857, aprovado a 20 de fevereiro de 2020).

3Sindicato dos Enfermeiros Portugueses; Sindicato dos Jornalistas e Casa da Imprensa; Sindicato dos Profissionais de Polícia e Associação Sindical dos Profissionais da Polícia.

4Amédia dos ritmos de trabalho refere-se a uma variável cuja escala variava entre “1—nada intensos” e “5 — extremamente intensos”. A média global é de 3,82; Enf. = 3,91; Pol. = 3,72; Jor. = 3,83.

5O índice de exigência é uma variável compósita criada a partir das médias de nove itens que mediam vários aspetos relacionados com a exigência da atividade profissional, a nível físico (força física, resistência física, agilidade física), intelectual (concentração, memorização, agilidade mental) e emocional (controlo emocional, gestão de conflitos e capacidade de comunicação) e cuja escala variava entre “1—nada exigente” e “5—extremamente exigente” (alfa de Cronbach = 0,82). A média global é de 3,77; Enf. = 3,99; Pol. = 3,82; Jor. = 3,39.

6Avariável “impacto da profissão na vida pessoal/familiar” agrega os três primeiros itens, e a variável “impacto da vida familiar no trabalho” agrega o quarto e o quinto.Aanálise de confiabilidade realizada para estas novas variáveis compostas revelou que estas são suficientemente robustas (os alfas de Cronbach são 0,746 e 0,804, respetivamente).

Recebido: 31 de Julho de 2022; Aceito: 09 de Fevereiro de 2023

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