Introdução
A criminalidade que é registada em cada país constitui o resultado de inúmeros processos em que intervêm variáveis individuais, macrossociais e macroeconómicas. Os estudos sobre o efeito de variáveis macrossociais e macroeconómicas na criminalidade não são um exercício de mera curiosidade científica. Os resultados obtidos podem ser importantes para estratégias de prevenção do crime que não se baseiem exclusivamente nas leis penais e na sua aplicação.
As evidências científicas disponíveis ainda não são totalmente esclarecedoras, mas têm apontado para efeitos importantes, sobre a criminalidade, de um conjunto de variáveis que inclui o rendimento, a desigualdade na distribuição do mesmo, o desemprego, a privação relativa, a privação material severa, as qualificações académicas, o emprego em diferentes tipos de profissões, a urbanização, o envelhecimento da população, a incidência do uso de drogas ou a imigração. No entanto, nem todos os estudos realizados têm conseguido identificar efeitos significativos destas variáveis sobre a criminalidade. Os resultados tendem a variar consoante os modelos de análise e os métodos utilizados, como comparações dentro de um mesmo país ou entre países, e as opções seguidas para medir e analisar o efeito de cada variável.
Que efeitos, e que tipo de efeitos, tiveram o rendimento, a desigualdade na distribuição do mesmo, o desemprego, a privação relativa, a privação material severa, as qualificações académicas, o emprego em diferentes tipos de profissões, a urbanização, o envelhecimento da população, a incidência do uso de drogas e a imigração sobre os crimes registados em Portugal, entre 2001 e 2022, constituiu a questão de partida para este estudo.
Revisão da literatura
Os crimes que são registados em cada país constituem o resultado final de inúmeras decisões individuais. A identificação das variáveis que mais influenciam cada processo de decisão, bem como a identificação de todas as interações que podem ocorrer entre essas mesmas variáveis, estão longe de estar concluídas (Cohn, Farrington e Iratzoqui, 2017).
O mesmo acontece com os efeitos das variáveis macrossociais e macroeconómicas que caraterizam os contextos em que cada processo de decisão tem lugar. A importância destas variáveis é há muito, não só teorizada, como estudada (Pratt, 2001; Pratt e Cullen, 2005; Kim, Seo e Hong, 2020; van Dijk, Nieuwbeerta e Joudo, 2021).
Parte dos estudos realizados tem obtido resultados que sugerem que contextos caraterizados por níveis médios de rendimento mais elevados contribuem para a redução de pressões e tensões sociais e que esta redução tende a contribuir para a ocorrência de menos crimes, em particular de menos crimes contra as pessoas. Outra parte dos estudos tem encontrado efeitos nulos ou quase nulos e inclusivamente um efeito inverso quando estão em causa crimes contra a propriedade. O mesmo se verifica em estudos que analisaram o efeito do peso, em cada contexto, de situações de privação relativa, estejam elas associadas, ou não, a situações de desemprego (Hsieh e Pugh, 1993; Nivette, 2011; Ferreira, 2011; Anser e outros, 2020; Gaitán-Rossi e Velázquez Guadarrama, 2021).
O efeito da desigualdade na distribuição do próprio rendimento, bem como do peso de situações de privação material severa, também continua por esclarecer dado que parte dos estudos realizados aponta para efeitos significativos, enquanto que outra parte aponta para efeitos nulos, quase nulos ou mesmo contrários ao esperado (Webber, 2007; Brush, 2007; Nivette, 2011; Pare e Felson, 2014; Ferreira, 2019; Kim, Seo e Hong, 2020; Rudolph e Starke, 2020; Anser e outros, 2020).
Estudos que analisaram o efeito de maiores qualificações académicas sobre as oportunidades de obtenção de mais elevados e estáveis níveis de rendimento e consequentemente sobre uma menor probabilidade de recurso a práticas criminais, também obtiveram resultados que ainda não são suficientemente esclarecedores. Embora a maioria sugira que níveis mais elevados de qualificações académicas estão relacionados com menos crimes, contra as pessoas e contra a propriedade, outros têm encontrado efeitos nulos ou quase nulos (Hjalmarsson e Lochner, 2012; Savage, Ferguson e Flores, 2017; Lochner, 2020; Bell, Costa e Machin, 2022).
O efeito do desempenho de diferentes tip´~ºl.k……os de profissões, nomeadamente de colarinho azul, ou seja, de natureza manual e/ou pouco exigentes em termos de qualificações académicas e profissionais, ou de colarinho branco, ou seja, não manuais e por norma mais exigentes em termos de qualificações, não tem sido tão frequentemente estudado. Os poucos resultados obtidos sugerem, no entanto, que podem existir efeitos diferenciados consoante o tipo de crime considerado (Kawasaki, 2019; Pusch e Holtfreter, 2021).
O efeito da densidade populacional, nomeadamente em regiões urbanas, também é há muito teorizado e estudado. Alguns resultados sugerem que níveis elevados de concentração populacional, em regiões urbanas, facilitam a prática de crimes, em particular contra a propriedade. No entanto, outros resultados sugerem que existe um efeito nulo ou quase nulo. Por outro lado, continuam a ser pouco claros os efeitos sobre os crimes contra as pessoas (Cohen e Felson, 1979; Felson e Clarke, 1998; Lee, 2000; Cabrera-Barona, Jimenez e Melo, 2019; Corcoran e Stark, 2020).
O efeito de níveis mais elevados de rendimento sobre melhores condições de vida e de saúde, e destas sobre menores taxas de natalidade, maiores esperanças médias de vida e um envelhecimento gradual da população, também é há muito teorizado e estudado. Os resultados continuam, neste caso, também a ser pouco esclarecedores, sendo os efeitos frequentemente diferenciados consoante o tipo de crime que é analisado (Nivette, 2011; McCall e outros, 2013; Corcoran e Stark, 2020; Mitra, Abedin e Sen, 2023).
A partir dos anos 70 do século XX as atenções começaram a focalizar-se também nos potenciais efeitos do aumento da incidência do consumo de drogas, quer sobre os crimes contra a propriedade, quer sobre os crimes contra as pessoas. Os primeiros resultados sugeriram existir um efeito muito significativo, em particular sobre os crimes contra a propriedade. Estudos posteriores não têm obtido resultados tão esclarecedores quanto ao efeito de uma maior ou menor incidência de consumos de drogas (Bennett, Holloway e Farrington, 2008; Hughes e Stevens, 2010).
Nas últimas décadas, o aumento da imigração e os seus possíveis efeitos sobre a criminalidade começaram também a concentrar atenções. Os resultados dos estudos realizados continuam a apontar para efeitos contraditórios, em larga medida porque aparentemente muito dependentes das variáveis e indicadores que são utilizados para caraterizar e medir as relações entre imigração e crime (Mariani e Mercier, 2021; Boateng, Pryce e Chenane, 2021).
Modelo de análise
O modelo de análise assume, como pressuposto teórico, que variações nas variáveis independentes rendimento, desigualdade na distribuição do rendimento, privação material severa, privação relativa, qualificações académicas, tipo de profissão, urbanização, idade média da população, incidência de consumo de drogas e imigração explicam parte das variações nos crimes que são registados em cada país (figura 1).
Tendo em atenção que a literatura tem identificado efeitos diferenciados destas variáveis, por tipos de crimes, o modelo foi utilizado para analisar as variações de 11 grupos de crimes, cada grupo integrando crimes que possuem entre si caraterísticas semelhantes, nomeadamente no que respeita ao seu objeto, ou alvo, principal: crimes contra a vida e a integridade física, crimes contra a liberdade pessoal, crimes contra a honra, crimes contra a propriedade, crimes de condução, crimes contra o património em geral, crimes de perigo comum, crimes de falsificação, crimes fiscais, crimes contra o estado e crimes relativos a estupefacientes.
Metodologia
Para este estudo empírico, não experimental e correlacional, optou-se por utilizar uma metodologia quantitativa. Na seleção das variáveis foi assumido que a necessidade de reduzir a complexidade de um contexto nacional a um conjunto restrito de variáveis tem sempre, como efeito inevitável, uma perda de informação, quer de natureza quantitativa, quer de natureza qualitativa. Uma inevitável perda de informação foi também assumida como um efeito da seleção dos indicadores através dos quais foram medidas as variáveis incluídas no modelo de análise. O modelo foi utilizado para analisar o caso português no período compreendido entre 2001 e 2022 (n = 20).
Medidas
Para medir a variável dependente foi utilizado o número de crimes anualmente registados pelas polícias e entidades de apoio à investigação. Não correspondendo ao total de crimes que são anualmente praticados num país, os crimes registados pelas polícias e entidades de apoio à investigação constituem, na ausência de inquéritos de vitimação efetuados regularmente, o único indicador disponível para medir a criminalidade, sendo por este motivo o mais frequentemente utilizado em estudos similares (Maguire e McVie, 2017). A variação da população residente foi acautelada através da utilização de crimes registados por cem residentes. Os dados foram obtidos através do Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça.
Para medir a variável independente rendimento foi utilizado o somatório do uso final de bens e de serviços, excluindo os consumos intermédios, menos a importação de bens e de serviços (produto interno bruto). O produto interno bruto é um dos indicadores que permitem medir o rendimento gerado anualmente num país e é frequentemente utilizado em estudos similares (Ouimet, 2012). A variação da população residente e da inflação foram acauteladas através da utilização do produto interno bruto por residente a preços reais (em euros). Os dados foram obtidos através do Eurostat.
Para medir a variável independente privação material severa foi utilizado o número de residentes que não consegue assegurar quatro ou mais de quatro das seguintes nove condições: pagar a renda ou a prestação da casa ou as faturas de água, gás e eletricidade; manter a casa adequadamente aquecida; fazer face a despesas inesperadas; adquirir regularmente carne e outras proteínas; fazer férias, ter uma televisão; ter uma máquina de lavar roupa; ter um carro; ter um telefone. Esta variável e este indicador não têm sido muito utilizados em estudos similares, sendo mais usual a opção pela variável privação relativa (Ouimet, 2012). Foi incluída no modelo por traduzir melhor situações limite de privação material. A variação da população residente foi acautelada através da utilização da percentagem na mesma. Os dados foram obtidos através do Eurostat.
Para medir a variável independente privação relativa foi utilizado o número de residentes em risco de pobreza, ou seja, que dispõe de um rendimento disponível abaixo de 60% do rendimento nacional disponível, depois de efetuadas transferências sociais. Nestas transferências incluem-se subsídios de desemprego, de doença ou de invalidez, subsídios de renda e outros subsídios à família e às crianças, bem como quaisquer outros subsídios assegurados pela segurança social. O risco de pobreza é frequentemente utilizado em estudos similares (Rudolph e Starke, 2020). A variação da população residente foi acautelada através da utilização da percentagem na mesma. Os dados foram obtidos através da Pordata e do Eurostat.
Para medir a variável independente desigualdade na distribuição do rendimento foi utilizado o coeficiente de Gini. Este coeficiente é o indicador mais frequentemente utilizado em estudos similares (Rudolph e Starke, 2020) e mede os desvios da distribuição do rendimento, num país, em relação a uma distribuição perfeitamente igualitária e varia entre 0 (distribuição perfeita) e 100 (distribuição totalmente inigualitária em que apenas uma pessoa detém todo o rendimento do país). Os dados foram obtidos através do Eurostat.
Para medir a variável independente qualificações académicas foi utilizado o número de residentes, com 15 a 64 anos, com um nível ISCED igual ou superior a 5, ou seja, com qualificações académicas de nível superior. Estudos similares têm optado mais por escalões de qualificações (Bell, Costa e Machin, 2022). A opção por este indicador foi motivada pela sua maior adequação ao tipo de análise dos dados que iria ser efetuado. A variação da população residente foi acautelada através da utilização de percentagens. Os dados foram obtidos através do Eurostat.
Para medir a variável independente tipo de profissão foi utilizado o número de residentes a exercer profissões manuais e/ou não qualificadas: agricultores e trabalhadores qualificados da agricultura, da pesca e da floresta, trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices, operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da montagem e pessoal administrativo, trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança e vendedores e trabalhadores não qualificados. Este indicador não é muito utilizado em estudos similares porque a maioria dos mesmos tem tido como objeto a criminalidade de colarinho branco (Kawasaki, 2019). A variação da população residente foi acautelada através da utilização de percentagens. Os dados foram obtidos através da Pordata.
Para medir a variável independente idade média foi utilizado indicador com a mesma designação. Este indicador não tem sido muito utilizado em estudos similares, em que se tem dado preferência a escalões etários (Mitra, Abedin e Sen, 2023). A opção por este indicador foi motivada pela sua maior adequação ao tipo de análise estatística que iria ser efetuado. Os dados foram obtidos através do Eurostat.
Para medir a variável independente urbanização foi utilizado o número de habitantes presente em regiões em que mais de 80% da população reside em clusters com uma densidade populacional de pelo menos 300 habitantes e com pelo menos 5000 pessoas. O grau de urbanização tem sido medido através de diferentes indicadores (Clement, Pino e Blaustein, 2019). A opção por este indicador foi motivada pelo facto de ele conjugar densidade e dimensão do lugar. A variação da população residente foi acautelada através da utilização de percentagens. Os dados foram obtidos através do Eurostat.
Para medir a variável independente uso de drogas foi utilizado o número de utentes em tratamento por problemas relacionados com o uso de drogas. Estudos similares têm recorrido a diferentes tipos de indicadores (Colman e Vandam, 2009) dada a raridade e irregularidade com que são realizados inquéritos epidemiológicos representativos da população. Não são conhecidos estudos similares que tenham utilizado este indicador. A opção pelo mesmo foi motivada pelo facto de ele fornecer o número anual de residentes que procuram apoio para problemas relacionados com o uso de drogas. A variação da população residente foi acautelada através da utilização de percentagens. Os dados foram obtidos através dos relatórios anuais do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD).
Para medir a variável independente imigração foi utilizado o número de residentes, a 1 de janeiro, identificado como tendo nacionalidade estrangeira. Este indicador é frequentemente utlizado em estudos similares (Ousey e Kubrin, 2018). A variação da população residente foi acautelada através da utilização da percentagem na mesma. Os dados foram obtidos através do Eurostat.
Análise dos dados
Dado o número de variáveis independentes optou-se pela análise de regressão múltipla e pelo método stepwise. A análise de regressão múltipla é adequada quando existe uma relação de tipo linear entre as variáveis independentes e a variável dependente, valores de multicolinearidade (variance inflation factor) inferiores a 10 entre as variáveis independentes, uma distribuição normal dos resíduos e uma distribuição independente e idêntica dos resíduos (Marôco, 2007). O método stepwise é adequado quando existe um modelo teórico de partida e permite obter uma equação que contém as variáveis independentes que melhor explicam a variação da variável dependente.
Na análise de regressão foram selecionadas as estatísticas estimativas dos coeficientes de regressão, ajuste do modelo e diagnósticos de colinearidade. Foram ainda selecionados o gráfico de dispersão da variável dependente e o gráfico P-P normal de regressão de resíduos padronizados, e optou-se pelo critério probabilidade de F a ser inserido < = 0,050 e probabilidade de F a ser removido > = 0,100, e por excluir os valores omissos por lista.
Os dados foram analisados com o Statistical Package for Social Sciences (SPSS). O modelo de análise foi utilizado para os seguintes grupos de crimes: crimes contra a propriedade, crimes contra a vida e a integridade física, crimes de condução, crimes contra o património em geral, crimes contra a liberdade pessoal, crimes de perigo comum, crimes de falsificação, crimes fiscais, crimes contra a honra, crimes contra o estado e crimes relativos a estupefacientes.
Sempre que a análise de regressão resultou em mais do que uma equação foi selecionada e apresentada apenas a equação com valores F e t mais elevados e com p < = 0,05, e após verificação que o gráfico P-P não dava indicação que contrariasse o pressuposto da normalidade dos resíduos e que o gráfico de dispersão dos resíduos em função dos valores preditos estandardizados não mostrava uma tendência não aleatória.
Resultados
O total de crimes registados em Portugal, por ano e por cem residentes, aumentou entre 2002 e 2008, desceu entre 2009 e 2014 e manteve-se relativamente estável entre 2015 e 2022. O valor máximo, 4,09 crimes registados por cem residentes, ocorreu em 2008. Os valores mínimos ocorreram em 2020 (2,90) e em 2021 (2,93), anos marcados pela pandemia de SARS-CoV-2 e por vários confinamentos, domiciliários ou geográficos, de uma parte da população (figura 2).
Os 11 grupos de crimes incluídos na análise contribuíram para 94,9% do total dos crimes registados entre 2001 e 2022. Destacam-se os crimes contra a propriedade por terem contribuído para 48,8% do total dos crimes registados. Os crimes contra a propriedade e os crimes contra a vida e integridade física contribuíram para quase dois terços do total dos crimes registados (quadro 1).
A maioria dos grupos de crimes analisados diminuiu entre a primeira e a segunda década deste século, destacando-se a diminuição dos crimes contra a propriedade. Entre os quatro grupos de crimes que registaram aumentos destacam-se os crimes contra o património em geral (quadro 2).1
Para a diminuição dos crimes contra a propriedade contribuiu a diminuição dos crimes de furto. Para o aumento dos crimes contra o património em geral contribuiu o aumento dos crimes de burla, em particular dos crimes de burla informática e nas comunicações. Para a diminuição dos crimes contra a vida e integridade física contribuiu a diminuição dos crimes de ofensa à integridade física simples. Existe, no entanto, neste caso, a probabilidade de parte dos crimes de ofensa à integridade física simples, cometidos no âmbito de relações conjugais ou similares, ter começado a ser registada como crime de violência doméstica a partir de 2007, ano em que o crime de violência doméstica foi autonomizado no código penal português. Fenómeno semelhante poderá ter ocorrido no caso dos crimes de difamação, calúnia, injúria, ameaça e coação (anexo 1).
No que respeita às variáveis independentes, destaca-se o aumento da percentagem da população residente com qualificações académicas de nível superior e com nacionalidade estrangeira. Inversamente, destaca-se a diminuição da percentagem da população residente a exercer profissões manuais e/ou não qualificadas e da percentagem da população residente em situação de privação material severa (quadro 3).
Fontes: Eurostat, PORDATA e Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD)
De acordo com os resultados da análise de regressão linear múltipla, a variação da percentagem da população residente com qualificações académicas de nível superior explica 86,2% da variação dos crimes contra a propriedade registados entre 2001 e 2022 (quadro 4).
A variação da percentagem da população residente em zonas urbanas e a variação do produto interno bruto por residente explicam 95,9% da variação dos crimes contra o património em geral registados entre 2001 e 2022 (quadro 5).
A variação da percentagem da população residente com nacionalidade estrangeira e a variação da percentagem da população residente com qualificações académicas de nível superior explicam 89,3% da variação dos crimes registados contra a vida e a integridade física (quadro 6).
A variação da percentagem da população residente com qualificações académicas de nível superior explica 77,7% da variação dos crimes de condução registados entre 2001 e 2022 (quadro 7).
A variação da percentagem da população residente a exercer profissões manuais e/ou não qualificadas explica 87,7% da variação dos crimes contra a liberdade pessoal registados entre 2001 e 2022 (quadro 8).
A variação do índice de desigualdade na distribuição do rendimento e a variação do produto interno bruto por residente explicam 91,8% da variação dos crimes contra a honra registados entre 2001 e 2022 (quadro 9).
A variação da idade média da população explica 62,7% da variação dos crimes fiscais registados entre 2001 e 2022 (quadro 10).
A variação da idade média da população explica 52,1% da variação dos crimes relacionados com estupefacientes registados entre 2001 e 2022 (quadro 11).
A variação do produto interno bruto por residente e a variação da desigualdade na distribuição do rendimento explicam 61,1% da variação dos crimes contra o estado registados entre 2001 e 2022 (quadro 12).
No caso dos crimes de perigo e de falsificação nenhuma variável independente respeitou os pressupostos para ser incluída numa equação.
Discussão
Os resultados obtidos mostram que as qualificações académicas, o produto interno bruto por residente, a idade média da população, as profissões, a urbanização, a desigualdade na distribuição do rendimento e a imigração tiveram um efeito sobre os crimes registados em Portugal no período compreendido entre 2001 e 2022. O efeito destas variáveis não foi, no entanto, semelhante em todos os grupos de crimes analisados.
A variação da percentagem da população com qualificações académicas superiores explica 86,2% da variação dos crimes contra a propriedade registados entre 2001 e 2022, efeito que vai no sentido do apurado noutros estudos (Hjalmarsson e Lochner, 2012; Bell, Costa e Machin, 2022). A variação da percentagem da população com qualificações académicas superiores também explica 77,7% da variação dos crimes de condução registados entre 2001 e 2022. O efeito das qualificações sobre crimes de condução não tem sido frequentemente estudado, mas pelo menos dois estudos encontraram uma relação entre mais qualificações e menos práticas perigosas de condução (Tabibi e Pfeffer, 2015; Taubman-Ben-Ari, Eherenfreund-Hager e Prato, 2016).
Para além de explicar parte das variações dos crimes contra a propriedade e de condução registados, a variação da percentagem da população com qualificações académicas superiores explica, em conjunto com a variação da percentagem de residentes com nacionalidade estrangeira, 89,3% da variação dos crimes contra a vida e a integridade física registados entre 2001 e 2022. O efeito das qualificações sobre crimes contra a vida e integridade física vai no sentido do que tem sido encontrado noutros estudos (Bell, Costa e Machin, 2022). O efeito da imigração também (Ousey e Kubrin, 2018).
A variação do produto interno bruto por residente e a variação da desigualdade na distribuição do rendimento explicam 91,8% da variação dos crimes contra a honra registados entre 2001 e 2022. O efeito da desigualdade na distribuição do rendimento vai no sentido do que tem sido encontrado noutros estudos (Anser e outros, 2020). O efeito do produto interno bruto por residente não. A relação entre maior produto interno bruto por residente e mais crimes contra a honra é teórica e empiricamente inesperada. Como os dados recolhidos não permitem avançar nem sustentar eventuais hipóteses explicativas é aconselhável esperar por mais estudos que permitam perceber melhor esta relação.
A variação do produto interno bruto por residente e a variação da desigualdade na distribuição do rendimento também explicam 32,7% da variação dos crimes contra o estado que foram registados entre 2001 e 2022. Os efeitos do rendimento e da desigualdade na distribuição do mesmo sobre comportamentos de natureza mais violenta vão, dado que a maioria dos crimes contra o estado foram crimes de resistência e coação sobre funcionário e crimes de desobediência, no sentido do que tem sido encontrado noutros estudos (Coccia, 2017). A variação do produto interno bruto por residente explica ainda, em conjugação com a variação da percentagem da população residente em áreas urbanas, 95,9% da variação dos crimes contra o património em geral registados entre 2001 e 2022. O efeito do produto interno bruto vai no sentido do que tem sido encontrado noutros estudos (Omidi, Min e Omidi, 2017) e uma relação entre maior grau de urbanização e mais crimes de burla foi encontrada em pelo menos um estudo (Chen e outros, 2021).
A variação da idade média da população residente explica 62,7% da variação dos crimes fiscais registados entre 2001 e 2022. Este efeito vai no sentido do que tem sido encontrado em estudos que têm analisado a criminalidade de colarinho branco (Alalehto, 2015). A variação da idade média da população residente explica ainda 52,1% da variação dos crimes relacionados com estupefacientes registados entre 2001 e 2022. Este efeito contraria o que tem sido encontrado noutros estudos (Amundsen e Reid, 2014). Uma explicação possível reside na alteração dos tipos de consumo e dos efeitos que a idade tem sobre essa alteração. Outra explicação possível reside no facto de estes crimes enquadrarem os designados crimes sem vítimas (Versteegh e Hesseling, 2022), ou seja, crimes cuja deteção e registo estão muito dependentes de uma maior ou menor pró-atividade das polícias e entidades de apoio à investigação.
A variação da percentagem da população residente a desempenhar profissões manuais e/ou pouco qualificadas explica 87,7% da variação dos crimes contra a liberdade pessoal registados entre 2001 e 2022. O efeito do exercício de profissões manuais e/ou pouco qualificadas sobre crimes que envolvem violência interpessoal vai no sentido do que tem sido encontrado noutros estudos (Poulos, 2007).
A variação dos crimes de perigo registados entre 2001 e 2022 não é explicável por nenhuma das variáveis independentes incluídas no modelo de análise. O mesmo se verifica para a variação dos crimes de falsificação. No caso dos crimes de perigo é possível, dado o peso dos crimes de incêndio, nomeadamente florestais, neste grupo de crimes, que variações noutras variáveis, como temperatura, humidade e vento, expliquem melhor a variação que ocorreu entre 2001 e 2022 (Meira Castro e outros, 2020). No caso dos crimes de falsificação os dados disponíveis não permitem avançar qualquer hipótese explicativa.
As variáveis privação material severa, privação relativa e incidência do uso de drogas foram excluídas de todas as equações finais. No caso do uso de drogas admite-se que o indicador selecionado não tenha sido o mais adequado para observar e medir a variação da incidência do uso de drogas na população. A seleção de um indicador adequado tem sido um problema recorrente nos estudos que integram esta variável nos seus modelos de análise. No caso da privação, os indicadores selecionados foram os normalmente utilizados. Os resultados obtidos podem assim apenas significar que, no período analisado, as variações registadas nestas duas variáveis independentes não tiveram um efeito significativo sobre as variações nos grupos de crimes considerados.
Conclusões
Os resultados obtidos confirmam que os efeitos das variáveis macrossociais e macroeconómicas estudadas, sobre a criminalidade, não podem ser ignorados. Destaca-se, no caso deste estudo, o efeito das qualificações académicas de nível superior sobre os crimes contra a propriedade e contra a vida e integridade física, crimes que corresponderam a quase dois terços do total de crimes registados em Portugal entre 2001 e 2022. O facto de maiores qualificações académicas potenciarem a probabilidade de acesso a rendimentos mais elevados e mais estáveis na economia formal, e legal, e tal poder reduzir a probabilidade de necessidade de recurso à prática de crimes é há muito teorizado e tem sido empiricamente confirmado por alguns estudos similares. A probabilidade de maiores investimentos na educação da população terem importantes efeitos sobre a prevenção do crime começa a ser difícil de ignorar. Destacam-se, também, os efeitos do produto interno bruto por residente, da idade média da população, das profissões, da urbanização, da desigualdade na distribuição do rendimento e da imigração.
Pesquisas que continuem a ter como objeto de estudo os efeitos destas e de outras variáveis macrossociais e macroeconómicas sobre o crime são fundamentais para a obtenção de evidências cada vez mais robustas e úteis para efeitos da prevenção do crime. A inclusão de mais variáveis e a utilização de métodos diferentes de recolha e de análise de dados é fundamental, uma vez que os resultados agora obtidos e apresentados só podem e devem ser lidos em função do modelo e da metodologia de recolha e de análise dos dados que foram selecionados.
Estudos futuros similares são também importantes para confirmar, ou infirmar, o que pode estar a ser o início de uma transformação estrutural da criminalidade. Isto é, o gradual desaparecimento de crimes que exigem destreza manual, como é o caso dos crimes de furto e de roubo, e a gradual emergência de crimes que apenas exigem conhecimentos e competências digitais, como é o caso dos crimes de burla cometidos através do recurso a tecnologias informáticas. A confirmar-se esta transformação, importará também esclarecer que efeitos têm, sobre a mesma, um aumento das qualificações académicas e uma redução do peso de profissões manuais e/ou pouco qualificadas.
Fontes dos dados
Estatísticas da Justiça (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt), acedida entre maio e junho de 2023.
Eurostat data base (https://ec.europa.eu/eurostat/data/database), acedida entre maio e junho de 2023.
Pordata (https://www.pordata.pt/), acedida entre maio e junho de 2023.
Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), Relatório Anual (https://www.sicad.pt/PT/Publicacoes/Paginas/default.aspx), relatórios acedidos em junho de 2023.