Introdução
A discussão sobre o anticânone chegou recentemente às universidades portuguesas e aos cursos de sociologia. Chega, portanto, com considerável atraso quando comparado com o contexto anglo-saxónico. É facto que Coimbra é desde há muito um bastião daquilo que se convencionou chamar “epistemologias do sul”. Mas mesmo aí, um olhar rápido pelos programas e bibliografias das cadeiras de teoria sociológica clássica rapidamente constata que os autores nelas incluídos continuam a ser os consagrados, ou seja, os canónicos.
Se posso pedir a indulgência do leitor, recorro aqui a um episódio que serve de vinheta à expansão do fenómeno. Numa discussão sobre o programa de Teorias Sociológicas Clássicas uma das colegas sugeriu a introdução de W. E. B Du Bois no programa. Em princípio, não há qualquer problema em debater a sua introdução, sobretudo se os motivos invocados forem substantiva e teoricamente elucidados. O que constitui motivo de interesse e reflexão foi a razão invocada: Du Bois era importante porque havia muitos alunos africanos que, presumivelmente, não se identificariam com o grupo de autores que geralmente são ensinados como os “clássicos” da sociologia. E assim, também presumivelmente, identificar-se-iam com Du Bois, mesmo sendo este norte-americano e do princípio do século passado.
A discussão entre os defensores do cânone e os seus críticos arregimenta nomes sonantes dos dois lados da trincheira. Sem preocupação de exaustividade, do lado canónico, encontramos atualmente nomes como os de Collins (1997), Alexander (1987), Mouzelis (1997), Turner (2013); mais poderiam ser acrescentados, mas estes são os que estando vivos fizeram uma defesa explícita do cânone sociológico. Do outro lado, seguindo o mesmo princípio dos mais veementes na sua crítica, encontramos Connell (2007), Bhambra (2007), Smith (1987), Alatas e Sinha (2017) e Adams e Sidye (2001). Repito, quer de um lado quer do outro poder-se-iam acrescentar contributos para este debate. Basta lembrar que podemos retraçar as origens da implantação do cânone a autores como Parsons ou Merton. Porém, e como referido, a lista apresentada compreende somente alguns dos mais significativos, quer na sua defesa quer na sua crítica.1
Por outro lado, resumir a natureza e alcance das suas posições não é tarefa fácil. Contudo, alguns pontos são reiterados e através deles podemos construir um ideal-tipo dos dois lados da contenda. Começando pelos críticos, estes apontam o seu eurocentrismo e viés ocidentilazidor, i.e., a negligência de vozes não ocidentais (videAlatas e Sinha, 2017); o patriarcalismo latente nos autores clássicos e, consequentemente, o silenciamento das questões de género e das vozes femininas (videSmith, 1987; Alatas e Sinha, 2017); a associação entre os clássicos e as ideologias e práticas imperialistas (videConnell, 2007; Bhambra, 2007). Do lado dos defensores do cânone podemos tentar o mesmo exercício. Embora Stinchcombe (1982) nos tenha facilitado a tarefa ao elencar com precisão as funções do cânone - Alexander (1987) faz o mesmo, com o mesmo espírito funcionalista - gostaria de sugerir que as razões invocadas podem ser reduzidas ao seguinte: (a) transmitem os elementos basilares da sociologia, (b) permitem identificar e reconhecer numa linguagem comum uma comunidade científica (a dos sociólogos), (c) quando entendidos no seu contexto histórico, os seus contributos continuam relevantes para os problemas sociais atuais, (d) autorizam a sinalização de tradições, e finalmente, (e) os trabalhos associados ao cânone constituem exemplos excepcionais de como construir uma teoria sociológica.
Uma característica notória do debate, é que do lado “canónico” encontram-se os especialistas em teoria sociológica, aqueles que foram consagrados justamente em virtude das suas exegeses dos clássicos e seus epígonos. O mesmo não pode ser dito do lado “anticanónico”, onde encontramos um pot-pourri de tendências que falam sobretudo de dentro das áreas da sua especialidade, sejam os estudos de género, de raça ou pós-coloniais.
Para dissipar dúvidas quanto às intenções do texto, a crítica aqui sugerida não pretende seguir os debates epistemológicos ou ontológicos sobre a condição científica das obras aqui analisadas. Esse debate, do domínio da filosofia da ciência, não é a via aqui escolhida. Até porque em matéria de testabilidade tanto uns como outros apresentam as suas fragilidades. Depois, porque nos situamos numa vertente pós-positivista que insiste na importância das proposições teóricas subjacentes, ao invés da composição de específicas hipóteses de investigação.
O artigo começa por se debruçar sobre a polémica académica entre as duas posições. Depois, analisa algumas obras anticanónicas e sugere que existem três facilitismos na forma como são defendidas. Finalmente, propõe três razões pragmáticas pelas quais os canónicos pertencem legitimamente ao cânone.
Canónicos contra anticanónicos
Podemos retraçar o ápice da polémica em torno do cânone e da sua validade à troca entre Connell (1997) e Collins (1997) e, posteriormente, à réplica de Burawoy (2021) no Journal of Classical Sociological Theory. Nesse primeiro simpósio, Connell, na esteira da sua noção de Southern Theory, criticava a sociologia clássica por ser imperialista. Connell contrapõe uma ciência social “metropolitana” a uma teoria do Sul (onde coloca, quase caricaturalmente, a Austrália). Contudo, a teoria metropolitana, entendida pelo prisma de Connell, assemelha-se mais ao olhar da hegemonia anglo-saxónica sobre todos os outros centros de difusão de ciência e pensamento do que a um confronto metrópole / periferia / colónia. Podemos perguntar-nos, por exemplo, em que medida a sociologia produzida em Portugal é metropolitana por relação ao Brasil ou ao México. A resposta, como qualquer pessoa com conhecimento da produção em ciência social nesses dois contextos poderá asseverar, teria que ser negativa.
Collins organiza a sua resposta em torno de uma questão que deveria ser central a este debate, mas que raramente é esclarecida: o que é afinal a canonicidade de determinados autores? Como diz Collins (1997) em relação à crítica de Connell - e podemos estender o argumento às críticas do cânone da mesma natureza - esta denuncia a canonicidade, contudo nunca chega a explicar o porquê da mesma. Nenhum julgamento sobre o valor intrínseco das suas obras é colocado à discussão. Nenhuma reflexão sobre o seu real contributo para a acumulação do conhecimento ou extensão da compreensão é considerada obrigatória.
No caso de Burawoy (2021), a sua resposta é contundente: não somente Connell faz uso das categorias e modelos conceptuais dos canónicos que ela pretende desalojar - Marx, Durkheim e Weber - como inventa uma entidade abstracta designada por “Sul” a quem atribui um silenciamento colonial. Ora, diz Burawoy, não apenas nos devemos interrogar sobre as funções que esta arbitrariedade geográfica das categorias “norte” e “sul” encerram, como devemos colocar sérias reservas sobre a redução do cânone às suas condições de produção. A última emerge às custas da rejeição de uma análise das teorias substantivas; ou seja, nas palavras do autor, “o texto é reduzido ao contexto” (ibidem, p. 248).
Não obstante, creio que a resposta de Burawoy se encontra incompleta. O teste determinante não deve ser o diálogo com a tradição sociológica, mas sim com o que se encontra no seu futuro. A forma como devemos interpelar as obras apresentadas como anticanónicas não deve ser como estas partilham ou interrogam os quadros de pensamento dos clássicos, mas ao invés o que é que estas legaram para o futuro.
Aliás, na seleção que Connell propõe para ilustrar a sua “teoria do sul” compreende-se que autores e obras estejam de alguma maneira latente ligados por posições alternativas à hegemonia eurocêntrica. E o critério de escolha para esta alternativa parece ter pouco mais a sustentá-la. Porque a questão fundamental que deve ser endereçada aos anticanónicos não é se eles devem ou não criticar o cânone; de forma mais circunscrita ou abrangente, qualquer um dos canónicos já foi sujeito a inúmeras críticas e reformulações. Ao invés, a questão crucial deve ser qual a justificação para as escolhas propostas e em que medida substituem estas a riqueza das obras canónicas? Analisaremos em maior detalhe as escolhas de Connell na próxima secção.
Em simultâneo, Mouzelis (1997) respondia ao ataque frontal de Parker (1997) contra o cânone e a acusação segundo a qual esse mesmo cânone “não refletiria as experiências dos alunos”. A coincidência do ano de 1997 não é um mero acaso. O final da década de 90 assinala um aumento assinalável da internacionalização da oferta educativa anglo-saxónica e, como mostra Mouzelis na sua resposta, as procuras decorrentes dessa mesma internacionalização tinham que ser acomodadas num sistema de neoliberalização da oferta académica. Todavia, as respostas de Collins, Mouzelis e Burawoy assumem toda a pertinência no contexto português e podem ser utilizadas, com benefícios, na discussão interna.
Neste texto pretendo contestar as ideias do anticânone invertendo os termos da sua crítica. Porém, antes de explicitar este argumento proponho investigar o cerne do debate do anticanónico através de algumas obras que se tornaram emblemáticas desta corrente, tais como a de Connell (2007) e de Bhambra (2007), ou que se propõem a uma revisão do cânone sob o signo da injunção de “ir para além do cânone” (Alatas e Sinha, 2017). Segue-se uma apreciação de algumas aporias que, creio, podem ser identificadas no interior desta retórica. Tomo a liberdade de as designar por “facilitismos” e procuro escalpelizá-los mais à frente. Finalmente, sugiro um conjunto de razões pragmáticas para tornar verosímeis as incorporações no cânone, mesmo tendo em consideração que este é tantas vezes o resultado de lutas dentro do campo, como aquelas a que nos encontramos a assistir.
As antinomias da razão anti-imperialista
Os livros que aqui trago à colação são significativos porque concentram grande parte da retórica anticanónica e, simultaneamente, permitem investigar, seguindo uma hermenêutica crítica, as suas fragilidades e aporias. Mas mais importante, é através das suas propostas alternativas, como pretendo mostrar, que devemos abordar o cerne da sua crítica e não quanto à premissa, no geral correta, segundo a qual os canónicos seriam eurocêntricos, patriarcais e heteronormativos. O que está errado é a implicação lógica de que a sua canonicidade decorreria justamente desse estatuto. É por isso através do cotejo com as propostas alternativas que devemos ajuizar da força heurística destas.
O livro de Bhambra (2007) Rethinking Modernity - Postcolonialism and the Sociological Imagination apresenta uma tese relativamente simples. A sociologia clássica foi marcada pelo seu eurocentrismo e por isso o cânone reflete apenas as experiências dos europeus silenciando os contributos dos colonizados. Em rigor, não existe uma grande diferença entre esta postulação e o modelo dos subaltern studies, com os quais é difícil de discordar. A dívida aos subaltern studies é reconhecida por Bhambra. É interessante notar que Bhambra, que cita abundantemente Chakrabarty, Guha ou Chateerjee, não refere uma única vez E. P.Thompson (1968 [1963]). Este último, como é conhecido, deixou a sua marca ao propor uma nova história from the bottom. A tese de Thompson confunde-se facilmente com a ideia central dos subaltern studies ao colocar a seguinte interrogação: que contributos deram as classes populares para a afirmação da democracia e liberalismo ingleses? Guha (1982) e Chakrabarty (2000), por seu turno, reconhecem amplamente a herança de uma nova historiografia marxista britânica para o impulsionar dos subaltern studies.
Mas Bhambra opta por uma interpretação minimalista, essa mesma interpretação que foi adotada por muito do que hoje se afirma como anticanónico. Como diz a autora, categorias e factos são mutuamente constitutivos; logo, se as categorias são eurocêntricas, então os factos só podem ser lidos eurocentricamente.
E quais são as categorias que Bhambra considera dignas de revisão? Podemos enunciá-las recorrendo aos dois capítulos nos quais a autora examina (criticamente) as propostas sociológicas no início da sua tradição: progresso, ciência, evolucionismo (a teoria dos estádios históricos - que marca a compreensão da relação entre história e ciências sociais), o silêncio sobre a escravatura, o estado-nação, e a racionalidade. A crítica mais genérica replica as críticas ao Iluminismo e nesse aspeto não traz nada de fundamentalmente novo. Por exemplo, Bhambra reitera a crítica à ideia de progresso e de evolução através de estádios históricos. Ora essa crítica é o cerne da sociologia histórica de Elias e, em grande medida, o que lhe permitiu rejeitar as abstrações neo-evolucionistas dos funcionalistas.
Convém também trazer à colação o que diz Mouzelis (1999) sobre a modernidade e o complexo ideológico da sua ocidentalização. Desde logo, aceitando que os elementos que se encontram na modernidade ocidental podem também ser encontrados em outras geografias e histórias; ou seja, há um conjunto de modernidades alternativas (Gaonkar, 2001; ver também Eisenstadt, 2000, e a ideia de múltiplas modernidades) que não se submetem necessariamente a um princípio constitutivo único. Nesse sentido, conclui que “é possível conceptualizar a modernidade de forma a evitar o eurocentrismo e o tipo de interpretação ultrarrelativista […]” (ibidem, p. 156) que vê a modernidade como mero substituto ideológico para o imperialismo cultural ocidental. Acresce que da perspetiva propriamente conceptual e categorial, como diz Scott (2011: 7), houve uma época formativa da sociologia onde os seus princípios fundamentais emergiram. Esses princípios são compostos por uma rede conceptual que liga (mas não univocamente) a comunidade dos sociólogos num universo de entendimento comum; mesmo que as suas teorias particulares conflituem.
Neste contexto, alguns elementos da vida social são verdadeiros universais e as teorias que procuram explicá-los possuem uma relevância duradoura. Scott identifica oito princípios que subjazem aos conceitos sociológicos que permitem uma divisão disciplinar. São eles: cultura, natureza, sistema, espaço-tempo, estrutura, ação, mente e desenvolvimento: “O conjunto de ferramentas essenciais para concetualizar os fenómenos sociais” (ibidem, p. 10).
No conjunto elencado por Scott, nenhum dos conceitos fundamentais que se aproximam da universalidade coincidem com a noção de género ou raça. A razão, parece-me ser pacífico dizê-lo, prende-se com o estatuto de explanandum dessas mesmas categorias.
Apesar disso, um manual de teoria sociológica, como o de Adams e Sydie (2001) coloca todos os autores - clássicos e contemporâneos - perante três divisões conceptuais fundamentais: a classe, o género e a raça. Saliente-se que o livro de Adams e Sydie é extremamente completo no tratamento que faz das propostas centrais dos autores. Contudo, possui esta curiosidade: no final de cada capítulo é-nos mostrado como se comportaram os teóricos de renome face à interpelação das categorias de classe, género e raça. Não sendo de todo despicienda a interpelação, levanta, simultaneamente, questões relevantes.
Desde logo, se faz sentido aferir a proximidade dos autores a estas categorias conceptuais pelos comentários que a elas dedicaram. Veja-se por exemplo como nos é apresentado Durkheim no que respeita ao quesito classe, género e raça:
Durkheim tinha pouco a dizer sobre a raça. Embora não tenha abordado diretamente a questão da classe, a sua discussão sobre a sociedade industrial moderna é relevante para a questão da classe social. Os seus comentários sobre o género são numerosos e dispersos pela sua obra. (ibidem, p. 107).2
Por seu turno, Marx sai profundamente fragilizado quando confrontado com a escassez de alusões e preocupações em relação à raça e ao género; mas Engels menos, visto ter dedicado uma parte substancial de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado a discutir o lugar dos géneros no seio dessa instituição (ibidem, p. 137). E quanto a Weber, as suas posições sobre o lugar social da mulher, influenciadas em grande medida pela sua mulher Marianne, são contrastadas com o seu comportamento (ibidem, p. 190).
Creio que há uma postura equivocada nesta maneira de apresentar os clássicos (ou qualquer outro autor). Existe uma diferença substantiva entre introduzir um tema e este conter uma categoria estruturante no nosso esquema conceptual. Confunde-se assim comentário com teoria.
Sendo certo que Durkheim não fala de raça, faria sentido acusar Du Bois de pouco se interessar por religião e rituais? Não, porque estas últimas não constituem categorias centrais do seu modelo conceptual e teórico. Julgo mesmo que esta é uma das virtudes do apregoado pluriparadigmatismo sociológico: a capacidade que este confere de fazer combinações decorrentes de quadros e tradições teóricas distintas.
Regressemos a Durkheim e ao seu tratamento das categorias de género. A obra deste autor, como aliás mostram Adams e Sydie (2001), contém inúmeras referências aos lugares sociais diferenciados de homens e mulheres. Possui inclusivamente um pendor tradicionalista e conservador na forma como perspetiva esses mesmos lugares, como também mostram os autores. Porém, a considerarmos uma categoria central no arsenal conceptual de Durkheim, essa seria a família. É através das inúmeras análises que Durkheim lhe dedica, e no papel que esta assume em vários momentos do seu desenvolvimento teórico, que a família, enquanto categoria sociológica faz parte do seu modelo de compreensão do social. Assim, ela surge com destaque nas transformações sociais causadas pela diferenciação social (“De la division du travail social”), a sua condição por vezes periclitante surge como fator explicativo da anomia (“Le suicide), e reemerge em inúmeros ensaios sobre “as formas elementares da família”.3 Contudo, falar dos lugares dos homens e das mulheres na sociedade sua contemporânea não significava, como pretendem Adams e Sidye, ter uma teoria sobre o género. Até porque o género era visto como natural, e não enquanto construção social.
Podemos ser críticos de Durkheim por não ter integrado uma teoria do género, mas é anacrónico confrontá-lo com um problema que de facto e de jure não fazia parte da linguagem sociológica do seu tempo.
Na banca da inquisição, os clássicos são forçados a confessarem as suas lacunas e a pedirem a expiação por não terem reconhecido a realidade ontológica de tais grupos. E se Marx não integrou no seu esquema as candentes questões do género e da raça, é porque está fatalmente incompleto! Porém, a questão que deve obrigatoriamente ser colocada é: incompleto em relação a quê?
Os autores não perdem muito tempo a justificar a escolha das três categorias pelas quais todos autores, dos clássicos aos contemporâneos, são triados. Assumem que é facto adquirido que uma sociologia que não tenha como central o género, a raça e a classe não será digna desse nome. Como é fácil de reconhecer, esta tríade remete para as categoriais primordiais da interseccionalidade, antes que esta expandisse o seu modelo para abarcar qualquer diferença “significativa”. Não exige um grande esforço perceber o que deixa a interseccionalidade de fora, preocupada que está com categorias potencialmente discriminadas; ou como diz Kimberle Crenshaw (1989), “categorias vulneráveis”.
Regressemos a Scott e à sua lista de princípios fundamentais. Nela não se encontra compreendida a tríade interseccional. A razão é simples: elas são categorias a necessitarem de explicação e não os conceitos básicos que formam os princípios explicativos. Vistos por este prisma, Marx, Durkheim, Weber ou Pareto, tornam-se autores bem mais estimulantes do que quando consignados ao julgamento inquisitório da interseccionalidade.
No caso de Connell (2007) como de Alatas e Sinha (2017) a pretensão é “ir para além do cânone”. Para o fazer é preciso demonstrar que houve contributos silenciados que, caso não existisse a estrutura de poder eurocêntrica, teriam direito a aí figurarem.
Entre outros autores, o livro de Connell, salienta a defesa dos poemas Yoruba como fonte de conceitos sociológicos, sustentada primeiramente pelo sociólogo africano Akiwowo. Segundo este, a linguagem destes poemas compreenderia uma constelação de conceitos, estranha à episteme ocidental, que significariam dimensões não eurocêntricas da vida social. Connell está ciente da dificuldade em defender o caráter sociológico das expressões usadas nos poemas Yoruba; desde logo porque remete este para a potencial operacionalidade dos mesmos. Não obstante, concede-lhes um estatuto que objetivamente não merecem. E a questão principal que Connell parece perder de vista (e da mesma forma Akiwowo) é a da adequação entre estatuto conceptual e observacional. Sendo certo que uma linha de pensamento sociológico defende que os conceitos da teoria devem ser entendíveis, e mobilizáveis, pelos agentes em termos das suas interpretações quotidianas dos mundos sociais (Schutz, 1953), o exemplo de Akiwowo recuperado por Connell propõe a inversa. Ou seja, tomar como termos sociológicos a linguagem natural dos grupos. Há uma diferença entre recuperar os termos originais dos agentes para compreender as suas razões subjetivas para agir, e usar estes termos como conceitos sociológicos. Schutz apenas concedia a primeira das hipóteses; a segunda é profundamente antissociológica na medida em, como ele próprio afirma, se trata de “estilos cognitivos” distintos, e no caso da atividade científica, esta exige “colocar entre parênteses a atitude natural” e escolher apenas os elementos que são relevantes, não para ação no seu cenário social concreto, mas para o problema científico em questão - são construções de segundo grau (Schutz, 1953: 6).
Connell refere ainda Mandani, Mbembe e em geral os intelectuais daquilo que se convencionou chamar “African Renaissance”. Estes escritores exortam os intelectuais africanos, a resgatarem, obrigatoriamente, “um conhecimento africano”. Connell coloca igualmente algumas reservas quanto a esta pretensão, mas não tira daí as necessárias consequências. A mesma reificação que é culpada por ter silenciado o pensamento africano, mas identificada num hemisfério distinto, ou seja, um conhecimento europeu. Como pode a crítica da reificação europeia subsistir quando aquilo que propõem é uma reificação africana?
Entre outros autores que Connell tem para propor como anticanónicos encontram-se um livro de um autor sul-africano (Connel, 1987, cit. inConnell, 2007, p. 110) e de três autores iranianos. O que faz com que estes livros devam ser considerados, segundo Connell? O facto de qualquer um deles escalpelizar as relações de poder imperial. A escolha parece absolutamente arbitrária, para além do facto de uns serem africanos - e portanto silenciados pelo poder branco -, e outros serem muçulmanos - e portanto silenciados pelo poder eurocêntrico. Outra qualquer escolha serviria os intentos, como prova, por exemplo, o livro Beyond the Canon como analisaremos abaixo.
À partida, a defesa que Connell constrói dos autores que selecciona seria, sob qualquer parâmetro lógico, indefensável. Se os primeiros resgatam “os modos originais de vida dos africanos” e instituem “uma filosofia africana”, já os que ficam para além da segunda linha abissal (recorrendo a um termo do campo das “epistemologias do sul”), a religião, são elogiados por elaborarem uma defesa religiosa contra o materialismo ateu. Desta forma, Connell conclui, falando do livro de Al-Afghani, A Refutação dos Materialistas: “A Refutação não tem nada a ver com o imperialismo. É uma defesa da religião contra a irreligião, especificamente a forma de irreligião representada pela filosofia materialista.”4 (p. 114). Voltaire pasmaria com os avanços da ciência social no século XXI.
Mas Connell vai mais longe. No seu afã em encontrar razões convincentes para cedermos à irrecusável aceitação dos novos autores, a autora resume este imperativo na seguinte fórmula: “duas linhas de análise convergem na Refutação. A primeira é uma sociologia da coesão social na qual o bem-estar político e económico dependem dos fundamentos culturais” (p. 115). Fundamentos esses, acrescenta, que são apresentados na linguagem da moralidade e da religião. Percebe-se que Connell nos quer fazer crer que encontrou o Durkheim islâmico; um Durkheim avant la lettre. Porém, um Durkheim que afirma que a verdade da racionalidade humana se encontra no Corão. O que é espantoso é que para Connell “dissecar a dimensão cultural do neocolonialismo” (p. 119) supera amplamente a “misoginia” (“Os seus sarcasmos contra as mulheres ocidentalizadas aproximam-se da misoginia” (p. 115) sobre Al-e Ahmad.)5 ou a sujeição religiosa prestada ao Corão e à sua “verdade” de Al-Afhgani. Podemos perguntar se o androcentrismo é aceitável quando cumpre um dos critérios de relevância, ou seja, o combate ao eurocentrismo; e, da mesma forma, se a sujeição ao pensamento religioso é pacífica quando assumida do outro lado da “linha abissal”.
Convém lembrar que, como mostrou Heilbron (1995), a teoria social emerge contra as doutrinas do estado e da religião. Mas isso parece não ter eco nestes processos de triagem que nos levam “para além do cânone”, como provam, por exemplo, as escolhas feitas por Alatas e Sinha (2017) no seu mais recente Beyond the Canon.
Quando Alatas (Alatas e Sinha, 2017) apresenta o legado de Said Nursi como “teologia social” cujo objetivo “é a reforma da sociedade muçulmana através de um revigorar da fé islâmica” (p. 206) devemos questionar se a crítica de Marx ou de Weber não serviriam justamente para “sociologizar” esta apreciação. Porque se o critério para admissão no cânone sociológico for “dizer alguma coisa de interessante sobre a sociedade”, com ressonância em grupos específicos, então os nomes a serem arrolados a esta lista, e que não resistiram ao crivo do tempo ou da comunidade científica, contar-se-iam às centenas.
Mais, quando estes autores colocam Weber e Said Nursi no mesmo patamar, estão a recorrer a um relativismo radical que, em última análise, diz que não há uma melhor interpretação do mundo social do que outras - ao limite, a interpretação do leigo equivale à do académico especialista no assunto. Este relativismo radical tem apenas um objetivo: proteger-se da crítica. Ao fazer equivaler os conteúdos substantivos das teorias dos dois autores, o que se está a assumir é que é tudo questão de interpretação, e que esta é subjetiva. Contudo, os conceitos existem sempre em relação com outros conceitos; ou seja, no interior de constelações de conceitos mediante as quais podemos averiguar a sua consistência. Quando Alatas, referindo-se a Said Nursi, induz de expressões como “O Criador glorioso fundiu os opostos no universo […] e atribuiu-lhes posições defensivas e agressivas” (cit. em Alatas e Sinha, 2017: 207) que “tal como para muitos teóricos sociais, para Nursi, a natureza da realidade social é o conflito” (ibidem, 208), está justamente a desprezar a regra da verosimilhança, à qual faremos uma breve referência em baixo. Mas, ainda assim, não é este o cerne da justificação para arrolar Nursi a um cânone alternativo. O fulcro é a sua posição crítica em relação ao Ocidente. Mais concretamente, a noção de desespero, que Alatas atribui a Nursi (omitindo o seu precedente em Kierkegaard, e na ideia de Angst), resultaria do esmagamento do viver e da moral islâmica pelas práticas ocidentais. Em suma, o critério de aferição de validade heurística é o grau de crítica à sujeição ao Ocidente.
Três facilitismos
Grosso modo, o que esta leitura da teoria sugere é que é preciso reintegrar os autores de grupos excluídos pelas estruturas raciais, heteropatriarcais e etnocêntricas que governaram a produção do conhecimento. Em grande medida, mas não só, mulheres, negros, e regiões extraeuropeias e norte-americanas.
Por implicação lógica, significa que aqueles que são considerados canónicos apenas se encontram assim reconhecidos porque são brancos, homens e europeus ou norte-americanos. Ou dito de outra forma, porque a ciência social europeia hegemonizou os saberes sociais concorrentes.
O pressuposto facilita a tarefa de seleção. Afinal de contas se os outros foram silenciados pelas tais estruturas de poder e de exclusão da episteme canónica, o seu silenciamento é critério suficiente de absolvição. Mas se nos entregarmos a este jogo de facilitismos rapidamente nos confrontamos com aporias no próprio sistema de pensamento dos anticanónicos que parece não lhes concitar nenhuma preocupação. Como conciliar, dentro desta lógica, que autores negros sejam igualmente ocidentais e homens, ou que mulheres sejam europeias e brancas, portanto, da tal episteme etnocêntrica; ou, simetricamente, que certos autores correspondam ao critério não eurocêntrico, mas sejam brancos e homens? Podem parecer questões triviais, mas possuem consequências relevantes como tentarei ilustrar a seguir recorrendo a alguns exemplos.
Um outro facilitismo prende-se com o facto de a seleção ficar automaticamente justificada pela cláusula “non-western social thought” (Alatas e Sinha, 2017). Submeto ao leitor se este se afigura ser um critério científico ou intelectual suficientemente robusto. Imagine-se que a introdução de Durkheim se justificava por não ser “pensamento germânico” ou que o interesse de Spencer decorreria por não ser da “Europa continental”. A verdade é que se se tornou fácil delimitar um pensamento europeu etnocêntrico, existe contudo uma dificuldade de princípio em fazer o mesmo para um putativo “pensamento social não ocidental”. O que significa exatamente este? Em que medida não foi este “contaminado” por contributos e expressões teóricas do tal pensamento eurocêntrico? Como asseverar que não existem contradições e rivalidades dentro da ficção “pensamento social não ocidental”? Onde estabelecer os limites sem recriar uma reificação idêntica àquela que se pretende rejeitar?
Um terceiro facilitismo prende-se com a natureza do trabalho científico. Tanto Kuhn como Lakatos, o primeiro com a ideia de paradigmas, o segundo com a complexificação dessa mesma ideia através da noção de programas de investigação, concebem como central que a ciência é uma “problem solving activity”. Não é uma atividade para refletir a identidade de grupos ou os seus posicionamentos sociais. No caso da teoria social, ou sociológica, o que se pretende é responder a uma tríade de questões: o quê, o como e o porquê dos fenómenos sociais.
A crítica do cânone insiste numa falácia, se não lógica, certamente empírica, que se enuncia na crença segundo a qual representar categorias e grupos equivale a resolver os problemas desses grupos. Ou, numa alternativa minimalista, reveste-se da ideia segundo a qual devemos ter autores que representem os grupos que constituem as suas potenciais audiências. A premissa aqui é que a verdade destes autores é mais verdadeira para os membros da respetiva categoria que estes representam do que autores que não correspondem à categoria em questão.
O que faz depender a nossa relação com a teoria, do grupo a que pertencemos, e não das ideias que por ela são constituídas. Esta retórica afirma que não há ideias separadas das origens sociais e biográficas dos autores, o que se afigura basicamente correto, mas que não implica de nenhum modo que estas mesmas origens e biografia sejam reduzidas à categoria coletiva onde se pode encaixar o autor. O feixe de interdependências e complexidades que constitui uma biografia devia precaver-nos contra um tal reducionismo. Merton (1972) tratou abundantemente este problema no seu artigo, agora clássico, sobre os insiders e outsiders.
Mas nesta discussão há um aspeto iminentemente pragmático que não se atém às diatribes retóricas. A pergunta a ser feita é: que justificações teóricas apresentam os defensores do anticânone para substituírem uns pelos outros? Aqui o deserto de ideias exerce um efeito poderoso. O anticânone é um conjunto de complexas articulações que visa combater a colonialidade do poder metropolitano (Caillé e Vandenberghe, 2016), mas surge como particularmente lacunar quanto a propostas de pensamento social alternativas. Por exemplo, o cânone alternativo ou complementar, na visão de Alatas e Sinha (2017), deve preocupar-se sobretudo com refletir as experiências culturais extraeuropeias; mais concretamente “gerar consciência do eurocentrismo como tema que informa a teoria sociológica”, separando do mesmo passo “o que é eurocêntrico do que é universalista” (p. 6). Aqui não existe espaço para aprofundar a última afirmação, mas é necessário dizer que partindo da premissa que o universal foi tomado pela visão hegemónica europeia - doutra forma como pode a ciência ser eurocêntrica? - a tarefa afigura encerrar uma petição de princípio.
Como não nos é apresentado qualquer critério sobre a necessidade de inclusão de um ou outro autor - para além de não serem europeus, brancos ou homens - as escolhas são aparentemente aleatórias e baseiam-se apenas no pressuposto de que foram pessoas que pensaram a sociedade de maneiras alternativas. Se adotássemos este pressuposto, a concorrência para ocupar este lugar seria infindável. Desde logo, o que nos leva a dizer que estes autores são preferíveis a outros tais como Turgot, Say, Condorcet ou Saint-Simon que com maior propriedade lançaram de facto as bases para uma science sociale (Heilbron, 1995)?
Três razões pragmáticas
Torna-se problemático negar que Marx, Durkheim, Weber e Simmel formam as bases do pensamento social contemporâneo, sobretudo no que concerne ao campo mais restrito da sociologia. Tanto na sua vertente mais formal (Turner, 2013) como na crítica ao capitalismo (Giddens, 1971), este elenco representa, como diz Alexander (1987: 11) referindo-se à categoria de clássico, “aqueles autores com os quais podemos aprender tanto sobre o nosso campo de indagação como com os contemporâneos”.
Quer isto dizer que o cânone é algo inamovível? Longe disso. Como mostra a inclusão tardia de Simmel, ou a expulsão rápida de Summner e Cooley. Simmel reconhecido pelos seus contemporâneos alemães, sobretudo por Weber que lhe atribui a origem da ideia de Verstehen aplicada à sociologia (Kemple, 2020), só regressa com Coser (1977 [1971]), que quebra o esquecimento a que este tinha sido votado por Parsons.6 E é notório como esse mesmo Coser considerava masters do pensamento sociológico Sorokin e Thomas, atualmente apenas referidos ou para afirmar uma rejeição - o caso de Sorokin (Archer, 1988) - ou em subcampos sociológicos - o caso de Thomas.
Por isso é evidente que o cânone está em permanente mudança, mesmo no xadrez dos homens brancos e ocidentais. E que, por seu turno, estes também são vítimas das práticas de canonização. Um dos exemplos mais emblemáticos é porventura o caso de Alfred Weber, o irmão de Max Weber. Em tempos, uma das luminárias da sociologia alemã, a quem devemos os conceitos de Kultursoziologie e Geschichts-Soziologie (Sociologia histórica) (Steinmetz, 2012: 7) não figura mais em nenhum programa de teoria sociológica. Contudo, as razões pelas quais isso ocorre associam-se às dinâmicas do campo e não a categorias de pertença, para as quais, como é evidente, o sociólogo alemão não se encontra habilitado.
Gostaria de sugerir três critérios para avaliar a pertinência das escolhas e para as libertar da arbitrariedade antiteórica que parece caracterizar as escolhas dos anticanónicos. Neste sentido, podemos aplicar alguns parâmetros que devem ser considerados quando aferimos a canonicidade de um autor. Como não é no campo da metateoria que desejamos fazer a demarcação, o pragmático do título desta secção não indicia nenhuma exploração filosófica pragmatista, mas toma tão-somente a expressão no seu sentido mais prosaico: algo prático e direcionado.
O primeiro aspeto é uma proposta metodológica. Mouzelis (1997), ao defender o cânone, salienta a superioridade dos contributos conceptuais e teoricamente substantivos dos canónicos. Mas creio que devemos incluir também os seus contributos metodológicos.
Com efeito, em qualquer um dos autores ditos canónicos (ou clássicos) encontramos uma proposta metodológica. Tanto Weber, como Marx, Durkheim ou Simmel propuseram uma metodologia para estudar os fenómenos sociais e é esta em grande medida - porventura mais do que as suas descobertas e interpretações substantivas - que lhes confere a sua singularidade e, dessa forma, originalidade. Assim, em Weber, a metodologia do ideal-tipo que sustenta a construção dos conceitos e a delimitação da análise dos fenómenos sócio-históricos; os pressupostos da objetividade do conhecimento nas ciências sociais e o conceito de ação social. Durkheim introduz pela primeira vez aquilo que ele considerava poderem ser regras universais para uma análise funcionalista e uma forma de fazer investigação sociológica que aproximasse a sociologia do positivismo de outras ciências, definindo do mesmo passo o que poderia ser o objeto desta: os factos sociais. Simmel, em contraste com o positivismo reinante em França, introduziu a ideia de Verstehen em sociologia,7 abundantemente explorada por Weber,8 que abriu todo um novo campo de sociologia interpretativa; assim como uma sociologia das formas que estendeu a sua influência à atual análise de redes.
Marx é, porventura, o mais difícil de delimitar quanto a uma proposta metodológica específica. A dialética histórica não é da sua criação, como é sabido; a sua paternidade, na sua formulação lógica, pertence a Hegel. Quanto a um método que seja atribuído a Marx, podemos dizer que este introduziu três ideias-chave no pensamento social, que se encontram subjacentes ao materialismo histórico. Primeiro, a ideia de estrutura. Para Marx, as causas e efeitos dos fenómenos sociais são o resultado das relações estruturais entre elementos. Segundo, que um fenómeno social deve necessariamente ser compreendido enquanto parte de uma teia de relações sociais que são características de um modo estrutural. E terceiro, e como corolário das anteriores, Marx inaugura assim a abordagem relacional em sociologia (Wright, 1997; Burawoy, 1979).
Esta brevíssima apresentação dos contributos metodológicos destes autores nem de longe esgota a dívida que autores subsequentes para com eles possuem. Contudo, estamos em crer que fornece uma indicação da centralidade que as suas posturas metodológicas granjearam no pensamento social e sociológico em particular.
O segundo aspeto, prende-se com a extensão da obra. Não se trata de quantidade, embora esta seja notável sob qualquer prisma em qualquer dos autores referidos. Tão-pouco da latitude temática que é abarcada. Uma tal dimensão prende-se com a necessidade de explorar múltiplos fenómenos sociais porque somente através da sua junção pode emergir uma visão integrada. A noção de extensão aqui refletida prende-se com as direções em que as respetivas obras extravasaram os seus produtos concretos. A multiplicidade de exegeses e contraexegeses, de comentários críticos, de reformulação ou aplicação dos seus contributos, não possui paralelo em nenhum outro elenco de autores em sociologia. É por isso falaciosa a pretensão dos anticanónicos em alojar novas vozes sob o pressuposto da representação de experiências culturais outras. Até ver, a grande maioria das alternativas apresentadas pelos anticanónicos não passou pelo crivo do comentário crítico, do contraditório, em suma, dos protocolos científicos da ciência normal, ou se preferirmos, para acautelar a discussão do pluriparadigmatismo contrário à “ciência normal” na aceção de Khun (1962), a estrutura normativa ou o ethos científico identificado por Merton (1973 [1942]) onde se salientam um conjunto de normas e imperativos institucionais, entre eles, e de relevância para este texto, o cepticismo organizado. Não cabe neste artigo detalhar todos os elementos deste ethos, mas talvez essa fosse uma exigência elementar a colocar à arbitrariedade dos nomes sugeridos em tantas destas propostas.
Finalmente, uma visão peculiar (e sem dúvida original) da natureza do social e das suas relações. O teste decisivo aqui é justamente a quantidade e diversidade de ramificações que essas mesmas visões ocasionaram. Neste ponto, a história da sociologia mostra que qualquer um dos canónicos se encontra na origem de escolas, divisões disciplinares e teóricas que há muito caracterizam esta ciência. A metáfora das raízes e das ramificações (Kivisto, 2021) é particularmente apropriada quando se pretende verificar a influência de um autor sobre os seus epígonos. Qualquer representação visual dessas ligações permite perceber isso mesmo.
Convém sublinhar que a canonicidade é um ato retrospetivo; não é nem um estatuto autoimposto nem tão-pouco uma canonização em vida. O facto de ainda atualmente continuarem a ser produzidas exegeses das obras destes autores atesta a sua condição canónica.
O que é singular naqueles que formam as raízes é como os seus contributos permitiram avançar a teoria social. Não somente este era um projeto concreto dos seus respetivos empreendimentos - Marx é o único que não o pretende explicitamente - como as suas obras foram inúmeras vezes escalpelizadas até chegarmos ao ponto em que dentro do métier uns se possam dizer weberianos, durkheimianos ou marxistas. É na importância que os autores tiveram e têm no desenvolvimento das atuais escolas, na forma como estas, para construírem as suas proposições lógicas, a eles recorrem ainda, e necessariamente, que devemos aquilatar da sua perenidade e, ipso facto, estatuto clássico.
Em suma, quando discutimos a abertura do cânone a novos integrantes podemos ter em conta os três critérios brevemente delineados. Quais são as implicações de que se reveste esta postura aquando do confronto com os críticos do cânone?
Conclusão
Em grande medida, a discussão deslocou-se sobremaneira para a genderização, racialização ou etnocentrismo dos autores ou dos seus contributos, perdendo de vista o debate sobre a teoria - o que significa, qual o papel que esta deve ter e como a devemos integrar nos modelos de compreensão do social? Para que tal seja logicamente procedente devemos começar por considerar que existe um campo que designamos por “Sociologia teórica” (podemos ou não acrescentar o “geral” como faz Fararo) (Fararo, 1989; Alexander, 1982). Dentro deste campo há procedimentos de verificabilidade. Não me refiro à testabilidade empírica de uma teoria - embora essa também deva ser levada em consideração. Mais concretamente, refiro-me a um consenso mínimo sobre um esquema conceptual que possa traduzir, através de uma regra de verosimilhança, objetos sociais. Aqui o termo a reter é verosimilhança. Aferir a qualidade heurística de uma dada formulação teórica implica perceber se a explicação oferecida é verosímil, no sentido do mundo III de Popper.9 Ou seja, contrariamente ao critério da relevância proposto por Alatas (2006), o da verosimilhança permite questionar se é plausível aceitar uma dada explicação apenas porque ela é conceptual e axiologicamente relevante para um determinado grupo. Um tal grupo pode ir desde uma comunidade de pertença a uma entidade regional imaginária, como seja “o Sul”.
Por conseguinte, será verosímil acusar Durkheim de utilizar as categorias do cristianismo, como faz Alatas (2006: 136), e depois propor um autor que faz uso explícito das categorias islâmicas na compreensão do comportamento social? Podemos concordar com a necessidade de superar “construções unilaterais”, mas não é através da substituição por uma nova unilateralidade. Nas palavras de Said (1994 [1978], p. 328), “a resposta ao Orientalismo não é o Ocidentalismo”.
Finalmente, devemos impreterivelmente evitar a armadilha dos anticanónicos. Esta enuncia-se nos seguintes termos: é verosímil nas categorias de quem? Não se trata de quem, mas “do quê”. Nas categorias de uma comunidade científica que se encontra em debate permanente e que revê criticamente as propostas dos seus pares. Um tal debate pode, e deve, abrir-se a outras contribuições, geografias, pressupostos, no sentido que Wallerstein (1996) colocava o termo “abrir”. Porém, isto é diferente de uma reformulação do cânone cujo critério de incorporação mais relevante é pertencer a categorias outrora silenciadas.
Podemos reduzir a sociologia - ou as ciências sociais - a este desiderato. Se a sociologia for a ciência da revelação do poder metropolitano sobre o resto do mundo, então o programa de Connell, de Bhambra e de tantos outros anticanónicos, ajusta-se maravilhosamente. Temo, no entanto, que os sociólogos não vão ter muito para acrescentar ao mundo coevo onde realmente vivem.
Na realidade, os ditos anticanónicos, não lutam contra “este” cânone em particular. Como não apresentam qualquer cânone alternativo, mas sim uma manta de retalhos de autores supostamente excluídos, torna-se claro que o que sugerem é o fim do cânone. De qualquer cânone. Podemos debater se essa é uma alternativa viável para a construção de uma disciplina. A minha convicção é que qualquer disciplina (não é exclusivo da sociologia), e mais ainda, qualquer área do conhecimento, precisa de ter uma estrutura da qual se extraia a sequência do pensamento, dos seus legados e reformulações. A árvore e os seus ramos. Esta metáfora traduz apenas que existe uma genealogia do campo. E que a história desse campo se faz, entre outras coisas, através de procedimentos de ciência normal. Devemos evitar que a discussão fique invariavelmente retida em quem é representado e quem não é, em vez de se centrar no poder explicativo das ideias e dos conceitos a elas associados. Neste sentido, os nomes sugeridos pelos anticanónicos deveriam ser colocados sob a vigilância crítica do resto da comunidade. Infelizmente, parece faltar bastante trabalho nessa direção.