Nos primeiros dias de outubro de 2003, o então chefe da Advocacia-Geral da União - instituição responsável pela representação processual e controle jurídico do Estado brasileiro - recebeu em sua residência, em Brasília, uma correspondência postada em uma agência do correio na própria capital federal. Outro envelope foi endereçado ao corregedor-geral da Secretaria da Receita Federal, com conteúdo quase idêntico: um documento anônimo de dez páginas, redigido no formato e vocabulário característicos dos textos jurídicos.
Aludindo a “rumorosos escândalos” recentes envolvendo servidores dos dois órgãos no Rio de Janeiro, o texto atribuía atividades ilícitas a diversos integrantes do que designava como o “grupo do Rio”. As alegações se concentravam, contudo, em um servidor, ocupante de alto cargo na Procuradoria da Fazenda Nacional. Entre outros delitos, o denunciado estaria envolvido em esquemas de favorecimento de interesses privados junto ao fisco. Em apoio às denúncias, o texto era acompanhado de cópias de mensagens de correio eletrônico enviadas e recebidas pelo acusado, diversos documentos e uma reportagem publicada dias antes por um grande jornal do Rio de Janeiro sobre a participação de um procurador da Fazenda Nacional - cujo nome não era divulgado - em fraudes que chegavam a um bilhão de reais.1
Seis anos e meio depois, a Comissão de Processo Administrativo Disciplinar designada para apurar o caso apresentou seu relatório final. Após expor em detalhes a tramitação do processo e as provas coligidas, a comissão concluía que o procurador indiciado havia transgredido diversas disposições da Lei n.º 8112/90, que estabelece o regime jurídico dos servidores civis federais: em particular, os deveres de ser leal às instituições e manter conduta compatível com a dignidade da função pública. Em 17 de setembro de 2010 foi publicada sua portaria de demissão, “pela prática de atos de improbidade administrativa”.
O nexo entre esses dois momentos é singular. Ao contrário do que a justaposição da denúncia e da portaria leva a inferir, o servidor demitido não foi o alvo das acusações anônimas, mas seu provável autor, à época lotado no Ministério da Fazenda em Brasília.2 Esse epílogo é ainda mais intrigante quando se tem em conta que o mesmo artigo da Lei n.º 8112/90 apontado como fundamento da demissão também estabelece como dever do servidor público “levar ao conhecimento da autoridade superior as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo” (art.º 116, VI).
Por certo não cabe à etnografia avaliar se o desfecho do caso foi apropriado ou justo - um debate ainda em curso no poder judiciário no momento em que concluo este artigo, com base em sucessivos recursos impetrados pelo ex-procurador contra a decisão administrativa que formalizou sua demissão. Em vez disso, proponho refletir sobre o percurso que ensejou, primeiramente, a conversão do denunciante em denunciado e, mais tarde, seu desligamento do serviço público por improbidade. Em síntese, trata-se de interrogar: de que é feita a improbidade administrativa? Que procedimentos fazem emergir (ou fizeram, neste caso particular) certos atos como ímprobos, desencadeando as medidas punitivas correspondentes?
A reflexão se divide em três momentos. Com o intuito de indicar o caráter elusivo da noção de improbidade na administração pública brasileira, apresento inicialmente alguns apontamentos sobre a aplicação de sanções disciplinares a servidores do poder executivo federal. Na classificação adotada pela Controladoria-Geral da União, o órgão central responsável pelas atividades de controle interno da administração pública, as demissões por improbidade administrativa são incluídas na rubrica “atos relacionados a corrupção”. Se esse procedimento reafirma a ambiguidade da noção de corrupção e sua capacidade de descrever coisas bastante díspares, conforme têm demonstrado numerosos estudos que abordam o tema (Abreu 2005; Bezerra 2012, 2017; Blundo e Olivier de Sardin 2006; Das 2015; Haller e Shore 2005; Pardo 2016 [2004]), também convida à problematização etnográfica da noção de improbidade administrativa, ao sugerir que o que é descrito como tal depende igualmente das circunstâncias e propósitos com que a noção é empregada.
Retorno na segunda seção ao caso relatado acima - e às condições em que obtive e abordei o material analisado -, com o intuito de examinar mais atentamente os procedimentos administrativos que culminaram na demissão do procurador, assim como algumas de suas repercussões judiciais.3 O propósito de um processo administrativo disciplinar é apurar a responsabilidade de um servidor por infração cometida no exercício de suas atribuições, com fundamento nas disposições constitucionais que estabelecem os princípios básicos da administração pública e no regime jurídico específico a que estão sujeitos os servidores federais. Não se trata aqui, porém, de tomar processos administrativos disciplinares simplesmente como instrumentos para fins institucionais. Em vez disso, proponho considerá-los como documentos etnográficos de relações e práticas burocráticas de conhecimento que efetivamente constituem as próprias instituições que os produzem, suas normas, procedimentos e efeitos (Riles 2004, 2006; Hoag 2011; Hull 2012) - dentre eles, trazer à existência certas condutas como atos de improbidade.4
Com base no percurso que conduziu à caracterização da improbidade administrativa nos procedimentos disciplinares desencadeados pela denúncia anônima, desenvolvo na terceira seção e nas considerações finais do artigo três proposições: (a) a determinação da improbidade administrativa, em um processo disciplinar, resulta do confronto entre descrições divergentes que produzem conjugações pragmáticas de princípios legais e condutas funcionais, movendo-se ao mesmo tempo nas duas direções; (b) uma vez que as qualidades de princípios e condutas são indissociáveis dos atos de descrição que os constituem mutuamente, é possível considerar os princípios da administração pública como fenômenos empíricos da mesma ordem que as ações que, em tese, orientam ou punem; (c) finalmente, proponho reconhecer a desconfiança como um princípio implícito da administração pública, cujas propriedades generativas dão origem a formas institucionais e fomentam dinâmicas relacionais que, ao menos até certo ponto, propiciam reverberações entre práticas tidas como ímprobas (e corruptas) e procedimentos disciplinares que visam identificá-las e combatê-las.5
“Punições expulsivas” na administração federal brasileira
Desde 2003, quando foi criada a Controladoria-Geral da União (CGU), passou a haver um registro sistemático e unificado das sanções disciplinares aplicadas a servidores do poder executivo federal. De janeiro daquele ano até dezembro de 2018, 7358 servidores receberam o que é chamado oficialmente de “punições expulsivas”, que abrangem demissão, cassação de aposentadoria e destituição de cargo em comissão.6 Os dados referentes à aplicação dessas penalidades são divulgados regularmente no portal eletrônico da Controladoria-Geral da União, seguindo uma classificação em cinco categorias. Considerando o Relatório de Acompanhamento de Punições Expulsivas de 2018, as expulsões por “ato relacionado a corrupção” correspondem a 65,6% do total nos cinco anos anteriores (CGU 2018).7 Como se observa no gráfico a seguir (figura 1), a segunda categoria com maior número de expulsões é “abandono de cargo, inassiduidade ou acumulação ilícita de cargos”, com 24,3% (menos de metade das expulsões por “corrupção”). Em seguida, com percentuais significativamente menores, vêm as categorias “proceder de forma desidiosa”, com 2,5%, e “participação em gerência ou administração de sociedade privada”, com 1,1%. Os casos classificados como “outros” perfazem 6,5% das punições expulsivas.
* São consideradas penalidades fundamentadas relacionadas em atos relacionados a corrupção aquelas efetivadas com base nos incisos LXI e IX, da Lei n.º 4878/65, nos incisos IX, XII e XVI do artigo 117.º da Lei n.º 8112/90, e incisos IV, X e XI do artigo 132.º da Lei 8112/90. Fonte: Relatório de acompanhamento de punições expulsivas aplicadas a servidores estatutários do Poder Executivo Federal (CGU 2018).
Um gráfico como esse induz a imaginar a forte presença da corrupção no serviço público brasileiro, confirmando juízos amplamente disseminados acerca da ubiquidade desse fenômeno no país.8 Simultaneamente, porém, também sugere um esforço sistemático de expurgo da corrupção da administração pública por meio da expulsão de servidores apontados como corruptos, alimentando a noção corrente de corrupção como um desvio moral individual. O aspeto ao qual pretendo chamar a atenção, no entanto, é a legenda do gráfico acima, que apresenta os critérios que compõem a categoria “atos relacionados a corrupção”. São assim consideradas as penalidades baseadas em pontos específicos da Lei n.º 8112/90: três incisos do artigo 117.º (IX, XII e XVI) e outros três do artigo 132.º (IV, X e XI). A legenda também se refere à Lei n.º 4878/65, que diz respeito exclusivamente a policiais civis. Considerando o universo mais amplo do serviço público, portanto, o que define os “atos relacionados a corrupção” são os pontos mencionados da Lei n.º 8112/90 (Brasil 1990).
Consultando o texto legal, vê-se que o artigo 117.º estabelece condutas proibidas aos servidores, sem qualquer referência explícita a corrupção. Fica em aberto se as práticas abrangidas pela classificação da Controladoria-Geral da União são tidas juridicamente como atos de corrupção. São elas: “valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública” (inciso IX); “receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições” (inciso XII); e “utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares […]” (inciso XVI).
Já o artigo 132.º da mesma lei enumera as práticas sujeitas à penalidade de demissão. A “corrupção” é contemplada em um inciso específico (inciso XI), sem que haja uma definição do que é entendido como tal. Não obstante, a própria distinção formal entre esta prática e as que são elencadas nos demais incisos do mesmo artigo autoriza a considerar que estas últimas não são formalmente definidas como corrupção, embora duas delas também figurem como ingredientes da categoria “atos relacionados a corrupção” utilizada pela Controladoria-Geral da União. Uma delas é, justamente, a “improbidade administrativa” (inciso IV), para a qual a lei também não oferece definição (voltarei a isso mais adiante). A outra compreende “lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional” (inciso X).
Ao me deter nessas minúcias, meu propósito é indicar que aquilo que é apresentado pela Controladoria-Geral da União como “corrupção” no serviço público federal abrange um leque muito variado de práticas que não coincidem estritamente com os enunciados legais. Essa constatação reafirma, de um lado, a fecundidade de “pensar a corrupção como uma categoria, elaborada e operada pelo próprio Estado, que articula em diferentes situações e momentos o que se considera como próprio ou não à política e ao Estado” (Bezerra 2012: 66). De outro, chama a atenção para o fato de que essa categoria não é unívoca no próprio âmbito do Estado, não apenas em razão de transformações históricas, mas também pela existência concomitante de diferentes entendimentos, mais ou menos comensuráveis, daquilo que ela descreve.
Para a reflexão proposta neste artigo, uma consequência disso é evidenciar que a noção de “improbidade administrativa” - que ora se distingue da “corrupção” (como ocorre no texto legal), ora com ela se confunde (conforme a classificação de “atos relacionados a corrupção” efetuada pela Controladoria-Geral da União) - também se afigura imprecisa e instável. No entanto, se a noção de corrupção é comumente mobilizada para demarcar limites entre o estatal e o não estatal, assinalando a “inobservância ou invasão de suas fronteiras por relações tidas como de outra natureza” (Bezerra 2012: 66), a improbidade administrativa parece colocar em relevo sobretudo (embora não somente) relações intraestatais. A ênfase se desloca para procedimentos que visam identificar, conter e punir - eventualmente com a expulsão - o que é tido como inadequado ou indesejável no quadro funcional permanente da administração pública.
Com base no caso do procurador demitido por improbidade após denunciar práticas que, a seu juízo, manifestavam a improbidade de colegas, busco argumentar que a noção de improbidade administrativa condensa - e coloca em confronto - distintas conexões entre princípios legais, juízos morais e relações institucionais, com resultados contingentes e até certo ponto imprevisíveis.
O processo: entre o “dever de denunciar” e a “quebra de confiança”
O interesse em abordar etnograficamente mecanismos de controle e uniformização da administração pública, em face da “heterogeneidade das condutas e da potencialidade sempre presente de práticas ilegais ou ilegalizáveis” (Bevilaqua 2016: 173), conduziu minha atenção aos procedimentos disciplinares voltados a identificar e punir irregularidades - em particular aqueles que resultam na demissão do servidor envolvido.
Além dos relatórios quantitativos mencionados na secção anterior, a Controladoria-Geral da União disponibiliza em seu portal eletrônico um Cadastro de Expulsões do Governo Federal (CAEF) contendo a relação nominal de servidores demitidos desde 2003 e um conjunto de informações suplementares: o cargo e órgão de lotação do servidor, o número do processo disciplinar, a data e o fundamento legal da demissão. Esses dados, contudo, não permitem sequer vislumbrar o que de fato se passou em cada caso.
A fundamentação legal remete via de regra a artigos da Lei n.º 8112/90, cujos enunciados são insuficientes para indicar as condições concretas que motivaram sua aplicação. Além disso, até recentemente o cadastro de expulsões tinha a forma de uma planilha excel organizada em ordem cronológica, o que ensejava situações curiosas: a mesma pessoa podia aparecer mais de uma vez na lista, com diferentes portarias de demissão, em datas diversas e por razões distintas; inversamente, um nome consultado em determinada data poderia deixar de constar em outro momento. Essas incongruências sugeriam que os servidores em questão haviam sido reintegrados, possivelmente por decisão judicial, de modo provisório (no caso dos que pareciam ter sido demitidos mais de uma vez) ou definitivo (no caso dos que haviam desaparecido da lista).
Efetuei então uma série de buscas cruzadas entre os relatórios da Controladoria-Geral da União e o portal da Justiça Federal, que permite acesso ao conteúdo de decisões de suas diferentes instâncias. Os desdobramentos judiciais de punições administrativas permitiram identificar casos referentes a diferentes órgãos e carreiras do funcionalismo nos quais os princípios da administração pública, os deveres dos servidores e a improbidade administrativa constituíam o cerne do debate processual. Retornando aos relatórios da Controladoria-Geral da União, tornou-se possível localizar os números dos processos administrativos correspondentes e solicitar aos órgãos responsáveis a íntegra dos autos. Foi assim que tive acesso ao caso do procurador demitido por denunciar anonimamente possíveis atividades ilícitas de colegas, ao qual passarei a me referir como Fernando Machado.9
O material que obtive da Advocacia-Geral da União compreende seis processos administrativos correlatos conduzidos entre 2003 e 2010, totalizando mais de duas mil páginas. Embora tenha sido necessário percorrer esse vasto conjunto para que a conversão de determinadas ocorrências em atos de improbidade se tornasse razoavelmente inteligível, concentro-me aqui nos momentos finais do percurso: os trâmites e argumentos que compuseram o processo disciplinar que conduziu à demissão do procurador. Dos procedimentos anteriores, registro apenas o ponto de inflexão em que a denúncia original se voltou contra seu autor.
Inicialmente, a denúncia anônima contra o procurador, aqui chamado de Marcos Alcântara, deu origem a apurações conduzidas pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). As explicações do denunciado foram consideradas suficientes para afastar as suspeitas de irregularidade. Sua defesa, por sua vez, lançava uma nova acusação: o delator havia violado o sigilo de sua correspondência eletrônica e extraído outras informações pessoais e institucionais de sistemas restritos da Receita Federal e da Procuradoria da Fazenda Nacional. Uma investigação preliminar encontrou indícios de que o denunciante anônimo seria o procurador Fernando Machado: além do uso de sua senha pessoal para o acesso a documentos integrantes da denúncia, foram constatadas semelhanças entre sua grafia e o endereçamento dos envelopes das denúncias anônimas.
Um primeiro processo administrativo disciplinar contra Fernando Machado, aberto na Procuradoria da Fazenda Nacional em dezembro de 2003, foi anulado judicialmente. Por previsão legal, medidas disciplinares contra integrantes da advocacia pública federal constituem atribuição exclusiva do corregedor da Advocacia Geral da União (AGU). Um segundo processo disciplinar, agora na AGU, também foi anulado: a justiça reconheceu o impedimento de dois membros da comissão processante por terem participado do processo anterior. Finalmente, um terceiro processo disciplinar foi aberto em outubro de 2008, cinco anos após o envio da denúncia anônima.10 É dele que trato aqui. Antes de prosseguir, porém, abro um parêntese metodológico.
Documentos e práticas de conhecimento
Tal como as denúncias anônimas recebidas pelo então chefe da Advocacia-Geral da União, o material que abordo veio às minhas mãos pelo correio: um disco contendo versões digitalizadas dos diferentes processos disciplinares envolvendo o procurador Fernando Machado. Nesse caso, a remessa não chegou como uma surpresa. Conforme mencionei, um longo caminho foi necessário para identificar procedimentos disciplinares em que a caracterização da improbidade administrativa fosse o foco central. O acesso a esses processos também demandou negociações diversas, muitas vezes sem sucesso, junto aos órgãos nos quais tramitaram.11 Não obstante, a natureza de uma análise concentrada num corpus que se apresenta como “dado” pode suscitar interrogações.12 De modo um tanto paradoxal, um pacote de documentos entregue pelo correio parece literalizar a tendência vigente nas primeiras gerações de etnógrafos de considerar os registros obtidos pelo trabalho de campo como “dados” independentes de seu processo de constituição.13
A noção de artefato como algo que tratamos “como se” fosse um objeto simplesmente encontrado no mundo (Strathern 2013 [1990]), mas que, sem deixar de sê-lo, é sempre e por definição o fruto do trabalho etnográfico, permite reunificar os dois tipos de percurso. Diferenciando-se pelo ponto de partida, a produção de materiais etnográficos pelos procedimentos mais estabelecidos da observação participante, de um lado, e a constituição de formas materiais que condensam práticas burocráticas como dados etnográficos, de outro, têm como nexo fundamental o engajamento com dinâmicas de socialidade, modos de conhecimento e preocupações analíticas de outrem. Abordar documentos como artefatos etnográficos acentua as dimensões recursivas desse engajamento, uma vez que “estudar documentos é, por definição, estudar também como os próprios etnógrafos conhecem” (Riles 2006: 7).
Em relação aos documentos aqui tratados, outros aspectos merecem atenção. Primeiramente, a escrita é uma prescrição legal da atividade disciplinar na administração pública brasileira: todos os atos do processo disciplinar devem ser produzidos por escrito, com a data e o local de sua realização e a assinatura da autoridade responsável. Para compreender como a improbidade administrativa vem a existir, portanto, é para os processos que se deve olhar, tal como fazem seus protagonistas. Ao mesmo tempo, também por determinação legal, os procedimentos disciplinares são sigilosos até que estejam concluídos, o que torna impossível acompanhar diretamente reuniões e interrogatórios, assim como a elaboração dos documentos que registram tais atividades. Essas condições colocam em evidência que o processo (objeto físico) é seu próprio contexto e modo de produção, o processamento material e situado de uma decisão burocrática à medida que novos elementos são agregados aos autos. Cada novo documento é em si mesmo um precipitado de relações e também “responde” aos precedentes, num encadeamento tornado explícito por elementos formais (termos de “remessa” e “juntada”, carimbos e assinaturas) que registram e validam a passagem de um documento a outro, bem como a natureza de sua contribuição para o desfecho do processo.
Se o caráter circunscrito e autorreferenciado desse conjunto é a condição de eficácia daquilo que ele enuncia como decisão final, percorrê-lo também implica encontrar opacidades e silêncios (Vianna 2014: 45-46). É preciso, entretanto, não alimentar ilusões de transparência em relação àquilo que é registrado presencialmente: quaisquer que sejam as condições em que artefatos etnográficos venham a existir, as pessoas têm controle sobre a informação que oferecem (Strathern 1999: 7). Essa modulação, por sua vez, é precisamente o que permite que as preocupações do/a pesquisador/a se alinhem às que elas propõem a si mesmas.
Num processo disciplinar, em que a escrita é o modo por excelência de relação entre os envolvidos, o esforço para determinar se e como certas condutas configuram improbidade administrativa se concretiza como um procedimento narrativo. Os argumentos são, sempre e necessariamente, descrições: dos fatos, das normas e dos próprios atos do processo. Uma palavra é devida, pois, sobre minha própria descrição. Com o intuito de trazer à tona as diferentes conjugações dos deveres do servidor público e da improbidade administrativa que gradativamente se constituem e se defrontam nos autos, evito na medida do possível apresentar uma metadescrição do processo destacada das descrições produzidas pelos participantes. Em vez disso, busco justapor os documentos produzidos pela comissão designada para apurar o caso e documentos a ela encaminhados pelo acusado, sem perder de vista a assimetria que lhes é inerente. Embora limitadas por normas legais e protocolos formais, são as iniciativas e deliberações da comissão que definem o curso do processo e, ao menos até certo ponto, os próprios acontecimentos e normas aos quais ele se refere.
A produção de provas e a defesa do acusado
Ao ser notificado em outubro de 2008 da instauração de mais um processo administrativo disciplinar14 em que figurava como acusado - o terceiro em cinco anos -, o procurador Fernando Machado reagiu com indignação. Em dois documentos enviados no mesmo dia à comissão processante, formada por três servidores da mesma carreira atuantes em diferentes estados, denunciou a medida como um “processo de exceção” cujo verdadeiro objetivo seria coagi-lo para “acobertar inúmeros atos ilícitos perpetrados no seio da Procuradoria da Fazenda Nacional e da própria Corregedoria-Geral da AGU” (CGAU 2008, vol. I: 91).15 Três dias depois requereu, sem sucesso, o impedimento do presidente da comissão que, segundo ele, seria amigo e aliado político de um dos servidores mencionados na denúncia anônima (CGAU 2008, vol. I: 123-126).
Desde esses momentos iniciais, o andamento do processo foi um duro confronto entre o acusado e a comissão, expresso em documentos redigidos na linguagem e formato característicos do universo jurídico - um repertório familiar a ambas as partes e constitutivo de sua própria atividade profissional como integrantes da advocacia pública.16 A cada passo, Fernando Machado interpelava a legalidade dos procedimentos da comissão. Esta, por sua vez, indeferia sistematicamente os seus requerimentos, mas sempre com o cuidado de evitar possíveis alegações de cerceamento da defesa.
Entre suas primeiras providências, a comissão determinou a realização de duas perícias: um laudo grafotécnico para avaliar a correspondência entre a letra do acusado e o endereçamento das denúncias anônimas; e o exame de seu computador funcional, recolhido por ocasião das primeiras apurações. Tratava-se de determinar se partira desse equipamento o acesso aos sistemas institucionais dos quais provinham as informações constantes nas denúncias.
O laudo grafotécnico constatou a conexão entre os envelopes da denúncia anônima e exemplos da caligrafia do procurador extraídos de seus assentamentos funcionais (CGAU 2008, vol. II: 16-24). A perícia no computador não ocorreu. Recolhido à época do primeiro processo administrativo disciplinar, o equipamento fora doado no ano anterior a uma entidade filantrópica, que afirmou não mais possuí-lo. Na véspera de seu interrogatório, Fernando Machado denunciou mais uma vez o processo, qualificando-o como “verdadeiro processo kafkiano, onde nunca é dado ao Acusado saber a acusação [e] são sonegadas e extraviadas as pretensas provas da acusação” (CGAU 2008, vol. II: 153). E acrescentava:
“Desta feita, incapazes de identificar no ordenamento jurídico qualquer infração cometida pelo Acusado, foram buscar o ‘tipo’ ALCAGUETE, instituído pela SOCIEDADE CRIMINOSA. […] Assim, a presente acusação está lastreada não no ordenamento jurídico, mas no ‘Código Penal do PCC’” (CGAU 2008, vol. II: 153-154).17
Fernando Machado foi interrogado pela comissão em setembro de 2009 (CGAU 2008, vol. II: 215-218). Segundo a ata da sessão, manteve-se em silêncio a maior parte do tempo. No dia 1 de dezembro, a fase de instrução do processo foi encerrada com um despacho de pouco mais de duas páginas, no qual a comissão decidia pela indiciação do acusado. Segundo o despacho, fora comprovado que Fernando Machado havia acessado os sistemas informatizados de órgãos do Ministério da Fazenda, valendo-se de sua condição funcional, com o objetivo de “produzir elementos que corroborassem a denúncia anônima” efetuada contra membros da Procuradoria da Fazenda Nacional. O uso dos sistemas institucionais, portanto, servira para “obter dados pessoais e sigilosos de cidadãos que não se encontravam sob a alçada de sua atuação profissional naquela oportunidade” (CGAU 2008, vol. III: 32-34).
Notificado da indiciação e do prazo para a apresentação de defesa escrita, Fernando Machado encaminhou em resposta um documento de 49 páginas (CGAU 2008, vol. III: 38-87). Sem reconhecer a autoria da denúncia anônima, o procurador retomava elementos da primeira investigação efetuada na Procuradoria da Fazenda Nacional. Na época, o procurador Marcos Alcântara, principal alvo da denúncia, relatara que mensagens de sua caixa de correio pessoal haviam sido repassadas por terceiros a listas institucionais, e que em certo momento chegou a perder o acesso à sua própria conta de e-mail, cuja senha fora alterada sem seu conhecimento. As apurações apontaram indícios de que as mensagens haviam partido de um computador instalado na universidade em que o então ocupante de um alto cargo na Procuradoria da Fazenda Nacional atuava como professor de matéria relacionada a crimes de informática (CGAU 2008, vol. III: 62-63). Além disso, indicaram que o Cadastro de Pessoa Física (CPF)18 do procurador Marcos Alcântara fora acessado por três usuários do sistema, a partir de computadores diferentes. Entretanto, a comissão processante teria decidido ignorar essas provas (CGAU 2008, vol. III: 73-74).
Em outra vertente de argumentação, Fernando Machado alegava que não existiam na época regras específicas sobre a utilização dos sistemas institucionais pelos procuradores, o que impediria a caracterização de falta funcional (CGAU 2008, vol. III: 52). Por outro lado, lembrava que, conforme a Lei n.º 8112/90, é dever do servidor “levar ao conhecimento da autoridade superior as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo” (art.º 116.º, VI) (CGAU 2008, vol. III: 54). Finalmente, segundo a defesa, ainda que “por hipótese” o servidor tivesse acessado bancos de dados irregularmente, não havia indicativo de que tivesse obtido qualquer proveito: ao contrário, “por apego à sua instituição, levou ao conhecimento de superiores condutas que lhe pareciam danosas” (CGAU 2008, vol. III: 85). Mais de 50 páginas de anexos buscavam sustentar os argumentos apresentados. Paralelamente, Fernando Machado ajuizou - sem sucesso - uma ação na justiça federal pleiteando a suspensão do processo administrativo disciplinar.
O relatório final e a penalidade de demissão
Em maio de 2010 a comissão processante apresentou seu relatório conclusivo, um documento dividido em 195 itens. Os primeiros relatavam em detalhes os procedimentos desde a instauração do processo, reafirmando a regularidade e isenção dos atos da comissão, bem como a “ampla defesa” garantida ao acusado. Em seguida, a discussão das provas dava particular atenção ao resultado do exame grafotécnico e ao “total silêncio do indiciado” a esse respeito durante o interrogatório. Também teria sido comprovado nas primeiras apurações que o acesso aos sistemas institucionais correspondia ao número de IP (internet protocol) do computador funcional do acusado (CGAU 2008, vol. III: 251-256).
O tópico referente ao “convencimento da comissão” começava por afastar um dos pilares da defesa: o dever legal de denunciar irregularidades. De acordo com a comissão, “por maior que seja o exercício retórico, não parece haver como considerar a devassa em informações sigilosas como mera comunicação de ocorrência de irregularidade”, sem mencionar que “as representações regulares exigem a identificação do denunciante”. Desse modo, as alegações da defesa tentavam “esvaziar de conteúdo” os conceitos de lealdade à instituição e de conduta compatível com a moralidade pública (CGAU 2008, vol. IIII: 276-277). A comissão concluía:
“Parece desnecessário ressaltar mais uma vez aqui a gravidade das condutas praticadas pelo indiciado, assim como os graves riscos de proliferação e banalização de tais expedientes […], ao talante dos humores, antipatias ou opiniões pessoais. Da mesma forma, também desnecessário esmiuçar como tais condutas ameaçam intensamente a integridade da instituição e harmonia do quadro de servidores […]” (CGAU 2008, vol. III: 278).
O relatório foi submetido à análise da Corregedoria-Geral da Advocacia da União, que emitiu longa nota técnica ratificando as conclusões da comissão (CGAU 2008, vol. III: 285-308). O documento também expandia as considerações sobre as normas e princípios da administração pública. Em síntese, não caberia discutir se o servidor obteve ou não proveito com seus atos: a consulta “imotivada” a dados de terceiros violara “princípios basilares da Administração Pública”, ocasionando a “quebra da fidúcia existente entre ele e a Administração”. Constatada sua “inabilitação moral” para o serviço público, impunha-se a pena de demissão (CGAU 2008, vol. III: 295, 308).
Princípios da administração pública e atos de improbidade
De acordo com a portaria publicada no Diário Oficial da União em 17 de setembro de 2010, Fernando Machado foi demitido pela “prática de atos de improbidade administrativa e por valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública” (Lei n.º 8112/90, art.º 132, IV e XIII; art.º 117, IX). Nos termos do processo disciplinar, o acesso indevido aos sistemas institucionais por si só configurava improbidade administrativa e justificava esse enquadramento legal, independentemente da obtenção de qualquer proveito pessoal.
Retornando ao que foi discutido na primeira secção deste artigo, chamo novamente a atenção para a inexistência de qualquer definição de improbidade na Lei n.º 8112/90. No julgamento do mandado de segurança impetrado pelo servidor contra sua demissão, este ponto foi destacado por um dos ministros do Superior Tribunal de Justiça, cujo voto foi vencido:
“Não existe [na Lei n.º 8112/90] nenhum tipo descrito sobre improbidade. […] Então, qualquer coisa pode ser improbidade. Olhar para o chefe com a cara feia, pode ser improbidade. Qualquer coisa pode ser improbidade, inclusive, nada. Ou tudo. Então, há que se basear na Lei 8429/92, onde os tipos de improbidade estão descritos” (STJ 2016: 37).
Na Lei n.º 8429/92 (Brasil 1992), cujas sanções só podem ser aplicadas pelo poder judiciário (razão pela qual não é mencionada no processo administrativo descrito), a improbidade não é um atributo da pessoa, mas a qualidade de uma ação, determinada pelo exame dos seus efeitos. A lei distingue três categorias de atos de improbidade: os que importam enriquecimento ilícito (art.º 9); os que causam prejuízo ao erário (art.º 10); e os atos que atentam contra os princípios da administração pública, violando “os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições” (art.º 11).
No caso de Fernando Machado, como se viu, em nenhum momento foi aventado um eventual proveito econômico ou dano aos cofres públicos. Por outro lado, parece claro que os dois primeiros tipos de improbidade necessariamente implicam o terceiro, isto é, a transgressão dos deveres atribuídos aos servidores, enunciados sob a forma de princípios da administração pública. Essa circularidade torna possível identificar uma teoria da ação implícita nas normas legais, segundo a qual princípios antecedem e governam (ou deveriam governar) as condutas. Contudo, a própria definição legal de tipos de improbidade (e das respectivas sanções) implica a presunção de um hiato entre princípio e ação, que poderá ou não ser transposto de forma devida. E isto pressupõe, por sua vez, agentes cujas condutas não são inteiramente previsíveis ou controláveis de antemão.
Determinar a qualidade das ações - isto é, decidir sobre sua probidade ou improbidade - é o problema enfrentado de forma explícita e sistemática nos procedimentos administrativos disciplinares. À primeira vista ele poderia ser percebido como o estabelecimento da correspondência adequada entre princípio e conduta, presumindo-se o caráter abstrato, homogêneo e estável dos princípios da administração pública, em contraste com a heterogeneidade e imprevisibilidade das ações dos servidores. Na literatura acadêmica que tematiza o Estado, esta é uma perspectiva recorrente:
“Todo princípio estatal é […], em sentido próprio, uma ‘abstração’ destinada a realçar a unidade do Estado. As manifestações do Estado, por sua vez, são heterogêneas, remetendo a tudo o que o Estado faz, o que o faz e o que lhe é feito: sabe-se a imensa multiplicidade de suas modalidades de intervenção, de seus objetos de ação e de seus meios institucionais” (Linhardt 2012: 7).
O caso de Fernando Machado, porém, parece indicar algo diferente: qualificar a ação implica qualificar também, e ao mesmo tempo, o próprio princípio que a qualifica.19 Os princípios, que a lei se limita a enunciar, são tão imponderáveis quanto as ações. Logo, é preciso se mover ao mesmo tempo nas duas direções. Em que consiste a lealdade do servidor à instituição? A denúncia de possíveis irregularidades, efetuada por meios irregulares, é leal ou desleal? Em que condições a desconfiança em relação a colegas pode exprimir a obediência a um dever institucional ou, ao contrário, ensejar a quebra de confiança da instituição no servidor? Esse movimento bidirecional caracteriza, recursivamente, os próprios procedimentos disciplinares que trazem à existência atos de improbidade, uma vez que também eles são ações de servidores públicos. No caso aqui descrito, como se viu, a legalidade e a imparcialidade dos encaminhamentos adotados pela comissão processante foram seguidamente questionadas pelo acusado ao longo do processo administrativo e, posteriormente, em ações judiciais ainda em andamento.
Minha sugestão é que a resposta às perguntas suscitadas no (e em relação ao) processo disciplinar - ou, dito de outro modo, a conjugação pragmática de princípios e ações - implica um trabalho concomitante de, por assim dizer, abstração e concretização. De um lado, é preciso converter certas condutas no descumprimento de princípios que deveriam orientar as ações do servidor (honestidade, legalidade, lealdade). De outro, a aplicação de uma penalidade requer a conversão de certos princípios (razoabilidade, proporcionalidade, equidade) em condutas específicas, sem o que haveria o risco de invalidação do processo. Numa e noutra operação, a natureza dos atos e dos princípios é definida simultânea e reciprocamente nas ações que os conjugam. Em qualquer ponto do percurso, portanto, os princípios não são normas ou valores abstratos. São fenômemos empíricos da mesma ordem das ações que pretenderiam guiar ou sancionar. São também, tal como elas, indeterminados, instáveis e, ao menos até certo ponto, imprevisíveis.20
Em um processo disciplinar, a qualidade mais estável de qualquer princípio da administração pública parece residir na possibilidade de ser invocado por alguém para impulsionar um argumento. Os argumentos, por sua vez - conforme tenho insistido -, são sempre descrições, cujo horizonte é definir e estabilizar aquilo que é descrito: os fatos, a lei e o próprio processo.
Desde o primeiro momento, como indiquei, Fernando Machado descreve o processo disciplinar como um “processo de exceção” (CGAU 2008, vol. I: 92). Sua instauração e os procedimentos da comissão seriam, em si mesmos, atos de improbidade contrários aos princípios da administração pública (CGAU 2008, vol. I: 96). O procurador também denuncia a incongruência das descrições contidas no despacho que formalizou sua indiciação. Se a própria lei impõe ao servidor o dever de denunciar irregularidades, como poderia uma denúncia, sem qualquer proveito para o denunciante, afrontar a dignidade do serviço público? A imputação não estaria baseada no ordenamento jurídico, mas nos códigos de organizações criminosas que punem a revelação de seus segredos (CGAU 2008, vol. II: 153-154).
A comissão, por sua vez, redescreve esses argumentos como uma tentativa de “esvaziar de conteúdo” conceitos e valores cujo significado, descrito como “intuitivo”, tornaria “desnecessário esmiuçar como tais condutas ameaçam intensamente a integridade da instituição e harmonia do quadro de servidores” (CGAU 2008, vol. III: 278). De forma análoga, ao qualificar o ato de improbidade administrativa como aquele efetuado “com visível falta de honradez e de retidão de conduta”, a nota técnica da Corregedoria-Geral da Advocacia da União afirma ser “desnecessário” discutir os propósitos da conduta do procurador ou a existência de proveito pessoal (CGAU 2008, vol. III: 308).
No Superior Tribunal de Justiça, o julgamento do mandado de segurança impetrado por Fernando Machado com o intuito de reverter sua demissão suscitou ressonâncias análogas. Para a maioria dos ministros, o acesso a dados pessoais sigilosos de colegas continha em si mesmo “a quebra do princípio de confiança que deve regular a relação entre a Administração Pública e o seu servidor”. Tendo em vista a gravidade dessa conduta, a penalidade de demissão atendia aos “princípios da razoabilidade e proporcionalidade” (STJ 2016: 34-35).
Considerações finais: confiança, desconfiança, quebra de confiança
Essas descrições divergentes sugerem algumas reflexões adicionais sobre as definições pragmáticas de improbidade administrativa. A primeira delas diz respeito às referências recorrentes ao longo do processo a noções de confiança (e seu rompimento). Atentar a suas distintas declinações permite assinalar, num segundo momento, algumas reverberações entre as condições em que se desenvolvem os procedimentos disciplinares na administração pública e as práticas às quais eles se dirigem.
Por desconfiar de colegas e superiores, Fernando Machado buscou documentar suas suspeitas e as apresentou (ou teria apresentado, já que nunca admitiu formalmente o que lhe foi imputado) sob a forma de denúncias anônimas. Esse gesto de desconfiança, ao ser convertido em foco de procedimentos disciplinares, conduziu ao seu progressivo isolamento - pelo afastamento preventivo do cargo após a instauração do processo, pela desconsideração do possível envolvimento de outros servidores na elaboração das denúncias anônimas e, finalmente, pela ausência de aliados para testemunhar em sua defesa - e o tornou, aos olhos da comissão, irremediavelmente inconfiável.
A situação do procurador permite evocar observações de Luc Boltanski, para quem a suspeita que pode eventualmente pesar sobre uma denúncia se acentua quando o denunciante age sozinho. Nessas condições, “é fácil denunciar a própria denúncia, desmascarando-a não como um ato orientado à justiça, mas como um ato de vingança individual a serviço de interesses puramente pessoais” (Boltanski 2012 [1990]: 194). Vem à tona, assim, a “delicada distinção entre a desconfiança legítima ou justificada e aquela dos delírios de perseguição que conduz a um isolamento total” (Allard, Carey e Renault 2016: § 23).
No caso de Fernando Machado, a penalidade de demissão se configurou no processo disciplinar como uma providência premente diante do alegado risco de alastramento da desconfiança nas relações pessoais e institucionais.21 A desconfiança, porém, já estava o tempo todo presente, inscrita na própria lei que define o regime jurídico, os deveres, proibições e sanções aplicáveis aos servidores federais. Como sugeri anteriormente, tais sanções antecipam um futuro incerto: o alinhamento entre as condutas dos servidores e as normas e princípios da administração não pode ser garantido de antemão.
Essas circunstâncias sugerem uma aproximação com trabalhos que propõem conferir à desconfiança a mesma atenção que a teoria social tradicionalmente dedicou à confiança, entendendo-a como alicerce da vida coletiva (Allard, Carey e Renault 2016; Carey 2017; Mühlfried 2018). 22 Em referência às considerações de Simmel (1950) sobre a importância da “hipótese da confiança” na vida social, Carey chama a atenção para o potencial produtivo - e não meramente negativo - do que propõe chamar de “hipótese da desconfiança”.23 De acordo com o autor, as duas hipóteses seriam, até certo ponto, mutuamente constitutivas, cada uma delas dando origem a condutas e formas sociais específicas (Carey 2017: 10).24
O interesse heurístico dessa proposição, a meu ver, reside no impulso à especificação etnográfica de noções contextuais de desconfiança e dos efeitos que elas ensejam. No caso do procurador Fernando Machado, a polarização insistentemente repetida é a que opõe a confiança presumida entre servidores, assim como entre cada servidor e a instituição à qual está vinculado, à sua ausência ou estilhaçamento. A desconfiança, ainda que presente na própria lei - e, portanto, constitutiva das relações institucionais -, tende a ser descrita como um resultado indesejável de atos que ensejariam a “quebra” de confiança. Essas condições impedem a conjugação analítica automática de confiança e desconfiança como verso e reverso de uma polaridade simples: em seus desdobramentos prático-conceptuais na administração pública, elas não são nem opostos simétricos nem mutuamente excludentes.
Se, como ficou consignado no processo disciplinar, a “integridade da instituição” depende da confiança entre seus agentes, a desconfiança também é dotada de poderes generativos próprios e sustenta a proliferação de formas institucionais: disposições normativas, órgãos de controle interno, manuais de procedimentos disciplinares, comissões de sindicância, inquéritos e punições. Seria possível, portanto, considerar que a desconfiança também constitui um princípio da administração pública, operando silenciosamente como uma espécie de vetor das tensões entre a confiança e a quebra de confiança. E isto convida a explorar outros de seus possíveis efeitos relacionais.
Conforme assinalei no início, as expulsões de servidores públicos federais por improbidade administrativa são classificadas pela Controladoria-Geral da União como “atos relacionados a corrupção”, a despeito da distinção estabelecida pela Lei n.º 8112/90, que dispõe sobre o regime jurídico do serviço público federal, entre “improbidade administrativa” (art.º 132, inciso IV) e “corrupção” (art.º 132, inciso XI) como práticas sujeitas à penalidade de demissão. O caso do procurador Fernando Machado chama a atenção para os limites dessa associação: ainda que seus atos tenham emergido como ímprobos na conclusão do processo disciplinar, em nenhum momento se suspeitou que fossem corruptos. Em outro plano, contudo, é possível identificar certa reverberação entre a dinâmica de procedimentos institucionais como os que culminaram em sua demissão e as condições que propiciam o desenvolvimento de práticas usualmente percebidas como corrupção.
Como demonstra Bezerra ao analisar a atuação de uma grande construtora de obras públicas envolvida em antigas e recentes investigações de corrupção no Brasil, práticas identificadas como corrupção se integram a práticas que constituem o funcionamento regular da administração pública e da atividade política (Bezerra 2017: 100). No caso analisado pelo autor, redes de relações envolvendo inúmeros agentes do poder público permitiram que a empresa, ao longo de décadas, contribuísse para “conformar em termos práticos o funcionamento” da burocracia estatal e “participa[sse] ativamente da produção do Estado” (Bezerra 2017: 128).
O caráter relacional e coletivo das práticas tidas como corruptas se afigura igualmente decisivo, como procurei demonstrar, nos procedimentos que identificam e punem transgressões a normas e deveres funcionais. Não parece irrelevante que as autoridades que determinaram a demissão do procurador Fernando Machado tenham se referido à apreensão “intuitiva” da qualidade de certos atos. A própria expressão “quebra da confiança” ressoa o caráter súbito e definitivo de um juízo que, ao ser compartilhado por diferentes instâncias administrativas e judiciais, tornou “desnecessária” a avaliação das possíveis intenções do servidor e desencadeou medidas punitivas extremas. Nessas condições, sua justificativa de cumprir um dever legal pôde ser descartada como “mero exercício retórico”. Por outro lado, também foram necessários certos recursos retóricos para converter a apreensão “intuitiva” de sua “inabilitação moral” ao serviço público na transgressão de determinadas disposições legais. De todo o modo, a retórica não é, neste caso, simplesmente retórica. Ao contrário, realça a dependência da improbidade administrativa das práticas de descrição que a definem, assim como das redes de relações e alianças que as sustentam em circunstâncias e contextos institucionais específicos.
Essas condições ajudam a compreender o malogro do procurador Fernando Machado ao pretender avançar solitariamente seu próprio juízo acerca de atos de improbidade. Como afirmei no início, não se trata de determinar se as suas suspeitas tinham fundamento, tampouco avaliar a probidade de seus atos ou dos procedimentos disciplinares que acarretaram sua expulsão do serviço público. Importa notar, contudo, que assim como as condutas tidas como corruptas se sustentam em nexos relacionais, iniciativas “hiperindividualistas” para combatê-las têm vida breve e frequentemente, na vida política brasileira, tendem a se voltar contra seus protagonistas (Leirner 2016: 53-54). Qualquer que seja o horizonte visado, não parece possível prescindir de alianças para estar e agir no universo do Estado.