Introdução
A diversidade de pertencimentos étnicos, raciais e comunitários passou a estar cada vez mais presente nas universidades brasileiras a partir do programa de expansão da educação superior pública (Expandir), implementado entre 2003 e 2006, e do programa de planos de apoio e expansão das universidades federais (Reuni), em 2007. Estas políticas do governo federal de reforma do ensino superior criaram novas universidades e cursos e ampliaram a oferta de vagas para estudantes, abrindo espaço para a implementação de políticas de inclusão, chamadas “ações afirmativas”, para a presença e a reconstrução de novas identidades (negras, indígenas, dentre outras), estimulando novos conceitos sobre si mesmos e sobre a realidade social, bem como a ressignificação da ideia de nação (Gomes 2012, 2017; Souza Lima e Barroso 2018). A inserção de pesquisadores nesses espaços institucionais possibilita a produção de uma reflexão sobre as expectativas, os impactos e as tensões que resultam do acesso ao ensino superior por parte de um público cada vez mais diversificado em suas origens, pertencimentos e projetos de conhecimento e existência, tanto nas capitais como no interior do país (Leal, Sanabria e Cariaga 2021; Gomes 2021).
Por outro lado, é também atual a orientação que vem sendo colocada para as universidades brasileiras quanto às necessidades de trocas e aproximações “globais” e “internacionais”, na qual o relacionamento com outros países é constantemente valorizado e priorizado (Neves e Barbosa 2020). As estratégias de política científica voltada para o “internacional” tornaram-se mais frequentes nas agendas das instituições acadêmicas, enquanto se intensificaram também as negociações e os projetos do Sul global, conhecidos como cooperação Sul-Sul. Com isso, os laços de diplomacia passaram a envolver uma maior convivência internacional e a criação de projetos de desenvolvimento e colaboração “solidária” acadêmica com países africanos e asiáticos. (Amaral 2013; Meneghel e Amaral 2016; Cesarino 2012). A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) em Redenção, Ceará (Brasil), é uma das instituições em que os temas da integração internacional Sul-Sul estão conjugados ao diálogo de inclusão social, afirmação, direitos e democratização do ensino (Gomes, Lima e Santos 2018; Lucca e Buti 2021).
Neste artigo, as questões étnicas e nacionais serão mobilizadas a partir do cotidiano docente vivenciado nesta instituição de ensino criada sob a égide da cooperação institucional acadêmica entre os países falantes da língua portuguesa. Ao contemplarmos as histórias de “integração internacional” vivenciadas no ensino e na pesquisa, daremos um sentido reflexivo para as fronteiras étnicas que marcam a nação e o Estado e se organizaram como práticas políticas de projetos de cooperação internacional, como propôs Barroso-Hoffmann (2009). Essas fronteiras nos remeterão à ideia de alteridade percebida de forma relacional e em contexto (Peirano 2000) e ao papel de mediação da antropologia no âmbito dos processos históricos aos quais pertence a gestação desse encontro entre “povos”.
Ao espaço de trocas de bens simbólicos que está presente no diálogo entre a educação e a antropologia no contexto do ensino superior (Gusmão 2016, 1997; Lopes 2009), acrescenta-se o fato de que estamos lidando com certas categorias e modos de percepção da realidade social que passam a ser acionados no deslocamento das relações Norte-Sul para relações Sul-Sul (Dias et al. 2009; Ribeiro 2006). A partir da experiência docente e sua descrição, as perguntas deste artigo podem soar desconfortáveis ao nos devolverem às paisagens e aos paradigmas imperiais outrora gestados no Norte e que estruturaram nossas posições e nossas identidades no Sul. O centro, de onde partem comandos para as margens, como propôs Bastos (2004), pode parecer que é exaltado no texto. No entanto, temos em conta um olhar crítico para esse fenômeno cuja herança é complexa, dependente da vontade de ação de seus participantes (Bourdieu 1996) e das agências plurais organizadas em projetos nem sempre bem-sucedidos ou coerentes (Thomas 1994). Assim, o colonialismo não pode ser negado como parte dessas experiências que vivenciamos na universidade contemporânea e que informa não só gramáticas e práticas de poder, mas também geografias plurais que constituíram as experiências na lusofonia (Bastos, Almeida, e Feldman-Bianco 2004).
Com tais questões em mente, esta reflexão “de dentro” vislumbra-se como uma reorientação para esse encontro marcado por um passado colonial compartilhado, no qual a antropologia passa a ser parte constitutiva e, portanto, “visibilizada” no processo de reconhecimento da diferença, nos diálogos possíveis, nas incompreensões silenciadas, nas semelhanças observadas e na “teoria vivida” (Peirano 2006). Ao escrever este artigo, como antropóloga, exponho os vínculos, as experiências e as vulnerabilidades de ser professora e investigadora nesse cenário de “integração internacional” em diálogo com enquadramentos teóricos e práticos que buscam uma leitura crítica capaz de produzir um refinamento sociológico em meio às singularidades e às assimetrias das situações etnográficas escolhidas (Faria 2002; Clifford e Marcus 1986; Marcus 2007; Oliveira 2018).
Com o olhar da docência: apontamentos metodológicos
A Unilab como instituição de ensino superior pública foi criada em julho de 2010 pelo governo brasileiro e tem hoje dois núcleos, um no estado do Ceará e outro no da Bahia. A sua missão é a formação de recursos humanos no âmbito do desenvolvimento regional e da “integração internacional” entre o Brasil e os países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).1 As reflexões aqui presentes estão circunscritas aos campi do Ceará que ofertam cursos das áreas de administração, agronomia, ciências, engenharias, humanidades, saúde. Os investimentos destinados ao início da vida institucional estavam voltados para as “áreas de interesse mútuo do Brasil e demais membros da CPLP” considerados estratégicos: o desenvolvimento agrário, tecnológico, de saúde, formação de professores e gestão pública. A área das humanidades, na qual está inserida a antropologia, foi criada dois anos depois (2012/2013) no contexto de valorização de certos conteúdos fundamentais para a formação histórica das populações, a preservação da memória e da história dos povos.2 Assim, as humanidades foram reconhecidas como área estratégica diante da necessidade de atuação junto a “minorias”, “populações alvo de políticas públicas” e “movimentos sociais organizados”.
Ao ingressar na Unilab do Ceará em 2012, assumi as funções do magistério superior no setor de Antropologia junto ao 1.º ciclo de formação (bacharelado em Humanidades), com o compromisso de disponibilizar os conhecimentos de uma Antropologia dos processos de formação de Estado e do colonialismo adquiridos em minha formação pós-graduada (mestrado e doutorado). Passei a atuar também no 2.º ciclo de formação (bacharelado em Antropologia) e na pós-graduação (mestrado em Antropologia) em 2015 e 2017, cursos que foram criados na medida em que a instituição crescia. O corpo docente da instituição e também o discente são bastante heterogêneos, compostos por indivíduos de diferentes origens. Matriculam-se a cada ano estudantes dos municípios do interior do Ceará, da capital Fortaleza e das diferentes províncias dos países de língua portuguesa - Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste -, o que congrega um universo bastante desafiador em termos das possibilidades de escrita de seus principais processos sociais e das lógicas culturais que impactam a administração e o ensino.3 Essa diversidade de pertencimentos e as possibilidades de encontro intercultural que estão colocadas para as cidades de Redenção e Acarape, onde a universidade se faz presente, podem ser lidas a partir de uma força criativa que revela a complexidade das experiências dos encontros pós-coloniais no contexto da cooperação internacional (Barroso e Abrantes 2020).
Nesses mares agitados da coexistência em uma instituição pública de ensino superior voltada para o fortalecimento de laços internacionais Sul-Sul, a descrição etnográfica muitas vezes se apresenta como uma tentativa de tradução cultural do cotidiano, outras vezes em uma poética de expressão de diálogos teóricos e incômodos evidentes. A orientação metodológica do artigo inscreve três situações etnográficas, que aqui são designadas de “pontos de contato” e que relatam a potência reflexiva da experiência docente ocorrida entre 2015 e 2016. A ideia da “tríade” de Georg Simmel (1950) auxilia na compreensão desta realidade próxima ao sugerir que o “terceiro elemento” garanta movimento e processos de formação de grupos em fluxo, distantes de uma cristalização e essencialização das relações e seus conteúdos. A antropologia transforma-se em um conhecimento mediador, que oferece a possibilidade desse movimento como “terceira parte” ao fazer do docente um participante do campo e, ao mesmo tempo, observador e intérprete da realidade.
Procurarei mostrar que o saber antropológico facilita diálogos, viabiliza eixos de entendimento e propõe uma linguagem politicamente válida aberta ao encontro. Como os “espaços-problema” formulados por Scott (2004), as situações demarcam um contexto de linguagem com perguntas e respostas de valor e significação. É nesse sentido que cada uma das secções apresentadas a seguir é aberta pelas notas de campo escritas para apresentar os pontos de contato singularizados nessa experiência docente junto à Unilab.
Pertencimentos nacionais e seus elos invisíveis
“Primeiro dia de aula no curso de Administração Pública para uma turma de 38 alunos e alunas de diferentes origens da CPLP. Sou surpreendida por uma estudante cabo-verdiana que me alerta para que eu tenha paciência com os/as sete estudantes do Timor-Leste que estão inscritos/as nessa turma. Pergunto-lhe as razões para essa preocupação e ela me diz que eles/elas têm sido reprovados/as em outros componentes curriculares por terem “deficiência” na língua portuguesa. Prometo-lhe que terei atenção.
Nessa aula, proponho que os/as estudantes se apresentem informando suas origens, razões para estarem inscritos no curso e expectativas para o futuro em sua carreira. Decido ministrar as aulas equacionando os conteúdos propostos na ementa às necessidades que identifico na fala dos envolvidos. O plano de aula passa a ser desenhado com o objetivo de reflexão sobre as culturas e os processos de formação de Estado, de modo a revelar as cristalizações e os conflitos inerentes à organização da vida administrativa e social de cada país. Há um interesse imediato por parte de todos os estudantes, em especial por aqueles/as cujos países lidam com as questões étnicas.
Os textos escolhidos para as aulas contemplam as diferentes geografias e, para minha surpresa, o texto sobre Timor-Leste surpreende-nos a todos (Silva e Simião 2007). A cooperação internacional fomentada pelo Brasil no Timor-Leste no âmbito do ensino da língua portuguesa apresenta características nacionais que explicam não apenas a relevância da formação em Administração Pública para os/as alunos/as, mas também as razões para a busca do aprendizado do português como segunda língua. Embora tenha sido a língua do colonizador (Portugal), não foi transmitida no ensino às novas gerações nos anos em que o país esteve sob o domínio da Indonésia (1975-1999). A língua mãe falada por todos, dentre as várias outras línguas étnicas do país, é o “tétum”. Aprender a língua portuguesa é um dos objetivos desses alunos ao se decidirem pelos estudos no Brasil, além de obterem um título importante para o desempenho de sua profissão no retorno a casa.
Em nossa comum pertença, ao ler esse texto e discuti-lo juntos, encontramos a diferença. Os estudantes timorenses nos dão uma aula sobre a sua diversidade étnica, sobre os modos de convivência intercultural com seus semelhantes dentro de um território pluriétnico e sobre as muitas nações que existiram antes de eles nascerem e os seus métodos de violência. Mesmo tendo perdido familiares e ancestrais com a ocupação do território nacional pelos seus vizinhos durante vinte e quatro anos, esses estudantes nos contam, com alegria e sorrisos no rosto, que o futuro é de esperança e que estão ansiosos em voltar para casa para construir a paz e a solidariedade. Os exercícios solicitados fizeram com que os estudantes treinassem sua escrita e expressão. Amplio a minha compreensão quanto aos critérios utilizados para a avaliação da aprendizagem.” [Notas do meu caderno de campo, Redenção, abril de 2015]
As notas de campo acima transcritas equacionam uma tríade que se forma entre a estudante cabo-verdiana, a professora e os colegas timorenses, transformando a sala de aula em um locus vivo de teorias que permitem acessar a complexidade da vida social. Estamos conectados por um ponto que nos vincula a origens nacionais e a um contexto de aprendizagem, o que sugere uma escuta para que se evite transpor mecanicamente termos de uma geografia para outra. As interações são observadas de forma a não tomar os fenômenos como coisas em si e submetidas a uma explicação “superior”, etnocêntrica e empobrecida, como nos ensina a antropologia.
O Estado é um tema central nesse cenário em que significados diferem de país para país. Muito embora tenhamos diante de nós uma entidade que parece se movimentar sozinha e é universal, a diversidade de origens nacionais faz com que se revele o que diversos estudos já apontaram: o Estado é uma ideia que se organiza dentro de agências múltiplas e diferentes em cada sociedade (Abrams 1988). Aquele desenho de Estado, que se projeta nas falas e na imaginação de todos nós, não pode ser deslocado de sua prática sob o risco de se tornar uma ilusão e de nos conter em uma função ideológica. O Estado como uma forma de organização política depende de equações entre os diferentes segmentos ao longo da história de constituição de suas comunidades políticas e do relacionamento com os países colonizadores.
Estar diante de estudantes de Timor-Leste é identificar um território nacional que contém uma multiplicidade de pertencimentos e organizações étnicas, sendo este o único representante do continente asiático na Unilab. O país, independente em 1999, é parceiro do Brasil no projeto Unilab e o único que enviou representações de governo em visita à universidade, ao mesmo tempo que garantiu bolsas para seus estudantes e exigiu procedimentos para que os objetivos da cooperação internacional fossem atendidos (Nobre 2015). A presença de gestores do governo timorense em Redenção em 2017 nos permitiu constatar que o projeto de cooperação internacional acadêmica não pode ser pensado como uma proposta exclusivamente brasileira, de um país doador, mas antes constituído por relações de troca “solidária”, como está descrito no Estatuto da Unilab. É curioso pensarmos que a “fragilidade” dos estudantes timorenses percebida em sala de aula tem como pano de fundo uma política nacional “forte” e presente na relação da cooperação.
Por outro lado, Cabo Verde, um arquipélago tornado independente em 1975, se constitui em relações com o Brasil de outra ordem, pela sua proximidade geográfica (Dias e Lobo 2012) e dependente de um posicionamento forjado em relações mais estreitas com a metrópole no passado colonial, que moldaram formas crioulas de pertencimento (Almeida 2005). Mais “internacionalizado” do que os outros, podemos dizer assim, pela característica migratória de sua população, Cabo Verde busca na cooperação a possibilidade de formação de seus jovens tendo como “vantagem” a proximidade. Em três horas de viagem, chegava-se de Praia, capital de Cabo Verde, a Fortaleza, Ceará. Curiosamente, há também uma proximidade cultural que é percebida entre os dois países, uma espécie de “irmandade” sentida não apenas pela proximidade geográfica, mas também histórica, em que os laços de dependência com a metrópole portuguesa, por serem mais estreitos, fizeram emergir formas de se estar em trânsito e na mediação dos comércios e das relações Norte-Sul.
Esses modos de se estar na relação de cooperação convocam sempre a história e nos remetem a uma necessidade de perceber os processos de constituição dos Estados nacionais e suas marcas herdadas de formações políticas anteriores. Se com Elias (2002) podemos sugerir que a “realidade” do Estado nacional é um fenômeno de longa duração permeado por processos de integração e desintegração de grupos, com Benedict Anderson (2006) encontramos essas particularidades políticas criadas na dependência de Estados e economias europeias do passado e do presente.
As comparações nos ajudam a lidar com o real que se apresenta no cotidiano em sala de aula. Talvez Guiné-Bissau chegue a esse encontro com uma experiência similar à de Timor-Leste em relação à sua pluralidade social e étnica e nos permita vivenciar, na prática, que o Estado nacional como um processo de negociação interna é inacabado e sempre mobiliza uma enorme frustração - se dependermos de imagens perfeitas de como deveria ser. Nos encontros com estudantes guineenses, há sempre aquela sombra que envolve as ideias sobre Estado, como se “faltasse”, como se nunca se chegasse aos ideais exigidos (por quem?), por estar sempre a ser representado e percebido como em uma etapa “tardia” de desenvolvimento. Pensar que a Guiné-Bissau foi, no passado, um dos territórios coloniais de pouco interesse econômico e de grande interesse científico (Carvalho 2004) faz emergir revoltas e desconfortos em muitos estudantes que gostariam que o seu país fosse “igual” aos outros.
Mas se a nossa lente se voltar para as relações de poder, talvez os caminhos teóricos a se desenhar para esses jovens, futuros administradores públicos que encontrei na sala de aula, sejam outros. A constituição dessas unidades nacionais e dos governos por ela responsáveis depende dos grupos em posições de autoridade, que tomam decisões em nome de um coletivo. O poder se exerce em cenários que o qualificam e que permitem que formas de comandar se desenvolvam (Foucault 1999). Angola e Moçambique, por exemplo, lidam no presente com questões relacionadas a essa centralidade e unilateralidade do Estado. Com histórias distintas, foram outrora territórios de povoamento branco português inseridos na economia colonial (Castelo 2007). Também em São Tomé e Príncipe, com a economia do cacau, uma nação foi forjada por forças violentas de uma economia externa que reorganizou a mão-de-obra e as comunidades locais (Abrantes e Berthet 2015).
Em suas singularidades, cada uma destas nações herdou a experiência colonial a partir da constituição de “Estados bifurcados” (Mamdani 1996) que se organizam de modo violento pelas divisões sociais que criam para gerir seus territórios e populações. Isto nos leva a destacar outra herança colonial, o “poder tutelar” (Souza Lima 1995, 2004) a ser observado em cenários de intenso conflito ao enquadrar e “pacificar” relações estabelecidas em zonas de fronteira (étnica). Nessas relações hierárquicas, uma das partes se vê em posição superior e “capaz” de organizar e definir destinos comuns para a outra parte colocada em uma posição de “incapacidade”. O Brasil, país independente em 1822 e, portanto, fruto de uma relação colonial construída em um tempo diferente dos demais países da CPLP, conviveu por mais tempo com os processos de subjugação colonial. Essa duração cristalizou discursos e práticas no relacionamento do Estado com os segmentos da sociedade identificados como “minoritários” em termos de participação política e de direitos. Tais processos abrangem as relações do Estado-nação brasileiro com os povos tradicionais e com os povos trazidos do continente africano pelo comércio de escravos (Munanga 1988; Schwarcz 1993) - material que hoje já percorre as salas de aula de forma significativa e com esperanças.
Portugal, o único país da comunidade de língua portuguesa não representado entre a comunidade discente da Unilab, teria aqui um excelente lugar nesta reflexão. De todos, o coletivo nacional mais antigo, localizado no continente europeu, também foi moldado por processos de formação de Estados permeados por invasões, ocupações imperiais e presenças de grupos diversos em termos de língua, tradições religiosas e interesses econômicos (Tilly 1996). Essa formação é geradora das instâncias administrativas governamentais portuguesas, bem como do movimento de expansão para fora, colonial. Se tornássemos visíveis tais antecedentes, nos aproximaríamos do modo como as agências coloniais contribuíram para processos internos de integração e segmentação locais nos territórios colonizados (Stoler 2011).
Ao ser colocado fora da integração que o projeto da Unilab propõe - em termos práticos, ou seja, de acesso a docentes e discentes - há um impedimento para que se vislumbrem essas possibilidades de reflexão conjunta. Isto sugere ainda um silêncio nas pautas das cooperações entre nações Sul-Sul e a manutenção dos elos invisíveis que sustentam as relações entre as nações, em especial no âmbito dos organismos internacionais que compõem o campo da “cooperação para o desenvolvimento” onde se constroem arenas de governo, negociação e resistências (Barroso e Abrantes 2020; Barroso-Hoffmann 2009).
A experiência da sala de aula e o triangular da antropologia em torno das experiências dos Estados nacionais que ali convergem em um processo formativo de jovens nos fazem pensar que a integração acadêmica pode ser também um espaço de construção do novo. Afinal, talvez estejamos todos juntos na busca por novas formas de nos relacionarmos com as identidades nacionais que nos devolvam o coexistir da pluralidade e a reparação dos erros do passado. Para tanto, abordaremos outras categorias que dão vida a esses coletivos nacionais: as pertenças étnicas e territoriais internas.
As fronteiras étnicas e suas fraturas
“Uma estudante guineense pede que oriente um trabalho sobre uma das comunidades indígenas próximas à universidade. Explica-me que seu interesse começou com uma visita realizada em uma aula de campo do curso de Humanidades. Ao ver os “índios” e suas danças rituais, perguntou-se ‘como após séculos de escravidão, os índios ainda mantinham a sua religiosidade?’. Observo que a sua pergunta está marcada por categorias de seu pertencimento de origem e procuro dialogar com sua curiosidade, apresentando-a à literatura antropológica brasileira. Estou atenta às particularidades de tradução que essa orientação exige. Ofereço-me para ir com ela a uma das visitas à aldeia para elaborarmos juntas o projeto para a conclusão de curso (monografia).
Em um sábado pela manhã, visitamos juntas a aldeia a 70 quilômetros da universidade. A estudante já é conhecida de todos e um vínculo de confiança já foi estabelecido em visitas anteriores. O encontro foi marcado com os mais velhos (lideranças) da aldeia. A estudante inicia o diálogo: ‘Qual é a história da comunidade, qual a sua origem?’. O ancião narra uma longa história de fugas de uma outra terra vividas pela sua família no passado e contada pelo seu avô, sobre as ameaças vindas dos homens brancos donos de fazenda, sobre a chegada a essa terra com sua bica de água, sobre a identidade indígena marcada por silêncio e discriminação. A estudante conclui: ‘então, depois dos massacres perpetrados pelo colonizador, o seu povo viajou e chegou a estas terras’.
Entendo que estamos entre dois mundos, o brasileiro e o guineense. Interrompo o diálogo. Faço comentários e explico à estudante que há um cuidado a ser seguido, que as categorias devem ser fielmente registradas. Enfatizo que o nosso interlocutor não tinha falado de ‘massacres’ e nem de ‘colonizador’. Em uma proposta de diálogo compartilhado, fui adiante para pontuar que ‘homem branco’ era um termo com significado diferente de ‘colonizador’. Os termos ‘fugas’ e ‘ameaças’ também precisam ser respeitados conforme foram ditos.
Em desconforto claramente expresso, a liderança indígena pergunta-me: ‘o que exatamente a professora entende por massacre?’. Naquele momento dou-me conta de que havia sido incluída na investigação e que o meu pertencimento étnico-racial fora evidenciado. Que legitimidade teria eu para definir os sentidos de categorias que são fundamentais para a memória de ambos? Por que eu - branca e com a metade da idade do senhor que está diante de mim - deveria ter a palavra final sobre o significado para ‘massacre’? Sinto certa distância entre nós. Procuro modos de me aproximar e mostrar, com bastante cuidado, que o tom para o termo ‘massacre’ era um pouco forte para o que havia sido descrito por ele, embora fosse bastante utilizado para explicar as guerras coloniais no continente de onde a estudante vinha. ‘Teríamos morrido todos! É… [pausa] não foi isso que aconteceu, ainda estamos aqui!’, disse por fim a liderança. E, assim, a mim foi devolvido o meu lugar. Mas ele não me pertence mais por inteiro: a vestimenta é desconfortável diante do reencontro com essas memórias de violência e dor. O étnico está evidenciado em nossas identidades. Eu sou ‘branca’ e ‘colonizadora’ e meus interlocutores, ‘índio’ e ‘negra’.” [Notas do meu caderno de campo, Redenção, abril de 2016]
O étnico é parte do nosso mapa cultural no século XXI no Brasil, bem como na Guiné-Bissau e em outros países cuja formação de suas comunidades políticas dependeu da integração de modos de vida que foram se constituindo pela diferença. “Ser índio” no Brasil é parte de uma identidade desenvolvida em cenários de colonização, mas também de luta pela diferenciação e identidade baseadas em interações permanentes geradoras de reorganizações sociais. Assim, comunidades em interação com esferas de governo e de práticas políticas passaram, nas últimas décadas, a formular identidades e a instituir mecanismos de tomada de decisão e de representação, ou seja, reorganizaram-se socioculturalmente em agrupamentos étnicos. São, portanto, identidades que se vinculam a atos políticos, também denominados “processos de territorialização” ocorridos em meio a disputas territoriais ligadas à expansão da fronteira econômica (Oliveira 1998).
Esses modelos que permitem um enquadramento conceitual para a história de reorganização das fronteiras em torno da diferença de identidades dos povos indígenas brasileiros (Barth 1994) nem sempre podem ser aplicados a outros espaços em que as categorias “índio”, “indígena”, “nativo” estão em uso. Este tem sido um dos “pontos de contato” desafiadores do encontro internacional que ganha vida na Unilab. Em uma perspectiva histórica, a ocupação colonial do século XX nos países africanos recriou a categoria “indígena” a partir de ditames de hierarquização social próprios desse período e de necessidades políticas e administrativas do Estado colonial português. O Estatuto do Indigenato (1926, 1929) definiu quais eram os “indígenas” a serem “integrados” na sociedade colonial pela obrigação do trabalho de acordo com regras e interesses dos grupos metropolitanos e de elites coloniais locais. Em geral, a experiência africana foi atravessada por esses certames que produziram formas administrativas, mais tarde criticadas pelos movimentos de independência e pelos organismos internacionais, resultando no abandono dos enquadramentos jurídicos em 1961 (Abrantes 2014, 2022). Mesmo assim, a categoria permanece na memória transmitida para as novas gerações na África de língua portuguesa e pode ser ouvida nas histórias dos estudantes quando um espaço para essa escuta está disponível.
Assim, o étnico nesses territórios perpassa outras formas de representação e de agenciamento político a depender dos processos de formação de Estado que estão, em geral, associadas a marcadores linguísticos e culturais (Pereira 2015). Mesmo que os termos sejam diferentes e seus significados tenham uma história própria, há uma experiência comum em que grupos com culturas e cosmovisões diferentes da europeia vivenciaram processos semelhantes de desapropriação de suas identidades e autonomias políticas. Este é um dos pontos em que se comungam sentidos e o encontro acontece na Unilab. No entanto, ao se deixarem de lado as experiências históricas que gestaram essas identidades e como passaram a ser relevantes nos processos políticos contemporâneos, corre-se o risco de um achatamento da pluralidade de possibilidades de emergência identitária que vemos reunidas na universidade.
Há também que se considerar o não semelhante dessa experiência de encontro. As ordens do “transcendente” são temas centrais de muitas das realidades étnicas do país de origem da estudante, cujos códigos e sentidos não estão acessíveis a um viajante estrangeiro ou mesmo ao analista que se coloca em posição de dizer o que é a África contemporânea (Mudimbe 1997). Os assuntos comunitários, a vida campesina e rural em África, certas práticas rituais - mesmo hoje em dia menos aceites nos centros urbanos - colocam a religiosidade como parte constitutiva de sua pertença identitária, como vemos na pergunta feita pela estudante em seu projeto de pesquisa. No contexto do encontro acadêmico, há uma demanda para que essas narrativas sejam também incorporadas aos modelos teóricos e aos diálogos entre os participantes da universidade. Práticas tradicionais, processos de socialização e de ensino não formais, rituais de iniciação e tantas outras experiências são trazidas pelos estudantes estrangeiros. Muitas vezes pedem discrição, pois ao serem anunciadas correm o risco de que se nomeiem modos “não civilizados” de pertença acionados por tantos modelos civilizatórios que excluem o que não é espelho.
Ir a outras regiões epistemológicas e saber que elas existem é um alento para quem pratica a docência nesse contexto de diversidade. Não é simples deixar que modos de racionalidade acadêmica ou técnicas do fazer intelectual sejam abalados de suas certezas predispostas pelo hábito e o treinamento de longos anos. A distribuição geopolítica de conhecimento (Said 1978) confere o silêncio a muitas sociedades que precisam se adequar aos códigos e à linguagem autorizada. Talvez a construção colonial esteja tão profunda em nossas mentes que mesmo as técnicas de desconstrução de mitos - uma das especialidades da antropologia - sejam “insuficientes para detectar” as linhas que se perderam pelo caminho. Glissant (2011) nos surpreende ao dizer que as formas de resistência são “demasiado visíveis e simultaneamente indetectáveis e intocáveis”, ou seja, permanecem ignoradas. São lugares, portanto, de uma existência marcada por sofrimento em vários aspectos. Os estudantes do continente africano que chegam a Redenção, em uma nova diáspora negra para o continente americano, sentem na pele essas representações que ainda se mantêm ativas (Mourão e Abrantes 2020).
O étnico-racial em uma universidade plural é, portanto, uma gramática proeminente. Procura a reparação dos vazios teóricos e empíricos (e, portanto, de poder) a que foram submetidas as sociedades que atravessaram o Atlântico em processos violentos de desenraizamento e escravidão. Vistos de forma mais essencial, tais “identidades culturais” refletem experiências históricas comuns e códigos culturais partilhados (Hall 1990) e são uma linguagem que equaciona as representações para “um povo”, o “povo negro”, desde as lutas anticoloniais no continente africano (Fanon 1979) até aos movimentos sociais no mundo anglófono. Embora as narrativas definam essências e marcadores identitários, seus pontos são “instáveis” e contêm “suturas”, escreve Stuart Hall (1990), por serem reposicionadas sempre em relação a um outro, dentro da história, do tempo e, desta forma, da vida social mais ampla.
Negros, índios, mulheres, homossexuais, camponeses vão se constituindo como identidades que estão reunidas na universidade, em processos de luta por direitos e uma maior participação nas decisões da instituição. Espera-se que os futuros egressos possam levar adiante, em suas ocupações profissionais, novos modelos de atuação e de participação social. O multiculturalismo e o intercultural são propostas organizadoras dessa multiplicidade. Gestados em contextos específicos (Souza Lima, Carvalho, e Ribeiro 2018), podem ser caminhos de diálogo e de negociações coletivas. Em termos conceituais, talvez tornem o desenho de espaços-problema mais aberto e viável (Scott 2004). Entretanto, corre-se o risco de doutrinamentos e “proselitismos” ou até mesmo de uma “civilização”, como afirma Stuart Hall (2003), quando tais modelos passam a ser inseridos nas conhecidas práticas dos contextos coloniais. A dispersão dos enunciados e a dinâmica da construção de significados podem ser mantidas ao se descreverem e se apresentarem as gramáticas com as quais construímos nossos argumentos parciais, sempre passíveis de contestação.
Conexões e responsabilidades partilhadas
“Início de uma orientação sobre o problema do êxodo de jovens de uma comunidade rural na região de Redenção. O estudante, com origem nessa comunidade, pergunta-se sobre as razões que levam jovens entre 18 e 21 anos a saírem para as grandes cidades. Com ele, construo o entendimento de ser essa uma experiência comum de outras comunidades rurais do Brasil e do mundo, sobre as quais existem numerosos estudos. Incentivo o estudante a fazer registros e a observar aspectos dessa comunidade que podem gerar desconforto nesses jovens, tecendo um diálogo com os estudos que versam sobre o ‘problema da agricultura’. Reforço a importância de manter elos entre as diferentes gerações (pais e avós) e a valorização de práticas ancestrais e de grande relevância para as identidades da família e da vizinhança do estudante.
Reflito sobre a responsabilidade que tenho como docente para a formação e a inserção profissional desses estudantes que chegam à universidade. Noto que o conhecimento, como uma porta que se abre para o entendimento da situação que vivem, afasta esses estudantes de suas comunidades de origem. Passam a ser interventores externos com uma linguagem que os adapta a um mercado de trabalho e a um discurso dominante. As políticas dentro da universidade podem incluir uma reflexão sobre isso, penso. Sugiro que o estudante procure docentes do curso de agronomia da Unilab, ao entender que ali estão sendo gestados modelos curriculares que consideram o pequeno camponês como um aliado na construção científica e política. Mostro ao estudante a importância de estabelecer redes de apoio na universidade que o mantenham vinculado com a sua comunidade.
Participo de reunião marcada entre o estudante e um colega sênior docente do curso de agronomia. Este lhe propõe observar em sua investigação as políticas públicas inexistentes para o pequeno camponês ao longo da história brasileira. A sua lente mais ampla e a experiência dentro da carreira docente e científica abrem caminhos conceituais que questionam as lógicas econômicas da nação para propor novos olhares para a agricultura e para os modelos de trabalho e de sociedade. Noto que a interdisciplinaridade e a colaboração entre docentes fortalecem não apenas linhas de investigações, mas também seus efeitos para as comunidades que são as reais beneficiárias do serviço público oferecido pela universidade.” [Notas do meu caderno de campo, Redenção, março de 2016]
A “orientação” como um processo da vida acadêmica que liga o docente ao discente por meio de linhas intelectuais foi descrita por Peirano como parte do “viver a teoria” partilhada entre gerações (Peirano 2006). O relato de campo registrado em 2016 revela os limites da antropologia em seu trabalho de formação das novas gerações que hoje chegam à universidade em busca de titulações e conhecimentos que os insiram em postos de trabalho de uma sociedade profundamente marcada pelas relações econômicas e políticas desiguais e violentas. As questões trazidas mostram mais um “ponto de contato” que está em tensão no trabalho do docente. Se os projetos criadores são condicionados pelo “campo político”, ou seja, um campo de forças em que se apresentam instrumentos de produção da representação do mundo social (Bourdieu 1968), uma relação de orientação nas condições expostas acima mostra a distância entre as necessidades dos “beneficiários” dessa produção científica e o próprio campo acadêmico.
Nisso talvez possamos recuperar uma discussão sobre a antropologia como um saber de mediação proposto por Oliveira em finais dos anos 1970. Quando os antropólogos ingleses realizaram as suas investigações nos territórios coloniais dos continentes africanos e asiáticos na primeira metade do século XX, a sua ética profissional impedia que participassem dos interesses e das pressões das comunidades em que estavam inseridos. Restritos ao papel de cientistas, faziam um “diagnóstico” e ofereciam consequências “previstas” segundo as expectativas da ciência positivista. Tal modo de percepção de sua atividade esteve orientado pela própria história colonial, em que
“Os antropólogos, filiados por tradição e carreira às universidades, não integravam os centros de decisão da política colonial. Em tais círculos, a opinião emitida pelo antropólogo era ouvida primordialmente pelas informações substantivas que trazia sobre costumes pouco conhecidos dos povos administrados.” (Oliveira 1979: 15).
Essa neutralidade epistemológica consistia, portanto, em uma estratégia de terem seus relatórios e teorias aceites nos espaços de governo. A realidade pós-2.ª Guerra Mundial alterou substancialmente esse quadro, quando a antropologia começou a ser marcada tanto por sua área de conhecimento como pela participação cidadã. Conhecida também como “antropologia aplicada”, a sua responsabilidade consistia no desenvolvimento de teorias sobre a sociedade, mas também em um compromisso com a “melhoria” das comunidades. A participação nas decisões comunitárias e nas políticas públicas por parte do antropólogo levou a uma dependência dos fins e valores daqueles com os quais estabeleceu um compromisso. Por outro lado, havia o risco de etnocentrismo que em geral acompanha os projetos marcados por valores humanitários e também a inscrição sutil dos regimes de tutela que povoam nossas mentes sempre que nos tornamos responsáveis pelos atos de outros considerados em uma posição inferior (Souza Lima 1998).
Há ainda uma terceira experiência de mediação, descrita por Oliveira, que é mais recente e está inserida nas fundações, nas universidades e em todo o aparato institucional que se desenvolveu em torno dos processos democráticos. O que temos hoje como padrão é o profissional da antropologia a assumir também o lugar de administrador. A comunidade deixa de ser uma simples beneficiária daquele conhecimento para integrar os processos de decisões: uma “executante efetiva”. A ciência é orientada para seguir o grau de realização dos interesses da comunidade em um “processo de descobertas realizadas em diferentes instâncias” (Oliveira 1979: 17).
As descobertas são intensamente vividas nas relações que a profissão da antropologia pede dentro da universidade plural. Mediar um processo de formação como o que apresentamos nesta secção é procurar por conexões e corresponsabilidades que não se dão apenas com as comunidades, mas também com parceiros intelectuais, agências governamentais locais, nacionais e internacionais - um esforço que, pelo seu tamanho, precisa ser feito em comunidade, como diretriz para a formação de equipes que operem segundo objetivos e valores acordados. A teoria que vivemos e que se constrói no decorrer de um processo formativo de orientação na universidade não está mais associada a grupos teóricos específicos, a linhagens intelectuais que defendem determinadas posições no campo intelectual, como no passado em que o espaço de atuação política estava distante do profissional da ciência. Estamos aqui falando de um outro aspecto da interação que associa a ciência à administração e exige dos docentes (e também dos discentes) essa atenção acurada para questões fundamentais: Que princípios e valores regem a minha prática? Que formas e áreas de intervenção o meu saber apresenta e representa? Será o meu projeto viável histórica e culturalmente, quando observo a realidade à minha volta, e aceite pela comunidade que estudo? Além destas questões sugeridas por Oliveira (1979), ainda há que se pensar quais são as parcerias estratégicas dentro e fora da universidade que permitem fortalecer a atuação de acordo com esses objetivos propostos. A universidade não é meramente um mecanismo formal de execução de políticas, mas antes é constituída por “arenas em que grupos estratégicos interagem em conflito, acomodam-se e atraem aliados para sustentar suas relações” (Wolf 2003: 73).
Estamos diante de uma reflexão sobre para quem foram produzidas as teorias e dentro de que cenários. Se pensarmos que essas questões também estão colocadas para a orientação dos estudantes africanos e asiáticos, muitos deles oriundos de comunidades rurais com modos de perceber a agricultura, seus participantes e vínculos comunitários e relações com os processos de formação de Estado distintos, a relevância dessas perguntas fica ainda mais evidente. A proposta de pensar criticamente sobre as políticas públicas gestadas a partir de um curso de agronomia, seus vínculos com os grandes produtores rurais (agronegócio) e o “problema” da agricultura local, como vemos na situação etnográfica relatada sobre o Ceará, já vem sendo bastante discutida (Almeida 2010). Entretanto, o encontro interdisciplinar - com a triangulação entre docentes e discentes envolvidos em valores de democracia e nas vantagens de estudos comparados entre as diferentes sociedades - pode facilitar entendimentos e contrapontos de modo a construir novas comunidades intelectuais e políticas mais abertas à integração.
Em projeto e em processo
As experiências inscritas no projeto de integração internacional acadêmica que foram apresentadas aqui são marcadas por questões sobre o encontro entre geografias culturais plurais que colocam em jogo pertencimentos, processos de relacionamento entre grupos, gramáticas e formas de mediação. Em meio aos projetos de expansão da universidade no Brasil nas últimas décadas, apresentamos neste artigo a relação entre docência e seu lugar na produção de conhecimento e os diferentes pertencimentos construídos historicamente por meio de vínculos territoriais nacionais e étnico-raciais.
A partir das situações etnográficas narradas durante a prática docente (em sala de aula e orientação), procurou-se fazer emergir o lugar da mediação da antropologia que não está limitada às representações culturais e sociais já adquiridas sobre os segmentos da sociedade. Ela envolve a realização de um inventário bem mais profundo e constante sobre as práticas e os discursos de comunidades, instituições e valores com os quais o docente convive no cotidiano. Balandier notou a necessidade de se acrescentar às teorias sobre o presente uma “sensibilidade histórica”, mesmo que nos custe a desilusão e o desencantamento (Balandier apudStoler 2011). Investigar o passado no presente pode ser desconfortável para todos os participantes e os envolvidos no cenário pós-colonial, mas, por outro lado, pode também ser um caminho para criarmos elos de convívio e práticas democráticas.
A antropologia se apresenta como um conhecimento em ação orientado pela responsabilidade por esse “presente”, que se transformará em um futuro menos ilusório e mais consciente das configurações do campo acadêmico, suas estruturas e gramáticas e interconexões políticas. Uma antropologia aberta ao coexistir intelectual diverso e envolvida com a redução das violências e das assimetrias que herdamos.