Introdução
Ao analisar os estudos sobre fluxos migratórios e diaspóricos contemporaneamente,1 é inevitável pensar na amplitude e capilaridade que a diáspora chinesa vem conquistando ao redor do mundo, com foco especial na que ocorre nos últimos anos em direção a países do chamado “Sul global” (Tan 2013). Das grandes potências globais às pequenas economias insulares, a maior parte das nações contam com a presença, mesmo que mínima, de uma população de origem chinesa em seu solo. Notadamente conhecida por ser uma diáspora comercial, o fluxo de chineses2 para os mais diferentes países do mundo é marcado por uma forte capilaridade pelo comércio das terras onde eles aportam.
Essa dinâmica também se reflete em Cabo Verde, país-arquipélago na África Ocidental, cujas chegadas, encontros e permanências não acontecem sem tensões. Tendo esse cenário e locus de pesquisa em mente, pretendo analisar aqui os rumores tecidos pelos cabo-verdianos acerca da presença de imigrantes chineses no comércio em seu país. Na tentativa de compreender esse conjunto de acepções muitas vezes contraditórias, apresento as tensões, rivalidades e acolhimentos que a população cabo-verdiana apresenta em relação a esses imigrantes para, assim, analisar os rumores como formas narrativas que possuem o poder de construir as realidades sociais e as narrativas da nação (Trajano Filho 2002).
Partindo de contextos de relações comerciais nas quais esses grupos se encontram em Cabo Verde, focarei em dois conjuntos de narrativas que foram compartilhadas comigo a partir de dois momentos de pesquisa distintos. O primeiro diz respeito ao meu trabalho de terreno de licenciatura (Venancio 2017), realizado entre janeiro e março de 2017. À época, voltei minha atenção ao papel de mulheres cabo-verdianas que teciam “redes de comércio transnacional” (Grassi 2003: 78) a partir de Mindelo, na ilha de São Vicente, em direção a diferentes países no Atlântico, como Portugal, Estados Unidos, Brasil e Senegal.
O segundo conjunto de discursos diz respeito à minha investigação de mestrado, na qual busquei compreender o processo de emergência e consolidação da produção de um artesanato “genuinamente” cabo-verdiano para abastecer o mercado de souvenirs com produtos nacionais (Venancio 2020). Esta pesquisa de terreno foi realizada na ilha de Santiago entre fevereiro e junho de 2019 junto a comerciantes e produtoras de souvenirs.
Em ambos os momentos, tive o comércio como espaço privilegiado para a captação dos rumores a respeito da presença chinesa nessa seara laboral. Nos dois contextos etnográficos tive majoritariamente como interlocutoras de pesquisa mulheres cabo-verdianas de extratos populares que, por sua vez, detinham centralidade na reprodução econômica dos seus agregados familiares. O foco nas narrativas apresentadas por mulheres comerciantes e/ou artesãs deu-se por estas representarem 4/5 da população economicamente ativa em Cabo Verde, responsável por desenvolver o comércio nacional. Também elas são responsabilizadas “socialmente perante situações de sucesso e fracasso na educação e criação dos filhos” (Fortes 2015: 152), assim como na prática a mulher cabo-verdiana é vista como aquela que chefia as famílias, enquanto os homens na condição de companheiros/cônjuges são percebidos como um vínculo frágil (Lobo 2016).3
Desta forma, viso aqui pensar como os rumores que circulam no cotidiano são capazes de construir o social - ou seja, de criação das teias de significado que sustentam a coesão social - nos contextos analisados, produzindo aproximações e distanciamentos em um cenário marcado pela ideia da morabeza.4 Assim, o presente artigo está estruturado da seguinte forma: inicialmente, trago um breve histórico das relações entre as duas nações para situar o/a leitor/a. Nas duas seções seguintes, apresento separadamente os rumores e narrativas produzidos em cada um dos contextos etnográficos previamente descritos. Na sequência, busco retomar as ideias apresentadas a partir das proposições dos teóricos dos rumores e, a partir do todo, teço as conclusões às quais cheguei.
Um breve histórico das relações China-Cabo Verde
Na condição de Estados nacionais, a proximidade entre Cabo Verde e China começou logo em 1976, ano seguinte à independência cabo-verdiana, momento no qual o jovem país africano detinha algum alinhamento com o espectro da esquerda no contexto vigente da Guerra Fria. Naquele período, o país asiático foi um dos primeiros a fixar embaixada em Cabo Verde, mesmo que o embaixador só fosse ter residência permanente a partir de 1985. Nas décadas seguintes, a relação entre os dois países foi-se estreitando cada vez mais. A edição do dia 28 de dezembro de 1992 do jornal A Semana dedicou uma página inteira somente para a cooperação entre os dois países, relatando a entrega do Palácio da Várzea, ou Palácio do Governo de Cabo Verde. A obra foi realizada por meio de um empréstimo a juros nulos concedido pelo governo chinês ao cabo-verdiano, de forma semelhante ao que ocorreu quando da construção da Assembleia Nacional na década anterior (Monteiro 1992).
Tendo em vista que “as políticas de assistência [e cooperação] internacional são também utilizadas como expediente para a construção de hegemonia dos doadores em diferentes países” (Silva 2008: 165), as relações entre os dois países são pautadas por dádivas e contradádivas - e, assim, hierarquias. Desta forma, Tavares avalia que o interesse chinês nas ilhas de Cabo Verde se deu pelo país ter
“Uma democracia consolidada, possui estabilidade económica, política e social, apresenta indicadores económicos aceitáveis, em analogia com os países da sua sub-região, e é detentora de uma localização geográfica de interesse estratégico. Essas vantagens comparativas em relação aos outros países da África Ocidental, são condições que potencializam não só as parcerias, mas também o investimento externo, pois, a segurança é actualmente um elemento de vantagem competitiva entre as nações.” (Tavares 2010: 122)
Assim, se Cabo Verde não é um país que pode fornecer matéria-prima para o mercado industrial chinês, capital bem quisto pelo país asiático, a contradádiva ofertada pelo país-arquipélago em resposta aos empréstimos sem juros fornecidos pela China é a sua posição geográfica estratégica, que o coloca na centralidade dos fluxos que ligam os três continentes banhados pelo Atlântico, garantindo, assim, vínculos com as grandes economias (Justino 2014).
Com a formalização e o fortalecimento dessa relação binacional, os primeiros chineses começam a fixar residência em Cabo Verde no ano de 1993. Dois anos depois, em 1995, a primeira loja chinesa é aberta em solo cabo-verdiano. Mesmo com o início dos acordos comerciais ainda na década de 1990, as importações de produtos chineses reduziram nos primeiros cinco anos da década de 2000, voltando a aumentar em 2005 e tendo triplicado no ano 2009 (Haugen e Carling 2005; Tavares 2010).
A partir de 2006, a parceria entre os dois países intensifica-se no que diz respeito ao âmbito das trocas econômicas, passando a contar com uma nova série de acordos de cooperação, financiamentos de grandes obras no país insular e altos empréstimos sem juros ou com taxas baixas, como já visto. No meio dessas obras, houve a reestruturação e ampliação de setores ligados à atividade portuária, como o Porto Grande do Mindelo. Isso facilitou o recebimento e o escoamento da produção industrial chinesa em/a partir de Cabo Verde, de onde a China pode estender sua rede de acordos comerciais para os demais países do continente africano (Justino 2014; Tavares 2010) - especialmente aqueles da África Ocidental.
Para além do regime de cooperação internacional, um fator que favoreceu a inserção dos chineses nos últimos 15 anos foi a ascensão de Cabo Verde de “país menos avançado” à categoria de “país de rendimento médio” pela ONU em 2004, que ocorreu através de uma transição finalizada em 2007 (Justino 2014: 54). Com a redução dos investimentos que vinham de países europeus e da União Europeia em direção a um país no qual os financiamentos estrangeiros são fundamentais para girar a economia e dar continuidade ao desenvolvimento, a China encontrou “portas abertas” para se estabelecer como uma das principais nações amigas de Cabo Verde.
Mesmo que o contingente populacional chinês seja relativamente baixo em Cabo Verde, contando com 1144 indivíduos em 2013 (Governo de Cabo Verde 2018: 16), tornou-se comum andar pelas distintas zonas das diferentes ilhas que formam o país e deparar-se com estabelecimentos comerciais visivelmente marcados por serem de propriedade de chineses, seja pelas cores, nomes e/ou escrita em língua chinesa em suas portas. Da rua pedonal no coração da cidade da Praia, capital cabo-verdiana, aos pequenos vilarejos na ilha de Santo Antão, é possível encontrar uma dessas lojas. Com essa capilaridade da presença chinesa no comércio cabo-verdiano, tem início uma série de rumores e tensões, especialmente em relação aos nacionais que se veem em desvantagem nessa seara. Para entender esses discursos, passemos para as próximas duas partes.
Mindelo na rota da seda: os chineses no comércio de produtos importados
Desde o meu primeiro contato real com o arquipélago, na escala realizada na ilha de Santiago, quando passei pelo Plateau, zona central da cidade da Praia, pude perceber que a diáspora chinesa possuía destaque no comércio nacional. Essa impressão se estabeleceu porque o dia em que lá cheguei, 13 de janeiro de 2017, era feriado, dia da Democracia e da Liberdade. A despeito da importância do feriado, havia alguns poucos estabelecimentos abertos, como restaurantes, bares e o Mercado Municipal da Praia. Das lojas que não ofertavam gêneros alimentícios, as únicas abertas eram pertencentes a chineses e, embora quase não houvesse movimento nas ruas, não havia uma loja chinesa vazia.
Ainda na cidade da Praia em 2017, chamou-me a atenção o hotel-cassino que estava em processo de construção às margens da praia da Gamboa, com financiamento de empresas de Macau - região administrativa especial chinesa. Se neste momento a grandiosidade da obra me chamou a atenção, em meu retorno no ano de 2019 eu fiquei ainda mais surpreso, uma vez que as águas da Gamboa estavam constantemente turvas - dificultando sua utilização pelo público geral. Isso se devia às obras que englobavam não só um extenso pedaço da praia, como também o ilhéu de Santa Maria.
Já em Mindelo, ao contrário do ocorrido na cidade da Praia, as casas comerciais chinesas seguiam o horário de funcionamento oficial das demais lojas da cidade. Todas elas abriam às oito horas da manhã, permaneciam fechadas entre as 13 e 15 horas para o almoço, quando reabriam, e as vendas seguiam até às 18, 19 horas, a depender do movimento. Elas não abriam nem aos domingos nem em feriados. Se as lojas dos chineses eram encontradas majoritariamente na Morada, bairro central do Mindelo e onde estavam localizadas as lojas tradicionais da cidade5 - reproduzindo o padrão de fixação da diáspora comercial chinesa (Haugen e Carling 2005) -, é preciso salientar que elas variavam em tamanhos e nível de sofisticação, como salientado por Justino (2014) a partir do seu estudo na cidade da Praia. Essas casas comerciais iam de lojas onde previamente funcionavam boutiques voltadas para as classes altas, a aquelas que funcionavam em espaços apertados no subsolo ou primeiro piso de prédios.
Nesta cidade, ao me aproximar da população local, pude apreender que a presença dos chineses no arquipélago é dotada de opiniões dúbias e por vezes conflitantes por parte dos nacionais. Por um lado, há quem defenda e, por outro lado, há quem recrimine suas práticas comerciais. O principal embate que eu vi acerca do assunto foi durante uma discussão entre dona Helena6 e sua amiga Suzy, que chegou em sua loja durante uma de nossas conversas. Enquanto dona Helena defendia ferrenhamente a presença dos chineses em Cabo Verde, com o argumento de que com a chegada dos chineses, “agora muita gente tem o que vestir”, Suzy responsabilizava-os pela quantidade expressiva de lixo acumulado na ilha de São Vicente nos últimos anos, lixo este que se encontrava sem nenhuma perspectiva de tratamento, segundo ela. Esse detrito teria surgido a partir da possibilidade de comprar bens por preços menores do que os anteriormente encontrados no país, associado à baixa qualidade dos produtos fornecidos pelos chineses, que seriam altamente descartáveis. Aqui, o diálogo entre as duas reflete a ambiguidade que cerca a presença chinesa não só em Mindelo, mas de certa forma no país como um todo, assim como em diferentes lugares do continente - no caso angolano, por exemplo, a imagem dos chineses flutua entre “um grande irmão” e um “mafioso” (Jura, Kaluzynska e Carvalho 2018).
Embora a fala de Helena, uma das raras comerciantes favoráveis à entrada dos chineses no comércio cabo-verdiano, cause um certo estranhamento, ela faz muito sentido se observarmos que os chineses não competiam diretamente com ela. Seus negócios se centram exclusivamente no ramo de cosméticos, especialmente aqueles adquiridos no Brasil, enquanto os chineses estavam majoritariamente nos campos dos souvenirs e do vestuário - preservando a sua mais-valia. Ainda, ela vai ao encontro do otimismo encontrado por Haugen e Carling (2009) ao inquirirem cabo-verdianos sobre a presença sínica em seu país. Para esse grupo, 85% dos respondentes aprovaria a presença dos chineses no arquipélago. Por outro lado, a maioria das comerciantes com quem conversei em 2017 e 2019 fazia parte dos 15% que não enxergavam essa entrada chinesa em Cabo Verde com bons olhos.
Como disse Célia, outra comerciante transnacional mindelense, “com os chineses as coisas complicaram mais e as vendas reduziram substantivamente”. A queda nas vendas dos comerciantes cabo-verdianos, em associação à crise econômica pela qual o país estava passando, era o principal argumento para repudiar a presença dos chineses no âmbito comercial. Até nos produtos de carnaval, que eram de primazia das comerciantes cabo-verdianas que seguiam para o Brasil para adquiri-los, os chineses teriam adentrado. Em 2017, os chineses estariam vendendo “essas coisas praticamente dado”, como disse Célia na tentativa de justificar a existência de itens de carnaval de temporadas anteriores encalhados nos estoques das lojas.
O mesmo sentimento pessimista foi partilhado por Bia. Para a comerciante dona de várias bancas na praça Estrela, importante centro comercial em Mindelo, “tem aproximadamente dez anos que eles chegaram na cidade e, do jeito que as coisas vão, eles vão fechar tudo isso. Mais uns anos e os pequenos negócios não vão resistir”. Contudo, a crise que o país enfrentava seria tão séria que instantes após tecer essa afirmação, Bia complementou a sua fala com “até para os chineses, que acabou com o nosso negócio, não ‘tá muito bom”.
Apesar disso, as divergências sobre a presença dos chineses em Cabo Verde possuem outras nuances. Enquanto alguns creem que os chineses só vão buscar o dinheiro cabo-verdiano para levar para terra deles, ou mesmo que os chineses ajudam outros países como Cabo Verde apenas para que recebam a população deles, outras pessoas, como dona Helena, conseguem relativizar a necessidade da presença deles no país. Esse também era o caso de Tânia que, mesmo achando que os chineses representavam um mercado desleal dentro do país, via com bons olhos a presença deste conjunto de imigrantes, uma vez que eles estariam saindo do seu país para conseguir a vida, assim como os cabo-verdianos fazem.
“Como nós cabo-verdianos saímos pra procurar uma vida melhor em outros países, eles também saem, né? E eles são um povo bem trabalhador, trabalham muito. E com os chineses muita gente teve acesso a coisas que antes elas não tinham acesso. Hoje em dia raramente a gente vê uma criança ou uma pessoa descalça. Os chineses deram acesso a todo mundo.” [Trecho da entrevista realizada com Tânia no dia 9 de fevereiro de 2017]
Tendo em vista essa comparação feita entre a situação dos chineses e dos cabo-verdianos, que configuram duas diásporas, mesmo que distintas entre si, é interessante perceber que os chineses não são vistos no mesmo patamar de poder que os imigrantes provindos de países europeus. Nos casos em que as interlocutoras teciam reclamações acerca da presença dos chineses em Mindelo, eles eram enquadrados a partir de uma dupla percepção: ora eles eram vistos como um grupo “à margem e na parte inferior da hierarquia social” (Sayad 1998: 47), especialmente em razão do alto nível de endogamia matrimonial e por serem vistos como pessoas que vão buscar melhores condições de vida na migração de forma similar ao que fazem os cabo-verdianos; ora os chineses eram taxados de parasitas, que iriam para Cabo Verde extrair o que pudessem de lá. Esta última visão ancora-se na forma como a política externa chinesa junto às elites político-econômicas africanas - para além de Cabo Verde - atuou como caminho para garantia de uma maior visibilidade do país asiático no continente africano.7
As narrativas que as comerciantes cabo-verdianas apresentavam rotineiramente eram de que, com a entrada dos chineses no comércio em Mindelo, houve o agravamento da crise econômica para elas, fazendo com que enfrentassem mais obstáculos para buscar e receber os produtos do que os seus concorrentes. Um ponto curioso dessa rivalidade e culpabilização dos chineses pelo difícil momento nas vendas em 2017 é que estudos realizados desde o começo da década de 2000 já apontam a presença desse discurso entre as comerciantes cabo-verdianas, como o de Haugen e Carling (2005); assim como o da suposta menor qualidade dos produtos vindos da China.
Outra questão elencada para desqualificar os produtos chineses - e os próprios chineses - diz respeito ao fato de eles tirarem fotos dos produtos que são tidos como novidade e, no mês seguinte, chegar um contêiner cheio de réplicas, como no caso da sandália brasileira Havaianas, que é vendida por eles como Heveienes. Isso era malvisto pela população local por tirar a exclusividade dos produtos usados pelos mindelenses, especialmente aqueles enviados/trazidos por parentes e amigos que estão no exterior. Em um país onde se estima que cerca de meio milhão de cabo-verdianos e seus descendentes estejam na diáspora, essa prática impactaria no capital migratório dos seus habitantes. Para quem ficou, mas possui afins emigrados, deter produtos “exclusivos” é uma forma de produzir distinção frente àqueles que ficaram (Lobo e Venancio 2017), mas não têm quem envie produtos para eles.
Outra reclamação comum realizada pelas comerciantes sobre os seus rivais é a suposta falta de controle sobre a qualidade dos produtos que eles vendem. Para Maria,
“os ‘chineses’ são universais, estão a invadir toda parte. Por isso o comércio diminuiu consideravelmente. Ao menos lá (no Brasil) eu acho que é diferente, eles têm controle de qualidade, né? Mas aqui não, toda porcaria entra. Há lojas chinesas aqui que a gente não consegue estar nem meia hora ou uma hora, o cheiro é tão forte, os produtos, os plásticos, as borrachas, é tão forte… Ao fim de meia hora, 20 minutos já ‘tá sufocado do cheiro.” [Trecho da entrevista realizada com Maria em 9 de fevereiro de 2017]
Durante a pesquisa de terreno, pude sentir um forte cheiro de plástico que saía das lojas chinesas, principalmente nas menos arejadas e localizadas no subsolo. O odor emanaria, de acordo com as minhas interlocutoras, por causa da diferença do material dos produtos que os chineses mandavam para Cabo Verde. Segundo Célia, “em Cabo Verde e África eles entram com toda a porcaria, no resto do mundo são produtos de mais qualidade”. Para exemplificar a situação, ela me disse que “os tecidos que eu compro no ‘chinês’ em São Paulo são melhores do que os que eles vendem na África”.
Não obstante, os chineses não são os únicos acusados de enviar material de menor qualidade para países africanos. No comércio de roupas de segunda-mão que tinha lugar na Zâmbia, Karen Hansen (2000) aponta que os vendedores e compradores rotineiramente argumentavam com ela que os melhores produtos seguiam para países da América Latina e o resto, como as roupas mais esfarrapadas, teriam como destino países africanos. Todavia, tal tese não foi comprovada em nenhum dos casos, permanecendo na via do fladu fla - termo no crioulo cabo-verdiano que indica fofocas, rumores e afins. Para o caso chinês especificamente, a etnografia da antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado (2005) aponta como a linha que divide a produção de bens “originais” e “cópias” é tênue, sendo que muitas vezes a mesma fábrica produz ambas as peças, sendo que o diferencial são as etiquetas e itens de acabamento.
Outra faceta dos rumores sobre os chineses diz respeito às benesses financeiras que eles receberiam. Cada pessoa contava uma história diferente sobre esses tratados entre as nações, que envolveriam isenção de taxas alfandegárias para as cargas de origem chinesa; supostas isenções de taxas outras; e mesmo benefícios nos impostos nos cinco primeiros anos em que eles ficarem em Cabo Verde, não pagando as tarifas (alguns chegam a aumentar para dez).8 No entanto, a veracidade das afirmações foi refutada pelos órgãos oficiais alfandegários, como apontam Marzia Grassi (2003) e Pedro Tavares (2010). A primeira obteve resposta negativa acerca destes rumores em conversas com os funcionários da Direção-Geral da Alfândega, na cidade da Praia. Na mesma via, Tavares argumenta que não existem documentos estatais que comprovem a possibilidade de realizar as ações de isenção fiscal.
As condições de trabalho de seus empregados, uma vez que todas as lojas chinesas contam com vendedores cabo-verdianos e caixas chineses, formam outro ponto de tensão. Ao ser abordada sobre a sua opinião acerca os chineses, Marta se pôs a pensar nos funcionários deles. “Imagina o pessoal que trabalha lá?! Dizem que as condições de trabalho nas lojas dos chineses são bem precárias. Dizem que eles pagam abaixo do salário e as pessoas têm que trabalhar mais tempo”. Ela não foi a única a me falar que os chineses pagam muito mal e que os seus funcionários trabalham muito e em condições precárias. Estes boatos foram confirmados no final da década de 2000 por Pedro Tavares (2010). Para o autor, a escassez de empregos formais no país justificaria o aceite de tais condições laborais, mostrando a perversa faceta da exploração capitalista e neoliberal presente nas cooperações internacionais, nas quais o país mais poderoso economicamente se aproveita das precariedades dos demais para lucrar.9
Em busca do genuinamente cabo-verdiano: a concorrência no mercado de souvenirs na Cidade da Praia
“Se quer produtos da China, vá para China!”. Essa frase, dita a mim por Simone ainda nos primeiros dias da minha pesquisa de campo para o mestrado, indicou a tônica da maioria das conversas que eu teria com artesãs e comerciantes cabo-verdianas acerca da presença chinesa no ramo de souvenirs. A presença do grupo seria tão disseminada que uma artesã afirmou que “todas as lojas vendem produtos chineses, até a do aeroporto”. Todavia, as reações não eram nenhuma surpresa: a tensão presente na fala de Simone acerca da presença de produtos chineses no mercado cabo-verdiano de souvenirs emergiu já na notícia que me levou ao tema.
Com o título “Cabo-verdianas lutam por artesanato nacional, contra souvenirs made in China”, o jornal nacional Expresso das Ilhas trouxe uma reportagem sobre o projeto Mãos de Cabo Verde que dizia o seguinte:
“O artesanato genuinamente cabo-verdiano foi recentemente recuperado por dezenas de mulheres que, organizadas em cooperativas, criaram uma marca e divulgam agora produtos como objetos em pedras vulcânicas do Fogo, cerâmica de Santiago ou acessórios com ‘panu di terra’.
A iniciativa […] visou combater a ausência de artesanato verdadeiramente cabo-verdiano no mercado e impedir que esta falta continuasse a ser preenchida com produtos alusivos ao país, mas ‘made in’ China ou proveniente de outros países africanos.” (Expresso das Ilhas, agência Lusa 2018)
Ao mesmo tempo em que o projeto Mãos de Cabo Verde surgiu, outros também foram criados para certificar, fomentar e recuperar a produção artesanal do arquipélago frente à entrada de produtos chineses e da África continental. Todavia, nos discursos das minhas interlocutoras, como o de Simone, é notável a maior animosidade com os artigos que têm por origem o país asiático. Essa oposição criada frente às concorrentes chinesas era sempre explicada pelas artesãs e comerciantes cabo-verdianas pela via da “concorrência desleal”, ponto também presente no caso do comércio em Mindelo.
No caso do comércio de souvenirs, essa concorrência desleal se daria, de acordo com os discursos, pelo valor final dos produtos. Enquanto um chaveiro produzido manualmente por artesãs cabo-verdianas custaria para a cliente cerca de 500 escudos, nas lojas chinesas um artigo semelhante, feito industrialmente e em larga escala, poderia ser vendido por aproximadamente 50 escudos, ou seja, 10% do valor. Assim como no caso do comércio de produtos importados em Mindelo, a disparidade teria que ver com o fato de os produtos chineses serem produzidos e adquiridos em maior escala. Contudo, se em Mindelo a diferença no valor tem por base a conjuntura de que as comerciantes cabo-verdianas nem sempre compram diretamente das fábricas e no atacado, além de terem de arcar com custos de passagem e hospedagem nos países de destino; no caso da cidade da Praia a discrepância no preço final diz respeito especialmente ao tipo de processo de produção, que é artesanal e demanda mais tempo para a produção de uma única peça. E nessa disputa é possível que o/a turista dê preferência a produtos mais baratos, uma vez que para a maioria deles/as a origem dos produtos pouco importaria (Venancio 2020).
Na disputa pelo genuinamente cabo-verdiano, a falta de originalidade atribuída aos produtos chineses é construída por duas vias. A primeira delas é por conta da massificação da produção dos souvenirs, o que, para os cabo-verdianos, tiraria a “essência” e o cuidado que somente um trabalho artesanal seria capaz de imbuir na vida social dos souvenirs. Em contrapartida, o artesanato “genuinamente” cabo-verdiano é apresentado como aquele composto por peças produzidas em Cabo Verde, por mãos de cabo-verdianas - especialmente as de mulheres, que representam detalhes da formação histórico-cultural do país, feitas (em sua maioria) com produtos extraídos da terra. São peças cujos formatos e matéria-prima remeteriam à identidade nacional do país, ou seja, às suas cores, às suas atividades culturais tradicionais, entre outros.
A outra questão está ligada diretamente ao processo de produção em larga escala que seria “próprio” dos chineses. E o que não faltavam eram acusações de como se iniciaria esse processo de produção de cópias. De forma similar ao retratado na seção anterior, Antônio me explicou que “eles [os chineses] vêm com uma máquina escondida, tiram a foto escondida e fazem milhares”, agindo como “espiões”. Esse tipo de prática despertaria os mais distintos sentimentos não apenas na comunidade de artesãos e comerciantes cabo-verdianos, como também entre os imigrantes da África continental que residem no país-arquipélago. Aminata, por exemplo, afirmou: “odeio os chineses. Eles estragam tudo. Se eles entram na minha loja eu mando sair” (figura 1).
Nota: As reclamações de mulheres oriundas de outros países oeste-africanos e que residem em Cabo Verde não se restringem aos souvenirs. Em conversa particular pelo aplicativo Messenger em outubro de 2023, uma amiga bissau-guineense reclamou da venda de bissap e calabaceira em lojas chinesas na capital cabo-verdiana, produtos que eram vendidos por bissau-guineenses e senegalesas para garantir auferimento de renda para as suas famílias.
Seguindo essa tônica, Dulce, uma figura importante no movimento associativista das artesãs da ilha de Santiago, apontou que “os chineses estão desvalorizando o artesanato cabo-verdiano, estão a fazer cestaria, panaria, etc.”. Por possuírem um capital econômico para aquisição de maquinário a que a população cabo-verdiana não teria acesso, seria mais fácil, rápido e menos dispendioso para eles a fabricação dos souvenirs do que para os artesãos cabo-verdianos. Por conta disso, para Dulce não seria nem possível falar em concorrência, uma vez que, na sua concepção, para haver concorrência seria necessário existir o mínimo de igualdade entre os competidores, o que para ela não ocorreria nesse caso.
Mais uma vez, outro déficit apontado para desqualificar os produtos de procedência chinesa é a questão da qualidade. Nesse ponto, voltaram a se unir comerciantes cabo-verdianas e senegalesas. Mariame, comerciante senegalesa com formação em hotelaria e que estava em Cabo Verde há mais de uma década, pontuou que o produto “chinês não tem qualidade, pode ser bonito até, mas não tem qualidade”. Embora a senegalesa não tenha se detido a explicar o que ela compreenderia como a baixa qualidade dos produtos chineses, percebe-se que esses detalhes talvez não tenham tanta importância se vislumbrarmos como esse discurso é rotineiramente repetido nas mais diferentes esferas do comércio em Cabo Verde. Ou seja, estando na categoria de rumores, a importância de observar esses discursos centra-se muito mais no poder que eles possuem de construir o social, ou seja, construir verdades sobre o cotidiano e as relações sociais, do que perceber se essas informações são verdadeiras ou falsas (Trajano Filho 2002: 91).
Mesmo com todo esse conflito entre as comerciantes cabo-verdianas e os chineses, é preciso elencar um fato central: das lojas chinesas localizadas no Plateau, poucas são aquelas que comercializam souvenirs. Das 12 localizadas na avenida Amílcar Cabral, apenas quatro os vendiam, que sequer eram o carro-chefe da loja. Entre os produtos vendidos estavam copos de dose, canecas, estatuetas de esguias mulheres africanas feitas em porcelana, chaveiros, ímãs, cangas, bolsinhas porta-moedas, camisetas e colares de sementes. Todos estes ou com as cores de Cabo Verde, ou com símbolos remetentes a uma “africanidade” genérica, como no caso dos ímãs.
Ainda vale pontuar que poucos são os turistas que frequentam diretamente as lojas chinesas que vendem souvenirs. É aqui que entra a fragilidade dessa relação, que é impossível ser lida apenas pela via dos vilões e mocinhos: os turistas costumam comprar esses souvenirs made in China em lojas de cabo-verdianas e imigrantes da costa africana, seja no Plateau, no mercado do Sucupira ou no Pelourinho, na Cidade Velha. Neste caso, os chineses atuam muito menos como ponto final do comércio de souvenirs por eles importados e mais como intermediários entre esses dois mundos, tensionando todo o conjunto de rumores. Não à toa, se você comprasse apenas um ímã nas casas comerciais chinesas, ele custaria 120 escudos (pouco mais do que 1 euro). Todavia, se a pessoa levasse acima de dez unidades, o preço cairia para 100 escudos. E esse mesmo ímã era revendido por mulheres cabo-verdianas e senegalesas nas bancas do mercado do Sucupira por 200 escudos (menos do que 2 euros).
Uma via para explicar essa adesão aos produtos chineses em lojas e bancas de cabo-verdianas é o fato de que o comércio em Cabo Verde é marcado por ser uma atividade econômica que concentra uma elevada quantidade de mulheres, parte delas chefes de famílias monoparentais (Grassi 2003; Venancio 2021). Assim, essa atividade, que oscila entre o formal e o informal, acaba por ser uma saída para sobrevivência dessas mulheres e de reprodução econômica das suas famílias. Como afirmou Antônio, “é difícil sobreviver vendendo apenas produtos da terra”. E essas mulheres - artesãs e comerciantes cabo-verdianas de forma geral - sabem muito bem disso, tanto que em suas lojas e/ou bancas os produtos vendidos têm diferentes origens, tudo para agradar os fregueses.
Contudo, não apenas as bancas do Sucupira vendem produtos de origem chinesa. Nas lojas que afirmam vender exclusivamente produtos genuinamente cabo-verdianos, é possível encontrar uma peça ou outra made in China, como camisetas, canecas e cangas. Esse cenário nos mostra que, entre discursos e práticas, a distância é grande e complexa, especialmente em um contexto de globalização do capitalismo no qual as fronteiras de circulação de produtos e matéria-prima aparecem tão esbatidas. Ao fim e ao cabo, ao contrário do mundo dos rituais analisado por Mariza Peirano (2002: 11), no universo das práticas e discursos cotidianos, nem tudo que é dito acaba por ser feito - e ambos podem ser facilmente separados.
Rumores: construindo o social
A partir dos casos apresentados, podemos perceber que os rumores são formas narrativas presentes em todos os lugares, cuja credibilidade depende, na verdade, de quem os conta (Ellis 1989: 323). Eles tendem a ser um fenômeno escorregadio e de difusa definição dentre as ciências humanas, como aponta Wilson Trajano Filho (2002) ao retomar distintas concepções sobre o termo produzidas por cientistas sociais, historiadores e psicólogos. Para o autor,
“os rumores têm uma estrutura de transmissão aberta, dramática e dialógica. Eles circulam por meio de interações face a face, o que os torna diferentes de outros meios de comunicação em que a mensagem é transmitida a partir de uma fonte única e conhecida, atingindo simultaneamente todos que a eles têm acesso. O rumor ganha energia através de uma série de diálogos em que os atores sociais criam e recriam o sentido das mensagens que veiculam.” (Trajano Filho 2002: 92)
Vale pontuar que este autor os pensa como formas narrativas produzidas (especialmente, mas não exclusivamente) no mundo oral,10 dotadas de força performativa e poder evocativo, que tendem a tematizar preferencialmente conflitos e intrigas - ou seja, aquilo que produz situações de tensão social no mundo do cotidiano. Por estas razões, os rumores devem ser compreendidos pela ótica dos atos performativos (Austin 1962), uma vez que, para a análise social, “a eles não cabe o julgamento de verdade ou falsidade” (Trajano Filho 2002: 91). O que deve ser levando em conta por nós, cientistas sociais, é o poder que eles possuem de afetar o tecido social, visto que eles narram as ambiguidades e as ansiedades da vida social, assim como os espaços de sociabilidade onde são produzidos e circulam.
Ao circular pelos espaços de presença da elite crioula bissau-guineense entre as décadas de 1980 e 1990, Wilson Trajano Filho se deparou com esta forma narrativa, que chamou a atenção do antropólogo “por causa do impacto provocado por onde circulam, pela velocidade com que são disseminadas e pelas consequências resultantes do próprio ato de contá-las” (Trajano Filho 2002: 85). Naquele contexto, essas historietas discorriam sobre comportamentos e o cotidiano dos integrantes das elites nacionais. Para esse conjunto de rumores, o autor deu o nome de “narrativas da nação”.
Muito embora nos casos aqui observados não teçam representações acerca das elites nacionais, tendo a acreditar que eles também se enquadram na categoria de narrativas da nação. Explico-me: para Trajano Filho (2002: 87), esse tipo de discurso tem por característica fundamental pôr em oposição o “nós” e um “outro”, geralmente estrangeiro e desumanizado - no caso, os chineses. Embora a sociedade cabo-verdiana seja marcada pela diáspora de seus cidadãos, o fato de os chineses serem imigrantes em terra de emigrantes não reduz as desconfianças e a criação de rumores sobre eles, que possibilitam a criação de narrativas que constroem os limites da cidadania e do pertencimento no país.
De acordo com Ana, produtora cultural residente na cidade da Praia com quem tive contato ao decorrer da pesquisa realizada em 2019, o que tornaria a presença da diáspora chinesa malvista aos olhos dos nacionais seria o fato de que eles “não investem aqui, não compram casas aqui, não criam raízes aqui”, embora essa seja a mesma postura dos cabo-verdianos na emigração. Se, por um lado, o projeto migratório é um fenômeno produtor do social, uma vez que garante a reprodução econômica e angaria diferentes tipos de capitais para aqueles que ficam - assim para quem vai -, ele possui também a sua faceta de “perturbação” da sociedade de recebimento, gerando novas tensões, ambiguidades e “perigos” onde, na teoria, reinava a coesão social.
Se Sayad (1998) nos ajuda a perceber que as tensões frente à diáspora comercial chinesa em Cabo Verde têm muito que ver com a questão da estrangeria que está pintada em suas faces, colocando-os em um lugar de alteridade extremada, é preciso complexificar um pouco mais a questão para esse caso específico. O colonialismo europeu produziu uma forma de racismo muito específica para com os povos do “Oriente” ao igualar o significado de cultura às práticas produzidas na Europa Ocidental (Sahlins 2003). Ao produzir esse fenômeno chamado por Edward Said (2007) de orientalismo, o mundo “ocidental” atuou ativamente na desumanização e infantilização dos povos não brancos. No caso sínico, é comum que este processo ocorra a partir do olhar de nojo e escárnio direcionado especialmente às práticas alimentares deste grupo.
Essa tensão, criada a partir da racialização das populações chinesas - que em Cabo Verde não são vistas como cooperantes (como são os europeus), mas como estranhos/estrangeiros11 - e que catalisa a produção de diversos rumores, é alicerçada em uma característica peculiar da diáspora comercial chinesa: ela está presente onde quer que haja mercado, sendo uma das poucas que chega a lugares remotos do mundo (Haugen e Carling 2005: 638-639), como os interiores das ilhas de Cabo Verde. Todavia, ao mesmo tempo que a diáspora chinesa está capilarizada pelo país oeste-africano, ela é marcada por ser altamente endogâmica, refletida no dado de que 87,8% dos chineses viajaram para Cabo Verde na companhia de familiares (Governo de Cabo Verde 2018: 28). Mesmo que a chegada deles seja concomitante aos fluxos migratórios oeste africanos para o Cabo Verde independente, a integração dos últimos tende a ser mais intensa e fluida do que a dos primeiros, muito embora ambas não ocorram sem violências (Venancio 2024).
Essas violências simbólicas direcionadas aos imigrantes chineses em Cabo Verde produzem outros rumores para além dos já retratados, como ocorre com os rumores de chamadas de telefone que teriam o poder de matar ou adoecer pessoas, mapeadas por Julien Bonhomme (2011: 126) entre 2004 e 2010. Vez ou outra emergem e capilarizam-se pelo território cabo-verdiano boatos de que os nacionais da China que residem no país seriam responsáveis pelo sequestro de crianças cabo-verdianas - embora os rumores sobre os chineses estejam presentes também na Europa (Rodrigues 2016). No início de 2018, essa categoria de rumor tomou proporções tão grandes que o presidente da Associação Amizade Cabo Verde-China precisou vir a público desmenti-los e pedir ajuda do governo cabo-verdiano para conter eventuais danos que poderiam surgir por conta deles (Teixeira 2018).12
Para onde vão as crianças desaparecidas em Cabo Verde é, sem dúvidas, uma questão que deve ser observada pela sociedade civil e autoridades locais. Não obstante, o direcionamento da culpa pelos problemas sociais para aqueles que detêm maior grau de alteridade radical frente aos nacionais está longe de ser uma questão exclusiva do contexto cabo-verdiano, muito menos exclusiva dos chineses. Em alguns momentos esse mesmo boato era direcionado aos brasileiros que viviam no país - ou seja, é destinado a estrangeiros dotados de alta capacidade de mobilidade. Ainda, esse tipo de rumor, que consiste em indicar estrangeiros que raptam crianças, também foi ouvido por Trajano Filho (2002) na Guiné-Bissau no fim do século XX. Naquele cenário as narrativas apontavam para a existência de “um agente indeterminado e desumano que aprisiona crianças guineenses em contentores no porto, com vistas a exportá-las para um destino incerto” (Trajano Filho 2002: 86-87).13
Assim percebemos, em consonância com o apontado por Julien Bonhomme, que as “accusations tend to target specific categories of strangers” (2012: 215), sendo sempre marcadas por xenofobia ou construídas em cima de tensões preexistentes. Não à toa, tratei o texto inteiro de “chineses”, essa categoria razoavelmente abstrata. Isso se deu porque essa forma narrativa tende a recair sobre categorias de estrangeiros, raramente sobre indivíduos específicos, o que reifica a desumanização destes ao tratá-los como um todo homogêneo e desprovido de individualidades.
Esse conjunto de narrativas, denominado na África francófona por radio trottoir ou radio cancan, e na África anglófona como pavement radio ou radio gossip (Ellis 1989), é um produto direto da modernidade africana que resultou no crescimento da anonimidade, que por sua vez reduziu a confiança entre as pessoas, acostumadas a lidar com conhecidos a todo tempo no dito “mundo tradicional” (Bonhomme 2012: 226). Todavia, é importante frisar que os rumores são mais do que “fofocas paroquiais” (Bonhomme 2012: 206), eles são ferramenta de construção do social, compreensão das tensões sociais e limitação de poderes.
Igualmente percebe-se que em relação aos rumores sobre os chineses em Cabo Verde, estes são ferramenta de controle econômico deste grupo de estrangeiros, uma vez que esses rumores estão sempre ligados a recursos financeiros, diferentemente daqueles que circulam no continente africano de forma geral, que atribuem os rumores à bruxaria e feitiçaria, outras duas manifestações de tensões da/na sociabilidade. Por outro lado, eles ocorrem justamente no espaço por excelência da reprodução dos rumores: os espaços comerciais (Bastian 1998), onde as mulheres comerciantes e artesãs vendem seus produtos. E sendo as mulheres cabo-verdianas vistas frequentemente como uma “classe menos favorecida e frágil”, como afirmou Simone, percebe-se que os rumores construídos acerca da presença chinesa no país retratam o que seriam para os cabo-verdianos “cenas de violência”, sejam elas físicas contra as crianças raptadas ou simbólico-econômicas, estas direcionas às chefes de família que seriam impedidas de angariar recursos para garantir a reprodução econômica do seu agregado familiar.
Ou seja, os rumores atuariam como o meio pelo qual os cabo-verdianos lidam com essa presença estrangeira. Em meio a profusão de rumores acerca de possíveis benefícios financeiros que os chineses receberiam do governo cabo-verdiano, o fato de 70% dos entrevistados no inquérito realizado pelo governo de Cabo Verde acerca da imigração chinesa no país não querer revelar a sua renda mensal (Governo de Cabo Verde 2018: 25) é algo bom para pensar, como diz o bom e velho Lévi-Strauss.
A partir desse cenário, que coloca os chineses como imigrantes dotados de uma condição econômica favorável frente às mulheres cabo-verdianas, que estariam na dizaraska14 para garantir o sustento delas e dos seus filhos, emergem os rumores de que os comerciantes nacionais estariam em uma “corrida comercial desleal” com os chineses, sendo este um dos fatores que estaria prejudicando a economia familiar doméstica. Desta forma, em um contexto de escassez de atividades laborais formais e que enfrenta frequentes crises econômicas, é preciso elencar o “inimigo interno” que seria disruptivo para a sociabilidade do país, alvo dos rumores. No caso cabo-verdiano, esse inimigo são os imigrantes chineses.
Conclusões
Ao pensar as fofocas transnacionais que circulam entre os membros das famílias cabo-verdianas que residem tanto no país quanto na sua diáspora, Drotbohm (2010) afirma que este fenômeno narrativo tem o papel social de elaborar sobre as assimetrias sociais, moralizar comportamentos e disciplinar corpos. De forma similar, após observados os casos aqui apresentados, acredito que os rumores acerca da presença chinesa em Cabo Verde cumprem, em certa medida, a mesma função. Todavia, enquanto o primeiro caso é localizado e foca-se na honra e reputação das famílias envolvidas nas fofocas, aqui vemos os rumores produzindo narrativas sobre o país e atingindo comunidades nacionais inteiras.
Essas narrativas sobre o país que emergem a partir da presença chinesa em Cabo Verde versam sobre diferentes questões. Elas procuram responsáveis para os fracassos e infortúnios da vida cotidiana, delimitam quem é digno ou não de lucrar com o comércio no país e circunscrevem aqueles/as que devem gozar dos proventos surgidos com o boom do turismo no arquipélago, uma vez que a maior parte dos lucros vão para investidores estrangeiros (especialmente europeus e chineses). E, não sendo os emigrantes preferenciais para aportar no país e tendo em vista a presença tão capilarizada destes no solo cabo-verdiano, eles acabam por gerar desconfianças e, consequentemente, veem ser produzidos os rumores sobre si pelos e entre os nacionais.
Ao abordar as relações diplomáticas, econômicas e comerciais entre o “dragão asiático” e o “tubarão africano”, Odair Varela afirma que a China está prestes a se tornar “a dominant welfare state of the current world system, based on the use of economic and cultural power to the detriment of military and (neo-)colonial power” (Varela 2020: 239). E, com o intuito de garantir essa primazia político-econômica, especialmente nos países do sul global, vemos como a presença chinesa no continente africano tem mudado os cenários por onde passa. Seja pela construção do campus da Universidade de Cabo Verde no bairro do Palmarejo Grande, na cidade da Praia, pelo aumento de crianças e adultos usando sapatos e bem vestidos, ou na ampliação da quantidade de resíduos produzidos no país por conta do maior acesso a produtos industrializados, a presença chinesa é sentida no país.
Como visto, essa capilaridade na presença chinesa não ocorre sem tensões, disputas narrativas, controvérsias e ambiguidades. Em resposta a esse movimento, os rumores surgem para cumprir o papel de controlar e informar o status e os papéis desses estrangeiros na sociedade de chegada. Na África do Oeste, os estrangeiros de forma geral tendem a ser vistos como suspeitos e equalizados a inimigos, especialmente os “later strangers” (Skinner 1963: 307, 309), como é o caso dos chineses. Se para alguns a compreensão de Gluckman (1963) de que formas narrativas são uma efetiva ferramenta política, cuja principal função é a de garantir a unidade dos grupos sociais, pode estar datada, vemos como os rumores atuam aqui para garantir a hegemonia cabo-verdiana nos distintos âmbitos comerciais nacionais.
Mesmo com toda a ajuda financeira por meio de projetos de cooperação internacional, que poderia produzir relações amigáveis com maior facilidade, os chineses aportam no continente em um momento político pós-independência no qual esperava-se crescimento econômico, mas que os países se deparam com ajustes estruturais. Assim, as populações locais sentem a necessidade de encontrar culpados para as mazelas e infortúnios. Tendo em vista todo o cenário previamente construído que coloca os migrantes chineses na categoria de “perigo amarelo”, a possibilidade de residir em Cabo Verde e competir com as comerciantes nacionais só é possível por uma via: através dos rumores.
Agradecimentos
Agradeço às/aos pareceristas pelos valiosos comentários que contribuíram para reduzir as gralhas do texto, assim como a André Justino, Lara Noronha e Valentina Pompermeier pelas instigantes contribuições dadas a uma versão muito anterior deste texto. De todo modo, a responsabilidade sobre as falhas que tenham ficado é de minha inteira responsabilidade