“O tempo nunca é neutro, é um fenómeno intensamente político, assim como é um fenómeno social, culturalmente prescrito e subjetivamente experienciado.” (Barber e Lem 2018: 5)
Introdução
Ao encontro com o Estado e com as temporalidades da migração
A hora de saída era às sete. A sala das chegadas estava preenchida por passageiros vindos maioritariamente dos Estados Unidos (EUA) e Brasil.1 O ruído das rodas dos tróleis, o choro de crianças exaustas, o latir dos cães e o burburinho dos recém-chegados eram cortados pelo estremecer do bater dos carimbos nos passaportes, audíveis das várias boxes. A claridade da alvorada começava, também, a surgir por uma janela, de dimensões alargadas, posicionada ao fundo da ampla divisão. Era o começo do último domingo de outubro e o ponteiro do relógio tinha sido atrasado, durante a noite, das duas para a uma hora. O turno cujo início havia sido às 23h tinha se estendido assim por mais 60 minutos.
Partilhava a box com a inspetora Isabel 2 e do meu assento, posicionado a meio do compartimento, avistava a multidão que serpenteava em filas, separadas por baias divisórias. Quando faltavam aproximadamente dez minutos para a nossa hora de saída, um passageiro dirigiu-se ao nosso balcão, estendendo à inspetora o seu passaporte. Enquanto folheava o livrete, página por página, esta questionou-o sobre os motivos da sua viagem. O passageiro respondeu que vinha a turismo. Influenciada pela análise que fez ao “perfil” do passageiro, a agente do controlo considerou que a história que este lhe contava era pouco plausível e que, provavelmente, vinha “tentar a sua sorte” na procura de alguma atividade laboral. Observei que neste seguimento abriu no seu monitor um novo separador, com a ficha de interceção. Simultaneamente e entre bocejos, a inspetora virou-se na minha direção e questionou-me retoricamente: “vou-me chatear com isto [averiguar as condições de entrada]?”. Sem me deixar responder, voltou o seu olhar para o passageiro e mencionou: “hoje é o seu dia de sorte!”. Carimbou-lhe o passaporte, fechou o separador da ficha de interceção e, projetando a voz, chamou pelo “próóóximo”, fazendo sinal ao passageiro que se seguia na fila.
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Este encontro, apesar de breve, elucida aspetos importantes a serem desenvolvidos ao longo deste artigo. Em primeiro lugar, a influência que o horário laboral possui nas práticas destes funcionários. Heyman (2009) aponta para algumas considerações informais que os seus interlocutores possuíam durante o processo de tomada de decisão (PTD) de agir ou não agir. Uma dessas considerações, em associação com outros fatores, era a hora do dia (ver também Durão 2008; Fassin 2013). No caso relatado, o cansaço que a inspetora sentia após nove horas de trabalho noturno, o aproximar da sua hora de saída e a imprevisibilidade do encontro, não sabendo quanto tempo iria ocupar com o passageiro, aceleraram a sua decisão. Esta implicou não prosseguir com o questionamento. Caso tivesse escolhido “averiguar melhor a situação”, corria o risco de o passageiro não possuir condições para entrar em TN, tendo de provavelmente estender o seu tempo de expediente, uma vez que teria de justificar na ficha de interceção as razões para não ter concedido o acesso. A não ação da inspetora, a qual deixou implícita ao me questionar retoricamente “vou-me chatear com isto?”, confundiu-se com a ação que fez ao carimbar o passaporte. À semelhança de alguns dos seus colegas, para a inspetora Isabel, a materialização da prática do seu controlo dá-se precisamente na ação de “quebrar” os passageiros, de forma que estes desvendem as “verdadeiras razões” para a sua viagem. Não questionar significa, portanto, não agir. Deste modo, o carimbo no passaporte, apesar de concretizar uma ação administrativa, que no caso relatado foi a formalização da entrada em TN, na prática ocultou a vontade da inspetora de não agir.
Em segundo lugar, apesar de o SEF ser responsável por aplicar a Lei n.º 23/2007, que estabelece o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do TN, a estada no terreno permitiu observar como repetidamente eram acionados diferentes mecanismos no controlo da mobilidade e como esse acionamento não dependia necessariamente do rule of law, mas da disponibilidade, oportunidade e capacidade que os inspetores têm de interpretar e reinterpretar a sua própria função e os seus limites. Assim, o trabalho destes pode ser mediado, em determinados momentos, por conveniências contingentes às várias situações que enfrentam diariamente, sugerindo que este é feito de possibilidades. Um entendimento que ficou claro quando a inspetora referiu “hoje é o seu dia de sorte!”. Por conveniências contingenciais, conceito que dá título ao artigo, entendo os momentos imprevisíveis nos quais os inspetores, através de práticas discricionárias, simplificam o seu exercício de controlo. Isto é, olham para “soluções rápidas e inventam procedimentos para mover os clientes rapidamente e sem esforço” (Maynard-Moody e Musheno 2003: 12). Coloca-se, assim, a pertinência de realçar aspetos sociais através da observação das práticas quotidianas (Bourdieu 2003), salientando não só as inconsistências jurídicas, como também as possibilidades de contornar os quadros legais.
A discricionariedade como princípio orientador da prática ocupa uma posição incontornável nas atividades dos funcionários públicos em geral, e igualmente nos que atuam nos órgãos de polícia criminal (OPC), como é o caso do SEF. Como forma de poder é complexa e encontra-se tanto nas ações policiais como na falta delas (Durão 2008; Gilboy 1992; Heyman 2009). Desde a década de 1950 que a pesquisa etnográfica em contexto policial tem revelado a discricionariedade como um modo de razão prática (Ohlin e Remington 1993), reconhecendo-a como omnipresente (Ham e Hill 1986), mesmo inevitável (Maynard-Moody e Musheno 2003), por permitir ao burocrata resolver um problema (Evans e Harris 2004; Triandafyllidou 2003; Zampagni 2016), contrariar a rigidez do procedimento e adaptar o protocolo a situações específicas. Por outro lado, abre espaço para uma autonomia de ação, criando espaço para convicções, interesses pessoais e abordagens regulatórias (Maynard-Moody e Musheno 2003).
Através da lente da temporalidade, este artigo aborda o regime de fronteiras português, analisando algumas dinâmicas entre inspetores do SEF e cidadãos estrangeiros. Destaca uma dimensão frequentemente esquecida, mas que por vezes parece influenciar o PTD: a alteração da conduta destes funcionários, primeiramente, quando antecipam a possibilidade de terem de estender o seu tempo de expediente. Posteriormente, quando lidam com situações para as quais não se sentem emocionalmente disponíveis. Neste segundo ponto, será dada a devida atenção aos momentos em que o valor do tempo se sobrepõe ao do espaço, isto é, quando têm de lidar com questões que envolvem uma certa proximidade física com os passageiros durante um período considerável. A antecipação como prática a ser analisada pela lente da temporalidade, oferece novos conhecimentos sobre a natureza complexa e mutável dos processos de fronteira, de soberania do Estado e das relações produzidas no encontro com os cidadãos estrangeiros. O que está aqui em causa são as práticas destes funcionários com base na contingência e, consequentemente, a indiferença à produção de práticas discricionárias (Gupta 2012).
À exceção de uma literatura mais recente (ver Jacobsen e Karlsen 2021), pouca tem sido a atenção concedida aos aspetos temporais da migração (Anderson 2020). O foco tem recaído nas temporalidades mobilizadas nos modos de governar as fronteiras (Anderson 2020; Tazzioli 2018), essencialmente sobre as condições daqueles que estão à espera, centrando-se nos modos como o tempo é experienciado e vivido (Barber e Lem 2018; Hoy 2009: xiii; Santinho 2013). Uma parte considerável desta literatura aborda, portanto, a dimensão temporal das fronteiras, focando-se na espera como uma forma de experienciar o poder do Estado. Contudo, recentemente alguns autores começaram a explorar a forma como a espera é produzida por regimes de fronteira e relações de poder. Jacobsen e Karlsen (2021) refletem como as práticas relacionadas com a migração; a fronteira e o controlo da mobilidade produzem a espera como um fenómeno temporal. Tal já tinha sido avançado por De Genova (2002: 419), ao referir que “é insuficiente examinar a ‘ilegalidade’ dos migrantes indocumentados somente no que respeita às suas consequências”, é também necessário prestar atenção à produção sociopolítica, historicamente situada da “ilegalidade” da migração.
Assim, como a espera, outras temporalidades são produzidas através das práticas da migração, despertando diferentes questões não só para os que tentam cruzar a fronteira como também para os que a controlam. Ao pensarmos esta relação, pode ser interessante deslocar o foco da perspetiva dos migrantes ou, pelo menos, não a tornar central, e focarmo-nos nas práticas do Estado (Lopes et al. 2017), isto é, nos procedimentos administrativos e de segurança, mecanismos e dispositivos de controlo da fronteira e gestão da mobilidade. Essa possibilidade desloca o foco da atenção para o Estado, embora a conceptualização da fronteira ganhe sentido apenas se considerarmos a relação que a existência desta sugere: entre os que a procuram cruzar e os que definem, ou não, limites a essa passagem. Isto torna-se particularmente relevante uma vez que o contexto sobre o qual reflito é marcado por relações de poder, que reagem às diversas subjetividades dos viajantes, onde se constituem noções de subordinação, e se produzem diferentes formas de acesso (De Genova, Mezzadra e Pickles 2015; Heyman 2004, 2009; Horton 2020: 13) e de hierarquização (Anderson 2020; Tazzioli 2018).
Segundo Gilboy (1992), estes funcionários possuem um conhecimento particularizado das suas experiências pessoais e das dos seus colegas. Esse conhecimento prévio informa-os sobre as prováveis consequências organizacionais e pessoais de certos tipos de decisões associadas a determinados tipos de passageiros. Assim, a antecipação será explorada do ponto de vista relacional, uma vez que existe em relação e com orientação ao passado, presente e futuro. Como referido por Shubin (2015) e Tazzioli (2018), o tempo não é uma sequência linear que mede e regula a vida, pode ser ordenado e vivido de diferentes maneiras (Griffiths, Rogers e Anderson 2013). O tempo é múltiplo e “diferentes sentidos de futuro, presente e passado coexistem e interagem simultaneamente” (Page, Christou e Mavroudi 2017: 3), em relações complexas e contraditórias (Griffiths, Rogers e Anderson 2013).
A reflexão sobre a dimensão da antecipação recairá assim no papel do tempo, no que respeita aos PTD. Em primeiro lugar, nos vários contextos que permitem a produção de “comportamentos antecipatórios” (Gilboy 1992) por parte dos inspetores. Assim, a devida atenção será dada às situações que produzem a antecipação como uma prática temporal, isto é, a momentos onde observei uma certa elasticidade do tempo, nos quais “futuros imaginados [pelos inspetores] coexistiam com presentes vividos” (Hurd, Donnan e Lentloff-Grandits 2016: 4). No caso relatado, a projeção de experiências anteriores, demoradas, sobre a corporalidade do passageiro, fizeram com que a inspetora Isabel antecipasse uma possível extensão da duração do seu expediente, induzindo-a a acelerar a entrada do viajante em Portugal. O que nos leva a abordar a antecipação também como uma espécie de poder produtivo, uma vez que “incita, suscita e produz” (Foucault 2003) práticas de teor temporário, contingentes aos encontros com os cidadãos estrangeiros, negando, acelerando ou protelando a saída ou o acesso ao TN.
O artigo está estruturado em três partes: começo por apresentar o contexto da pesquisa, guiando o leitor através das camadas de controlo, indo ao encontro de alguns atores e respetivas funções. Posteriormente, na segunda e terceira partes, analiso como tanto as ações como as não ações dos inspetores, possuem como consequência não só a mobilização de aspetos temporais, como também espaciais e situacionais, de forma a “processar[em] o trabalho de acordo com as suas próprias preferências” (Lipsky 2010: 19), nomeadamente quando antecipam a possibilidade de estender o seu tempo de expediente e de gerir a sua disponibilidade emocional para os casos que estão a tratar. Refletirei não só como a não ação dos inspetores pode ser confundida com ação, como também pode ocorrer precisamente o oposto. Em certos casos, a antecipação permite que a ilusão de uma ação esteja camuflada pela vontade dos inspetores de não agirem. Em todo o caso, agindo ou não, são práticas produtivas que gerem a mobilidade dos cidadãos estrangeiros nesta fronteira. Por fim, apresentarei as minhas considerações finais.
Contributos teóricos e metodologia
Este artigo pretende ser um contributo para a Antropologia do Estado, mais concretamente para o estudo das fronteiras e do seu governo. Tenciono clarificar algumas das discrepâncias no que respeita ao acesso ao TN, que podem ser vividas quotidianamente pelos atores diretamente envolvidos no regime de fronteiras português. É tão relevante entender sobre quando, quem e com que fundamentos, legais e não legais, os agentes do controlo procedem, como também sobre quando, sobre quem e porque decidem não agir. A par com alguns constrangimentos (abordados mais adiante) enfrentados pelos inspetores, determinados aspetos temporais parecem fornecer novos conhecimentos críticos sobre a forma como a gestão da mobilidade se dá na contemporaneidade.
Assim a análise procura, igualmente, contribuir para o desenvolvimento das abordagens teóricas relacionadas com as temporalidades da migração, ampliando a dimensão da antecipação na fronteira portuguesa. Especificamente quando esta é influenciada por conveniências contingenciais de ordem logística, organizacional e pessoal, não só quando molda e contorna quadros legais, como também quando, devido à opacidade do processo de controlo, intensifica as assimetrias e as ambiguidades nas relações entre os agentes estatais e aqueles que são alvo do seu controlo. A atenção às temporalidades da migração destaca as assincronias entre as experiências subjetivas do tempo e as exigências administrativas (Anderson 2020). Tenho então atenção às formas como a antecipação pode abrir espaço para novas subjetividades, novos atores e relações.
Metodologicamente, procuro refletir a partir da minha presença na fronteira junto dos atores diretamente envolvidos na gestão da mobilidade. A etnografia tem permitido observar como o Estado é a cada momento um produto do seu tempo (Fassin 2015), desvendando como as temporalidades são inerentes aos PTD (Smith 2017), tornando a política entregue pelos funcionários frequentemente imediata e pessoal (Lipsky 2010). Aspetos que sugerem que as políticas e as práticas do controlo são mediadas pelo contexto, ou seja, momentaneamente determinadas. Assim, puxo para a análise as observações e as conversas informais que emergiram aquando dos encontros experienciados entre inspetores e cidadãos estrangeiros.
Ao longo do tempo, aumentei progressivamente a minha circulação no terreno de pesquisa, dividindo-me entre as várias funções e os diferentes espaços de trabalho. Considerei também essencial manter continuamente a minha presença na box durante os 11 meses de trabalho etnográfico, observando como a fronteira e a sua governação desempenham um papel fundamental na produção heterógena do tempo (Mezzadra e Neilson 2013), complexificando o seu significado e moldando as experiências e as práticas da migração (Barber e Lem 2018; Mavroudi, Page e Christou 2017). Analisar estas complexidades envolveu atender às relações entre os quadros sociais do tempo, como as rotinas associadas à burocracia e as experiências subjetivas dos atores (Jacobsen e Karlsen 2021). Neste sentido, a possibilidade de frequentar os vários grupos de trabalho - em si universos sociais que vão fixando algumas especificidades (Durão 2008), em horários diferentes, permitiu-me observar e discutir os vários entendimentos sobre a profissão e, consequentemente, sobre os desafios enfrentados e produzidos durante o PTD.
O terreno de pesquisa: camadas de controlo, atores e funções
Devido à natureza das ações técnicas, práticas e burocráticas, dos espaços por onde passageiros e inspetores transitam e onde desempenham funções, dos intervenientes, estatais e não estatais, que compõem o terreno de pesquisa, mostra-se fundamental contextualizar o mesmo. O controlo neste posto de fronteira (PF) é feito de modo faseado, por camadas. Entre as camadas de controlo destacam-se a primeira e a segunda linha. No caso das chegadas, o cidadão estrangeiro, após algum tempo na fila de espera, passa numa primeira linha, pela box, onde um inspetor faz um primeiro controlo documental. Aqui o passageiro apresenta o seu passaporte e em caso de necessidade, outros documentos que comprovem o propósito da sua viagem. No entanto, após algumas questões ao passageiro, caso persistam dúvidas sobre os objetivos da viagem do mesmo, o inspetor pode gerar uma ficha de interceção, onde fundamenta as razões que o levam a intercetar o viajante. Posteriormente, este é acompanhado à Unidade de Apoio (UA), a uma segunda linha, onde outro inspetor verificará com maior detalhe a situação do passageiro.
Nesta segunda camada de controlo, o instrutor do processo verifica em profundidade a documentação do passageiro, estabelece, caso haja necessidade, ligação com o seu anfitrião ou outras entidades com a finalidade de confirmar os objetivos de viagem, o pagamento das reservas de hotel e do voo de regresso, por exemplo. Após estas diligências e de uma entrevista (que dependendo do caso se pode tornar mais ou menos formal) com o passageiro, o inspetor da segunda linha toma a sua decisão de conceder ou de recusar a entrada do cidadão em TN. De seguida, caso o inspetor de turno 3 ainda não tenha conhecimento da situação, o instrutor do processo coloca-o a par. A tendência no PF é a de o inspetor de turno (dependendo da forma como cada um trabalha, da “gravidade” ou prioridade dos casos, da disponibilidade deste inspetor, por vezes já ocupado com outras situações e, também, do nível de responsabilidade que assume na sua função) concordar com a decisão previamente tomada pelo inspetor, uma vez que esta foi, na maioria dos casos, sendo discutida e negociada, entre ambos, no decorrer do processo.
Caso seja dada a entrada ao viajante, o inspetor justifica muito brevemente em back office, não havendo, salvo raras exceções, a necessidade para realizar um “expediente” tão elaborado como um relatório de ocorrência (RO). Por outro lado, na sequência de uma recusa de entrada, o instrutor do processo elabora o RO, onde fundamenta detalhadamente a sua decisão. Para efeitos de contextualização dos dados etnográficos, segundo o artigo 40.º da Lei n.º 23/2004, de 4 de julho, o cidadão estrangeiro tem o direito de solicitar assistência jurídica. Esta pode ser diligenciada de modo oficioso pelo Estado português, contudo se o passageiro possuir um advogado particular, poderá fazer recurso deste. Seja qual for o caso, é acompanhado pelos inspetores até ao Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT), onde, num pequeno gabinete, expõe a sua situação ao advogado. Os cidadãos estrangeiros que veem a sua entrada recusada em Portugal podem voltar ao seu país de origem no mesmo dia, caso haja voo disponível. Caso contrário, pernoitam no EECIT, viajando logo que haja disponibilidade de voo.4
Como referido, nas chegadas, o inspetor que realiza a interceção na primeira linha não é o instrutor do processo na segunda linha. Contudo, na primeira linha das partidas, quando os cidadãos estão de saída do espaço Schengen, o inspetor que deteta a irregularidade procede também com o expediente em sede de segunda linha. A dinâmica das partidas é totalmente diferente da das chegadas. Nas chegadas, as preocupações dos inspetores recaem maioritariamente sobre os cidadãos que viajam sem visto de trabalho para a Europa, referindo que vêm a turismo, contudo existe a forte possibilidade de os objetivos de viagem estarem relacionados com atividades laborais. Aqui, os nacionais brasileiros são os alvos de maior escrutínio, uma vez que podem circular até 90 dias em espaço Schengen, fazendo parte da lista de nacionalidades isentas de visto Schengen. Apesar de legalmente a sua condição ser semelhante à dos nacionais americanos ou canadianos, por exemplo, os cidadãos brasileiros (e dependendo da intersecção com a classe, “raça”,5 idade, género, situação profissional, situação familiar e, em alguns casos, a orientação sexual) são percecionados como sujeitos de elevado “risco migratório”, precisamente devido à possibilidade de entrarem em TN como turistas e posteriormente, através do artigo 88.º da Lei n.º 23/2007,6 de 4 de julho, terem a oportunidade de regularizar a sua situação. Ou seja, nacionais brasileiros, percebidos como sendo de classes sociais desfavorecidas e em idade laboral, cuja ocupação profissional seja inexistente ou desqualificada são compreendidos como sujeitos que “vêm para ficar”. Existe a crença no PF de que estes são mais propícios a vir em busca de trabalho uma vez que “não possuem ‘perfil’ de turista”.
Nas partidas, o foco da preocupação incide na fraude documental e na saída de menores do TN. Os inspetores possuem um olhar bastante atento a situações relacionadas com menores quando estes viajam sozinhos, acompanhados por pessoas que não os seus progenitores e, em alguns casos, quando viajam unicamente com um dos progenitores. Em relação à fraude documental, os passageiros que, por alguma razão, não tenham conseguido visto e que pretendam “dar o salto” (na gíria da fronteira) para os EUA, Canadá e Reino Unido, recorrem a facilitadores e, através de elevadas quantias, têm acesso a documentos como passaportes, cartões de residência e vistos. Estes, na maioria dos casos, são facilmente detetáveis como fraudulentos. Quando detetados e uma vez que o flagrante é em TN (nas chegadas, como o flagrante é em zona internacional, o cidadão tem recusa de entrada), procede-se à detenção do cidadão, elabora-se um longo expediente e este é acompanhado ao tribunal.
Para efeitos de contextualização, a ida a tribunal depende da hora em que se dá a detenção. O horário dos inspetores é composto por vários turnos, numa rotação de dez dias.7 No caso de um flagrante ocorrer no início do turno da manhã, o inspetor tem a oportunidade de elaborar o RO, com hipótese de acompanhar o “detido” a tribunal, ainda no mesmo dia8 e em horário de expediente, não tendo de realizar trabalho extraordinário. O mais comum é acompanhar o “detido” a tribunal no dia seguinte. Por essa razão, normalmente estão alocados ao posto das partidas na sua primeira tarde, na sua segunda manhã ou na sua primeira noite (no caso de fazerem duas noites consecutivas). Contudo, no caso de o flagrante ser detetado próximo da hora de saída, por exemplo, ou no dia que antecede a folga ou na véspera das férias, o inspetor pode, em certos casos, e como veremos, contornar o protocolo e optar por não agir.
Os encontros que discuto neste artigo entre cidadãos estrangeiros e inspetores focam-se não só na primeira linha - chegadas e partidas -, como também na segunda linha. Estas são retratadas no léxico do efetivo através da divisão espacial de “lá fora” [primeira linha] e de “lá dentro” [segunda linha]. O que nos transporta à metáfora dramatúrgica na socialização dos espaços, tal como Goffman (1993) os conceptualizou para a vida social, uma divisão entre uma zona mais pública (primeira linha) e outra mais privada (segunda linha). Durão (2008) refere que nesta zona mais pública as normativas para a ação estão mais presentes nos desempenhos tidos como “corretos” pelos agentes. Uma das razões para tal poderá ser a eventual presença de outros atores e até do próprio investigador no terreno de pesquisa, uma vez que parecem condicionar, em alguns casos, o desdobramento de situações que se colocam à margem dos quadros legais (Durão 2008; Fassin 2013).
No caso da fronteira portuguesa, “lá fora”, na suposta zona pública, esta possui características que conferem total privacidade ao inspetor que está no controlo. Protegidos do escrutínio externo, devido em parte à privacidade que a box oferece, os inspetores da primeira linha encontram a possibilidade de interpretar e aplicar ou não a legislação, salvo raras exceções, sem o constrangimento dos seus colegas, superiores hierárquicos e de outras instituições. Como afirmam, “a discricionariedade está no carimbo”, uma vez que é na primeira linha que se decide quem pode, ou não, entrar e sair de TN. Tal como referido por Heyman (2009), o papel de guardião da decisão inicial, de agir ou não, pelos oficiais da linha da frente é amplamente entendido como crucial para todos os momentos subsequentes da tomada de decisão legal. Como me foi mencionado em diversos momentos “lá fora [primeira linha] temos [os inspetores] mais autonomia”, opondo-se ao trabalho realizado pelos colegas da segunda linha, onde a decisão já tem de, na maioria dos casos, passar pelo inspetor de turno. No entanto, os inspetores da segunda linha, como analisarei, também parecem apresentar uma autonomia considerável no desdobrar das suas funções.
Além das questões relacionadas com a ausência ou a presença de supervisão (ver Durão 2008; Lipsky 2010; Maynard-Moody e Musheno 2003), dos recursos humanos e materiais que compõem a infraestrutura, as ações e não ações destes guardas estão ainda relacionadas com a forma como entendem a sua profissão. Van Maanen afirma que devem ser afastadas ideias de homogeneidade em relação aos OPC, uma vez que “o que interessa aqui é o reconhecimento pela própria polícia das diferenças implícitas” (1973: 408). A noção teórica weberiana de a polícia representar o monopólio da força do Estado perante os civis, ou a função autodeclarada mais especificamente do SEF de controlo das fronteiras, não correspondem às diferentes conceções do próprio trabalho. A polícia não é uma entidade monolítica (Durão 2008, 2010; Karpiak e Garriott 2018) que opera sempre da mesma forma, mas sim um conjunto complexo de relações situadas num determinado contexto. Simultaneamente, há indicações de que existem polícias que se consideram e/ou são considerados mais ou menos “operacionais” (Durão 2008), um aspeto que pode influir no desenvolvimento das funções.
A operacionalidade como categoria emic na fronteira possui variações, ou seja, parece ser entendida de modo diferente pelos inspetores. Alguns dos meus interlocutores consideram que a operacionalidade está fundamentalmente relacionada com a proatividade e que é “no fundo exercer funções e acatar as ordens”, outros julgam que ser operacional está associado a uma postura rígida, de autoridade. Nas palavras de uma inspetora, “a operacionalidade não se relaciona com o ser bom ou mau profissional”. Acrescentou que não se deve confundir a “policite” com o ser-se operacional, ou seja, “não é por ter ‘policite’ que o colega é mais operacional”. A “policite”, como categoria local, corresponde a quem utiliza a sua posição de autoridade, demonstrando um comportamento desproporcional a determinada situação. Pode ser interpretada como uma categoria morfológica, usada para denominar uma inflamação aguda. Se estabelecermos esta lógica, a “policite” é um mal que atinge alguém e não algo que é constitutivo dessa pessoa. Ao enfatizar a categoria “policite”, a inspetora explicita as divergências acerca da perceção que os inspetores possuem da sua função. Por um lado, os que sofrem desse “mal” e possuem uma visão essencialmente mais rígida da migração. Estes entendem que a sua função é, principalmente, vedar o acesso àqueles que percecionam e constroem como potencial risco migratório. São, frequentemente, aqueles que fazem um maior escrutínio aos passageiros de forma a perceber as razões da viagem. Por outro, os que são afeitos a uma dimensão mais humanista da sua profissão, tentando compreender os contextos do seu público. No mesmo registo, outro inspetor referiu que “ser operacional é estar disponível para as tarefas que surgem” e que a capacidade de imprimir ações coercivas não deve ser critério para a operacionalidade, já que o seu trabalho não é de forma alguma “lidar com criminosos”.
Por fim, em relação ao PTD, este pode em certos casos incorporar um conjunto imprevisível não só de temporalidades como também de locais, de atores, estatais e não estatais, devido à contingência - também evidenciada por outros autores (Gupta 2012; Heyman 2020; Lipsky 2010) - que premeia o trabalho dos inspetores. A sua atividade está sujeita aos ritmos espaciais e temporais que compõem as várias dinâmicas, que atuam em simultâneo dentro e fora do aeroporto (Salter 2008). Como referido pelo autor, os aeroportos não são instituições totais, mas nós numa rede de redes que inclui atores sociais, económicos e políticos com diferentes preferências, objetivos, lógicas, intenções e capacidades. Na minha experiência de terreno incluem-se o número de passageiros à espera na fila para o controlo documental, as condições materiais da infraestrutura aeroportuária, a articulação com outras entidades, como as companhias aéreas e a gestão do aeroporto, o volume de horas seguidas de trabalho, a tipologia de situações que enfrentam nos seus encontros com os passageiros e, tal como já referido por inúmeros autores (ver Durão 2008; Evans e Harris 2004; Lipsky 2010; Triandafyllidou 2003), o número de efetivos alocados ao desempenho das várias tarefas. Sobre este último, alguns apontavam que a insuficiência de recursos humanos é “crónica”, uma vez que desde a sua génese “o serviço trabalhou sempre abaixo dos mínimos”, enquanto outros acreditavam que a falta de investimento no que respeita à formação de pessoal tem vindo a ser gradual, “um sinónimo da vontade do governo de extinguir o serviço”, sendo “há muito tempo uma morte anunciada”. Portanto, lida como uma decisão política.
Ao deslocar o olhar dos discursos para as práticas e dos quadros jurídicos para a sua implementação, a pesquisa etnográfica revela que não se deve confundir a performance do Estado com o seu real funcionamento. Tal como referido por Gupta (2012: 13, 14), ao “operar dentro dessa entidade reificada, o Estado leva a interpretações equivocadas de processos burocráticos”. A etnografia possibilita entender que todo o PTD é permeado de possibilidades. Por esta razão, a abordagem que farei é não só a de verificar os efeitos mais fatalistas produzidos pela antecipação na fronteira - as entradas e saídas, concedidas ou negadas - mas também indagar a gestão realizada pelos guardas nos meandros do processo, até à decisão final. É aqui que as figuras do burocrata e do polícia se tornam difusas. Pensando em termos do “tipo ideal” weberiano, mais do que a realidade das funções, o burocrata é aquele que preza pelos procedimentos e pelas regras, e é sobretudo aquele que não possui comprometimento pessoal com o seu trabalho. É o agente da “banalidade do mal” de Arendt (2017), a pessoa que cumpre as ordens, que trabalha dentro dos quadros do tempo e que não possui um juízo ético, ou seja, não possui qualquer envolvimento com as consequências das suas ações.
Gerindo o tempo através da não ação: quando estender o horário de trabalho é uma possibilidade
Nesta secção analiso algumas configurações que considerei fundamentais nos vários encontros entre cidadãos estrangeiros e inspetores, uma vez que geram o contexto, abrindo espaço para a antecipação como prática temporal. Argumento que determinadas janelas horárias, a par com condutas processuais da instituição, orientam os inspetores a mover aspetos temporais e situacionais. Em determinados momentos do meu trabalho de campo pude presenciar como o aproximar da hora de saída, o dia antes das férias ou o facto de estarem muito tempo sentados na primeira linha da fronteira os influía a práticas temporais, onde a antecipação surgia de forma a prevenir o desdobrar de trabalho extraordinário.
Como observado por Fassin (2013, 2015), seja por excesso de zelo ou convicção, os agentes frequentemente estendem o âmbito das políticas muito além do que é solicitado. Contudo, como se verá, além de estenderem também encurtam a ação das suas práticas. Segundo Gilboy (1992) e Lipsky (2010), os funcionários desenvolvem mecanismos contrários às políticas da instituição, uma vez que estes são necessários à sua “sobrevivência”. Em certo sentido, não se contentam unicamente com a implementação da política do Estado - são eles que a fazem (Fassin 2013, 2015; Lipsky 2010). Como analisei no episódio com que inicio o artigo, a antecipação pode acelerar a entrada dos cidadãos em TN. Por outro lado, pode também protelar a vida daqueles que estão em trânsito.
Anteriormente referi que a segunda manhã de trabalho dos inspetores é nas partidas, a verificarem a saída dos cidadãos do TN. Esta organização do horário prende-se com o facto de as partidas serem o lado da fronteira onde mais cidadãos tentam passar com documentos fraudulentos e os inspetores têm de dar seguimento à detenção. Quando detetam uma irregularidade desta dimensão, a elaboração do expediente pode demorar um volume de horas considerável. Foi com frequência que observei alguns inspetores a dobrarem as horas de trabalho e num caso específico a fazerem 31 horas de trabalho. Nesta situação, as inspetoras tinham entrado no serviço às 15h, para a sua primeira tarde. Por volta das 22h40, 20 minutos antes do término do turno, “apanharam um ‘falso’ ”, permanecendo no aeroporto até às 3h da manhã, a elaborar o expediente. As inspetoras só tiveram tempo de ir a casa cuidar da sua higiene pessoal. O tempo gasto em deslocações, somando o facto de que às 8h tinham de se apresentar no tribunal com o “detido”, concederam às inspetoras apenas 3h de interrupção daquela que viria a ser uma longa jornada laboral.
Uma vez que o julgamento é, frequentemente, no dia seguinte à detenção, o detido pernoita nas instalações da Polícia de Segurança Pública (PSP). Antes de se dirigirem a tribunal são necessárias algumas diligências. Por exemplo, precisam de se deslocar ao aeroporto, para posteriormente seguirem numa carrinha do serviço até às instalações da PSP, onde recolhem o “detido” que vai a julgamento. No seguimento desta situação, as inspetoras em questão contactaram os seus superiores hierárquicos para serem dispensadas da segunda tarde. Contudo, pelas 11h, é-lhes comunicado que não é possível, sendo esperado que assegurem a segunda tarde. Quando assim é, o tempo de trabalho extraordinário vai para o banco de horas, sendo posteriormente concedido em dispensas. Contudo, devido ao reduzido número de efetivos alocados ao PF, durante a minha permanência no terreno observei, com frequência e apesar da insistência, a dificuldade de os inspetores obterem as suas dispensas. Este aspeto parece desmotivar os inspetores, tendo algum impacto nas suas práticas.
Apesar de ser raro, há inspetores que, ao verificarem que o seu colega “apanhou uma detenção” no final do turno, se mostram solidários e asseguram a elaboração do expediente ao colega, de forma que este possa terminar o seu turno no horário devido. Tal como foi o caso do inspetor Rodrigo: entrou às 6h e quando chegou à box de Carlos, que estava a terminar o turno da noite, apercebeu-se de que este tinha, há 5 minutos, “apanhado um falso”. Imediatamente o inspetor Rodrigo se prontificou a ficar com a detenção, de forma que o colega pudesse ir descansar. Durante a manhã fui acompanhando o trabalho deste inspetor na elaboração das várias diligências, e observei como foi repetindo orgulhosamente para os seus pares, “não fui eu que apanhei, mas estava ao lado. O colega estava no fim do turno da noite, não o ia deixar fazer [o expediente da detenção]”. Ia também acrescentando “se um dia me acontecer, espero que façam o mesmo por mim”. Este episódio passou-se no final de novembro de 2021. Em dezembro, às vésperas das festividades de Natal, às 14h59, a terminar a sua segunda tarde, o inspetor Rodrigo deteta dois documentos “falsificados”. O inspetor estava dispensado para a sua terceira manhã, e havia combinado com a sua mãe, que se tinha deslocado cerca de 300 quilómetros, de fazer as compras de Natal. Além de ter permanecido no aeroporto até às 20h30 a fazer o expediente da detenção, perdeu a dispensa que, com alguma persistência, tinha conseguido para a sua terceira manhã, uma vez que se teve de apresentar a tribunal no dia seguinte. Ao final do dia, curiosa com o desdobrar da situação, estabeleci contacto com o inspetor através do WhatsApp:
“Mafalda: Então amigo, trataste do expediente? Como foi? Espero que tenha corrido bem!
Inspetor Rodrigo: Oi Mafalda. Sim, só saí agora. Amanhã lá estarei para as levar [passageiras] a tribunal quando devia estar de dispensa… Mas é o meu trabalho.
Mafalda: Que situação! Foi mesmo no último minuto…
Inspetor Rodrigo: Pois… Mas tinha mesmo de agir… Não há muita solidariedade…”
O inspetor, ao referir que “não há muita solidariedade”, referia-se àquilo que umas semanas antes tinha feito pelo seu colega Carlos, acreditando que teria o seu retorno numa situação semelhante. Apesar de deixar transparecer alguma frustração, uma vez que tinha a expectativa de gozar a sua dispensa e de passar tempo com a sua família, a qual raramente vê devido à distância geográfica, afirma que esse é o seu trabalho e que tinha “mesmo de agir”. Ou seja, para o inspetor Rodrigo, “ludibriar a lei” estava fora de questão: o seu trabalho significa agir.
No entanto, a minha permanência no terreno fez-me compreender que o protocolo pode ser facilmente contornado. Acompanhava o trabalho dos inspetores Fonseca e Bernardes nas partidas e faltavam aproximadamente dez minutos para findarmos o turno da manhã. Já esperávamos pela “rendição” quando ouço o inspetor Fonseca dizer “era só o que me faltava!” Na direção da nossa box vinha um cidadão georgiano que viajava para Cancun. Além do seu passaporte “bom”, o passageiro possuía um cartão de residência “falsificado” de um país europeu. Neste caso, foi o inspetor Bernardes que pegou no cartão e verificou a fraude. O inspetor Fonseca rapidamente diz para o passageiro que ainda é muito cedo para o seu voo e para este voltar às 15h15. A assertividade do inspetor, em relação à hora que o passageiro deveria regressar, assegurava a sua distância do PF. Como o passageiro foi na direção do inspetor Fonseca, este, intencionalmente, não pegou no documento “falsificado” e referiu: “para todos os efeitos vi só o passaporte que era ‘bom’ ”. Tal como referido por Heyman (2009), a não ação também é passível de se analisar de formas bastante específicas. No caso presenciado, a conveniência logístico-pessoal sobrepôs-se à sua função de guarda de fronteira, uma vez que antecipou a extensão do seu horário laboral, já que teria de permanecer para elaborar o “expediente”. Neste caso, a sua antecipação moveu não só aspetos temporais, empurrando o caso para os colegas que entravam às 15h, como também situacionais, uma vez que não procedeu à detenção do cidadão.
Ainda nas partidas acompanhava o trabalho do inspetor Silva, cujas férias se iniciavam no dia seguinte. Estávamos a fazer o turno da noite. Segundo o protocolo, uma vez que o inspetor só faria uma noite, não era suposto estar nas partidas, pois caso apanhasse alguma irregularidade, podia ver o seu primeiro dia de férias comprometido. Durante todo o turno, os passageiros iam-se deslocando à box onde estávamos, de forma a passarem pelo controlo documental. Todavia, visto ainda faltarem algumas horas para os respetivos voos, o inspetor passou a noite a sugerir aos passageiros para se manterem na zona Schengen dizendo que esta era mais confortável e que os passageiros possuíam mais opções de restauração. Apesar de a sugestão do inspetor mostrar alguma preocupação genuína com o conforto dos passageiros, a sua principal motivação para não realizar o controlo documental estava relacionada com o receio de comprometer as suas férias, ou pelo menos os primeiros dias. Assim, a antecipação, materializada na não ação deste inspetor, acabou por retardar o controlo dos passageiros que embarcariam para destinos fora do espaço Schengen nas primeiras horas da madrugada.
Disponibilidades emocionais: quando o valor do tempo se sobrepõe ao do espaço
Até aqui analisei como determinadas “não ações” dos inspetores, com base na sua antecipação, podem acelerar ou protelar a mobilidade daqueles que estão em trânsito. Vimos que o horário de saída ou a ida para férias aparecem como variáveis fundamentais a ter em consideração, uma vez que podem ser motivo para “não agir”. Porém, os inspetores parecem gerir algumas situações com base na sua conveniência logístico-pessoal, mesmo estando dentro do seu horário de expediente. O relato seguinte é disso exemplo. Estava a acompanhar o trabalho na segunda linha do controlo quando ouvi o inspetor José a comentar com o inspetor de turno: “ele [cidadão estrangeiro] é muito chato, anda aí a apanhar rede [com o telemóvel] no corredor de um lado para o outro, ao menos fica para lá [EECIT] e só volta na hora do voo”. Como já referido, quando os passageiros veem a sua entrada recusada em TN, têm a possibilidade de solicitar apoio jurídico e, nessa situação, são encaminhados para o EECIT. Caso o seu voo de volta ao país de origem seja só no dia seguinte, e dependendo do encontro com o advogado, pernoitam, ou não, no EECIT. No caso deste cidadão, recusou o apoio jurídico, tendo optado por simplesmente aguardar pelo seu voo de regresso. Porém, só teria voo por volta das 23h35 do mesmo dia e ainda eram 15h. No caso dos cidadãos estrangeiros nas mesmas condições deste passageiro, enquanto esperam pelo seu voo recorrem aos inspetores para colocar questões, com uma frequência considerável, na esperança de reverter a decisão de recusa. O inspetor José, ao observar toda a agitação do passageiro, antecipou a sua falta de disponibilidade emocional nas horas que se seguiam, persuadindo-o a pedir apoio jurídico, de forma que este fosse para o EECIT e só regressasse na hora do seu embarque.
Embora seja crucial reconhecer a imbricação mútua do tempo e do espaço (De Certeau 2020; Jacobsen e Karlsen 2021; Tazzioli 2018), um olhar atento aos fatores temporais desvenda que estes podem desestabilizar os entendimentos espaciais da migração. No caso do episódio agora relatado, foram vários os fatores calculados pelo inspetor: não só a proximidade da sala dos “Inads”,9 como também o fácil acesso que os passageiros possuem ao local onde é realizado o trabalho de segunda linha, o tempo da espera do passageiro para o seu voo e, por fim, o facto de o passageiro estar impaciente “a apanhar rede, de um lado para o outro”. Estes fatores indiciaram o inspetor a basear a sua antecipação não só nas suas vivências anteriores com outros passageiros, como também na projeção do tempo que se seguiria até às 23h. Através desta interseção entre o passado e as possibilidades futuras, o valor do tempo, na decisão deste funcionário, acabou por se sobrepor ao do espaço. Antes de se dirigir ao passageiro, o inspetor determinou “vou já fazer a cota para adicionar ao processo e depois é que vou falar com ele”, confiante de que o passageiro iria dar seguimento ao seu plano. Ou seja, o inspetor acabou por, de certa forma, criar uma falsa ilusão ao passageiro de que este ainda teria alguma hipótese de entrar em TN, quando a verdadeira motivação era fazer com que este permanecesse até ao horário do seu voo no EECIT.
Apesar de a assistência jurídica estar dentro do quadro legislativo previsto, a iniciativa do inspetor, ao determinar a ida do passageiro ao advogado, não tinha como objetivo tentar que este desse entrada em TN. A ação do inspetor antecipava uma sequência de não ações. O passageiro, ao estar noutro local, não estaria ali constantemente a questioná-lo ou a pedir-lhe que o acompanhasse a ir fumar, por exemplo. Neste caso, o inspetor moveu aspetos temporais, espaciais e situacionais, uma vez que o viajante seria deslocado para outro espaço, até ao horário do seu voo. Por fim, a antecipação deste inspetor gerou uma nova situação e um novo ator no processo do viajante: o encontro com um advogado. Este aparecia como mediador entre o cidadão estrangeiro e o Estado português, todavia ilusoriamente, uma vez que o inspetor José, ao propor a ida ao viajante, já tinha deixado o RO “blindado” 10 de forma a que a recusa de entrada se mantivesse. A entrada deste novo ator no processo emerge como uma contradição. Em algumas situações, quando os inspetores sentem a necessidade de se justificar ou de legitimar as suas recusas de entrada, referem que os cidadãos iriam acabar por ficar “ilegais”, que não fariam descontos, dando consequentemente despesa ao Estado português. Contudo, o inspetor José fez uso de um recurso do Estado, recorrendo à assistência jurídica, falaciosamente, movido pela sua conveniência pessoal.
Noutra ocasião, acompanhava o trabalho do inspetor Guilherme na segunda linha da fronteira. Este dizia para o passageiro que estava a entrevistar “isto não é a escola!”, enquanto o cidadão estrangeiro tentava, discretamente, ver pelo seu telemóvel onde ficava o hotel no qual ia pernoitar, já que o inspetor o havia questionado sobre a área da cidade. Apesar da menção de que não estávamos na escola, a verdade é que, regularmente, caso os passageiros não acertem às questões que lhes são colocadas, podem ver a sua entrada em TN negada. Após alguns momentos o inspetor, num jeito aborrecido, referiu: “tem dinheiro, tem viagem, tem hotel, mas não tem ‘perfil’ de turista”. Ou seja, ao intersectar a nacionalidade, brasileira, com a perceção que tinha da classe social - desfavorecida - do passageiro, o inspetor considerou que este vinha em busca de uma atividade laboral. Tal como para a colega Isabel, para este inspetor a ação do seu trabalho estaria, também, materializada no questionamento. Continuou: “Mas hoje estou preguiçoso para apertar com ele!” O inspetor Guilherme foi ao gabinete do inspetor de turno saber se este concordava com a entrada do passageiro em TN, e do corredor ouvi “é Natal!” A breve resposta do seu superior dava a entender que concordava com a decisão de dar entrada. O inspetor Guilherme voltou para a secretária onde estávamos e disse-me, justificando-se, “tem tudo [para dar entrada]” e terminou com “Hoje também estou com pouca vontade…” Tal como a inspetora Isabel quando disse “hoje é o seu dia de sorte!”, o inspetor José, ao referir que “hoje estou preguiçoso” e “hoje estou com pouca vontade”, ambos sugerem que o seu trabalho é feito de possibilidades. Apesar de o passageiro cumprir com os critérios objetivos da lei em termos de meios de subsistência, comprovar o local da hospedagem e possuir um voo de regresso para o seu país de origem, o inspetor considerou que este não possuía “perfil” de turista. Contudo, não se sentia com “vontade” para continuar a questionar o passageiro, e foi essa a razão que o fez agir no sentido de lhe dar entrada, quando por detrás do pano era a sua vontade de não agir que guiava o encontro com o cidadão estrangeiro.
Considerações finais
Ao longo deste artigo analisei, através da lente da temporalidade, determinadas dinâmicas que guiam os encontros entre os inspetores do SEF e os cidadãos estrangeiros. Mais concretamente, como estes funcionários geram práticas temporais, reativas a situações específicas, antecipando momentos, através de conveniências contingenciais, as quais acabam por mediar os encontros com os passageiros. Vimos como a ausência e a presença de supervisão, as condições materiais da infraestrutura, rotinas processuais, janelas horárias, distribuição do efetivo e as dificuldades de acesso às dispensas influenciam as tomadas de decisão destes funcionários. As práticas discricionárias dos inspetores e as divisões que elas criam destacam a inconsistência do próprio Estado como uma entidade monolítica (Fassin 2015; Lopes et al. 2017). A antecipação acaba por ser uma prática temporal, imediata, contingente e emergente do contexto, frequentemente imprevisível. Provavelmente, no caso da inspetora Isabel, se esta estivesse a iniciar o seu turno ao invés de o estar a terminar, teria procedido a um maior escrutínio de forma a melhor averiguar as condições do passageiro. O inspetor Silva teria realizado o controlo dos passageiros se as suas férias não se iniciassem no dia seguinte. O inspetor Fonseca teria procedido à detenção do passageiro georgiano se o flagrante se tivesse dado no período da manhã do seu turno e não após o almoço, já no aproximar da sua hora de saída. E ainda, será que o inspetor José teria persuadido o cidadão a solicitar apoio jurídico, caso faltassem menos horas para o voo de regresso ao país de origem?
Em todos os casos fizeram uso da sua discricionariedade através da antecipação. Ao cruzarem o seu conhecimento baseado em situações anteriores com a projeção do momento seguinte, revelaram a ilusão do tempo como uma sucessão de instantes. Tal como o atrasar do ponteiro do relógio, no relato com o qual inicio este artigo, o tempo pode ser movido atrás e adiante, estando em relação com o passado, o presente e o futuro. Estas práticas temporais esbatem também a linha que divide as ações das não ações. Uma oposição que em determinados casos parece óbvia e visível, no contexto da fronteira portuguesa aparece como difusa. Ação e não ação parecem assim estar intrincadas, e em determinados casos, confundirem-se. De qualquer modo, ambas funcionam como práticas que agilizam, protelam ou quebram a mobilidade dos cidadãos. Ou ainda, como no caso do inspetor José, tornam o processo opaco: apesar do apoio jurídico estar previsto na lei, as reais motivações estavam centradas na falta de disponibilidade emocional deste funcionário e não na tentativa de reverter a situação do passageiro.
Agradecimentos
Agradeço ao António Pedro de Barros, ao Diogo de Andrade, à Joana Jesus, à Rita Reis e ao Vicente Mertz pela leitura atenta e posteriores sugestões de edição e, aos inspetores, por me permitirem aceder ao seu quotidiano. De qualquer forma, as falhas que possam ter permanecido são da minha inteira responsabilidade.