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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serV no.5 Coimbra mar. 2021  Epub 26-Maio-2021

https://doi.org/10.12707/rv20036 

Artigo de Investigação (Original)

Desenvolvimento de competências dos enfermeiros orientadores: uma visão de peritos

Developing preceptors’ skills: experts’ view

Desarrollo de las competencias de los enfermeros orientadores: una visión de expertos

1 Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Portugal

2 Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, Centro Interdisciplinar de Investigação em Saúde, Lisboa, Portugal


Resumo

Enquadramento:

O quadro legal do Curso de Licenciatura em Enfermagem em Portugal e o Regulamento para o Exercício Profissional dos enfermeiros apontam para a contribuição do enfermeiro na formação dos estudantes de enfermagem.

Objetivo:

Caracterizar o processo de desenvolvimento de competências dos enfermeiros orientadores de ensino clínico.

Metodologia:

Estudo qualitativo, utilizando a metodologia da Grounded Theory. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas a 7 enfermeiros peritos. A amostragem teórica foi conduzida de acordo com as necessidades identificadas no processo de codificação. A análise e tratamento dos dados seguiu a metodologia em uso.

Resultados:

Os aspetos caracterizadores do desenvolvimento de competências dos orientadores são a nível educacional, a socialização primária e secundária, e a nível profissional, a experiência, o conhecimento, a capacidade de análise e a iniciativa profissional.

Conclusão:

Os peritos evidenciam no seu desenvolvimento de competências as vivências de natureza educacional e escolar que promovem a reflexão critica e uma postura proativa e aspetos de natureza profissional como a perícia, a capacidade de análise e a motivação.

Palavras-chave: enfermagem; preceptoria; competência profissional

Abstract

Background:

In Portugal, the legal framework of the Undergraduate Degree in Nursing and the Regulation of Nursing Practice point to the nurse’s contribution to nursing students’ education.

Objective:

To characterize the process of developing clinical preceptors’ skills.

Methodology:

Qualitative study, using the Grounded Theory methodology. Semi-structured interviews were conducted with 7 expert nurses. Theoretical sampling was used based on the needs identified in the coding process. Data analysis and treatment followed the methodology adopted.

Results:

The following aspects characterize the development of clinical preceptors’ skills: primary and secondary socialization at the educational level, and experience, knowledge, analytical skills, and professional initiative at the professional level.

Conclusion:

Throughout the development of their skills, the experts highlighted the educational and academic experiences that promote critical reflection and a proactive attitude, and professional aspects such as expertise, analytical skills, and motivation.

Keywords: nursing; preceptorship; professional competence

Resumen

Marco contextual:

El marco legal de la licenciatura de Enfermería en Portugal y el Reglamento para el Ejercicio Profesional de los enfermeros señalan la contribución del enfermero en la formación de los estudiantes de enfermería.

Objetivo:

Caracterizar el proceso de desarrollo de competencias de los enfermeros orientadores de enseñanza clínica.

Metodología:

Estudio cualitativo, para el cual se utilizó la metodología de la teoría fundamentada (grounded theory). Se realizaron entrevistas semiestructuradas a 7 enfermeros expertos. El muestreo teórico se realizó en función de las necesidades identificadas en el proceso de codificación. Para el análisis y el tratamiento de los datos se siguió la metodología utilizada.

Resultados:

Los aspectos que caracterizan el desarrollo de las competencias de los orientadores son, a nivel educativo, la socialización primaria y secundaria, y a nivel profesional, la experiencia, el conocimiento, la capacidad de análisis y la iniciativa profesional.

Conclusión:

Los expertos destacan en el desarrollo de sus competencias las experiencias educativas y escolares que promueven la reflexión crítica y una postura proactiva, y aspectos de carácter profesional como la destreza, la capacidad de análisis y la motivación.

Palabras clave: enfermería; preceptoría; competencia profesional

Introdução

O perfil de competências dos enfermeiros, estabelecido pela Ordem dos Enfermeiros (OE), refere que o enfermeiro contribui para a formação e para o desenvolvimento profissional dos estudantes de enfermagem e atua como tutor (Ordem dos Enfermeiros [OE], 2019). Também o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros Portugueses, no seu artigo 9º, ponto 6 refere que os enfermeiros contribuem, no exercício da sua atividade, na área da docência e da formação (OE, 2019). Os enfermeiros assumem então a função de orientadores dos estudantes em ensino clínico (EC), nos seus respetivos contextos de trabalho.

Considerando este quadro legal, as dificuldades apresentadas na literatura no desempenho desta função e a ausência de evidência atual disponível sobre o desenvolvimento de competências dos enfermeiros enquanto orientadores, importa caraterizar o processo de desenvolvimento de competências dos enfermeiros para a orientação de estudantes em contexto de EC, de forma a identificar um conjunto de indicadores que poderão caraterizar o perfil do enfermeiro orientador, auxiliando na sua seleção e orientando as suas necessidades de formação. Este artigo surge no âmbito do Programa de Doutoramento da Universidade Católica Portuguesa, especificamente na área da Educação em Enfermagem, apresentando a perspetiva dos peritos e tem como objetivos específicos: caracterizar os participantes da investigação e identificar recortes biográficos de natureza educacional e profissional que influenciam o desenvolvimento de competências do enfermeiro orientador.

Enquadramento

O EC, componente prática do Curso de Licenciatura em Enfermagem (CLE), corresponde à vertente da formação em enfermagem, através da qual, o estudante de enfermagem aprende, no seio de uma equipa e em contacto direto com uma pessoa e/ou uma coletividade, saudável ou doente, a planear, dispensar e avaliar cuidados de enfermagem globais, de acordo com os conhecimentos e competências adquiridas, tendo como principal objetivo “assegurar a aquisição de conhecimentos, aptidões e atitudes necessários às intervenções autónomas e interdependentes do exercício profissional de enfermagem” (Portaria nº 799-D/99, de 18 de setembro, artigo 5º). Decorre na comunidade, em contexto hospitalar ou em outras instituições de saúde, sob a responsabilidade dos professores das instituições de ensino, com a colaboração de enfermeiros da prática clínica qualificados (Portaria nº 799-D/99, de 18 de setembro, artigo 5º). Em alguns EC o estudante está acompanhado presencialmente por um professor, mas noutros a presença do professor é regular, e a responsabilidade pelo processo de ensino-aprendizagem e pela avaliação é partilhada com o enfermeiro do contexto. Esta dinâmica entre o estudante e o enfermeiro orientador é fundamental para a aprendizagem, aquisição e desenvolvimento de competências (Ramos & Nunes, 2017) consistentes com o Perfil de Competências de Enfermeiro de Cuidados Gerais definido pela Ordem dos Enfermeiros.

Considera-se o conceito de competência como um saber agir responsável, eficaz e reconhecido de uma pessoa perante uma situação, num determinado contexto profissional, sujeito a um sistema de avaliação. Implica saber selecionar, mobilizar, integrar e transferir conhecimentos, informações, predisposições, procedimentos/técnicas, métodos, processos, recursos, habilidades, considerando as aprendizagens pessoais (biografia e socialização), a formação educacional (saberes, valores e atitudes) e a experiência profissional (Le Boterf, 2003; Roldão, 2003). Segundo Benner (2001) a aquisição e evolução do desenvolvimento de competências do enfermeiro é baseada nas experiências vivenciadas e na forma como as mesmas são ensinadas. Martins (2017) refere que o desenvolvimento de competências para a intervenção é um processo complexo, pois requer que o profissional saiba desenvolver um conjunto de intervenções técnicas, mas requer também que essa componente técnica seja acompanhada de conhecimento e de capacidade de recolher e analisar a informação e de tomar decisões.

Ferreira et al. (2018) evidenciam que nem sempre os enfermeiros consideram que é seu dever contribuir para a formação dos estudantes, sentindo-se perdidos e sem orientações para o seu desempenho, manifestando necessidade de formação (Fonseca et al., 2016).

Questão de investigação

O que caracteriza o processo de desenvolvimento de competências do enfermeiro enquanto orientador de ensino clínico de estudantes do Curso de Licenciatura em Enfermagem em contexto hospitalar?

Metodologia

Considerando a questão de investigação e a natureza do fenómeno em estudo, bem como a área de conhecimento em que se insere, optou-se por uma metodologia de natureza qualitativa. Atendendo à escassa investigação na realidade portuguesa, nesta perspetiva, e ao fenómeno em estudo, que comporta sentimentos, experiência e reflexão, elegeu-se a utilização da Grounded Theory (GT). Strauss e Corbin (2008) referem que sendo esta metodologia de investigação de cariz interpretativo, permite-nos perceber o significado do fenómeno para o participante e compreender como o mesmo vive as suas experiências, extraindo o seu significado, o que sente e como interage. Num formato estudo de caso, partimos da descrição de um contexto específico na possibilidade de, em profundidade, investigar o fenómeno em estudo.

Esta investigação decorreu de novembro de 2018 a outubro de 2019 num Centro Hospitalar da Grande Lisboa, após a autorização da respetiva instituição. Os informantes-chave foram enfermeiros dos serviços de Medicina e Cirurgia, aos quais foi previamente entregue a informação aos participantes e o termos de consentimento livre e esclarecido. Iniciámos as entrevistas semiestruturadas por enfermeiros referenciados pela chefia do serviço considerados peritos e com experiência em orientação de estudantes e posteriormente a amostragem teórica foi conduzida de acordo com as necessidades identificadas no processo de codificação dos dados (Strauss & Corbin, 2008) até atingirmos a saturação teórica. Considerando a diversidade pretendida nesta metodologia foram incluídos enfermeiros em diferentes estadios do Modelo de Desenvolvimento Profissional de Benner e com perspetivas diferentes em relação à orientação de estudantes, sempre referenciados pela chefia do serviço. Neste artigo apresentaremos o resultado da investigação relativamente à perspetiva de sete peritos.

Após a primeira entrevista iniciou-se a análise dos dados de acordo com o definido por Strauss e Corbin (2008), pelo processo de codificação aberta, seguindo-se por vezes simultaneamente a codificação axial e seletiva. Na codificação aberta identificaram-se os conceitos que emergem dos dados, agruparam-se em categorias e subcategorias e descobriram-se as suas propriedades e dimensões, utilizando a microanálise. Na codificação axial procurou-se relacionar as categorias às suas subcategorias, de forma a criar explicações mais precisas e completas sobre o fenómeno. Ao longo destas fases, redigiram-se memorandos analíticos e conceituais e elaboraram-se diagramas com o objetivo de manter a investigação fundamentada e de manter a consciência do investigador (Strauss & Corbin, 2008).

Resultados

Os resultados emergem da realização de sete entrevistas a enfermeiros considerados peritos, segundo o Modelo de Desenvolvimento Socioprofissional de Patricia Benner (2001). Dos participantes, quatro eram do género masculino e três do género feminino. Quatro exercem funções no serviço de Medicina e três no serviço de Cirurgia. Quanto à experiência profissional seis têm mais de 13 anos de exercício profissional. Relativamente ao percurso académico três dos participantes têm pós-graduação, três têm especialização em Enfermagem, um tem o Mestrado em Enfermagem e um tem o Doutoramento em Psicologia/Antropologia. Apenas um informante-chave tem formação específica na área da orientação de estudantes. Dos entrevistados, dois são professores a tempo parcial num Estabelecimento de Ensino Superior de Enfermagem e possuem Título de Especialista. Relativamente à orientação de estudantes quatro participantes orientam estudantes há mais de 10 anos, dois não se disponibilizam para esta função e um está disponível para ser orientador, mas ainda não iniciou o seu percurso na orientação de estudantes. Foram analisados os recortes biográficos de natureza educacional e profissional que podem influenciar o desenvolvimento de competências do enfermeiro orientador e emergiram as categorias apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1: Categorias que emergiram das dimensões analisadas 

DIMENSÕES CATEGORIAS
Recortes de Natureza Educacional Socialização primária Socialização secundária
Recortes de Natureza Profissional Experiência Profissional Conhecimento Capacidade de análise Iniciativa Profissional

Nos Recortes de Natureza Educacional (Figura 1), a socialização primária e a socialização secundária emergiram como as duas principais categorias encontradas. Dentro da categoria socialização primária foram descobertas duas subcategorias: família e escola. Na subcategoria família foram evidenciados nos discursos dos participantes o terem familiares, “um tio meu . . . tem uma grande capacidade de análise” (E1), o terem “lidado com adultos que foram fazendo desenvolvimento em termos académicos, ao mesmo tempo que faziam desenvolvimento profissional” (E2), e o terem familiares “que me ensinaram muito . . . ” (E5). Na subcategoria escola os discursos dos participantes apontam para caraterísticas do professor “muito entusiasta, muito ativo, muito proactivo . . .” (E5) e para a participação em projetos escolares como por exemplo a “associação de estudantes e tirei outro prazer da escola . . .” (E4). Na categoria socialização secundária emergiram três subcategorias: figura do docente do CLE, figura do orientador do contexto de EC e experiências em EC. A subcategoria figura do docente evidencia a “relação de proximidade que há com um professor . . . e perceber realmente que isto é o modelo que eu quero seguir . . .” (E1) e a perícia clínica “alguém que a nível clínico que é excelente . . .” (E1). Relativamente à figura do orientador são valorizados aspetos relativos à relação “tive vários enfermeiros orientadores que foram fantásticos e que realmente colocaram a parte do ensino num patamar superior . . .” (E5). As experiências dos participantes em contexto de EC foram abordadas de forma positiva e negativa, “tive estágios bons, estágios menos bons, com orientadores que eram um bocadinho... menos orientadores, outros mais orientadores . . .” (E5).

Figura 1: Recortes de Natureza Educacional 

Os Recortes Biográficos de Natureza Profissional (Figura 2) que emergiram da análise das entrevistas foram agrupados em quatro categorias: experiência profissional, conhecimento, capacidade de análise e iniciativa profissional. Na categoria experiência profissional a subcategoria mais evidenciada foi a experiência na orientação de estudantes, “tem sido basicamente a experiência que me tem conduzido” (E4) e a perícia no contexto de trabalho quando referem que “para ser um bom orientador . . . é importante ter o domínio das competências técnico científicas” (E2). Na categoria conhecimento, o domínio teórico da área de atuação pois “se temos alguma mais valia em nós é o nosso conhecimento . . . o nosso conhecimento teórico, o nosso conhecimento científico” (E1) e na área da pedagogia pelo estudo de “alguns modelos de desenvolvimento, algumas teorias de aprendizagem . . .” (E2) são as subcategorias referenciadas pelos peritos. Na categoria capacidade de análise destacam-se como subcategorias a capacidade de análise do estudante, nomeadamente no “identificar o tipo de aprendizagem de um estudante . . .” (E2), identificar “o nível de desenvolvimento da pessoa . . . o estádio de determinadas competências” (E2), “.as caraterísticas de cada um . . . o percurso. . .” (E3), e “os seus problemas, os seus objetivos” (E5). Também a capacidade de análise do currículo do CLE, pois “as escolas também têm diferentes currículos. . .” (E1), e é necessário “ter a perceção até onde é que nós conseguimos exigir . . .” (E2). Um participante questiona mesmo se “Será que já alguma vez tinha realizado ou será que tinha falado na escola, ou se aquilo é um objetivo de estágio . . .” (E5). A capacidade de analisar a prática clínica, “olhar para as coisas . . . de refletirmos, não sermos executores, sabermos aquilo que estamos a fazer . . .” (E7) permite a “tomada de decisão . . . de uma forma muito consciente. . .” (E6). Um participante acrescenta que “se eu conseguir analisar a minha prática, eu vou conseguir ser um melhor enfermeiro, professor, orientador.” (E1). Na categoria iniciativa profissional emergiram três subcategorias: a participação em projetos institucionais, “em alguns projetos que participamos . . .” (E2), a procura de conhecimento atualizado, pois “quando tive os alunos, é uma forma de nos obrigar também a ir estudar e pesquisar e isso é pertinente . . .” (E3) e a motivação para a função demonstrado por “eu adoro o que faço!” (E4).

Figura 2: Recortes de Natureza Profissional 

Discussão

Os recortes de natureza educacional evidenciaram duas grandes categorias suportadas teoricamente por Le Boterf (2003) e Dubar (2005): a socialização primária e a secundária. Consideramos a competência como um saber agir responsável, eficaz e reconhecido de uma pessoa perante uma situação, num determinado contexto profissional e que implica saber selecionar, mobilizar, integrar e transferir diferentes recursos, que provêm das aprendizagens pessoais (biografia e socialização), da formação educacional e da experiência profissional (Le Boterf, 2003; Roldão, 2003). Também Dubar (2012) enfoca a importância da socialização, remetendo-a para a imersão dos indivíduos no mundo vivido, com simbolismo, culturalidade e saberes próprios. O processo de socialização ocorre então nos mais variados contextos, no interior das instituições, pelas interações do indivíduo com o outro, ligando educação (família, escola) e contexto de trabalho e social (Dubar, 2012; Figueiredo & Peres, 2019).

A socialização primária depende essencialmente das relações que se estabelecem com o mundo social em que a criança vive, família e escola, espaços estes que permitem categorizar situações e a construção e antecipação de condutas sociais (Dubar, 2005). Estes saberes de base incorporados pelas crianças também dependem das relações estabelecidas com os adultos (Dubar, 2005). As categorias encontradas dentro da socialização primária são consistentes com a literatura: a família e a escola. A família pelas aprendizagens de carácter doméstico e privado, e a escola, de forma complementar, pela construção de indivíduos morais e eticamente comprometidos com o ideal público (Dubar, 2012).

A socialização secundária parte da premissa de que a socialização nunca é absolutamente conseguida nem nunca é totalmente acabada, permitindo a aquisição de conhecimentos específicos e de papéis enraizados num determinado mundo profissional, possibilitando a interiorização de submundos especializados, os saberes profissionais e ocorre em instituições escolares técnicas e profissionais (Dubar, 2005). A socialização já não é só reservada à infância e a própria formação profissional transformou-se atualmente na formação ao longo da vida (Dubar, 2012). Nesta investigação as principais subcategorias encontradas apontam para a formação profissional: docente do CLE, enfermeiro orientador de EC e experiências vivenciadas em EC. Neste sentido, Diogo (2018) refere que os contextos formativos são fundamentais na construção social e profissional do indivíduo, pois incluem os percursos individuais, sociais, de formação e profissionais, as experiências no espaço social e profissional e o conhecimento profissional. O mesmo autor refere que a reflexão sobre as aprendizagens no contexto de trabalho atribui sentido às experiências vivenciadas e desenvolve-se nas relações sociais presentes nos contextos de aprendizagem. As relações estabelecidas com os profissionais desse mundo, a incorporação da forma de pensar e de agir, a apreensão de valores e das normas desse grupo profissional passa a ser a referência nas atitudes, comportamentos e condutas do profissional (Figueiredo & Peres, 2019). A relação e interação entre o estudante, o enfermeiro orientador em EC e restante equipa é apontada por Liljedahl (2018) e Melo et al. (2017) como um fator gerador de dificuldades em EC influenciando o sucesso da aprendizagem. Amaral e Pereira (2016) referem que o enfermeiro orientador deve adotar uma postura proativa no seu desempenho como orientador, e uma postura facilitadora, quer no acolhimento, quer na integração do estudante no contexto de EC, promovendo um ambiente de respeito e confiança com o estudante. Segundo Dubar (2012) a socialização denominada de profissional conecta permanentemente situações de trabalho e percursos de vida, relações com os outros e consigo próprio, como um processo em constante construção.

Dentro da dimensão recortes de natureza profissional emergiram quatro categorias: experiência profissional, conhecimento, capacidade de análise e iniciativa profissional. Estas categorias são sustentadas primeiramente pela perspetiva de Le Boterf (2003) sobre o saber e o saber-fazer. O autor refere que o saber engloba o saber teórico, o saber do meio, e os saberes associados aos procedimentos. O saber teórico permite entender uma situação, descrevendo e explicando os seus componentes/estrutura e percebendo o seu sentido. O saber do meio é relativo ao contexto no qual o profissional intervém, e no qual a competência é colocada em ação. Os saberes associados aos procedimentos propõem um guia de instruções de como deve ser feito, como proceder para uma determinada ação (Le Boterf, 2003). Relativamente ao saber-fazer Le Boterf (2003) refere que o mesmo abrange o saber-fazer formalizado, empírico e cognitivo. O saber-fazer formalizado considera o profissional saber dominar a aplicação na prática do saber. O saber-fazer empírico é o saber oriundo da ação, aquele que se adquire durante a ação, por intermédio da experiência repetida. O saber-fazer cognitivo corresponde a operações de cariz intelectual fundamentais para a resolução de situações, elaboração de projetos, criatividade e tomada de decisão (Le Boterf, 2003). Benner (2001), quando aborda o Modelo de Desenvolvimento socioprofissional, caracteriza a aquisição de competências em 5 estados: Iniciado, Iniciado avançado, Competente, Proficiente e Perito. Verificamos que os participantes na nossa investigação são considerados peritos na sua área de atuação, de acordo com a caracterização de perito da autora: “já não se apoia sobre um princípio analítico (regra, indicação, máxima) para passar do estado de compreensão da situação ao acto apropriado”. O perito tem “uma enorme experiência, compreende agora de maneira intuitiva cada situação e apreende directamente o problema sem se perder num largo leque de diagnósticos estéreis”, agindo a partir de uma profunda compreensão da situação (Benner, 2001, p. 58). Os aspetos chave da prática de enfermagem perita são: domínio clínico e uma prática baseada na investigação; know-how incorporado; ver a situação no seu todo e ver o inesperado (Benner, 2001). A mesma autora evidencia também que a aquisição e evolução do desenvolvimento das competências do enfermeiro é baseada nas experiências vivenciadas e que o conhecimento se desenvolve ao longo do tempo e que consiste no alargamento do know-how pela investigação baseada na teoria e pela identificação deste know-how existente, que é desenvolvido pela prática clínica. A experiência num determinado contexto e o domínio teórico dessa mesma área de atuação parecem assim indissociáveis (Benner, 2001).

Na categoria experiência profissional evidenciam-se o saber-fazer formalizado, o saber-fazer empírico e o saber-fazer cognitivo identificados por Le Boterf (2003) e a importância das experiências vivenciadas num determinado contexto para a aquisição e desenvolvimento de competências (Benner, 2001). A perícia no contexto de trabalho engloba o saber fazer, em todas as dimensões referidas por Le Boterf (2003) e também o saber do meio que é relativo ao contexto no qual o profissional intervém, e no qual a competência é colocada em ação. O conhecimento do contexto de trabalho pelo enfermeiro orientador ajuda o estudante a situar-se no contexto e a refletir sobre as situações vivenciadas, pelos seus saberes e competências nessa área (Ferreira et al., 2018). A experiência na orientação de estudantes pressupõe o saber teórico (que permita entender a situação do estudante, descrever, explicar e perceber o seu sentido), o saber associado aos procedimentos (para proceder perante uma determinada situação com o estudante seguindo um guia de instruções de como deve ser feito) e todas as dimensões do saber-fazer: O saber-fazer formalizado (domínio da aplicação na prática do saber para poder ensinar o estudante), saber-fazer empírico (que se adquire com a própria experiência de orientação pela repetição da experiência) e o saber-fazer cognitivo (para a resolução de situações com o estudante e respetiva tomada de decisão; Le Boterf, 2003).

Na categoria conhecimento está patente o saber teórico, o saber do meio e o saber associado aos procedimentos (Le Boterf, 2003) e a identificação do know-how existente e o domínio teórico referido por Benner (2001). No domínio teórico da área de atuação são evidenciadas as três dimensões do saber: o saber teórico pelo domínio de conhecimentos inerente à prática profissional daquele contexto, o saber do meio pelo domínio dos conhecimentos relativos ao contexto, e o saber associado aos procedimentos pelo domínio do conhecimento das normas de procedimento desse mesmo contexto (Le Boterf, 2003). Dubar (2012) aborda também o conceito de saber profissional, referindo que ao longo do percurso de formação profissional as situações vivenciadas associadas ao contexto de trabalho, associadas à teoria e à prática reflexiva contribuem para o desenvolvimento deste saber. Num estudo realizado por Amaral e Deodato (2015) emergiram aspetos relacionados com a formação dos enfermeiros orientadores, nomeadamente a formação sobre conteúdos teóricos do plano de estudos do CLE, de preparação para o EC, de práticas pedagógicas reflexivas e de treino de competências. O conhecimento de aspetos relacionados com a orientação pedagógica dos estudantes de enfermagem remete-nos para o saber teórico e o saber associado a procedimentos (Le Boterf, 2003). Ferreira et al. (2018) identificaram alguns saberes que os orientadores precisam de desenvolver, nomeadamente a aquisição de conhecimentos didáticos e pedagógicos. Os enfermeiros orientadores entrevistados neste estudo solicitaram orientação antes de iniciarem a orientação dos estudantes. Também Hilli (2015) aponta a organização de formação pedagógica adicional como forma de fortalecer o conhecimento dos enfermeiros orientadores. A aquisição de conhecimentos e competências relativas a estratégias de supervisão a utilizar em EC são promotoras do desenvolvimento de competências dos estudantes de enfermagem (Amaral & Deodato, 2015).

A capacidade de análise implica todas as componentes do saber e do saber-fazer mencionados por Le Boterf (2003). É necessário que o enfermeiro orientador tenha domínio teórico de conhecimentos, conheça o contexto de trabalho, as normas de procedimentos desse contexto para conseguir dominar a aplicação do conhecimento, pela repetição da experiência vivenciada e que tenha capacidade para resolver problemas, gerir situações e tomar decisões. Hilli (2015) também valoriza o pensamento crítico e a reflexão por parte dos enfermeiros numa investigação realizada sobre a implementação de modelos de orientação de estudantes. Em relação à capacidade de analisar o estudante, Melo et al. (2017) enfatizam que o orientador deve respeitar o ritmo do estudante na aquisição e desenvolvimento de competências, considerando o seu desenvolvimento pessoal, estruturação da personalidade e a sua transição para adulto. Também Ferreira et al. (2018) valorizam a identificação de dificuldades de aprendizagem do estudante, a estimulação da participação do mesmo no planeamento e execução de atividades e da auto-aprendizagem, assim como a aplicação do conhecimento teórico na prática clínica, como preocupações do orientador. A capacidade de análise do currículo é sustentada por Ferreira et al. (2018) e Amaral e Pereira (2016), quando referem que o conhecimento e análise dos objetivos do CLE e do EC por parte do orientador é crucial para desenvolver as atividades necessárias e adequar as oportunidades de aprendizagens, de forma a atingir os objetivos estabelecidos. Amaral e Deodato (2015) afirmam que a participação dos enfermeiros, de forma ativa, no planeamento, organização, desempenho e avaliação da aprendizagem do estudante em contexto de EC, procurando adequar os currículos académicos aos contextos, é fundamental para que perspetive o contexto de trabalho como um espaço formativo de excelência.

A capacidade de analisar a prática clínica implica o conhecimento do contexto de forma a planear, prevenir necessidades e racionalizar recursos humanos e materiais disponíveis (Ferreira et al., 2018). Os mesmos autores evidenciam que esta capacidade de análise das práticas implica sempre um processo de reflexão sobre as mesmas e de tomada de decisão sobre a ação.

A iniciativa profissional implica uma constante procura de saber (teórico, do meio ou associado aos procedimentos), assim como o saber-fazer cognitivo (Le Boterf, 2003) e alargamento do know-how pela investigação baseada na teoria (Benner, 2001). A participação em projetos, a procura de conhecimento e a motivação são aspetos referidos pelos participantes desta investigação. Amaral e Deodato (2015) apontam o desenvolvimento de projetos conjuntos entre escola/instituição de saúde como uma medida formativa a implementar. Estes projetos devem ser analisados e divulgados junto das equipas que acolhem os estudantes em contexto de EC. Kamolo et al. (2017) referem que o desenvolvimento dos enfermeiros orientadores tem um impacto na atitude, no conhecimento e nas competências dos mesmos, tendo consequências nos resultados dos estudantes. Numa investigação realizada por Ferreira et al. (2018) foram identificadas algumas competências que os orientadores precisam desenvolver, nomeadamente a proatividade e o gosto pela pesquisa. De forma a sustentar o compromisso dos enfermeiros na sua função de orientador em EC são consideradas medidas de apoio, como recompensas, para além do treino em si, pois parece que este não é suficiente para suportar o compromisso necessário para esta função (Kamolo et al., 2017). Também Amaral e Pereira (2016) reforçam que a motivação dos enfermeiros para a orientação de estudantes de enfermagem antes do início do EC é fundamental para um acolhimento positivo aos estudantes. Esta motivação é importante para que os enfermeiros sintam necessidade de investir na sua formação e no seu desenvolvimento contínuo de forma a adquirirem competências para a orientação de estudantes (Amaral & Deodato, 2015). Considerando a ausência de evidência atual disponível sobre o desenvolvimento de competências dos enfermeiros orientadores, este estudo evidencia aspetos caraterizadores deste processo, de natureza educacional e profissional, que são consistentes com a literatura disponível.

Conclusão

Segundo os peritos, o desenvolvimento de competências do enfermeiro enquanto orientador de estudantes do CLE em contexto hospitalar é caracterizado, numa primeira instância, por vivências de natureza educacional e escolar que promovem a reflexão crítica e uma postura proativa e numa segunda instância por aspetos de natureza profissional que incluem o domínio teórico e prático da sua área de atuação, a capacidade de análise e a motivação para a função.

A referenciar que este artigo reporta a um método de investigação, estudo de caso, realizado em dois contextos específicos e, por isso, os resultados apresentados não permitem a sua generalização, senão do ponto de vista analítico, para o desenvolvimento de competências de todos os orientadores.

Os resultados desta investigação poderão permitir identificar um conjunto de indicadores que irão caracterizar o potencial perfil do enfermeiro orientador, auxiliando na sua seleção, orientando a sua preparação para a função e melhorando consequentemente a formação dos estudantes de enfermagem. Sugere-se a realização de outros estudos, em diferentes contextos para aprofundar a caraterização do processo de desenvolvimento de competências dos enfermeiros orientadores.

Financiamento

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto número UIDB/04279/2020.

Referências bibliográficas

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Recebido: 17 de Março de 2020; Aceito: 12 de Novembro de 2020

Conceptualização: Amaral, G.

Tratamento de dados: Amaral, G.

Análise formal: Amaral, G.

Investigação: Amaral, G.

Metodologia: Amaral, G.

Supervisão: Figueiredo, A. S.

Validação: Figueiredo, A. S.

Redação - preparação do rascunho original: Amaral, G.

Redação - revisão e edição: Figueiredo, A. S.

Autor de correspondência Guida Amaral E-mail: gmms.amaral@gmail.com

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