Introdução
Na atualidade, a sociedade parece inquietar-se cada vez mais com as questões ligadas ao fim de vida. Efetivamente, com os avanços da ciência e da medicina é possível contrariar a morte com o prolongamento da vida, graças aos inúmeros tratamentos e cuidados de saúde que se encontram ao dispor do homem, procurando a imortalidade. Contudo, esta procura nem sempre significa qualidade de vida e acarreta em inúmeras situações sofrimento associado. Coloca-se assim, aos profissionais de saúde, novos desafios, nomeadamente aos enfermeiros que prestam cuidados dirigidos às necessidades efetivas, durante todo o processo de transição da pessoa ao longo da vida.
O respeito pela autonomia da pessoa doente e o cumprimento da sua vontade é um dos objetivos major dos cuidados. Assim, o apelo ao reconhecimento do direito de morrer com dignidade, tem merecido maior atenção e reflexão por parte de todos, pois quem acompanha doentes em fim de vida, facilmente compreende que o processo de morrer nos hospitais é, muitas vezes assustador, rodeado de muito aparato tecnológico, mas também, acompanhado de muita solidão. Procura-se dar à pessoa doente mais tempo de vida, mas questiona-se em que medida todas estas intervenções que afastam a morte, respeitam a vontade da pessoa? E, como intervir, quando a pessoa não se encontra capaz de tomar decisão? Desta forma, a consciência social de que os cuidados de saúde devem ser mais humanizados e centrados na pessoa em qualquer fase do seu ciclo de vida, tem conduzido os profissionais de saúde na sua prática clínica a refletirem sobre o exercício de autonomia da pessoa como pilar fundamental dos cuidados de saúde, podendo ser traduzido através de um consentimento informado e, de uma diretiva antecipada de vontade (DAV).
Assim, a DAV surge como uma necessidade de fortalecer a compreensão do princípio da autonomia perante a grande evolução médico-científica, principalmente no campo da medicina de sustentação da vida humana, quando a pessoa doente não está na posse das suas capacidades cognitivas. Esta, constitui a primeira ferramenta legal para podermos comunicar formalmente a nossa vontade relativa aos cuidados de saúde no fim da vida. Nunes (2016, p.106), vem reforçar a importância da DAV no respeito pelo princípio da autonomia, afirmando que “. . . a DAV é a expressão da proteção da liberdade e da autonomia da pessoa, de uma pessoa informada e que solicita dentro dos limites da ação ética e deontológica dos profissionais . . .”, permitindo, deste modo, à pessoa participar no planeamento dos cuidados de saúde.
Em Portugal, a Lei nº 48/1990, de 24 de agosto (Lei n.º 48/90 da Assembleia da República, 1990), na Base XIV, define que as pessoas, além do direito a serem informadas sobre a sua situação, têm ainda, o direito de decidir receber ou recusar os cuidados que lhe são propostos. Deve-se, também, destacar a colaboração do Código de Deontologia Médica português, publicado em 2008, ao estabelecer no seu artigo 46.º que a conduta médica deve obedecer à autodeterminação do doente, em especial se houver um documento escrito em que o seu desejo esteja registado (Regulamento n. 14/2009).
A necessidade crescente de adequar a jurisprudência à conjuntura social vivida resultou que em 2012 fosse aprovada a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho (Lei n.º 25/2012 da Assembleia da República, 2012), sendo a primeira Lei portuguesa sobre o Testamento Vital. Trata-se de um documento escrito antecipando a vontade de uma pessoa receber ou não, cuidados de saúde.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (2010), no ponto 9 do parecer 59/CNECV/2010 menciona que as equipas de saúde devem informar as pessoas no contexto da elaboração da DAV. Partindo de todos estes pressupostos, este estudo tem como objetivo identificar as experiências dos profissionais de saúde no cumprimento da DAV, na prática clínica com a finalidade de contribuir para que a DAV seja reconhecida pelos profissionais de saúde, como um documento essencial à construção de uma morte digna.
Enquadramento
Falar da morte é uma tarefa árdua, na medida em que, a finitude é sem dúvida a maior batalha que a pessoa enfrenta. Nascemos com um corpo para viver e para morrer.
Do ponto de vista biológico, a morte é considerada a interrupção de todas as funções vitais da pessoa. É de facto, apenas mais uma etapa a ser cumprida no seu ciclo de vida. Temos vindo assistir a uma morte institucionalizada, esta deixou de acontecer em casa, num espaço íntimo e familiar, assistida pelos últimos ritos religiosos, para passar a ter lugar num hospital. Para Serrão e Nunes (1998, p. 86) “a morte deixou de ter expressão familiar e social”. Esta hospitalização da morte para os profissionais de saúde tornou-se símbolo de fracasso e ineficiência, as ciências da saúde tornaram-se obcecadas em evitar e impedir a morte, a qualquer custo (Vicensi, 2016).
O desejo da imortalidade leva a que muitas vezes a pessoa seja cuidada apenas na sua dimensão física descurando a sua multidimensionalidade. Quando esta morte ocorre em unidades de saúde que estão mais vocacionados para a cura, tecnicismo, como as unidades de cuidados intensivos (UCI), o acompanhamento e o respeito pela autonomia da pessoa doente ficam por vezes afetados. Estas UCI integram em si mesmo uma expressão da evolução médica e científica ao serviço do esforço humano, de protelar e deter a morte quase indefinidamente. Estas unidades, são dotadas de meios técnicos e humanos especializados na assistência ao doente crítico, integram e ampliam as possibilidades terapêuticas de muitos doentes, que pela gravidade do seu estado não sobreviveriam sem este recurso. Contudo, apesar desta assistência especializada, a morte é bastante comum neste contexto de cuidados, quer pela irreversibilidade na recuperação dos órgãos em falência, quer pela complexidade da doença. Vicensi (2016, p. 66), refere que as UCI são “. . . dos recintos mais agressivos e tensos do hospital, são muitas vezes . . . o último recurso para tentar impedir a morte”.
Os profissionais de saúde destas unidades exercem funções num ambiente instável, onde as forças da vida e morte, se encontram numa luta permanente. Citando Nunes (2016):
O que é fundamental não é a mera extensão da vida e sim a sua qualidade na expressão de a pessoa decidir sobre si. Dito de outra forma, a dignidade de cada um, de cada um no fim da sua vida. (p.115)
Realça-se, que a autonomia da pessoa doente tem ganho importância no momento de se decidir o que fazer, sendo por isso a postura paternalista dos médicos e dos enfermeiros, outrora facilmente aceite, hoje de difícil aceitação na sociedade. Assim, a DAV constitui-se no primeiro instrumento legal, para podermos comunicar formalmente a nossa vontade relativa aos cuidados de saúde no fim da vida. Saioron et al. (2017), definem a DAV como os desejos previamente manifestados pelo doente sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber quando estiver incapacitado de expressar livre e autonomamente a sua vontade
A DAV vem reforçar, assim, a autonomia da pessoa doente face à evolução médica e científica, essencialmente quando o doente já não estiver capaz cognitivamente de decidir ou manifestar a sua vontade.
Podemos também considerar que a criação de um documento como a DAV, em que a pessoa deixa escrito o tratamento que pretende ou não, no caso da sua capacidade de tomada de decisão ficar reduzida ou inexistente, vem aproximar a medicina da sociedade atual.
Para que uma DAV seja compreendida de forma clara e objetiva a sua comunicação escrita deve estar assente em conceitos precisos e permeada de orientações rigorosas. O primeiro documento legal que utilizou o termo Living Will surge no estado da Califórnia em 1976, e no estatuto do procurador cuidados de saúde em 1983, seguido de outros até culminar com a Patient Self Determination Act, lei federal promulgada em 1991 (Nunes, 2016).
Na Europa esta questão ganha mais relevância na década de 90, após a Patient Self Determination Act norte-americana e constitui uma prática corrente em muitos países. Os países como a Finlândia, Holanda e Hungria com maior tradição liberal no que diz respeito à autonomia, legislaram o tema ainda, na década de noventa.
Nos restantes países, o reconhecimento da DAV como um direito do doente só foi exequível a partir da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano em face das Aplicações da Biologia e da Medicina, conhecida também, como Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina ou Convênio de Oviedo, cujos signatários são os Estados Membros do Conselho da Europa, redigida em 4 de abril de 1997. Em Portugal a Convenção foi aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001, de 3 de janeiro (Decreto n.º1/2001 do Presidente da República, 2001), que determina, no artigo 9.º, que “a vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente que no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em conta” (Decreto n.º1/2001 do Presidente da República, 2011, p. 15).
Após o Convênio de Oviedo, a Bélgica foi o primeiro país a legislar sobre o tema, em agosto de 2002, seguida pela Espanha, em novembro do mesmo ano.
A Inglaterra e o País de Gales legislaram a DAV em 2005, assim como a França. A Áustria em 2006 e a Alemanha em 2009 (Dadalto, 2015). Itália apesar de signatária do Convénio de Oviedo, apenas em 14 de dezembro de 2017 legaliza o Testamento Vital.
Em Portugal, o primeiro projeto-lei sobre o Testamento Vital, foi apresentado pela Associação Portuguesa de Bioética em 2006 (Nunes & Melo, 2012), à Assembleia da República, onde é referida a necessidade de criação de um documento com registo nacional, onde cada pessoa possa exercer o direito de formular uma DAV no âmbito da prestação de cuidados de saúde. A necessidade crescente de adequar a jurisprudência à conjuntura social vivida resultou que em 2012 fosse aprovada a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho (Lei n.º 25/2012 da Assembleia da República, 2012) sendo a primeira Lei portuguesa sobre o Testamento Vital. O facto é que Portugal apresentou uma legislação específica sobre o tema apenas uma década após este reconhecimento. O diploma regula, ainda, a nomeação de Procurador de Cuidados de Saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV), cuja finalidade é “rececionar, registar, organizar e manter atualizada, quanto aos cidadãos nacionais, estrangeiros a apátridas residentes em Portugal, a informação e documentação relativas ao documento de DAV e à procuração de cuidados de saúde” (Lei n.º 25/2012 da Assembleia da República, 2012, p. 3730).
Capelas (2016), no seu artigo de opinião menciona um estudo realizado pelo Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa e a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, onde 78% dos portugueses não sabem em que consiste o Testamento Vital e daqueles que sabem em que consistem, mais de 90% obteve essa informação a partir dos órgãos de comunicação social, quando deveria ter sido junto de profissionais de saúde e instituições de saúde
Seria importante fomentar o envolvimento e participação dos profissionais de saúde no esclarecimento e informação para a elaboração da DAV. Num artigo de opinião, Capelas (2016), refere-se a esta participação dos profissionais de saúde, como uma forma de responder aos princípios inerentes ao consentimento informado (neste caso prospetivo), e que para ser considerado válido o cidadão deve possuir competências para tomar a decisão. Para o mesmo autor, a DAV nunca poderia ser percecionada como um documento unilateral, mas sim, como uma oportunidade de decisão partilhada, acompanhada, esclarecida e que dê resposta às necessidades reais e desejos da pessoa cuidada em cada momento da sua vida. Assim, para o profissional de saúde, cuidar de um doente que possui uma DAV é uma oportunidade redobrada de decisão partilhada, porque exige dele a sua validação, e para tal, será necessário esclarecimento e informação continua.
A intenção de uma DAV nunca será a de incitar a ideia de eutanásia ativa, mas sim permitir ao doente a decisão do momento no qual determinados esforços devam ser suspensos. Neste contexto, uma DAV que tenha explicito a recusa a determinados tratamentos médicos, pode eventualmente levar a uma morte mais acelerada do seu outorgante, pois a questão central da DAV é a autodeterminação da pessoa que lhe possibilita escolher ter uma morte digna, sem sofrimento e sem recurso a meios de tratamento fúteis ou desproporcionais.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (2017), assinala que:
. . . regime jurídico das DAV pretende fomentar acima de tudo, a autonomia prospetiva de cada um de nós, de modo que a elaboração de uma DAV seja encarada como um processo reflexivo, apto a alcançar o desiderato de emanar diretivas refletidas e conscientes, únicas, que poderão ser vinculativas para os prestadores de cuidados de saúde. (p. 4)
Não nos podemos limitar apenas à vontade do doente quando estamos perante uma DAV, mas importa também ter em conta, a sua personalidade, crenças, cultura, relações interpessoais. É de facto importante, ter em conta a pessoa no seu todo e com a sua circunstância.
Quando falamos em respeitar a pessoa, falamos em ter em conta a sua dignidade, promovendo-a e defendendo-a. A dignidade compreende a proteção da integridade e da identidade do género humano. Deodato (2014, p. 91), considera que é “um respeito que se dirige à vida e à sua valoração inequívoca, à promoção de modos de vida que se realizam com os outros, que defende a autonomia e o poder individual para encaminhar a sua vontade”. Acrescenta ainda, que é “o respeito que dá importância aos projetos individuais, mas ao mesmo tempo suporta a construção desses projetos no sentido da humanidade da vida” (Deodato, 2014, p. 91).
No pensamento de Kant a dignidade é única e insubstituível, não tem equivalente e o ser humano tem a liberdade de fazer uso do próprio entendimento e assumir seu destino mediante sua própria vontade. Deste modo, podemos considerar que a autonomia ocupa um lugar central no pensamento do filósofo Kant. Posto isto, os profissionais de saúde perante as situações de fim de vida, confrontam-se com tomadas de decisão complexas, na medida em que envolve o princípio do respeito pela autonomia individual e em aceitar que cada pessoa é autónoma para se autodeterminar. Importa salientar, que os profissionais de saúde envolvidos na tomada decisão ética devem ser acima de tudo pessoas com competências comunicacionais e relacionais, de forma a tornar o processo de tomada de decisão numa partilha que respeite acima de tudo a dignidade da pessoa doente e que permita que esta, faça as suas escolhas de forma livre e consciente. Neste contexto, a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho (Lei n.º 25/2012 da Assembleia da República, 2012), que aprovou o Testamento Vital, veio criar um instrumento legal que vincula antecipadamente a vontade da pessoa, no que respeita aos tratamentos que pretende ou não receber em determinada condição de saúde, assegurando, desta forma, o direito à autodeterminação num momento em que a capacidade individual para o seu gozo se encontra condicionada. É de realçar, que a elaboração do Testamento Vital permite então à pessoa, manifestar a sua vontade sobre os momentos finais da sua vida, mas os profissionais de enfermagem não poderão ficar à margem do processo de planeamento, conceção e cumprimento das DAV.
Questão de Investigação
Quais as experiências dos profissionais de saúde no cumprimento da DAV na prática clínica?
Metodologia
A opção metodológica insere-se no paradigma qualitativo, de natureza exploratório-descritivo, centrada em identificar as experiências dos profissionais de saúde no cumprimento da DAV na prática clínica.
A seleção dos participantes do estudo procurou a obtenção de riqueza de informação e para isso definiu-se que seriam participantes do estudo os profissionais de saúde que obedecessem aos seguintes critérios de inclusão: médicos e enfermeiros a exercer funções numa UCI e elementos que integrem a equipa intra-hospitalar de suporte em cuidados paliativos (EIHSCP), da região norte de Portugal; médicos e enfermeiros com experiência profissional superior a 1 ano. De acordo com os critérios de inclusão e o princípio da saturação de dados, participaram no estudo 15 profissionais de saúde (11 profissionais de saúde de uma UCI e quatro profissionais de saúde de uma EIHSCP), que seguidamente passaremos a caraterizar:
Os participantes são oito do sexo feminino e sete do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 30 e 61 anos. Foram definidas quatro categorias: [30-40[; [40-50[; [50-60[; >60. O tempo de serviço varia entre os sete e 33 anos e o Tempo de serviço na UCI/EIHSCP - varia entre os 1 e 20 anos.
Quanto à formação académica, nove são enfermeiros em que três têm apenas licenciatura em enfermagem, três têm especialidade em enfermagem de reabilitação, um especialista em enfermagem médico-cirúrgica e dois com mestrado em cuidados paliativos. No que concerne ao grupo profissional médico: seis são médicos, dois possuem mestrado integrado e especialidade em medicina geral e Familiar e quatro com mestrado integrado e especialidade em medicina interna.
Para a recolha de dados foi aplicada uma entrevista semiestruturada, com vista a compreender e interpretar o fenómeno em estudo, recolhendo informação acerca das experiências vividas pelos profissionais de saúde de uma UCI e de uma EIHSCP no cumprimento da DAV. Foi elaborado um guião, construído com base no objetivo do estudo, com a questão semiaberta “Relate as suas experiências no cumprimento da diretiva antecipada de vontade”, que permitiram ao entrevistado explanar conceitos, ideias, opiniões e experiências. Este foi submetido a uma validação, que nos serviu de treino para a condução das entrevistas propriamente ditas e permitiu-nos validar a adequabilidade das questões, não tendo sido necessárias alterações, manteve-se a versão inicial. É de salientar que foram cumpridos todos os procedimentos éticos e legais.
Antes de iniciar a colheita de dados, foi efetuado um contacto prévio com o diretor clínico e enfermeiro gestor dos respetivos serviços, com o objetivo de explicitar a proposta desta investigação, negociando o período e o local para abordar os participantes, assim como o nosso compromisso em divulgar os resultados junto dos profissionais dos referidos serviços.
No início de cada entrevista foram explicados e apresentados os objetivos do estudo, garantindo-se a confidencialidade e o anonimato.
A recolha de dados foi realizada durante os meses de dezembro de 2018 e janeiro de 2019, num total de 15 entrevistas, numa sala do serviço que permitia um clima de confiança, privacidade e após o término de cada entrevista, foram completadas com notas e reflexões que emergiram ao longo da mesma.
Efetuada análise de conteúdo segundo o referencial de Bardin (2016). Numa primeira fase foi efetuada a transcrição das entrevistas, o que possibilitou ter um suporte para posterior análise e familiarizarmo-nos com a informação obtida, dando um código de identificação a cada entrevista. De seguida, a mesma informação foi organizada e ordenada de forma a podermos iniciar a redução dos dados. Posteriormente, após leitura, estabelecemos as unidades de análises que foram alocados às respetivas áreas temáticas, o que levou ao aparecimento de temas para cada um dos domínios considerados. Tendo sempre em consideração os objetivos do estudo e as áreas temáticas identificamos categorias e subcategorias. Assim, inicialmente codificamos as unidades em categorias e posteriormente comparamos as categorias entre si, de forma a serem agrupadas em temas e possíveis semelhanças entre si. O estudo teve parecer favorável (n.º 50/2018 - CES) da comissão de ética do hospital.
Resultados
Para atender às múltiplas dimensões e aspetos do cuidado à pessoa em fim de vida, torna-se necessário a utilização de novas ideologias, capazes de envolverem a complexidade e a integralidade do cuidado, de uma forma holística. Devemos considerar o papel determinante dos profissionais de saúde em garantir o respeito pela autonomia do doente; desenvolvimento e cumprimento adequado de uma DAV. Assim, tornou-se pertinente identificar as experiências dos profissionais de saúde no cumprimento da DAV, na prática clínica.
De seguida, apresentamos os dados recolhidos em entrevista aplicada aos profissionais de saúde que participaram no estudo, em 2018 e 2019. De forma a possuir uma perceção mais clara das categorias apresentadas, expomos e analisamos as unidades de análise inerentes à temática as experiências dos profissionais de saúde no cumprimento da diretiva antecipada de vontade, na prática clínica, como apresentado na tabela 1.
De forma a se obter uma perceção mais objetiva, expomos em forma de figura as experiências dos profissionais de saúde no cumprimento da DAV, na prática clínica (Figura 1).
Discussão
O medo foi experienciado por alguns dos participantes como algo desagradável ao se depararem com a DAV. Relativamente a esta vivência, verificamos que outros estudos também mencionam o medo como algo sentido por alguns profissionais de saúde quando lidam com a DAV, como o estudo de Cogo et al. (2017), em que mencionam que alguns profissionais de saúde sentem medo em seguir as instruções que as diretivas contemplam, essencialmente quando a família discorda do que o doente definiu previamente. Também, o estudo de Cogo et al. (2017), enfatiza o medo como algo experienciado pelos profissionais de saúde na aplicabilidade da DAV. Noutro estudo, também é evidenciado este sentimento “Soma-se ainda, o receio pelo fato de cumprir algo que foi manifestado previamente, mas que talvez, não corresponda aos desejos no presente . . .” (Cogo et al., 2017, p. 28).
A Impotência, também é experienciada por alguns dos participantes do estudo perante a DAV, na medida em que manifestam não saber como lidar com a dualidade de opiniões (doente, família, equipa de saúde). Comungam deste sentimento de impotência, Saioron et al. (2017), ao mencionarem que nem sempre é fácil aceitar um pedido do doente para parar de investir. Os profissionais de saúde entendem que por vezes com o avanço tecnológico e terapêutico que vai surgindo, poderão atrasar a evolução do processo de doença e garantir qualidade, gerando aos profissionais de saúde envolvidos impotência e, ao mesmo tempo, um dilema ético.
Muitas vezes, os profissionais de saúde não são treinados para parar, para estabelecer limites nas suas intervenções nos doentes sem possibilidades terapêuticas de cura.
O respeito pela tomada de decisão do doente foi verbalizado como experiência relacionada com a DAV. Efetivamente, a maioria dos estudos relacionados com a DAV, destacam este sentimento. Cogo et al. (2017) e Nietsche (2017), também comungam desta opinião, ao concluir que a DAV é um instrumento de autodeterminação e que facilita a tomada de decisão do doente. Os autores concluem ainda que esta tomada de decisão pessoal deve ser imune a influências externas, sejam elas de familiares ou profissionais de saúde. Muitos dos profissionais de saúde não especificam de forma clara as suas vivências, porém, perante a DAV, afirmam ter experienciado uma multiplicidade de sentimentos e emoções. Contudo, é de realçar que ainda existe um número considerável de entrevistados (cinco enfermeiros) que revelou não ter tido qualquer experiência com a DAV. Outros estudos também apontam para o mesmo. Rodrigues (2017), na sua tese de mestrado, verificou que são muito poucos os profissionais que já tiveram alguma experiência com a DAV.
Conclusão
Os profissionais de saúde ao serem confrontados na sua prática clínica com a DAV experienciam uma variabilidade de emoções e sentimentos que advém do conflito entre aquilo que pensam ser o melhor para o doente e aquilo que o doente entende ser o melhor para ele. Neste sentido, é fundamental que se aposte na formação, informação e maior sensibilização dos profissionais de saúde para a gestão da DAV.
Realça-se ainda, a necessidade de os profissionais de saúde apostarem em modelos de cuidados centrados na pessoa doente onde este seja focado como sujeito de cuidados.
Assim, parece-nos poder afirmar a necessidade de se construírem critérios mais objetivos e claros para que o profissional de saúde na sua prática clínica não tenha medos e impotência na aplicabilidade da DAV. Evitar cuidados que se dirigem para a pessoa como objeto de cuidados deve ser algo abater de forma que a autonomia da pessoa doente seja respeitada, indo assim de encontro aos desejos do doente.
Importa salientar que este estudo tem algumas limitações, nomeadamente a não generalização dos resultados, devido à opção por um estudo de natureza qualitativa e, consequentemente, ao seu número de participantes.
Considera-se que este estudo tem implicações para a prática de cuidados, para a formação e para investigação, na medida em que demonstra a necessidade de apostar numa mudança de cuidar, promovendo uma visão integral da pessoa e, deste modo, a dignificação do processo de fim da vida, tendo em conta a vontade do doente.