Introdução
O envelhecimento é um dos fenómenos mais marcantes da atualidade, e Portugal segue a mesma tendência dos restantes países do mundo (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019). Associado ao avanço da idade, as pessoas idosas encontram-se mais propensas ao aparecimento de doenças crónicas. A diabetes mellitus é a patologia mais comum na população idosa e está associada a altas taxas de mortalidade, à redução da capacidade funcional e ao incremento do número de hospitalizações e institucionalizações. O diagnóstico de uma doença crónica surge associado à necessidade de aderir a um regime medicamentoso, não raras vezes complexo, sendo que, nos países desenvolvidos, a taxa de adesão à medicação é inferior a 60% (World Health Organization [WHO], 2003). É consensual que a não adesão à medicação acarreta graves consequências-a nível individual e global-e, por isso, esta investigação objetiva compreender como a pessoa idosa com diabetes mellitus tipo 2 gere o seu regime medicamentoso.
Enquadramento
O fenómeno do envelhecimento populacional encontra-se bem demarcado na sociedade do século XXI, é de natureza multifatorial, universal e individual, transversal à maioria dos países e culturas, e por isso é importante delinear políticas de saúde focadas nas necessidades das pessoas idosas, que permitam a estas pessoas manterem-se socialmente participativas e ativas (Littlejohns & Wilson, 2019). Associado ao avanço da idade é frequente a pessoa idosa ser confrontada com o diagnóstico de pelo menos uma doença crónica e, consecutivamente, com a necessidade de aderir a um regime medicamentoso que muitas vezes é complexo (WHO, 2019). Assim, o incremento das doenças crónicas implica um reajuste das políticas, principalmente nas áreas da saúde, segurança e assistência social (Littlejohns & Wilson, 2019).
O diagnóstico da diabetes mellitus tipo 2 apresenta uma tendência crescente. Em 2013 atingiu cerca de 382 milhões de pessoas em todo o mundo, em 2014 cerca de 422 milhões e preve-se que para 2035 atinja 592 milhões de pessoas (WHO, 2020). Neste sentido, a Sociedade Portuguesa de Diabetologia (SPD), salienta que o aumento considerável da incidência e prevalência da Diabetes mellitus pode acarretar sérios problemas em termos de saúde pública a nível mundial (SPD, 2019). Num estudo realizado em Portugal, mais de 25% das pessoas, com idades compreendidas entre os 60-79 anos, têm diabetes (SPD, 2019). Para além da prevalência desta patologia, é imperativo um olhar mais atento para a mortalidade associada. Morrem 41 milhões de pessoas, por ano, na sequência de doença crónica, sendo que a diabetes assume a quarta posição na tabela, com 1,6 milhões de mortes (WHO, 2020). Em 2012, episódios de hiperglicemia causaram a morte a 2,2 milhões de pessoas e em 2016 esta doença crónica foi causa direta de 1,6 milhões de mortes (WHO, 2020).
Porém, a evidência diz-nos que, se houver cumprimento do regime medicamentoso e adoção de um estilo de vida saudável, a probabilidade de morrer por esta patologia diminui significativamente (Atinga et al., 2018; Brown et al., 2016; Gast & Mathes, 2019; Leelakanok et al., 2017). Para tal, é esperado que a pessoa idosa com doença crónica adote e mantenha comportamentos promotores de saúde, com o intuito de minimizar e controlar possíveis eventos adversos que possam comprometer a qualidade de vida (Al-Musawe et al., 2019; Brown et al., 2016).
Considerando adesão ao regime medicamentoso como o cumprimento e concordância face ao regime proposto, que se traduz na ação e comportamento da pessoa face a esse mesmo regime (WHO, 2003), aderir a um regime medicamentoso deve ser entendido como uma aceitação e intervenção ativa e voluntária da pessoa doente, que partilha a responsabilidade do sucesso terapêutico com a equipa profissional de saúde. Depreende-se, assim, que adesão à medicação vai mais além da toma diária dos medicamentos, contemplando a toma do medicamento certo, na hora certa, na dose correta e na frequência preconizada (Atinga et al., 2018; Gast & Mathes, 2019).
Assume-se que a não adesão à medicação e a ineficácia da gestão do regime medicamentoso tem uma origem multifatorial, sendo imprescindível identificar os fatores da não adesão à medicação para posterior implementação de uma intervenção dirigida às reais necessidades das pessoas (González-Bueno et al., 2019). Denota-se, desde já, que é difícil compreender o real panorama da não adesão, pois encontra-se condicionada por uma teia de fatores que divergem de pessoa para pessoa, tornando esta temática sensível e de difícil resolução. A promoção da adesão à medicação é uma área sensível aos cuidados de enfermagem. Neste contexto, os enfermeiros encontram-se numa posição privilegiada para, numa díade, orientar a pessoa idosa para o sucesso terapêutico e para a promoção da saúde, visando a aquisição de novos comportamentos com vista à adoção de estilos de vida saudáveis, devendo este tema ser considerado com seriedade pelos decisores políticos (Atinga et al., 2018; Gast & Mathes, 2019). Assim, um dos grandes desafios para a enfermagem é identificar as necessidades de cada pessoa e ajudá-la a responder de forma positiva face às transições ocorridas ao longo do ciclo vital, conforme se verifica aquando do diagnóstico de uma doença crónica. Para tal, importa compreender como é que a pessoa idosa com diabetes mellitus tipo 2 gere o seu regime medicamentoso.
Questão de investigação
Como é que a pessoa idosa, com diabetes mellitus tipo 2, gere o seu regime medicamentoso?
Metodologia
Estudo descritivo, qualitativo, de natureza indutiva. Os dados foram recolhidos através de entrevistas semiestruturadas presenciais, respeitando todos os princípios da realização de uma entrevista desta natureza. As entrevistas foram áudio-gravadas e transcritas textualmente. O verbatim foi analisado com recurso a análise de conteúdo. Os Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) foram utilizados para orientar procedimentos da pesquisa, permitindo, assim, atestar o rigor do desenvolvimento do estudo.
Os informantes foram selecionados, nas Unidades de Saúde Familiares (USFs) escolhidos para o estudo, 12 pessoas, com: i) diagnóstico médico de diabetes mellitus tipo 2 não insulino tratada; ii) com idade igual ou superior a 65 anos; iii) e seguidas pelo médico e enfermeiro das USFs selecionadas, no controlo e vigilância da diabetes. Os critérios de inclusão foram: i) pessoas residentes nas suas casas, responsáveis pela gestão do seu regime medicamentoso; ii) falantes de português; iii) medicadas com antidiabéticos orais; iv) e com consulta médica nos últimos seis meses. Os critérios de inclusão foram verificados através de uma revisão retrospetiva dos registos clínicos. Os critérios de exclusão foram: i) pessoas medicadas com insulina, ii) com comprometimento cognitivo ou sensorial não compensado, iii) com necessidade de cuidados paliativos e ainda iv) residentes em lares ou em lista de espera para o serem. Todas as pessoas selecionadas para a entrevista aceitaram livre e esclarecidamente participar no estudo, através da assinatura do consentimento livre e esclarecido elaborado através do site da Direção-Geral da Saúde, bem como aceitaram falar livremente sobre a sua experiência face à gestão do regime medicamentoso. As entrevistas foram realizadas durante três meses, até à saturação de dados, que se atingiu à nona entrevista, sendo que se decidiu realizar mais três entrevistas, para confirmar a não existência de novos achados.
Todas as entrevistas foram realizadas num consultório disponível, garantindo a privacidade, o sigilo e a confidencialidade de toda a informação partilhada. A investigadora principal realizou as 12 entrevistas semiestruturadas presencialmente e tomou notas de campo, principalmente da linguagem não-verbal e paralinguagem. Antes do início da gravação foram colhidos dados sociodemográficos e clínicos, com o intuito de caracterizar cada informante. A entrevista foi estruturada e baseada em três perguntas: 1) Como é para si ter diabetes e, como tal, ter que tomar medicação todos os dias?; 2) Como é que gere o seu regime medicamentoso?; 3) Que tipo de intervenção por parte dos profissionais de saúde (médico, enfermeiro) considera importante para o ajudar a cumprir o seu regime medicamentoso?
A duração das entrevistas variou entre 26 e 44 minutos, com uma média de 30 minutos.
Os dados foram analisados, indutivamente, através da análise de conteúdo, compreendendo a codificação, organização e classificação de dados por temas principais, conceitos, categorias e abstração, seguindo as etapas referidas por Kyngäs et al. (2020). Assim, a primeira fase contemplou a preparação, a organização e leitura flutuante do verbatim; a segunda fase permitiu elencar partes do texto e selecionar categorias; e a última fase possibilitou a elaboração de inferências a partir das informações obtidas (Kyngäs et al., 2020). Na realidade, as categorias traduzem tópicos/ ou aspetos que, pela sua similitude, o investigador agrupa, atribuindo um nome a esse grupo, o que se constitui a categoria ou subcategoria (Gonçalves et al., 2021).
Assim, numa primeira fase, as entrevistas foram transcritas a partir das gravações áudio, lidas e relidas até apreender o sentido como um todo. O verbatim, incluindo o conteúdo manifesto, bem como a comunicação não verbal e paralinguagem, foi indutivamente analisado e organizado por similaridade, levando a uma organização das categorias e subcategorias. Numa segunda fase, os dados foram analisados, codificados e organizados de forma independente por outro investigador. Para auxiliar a codificação foi ainda utilizado o programa informático NVIVO 10.
Deste processo emergiram quatro categorias e doze subcategorias, que permitiram descrever o modo como as pessoas idosas, com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2, gerem o seu regime medicamentoso. O eixo central da análise foi a gestão da medicação das pessoas idosas com diabetes, tendo presente os fatores que podem interferir com a gestão e adesão à medicação. Adotou-se como referencial o modelo conceptual designado como The Five Dimensions of Adherence (WHO, 2003).
Para garantir a credibilidade foi realizado um último contacto telefónico, legitimando a credibilidade dos resultados, e a sua interpretação. Estas foram também validadas por investigador experiente em investigação qualitativa, o que permitiu assegurar que as interpretações correspondem à realidade dos informantes, mas também, que o processo de codificação se encontrava rigorosamente realizado. Para garantir a fiabilidade, realizou-se uma colheita de dados minuciosa baseada na entrevista audiogravada, que decorreu em ambiente calmo e sem interrupções. Cada entrevista foi integralmente transcrita no dia da sua realização, o que permitiu considerar a expressão corporal, pausas, silêncios e outos. Assim, as falas dos participantes exemplificam as suas perspetivas, bem como confirmam as interpretações feitas.
A investigação foi aprovada pela Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Algarve, ofício n.º 8208/16 e pela Comissão Nacional Protetora de Dados (Autorização n.º 5488/16). Os informantes foram esclarecidos que a sua participação era voluntária, e foi solicitado que assinassem o consentimento livre e esclarecido apenas se concordassem em colaborar. Esta investigação constituiu uma das fases do estudo realizado no âmbito do Doutoramento em Enfermagem.
Resultados
Os informantes foram pessoas com 67 ou mais anos de idade, com média de 75 anos de idade, 6 homens e 6 mulheres, com grande variabilidade quanto ao nível de escolaridade (8,33% não têm qualquer nível de escolaridade, 25% sabem ler e escrever, 25% concluíram o 1º ciclo, 33,34% têm o 3º ciclo e 8,33% concluíram o ensino secundário). Sete residem com o cônjuge e cinco residem sozinhos. No que concerne à polimedicação, constatou-se que têm uma média de 4,83 medicamentos prescritos (mediana = 5, moda = 5 e DP = 1,740) e de 7,67 medicamentos ingeridos por dia (mediana = 8 e moda = 10).
As vivências dos informantes, relativamente à gestão do regime medicamentoso, foram organizadas em quatro categorias (fatores relacionados com a pessoa; viver com doença crónica; fatores relacionados com a medicação e estratégias promotoras da adesão à medicação) e doze subcategorias (Figura 1). De mencionar que, os resultados fazem sobressair a importância da relação do profissional de saúde como agente promotor da adesão ao regime medicamentoso, sendo o mesmo reconhecido como facilitador da implementação de estratégias promotoras da adesão à medicação. Neste sentido, a relação entre o profissional de saúde e a pessoa doente, assume grande relevância, na medida em que, quando não existe confiança, o sucesso terapêutico encontra-se comprometido.
Fatores relacionados com a pessoa
As pessoas entrevistadas associam a necessidade de aderir a um regime medicamentoso ao avanço da idade: “antes de ser velha, não precisava de tomar medicação nenhuma, não tinha qualquer problema de saúde … a idade não perdoa” (P1). A falta de uma rede de suporte familiar também é encarada como um fator preditor da não adesão à medicação: “sou eu que tomo conta dos meus medicamentos, o meu marido não me consegue ajudar e o meu filho também não percebe nada disto” (P3); “eu não peço ajuda ao meu filho porque ele não percebe nada disto e porque também tem os problemas dele” (P11).
Viver com doença crónica
Viver com uma ou mais doenças crónicas e com necessidade de adotar um estilo de vida saudável não é bem aceite e é sentido como limitativo: “eu estava habituada a comer o que me apetecia e ter que fazer um regime alimentar não me agradou nada e como tal, por vezes porto-me ma” (P1); “chega uma pessoa ao fim da sua vida e não pode comer aquilo que bem lhe apetece...eu como doces às escondidas” (P2); “não acho justo com os poucos anos de vida que me restam ter que ter cuidado com aquilo que como” (P12).
A imposição da adoção de um estilo de vida saudável na velhice não é bem aceite, chegando a ser omitido o diagnóstico médico à família, com o intuito de poder manter o seu estilo de vida habitual: “eu escondi da minha família e amigos ser diabético, para assim poder continuar a fazer tudo o que fazia antes” (P8).
Relativamente ao diagnóstico de doença crónica, encaram o mesmo como uma experiência de vida negativa: “é mau” (P6); “é um verdadeiro aborrecimento” (P7); “é constrangedor, ainda por cima que eu proibi a minha esposa de dizer aos meus filhos que eu tinha diabetes” (P10).
Fatores relacionados com a medicação
Esta categoria engloba as seguintes subcategorias: i) benefícios dos medicamentos; ii) polimedicação; iii) condicionantes à adesão medicamentosa; iv) segurança na terapia medicamentosa; v) crenças sobre os medicamentos; vi) e relação com os profissionais de saúde, e nela a pessoa idosa expressa que viver com a necessidade de medicação diariamente impõe um sentimento de dependência (“para mim eu vejo como uma dependência” [P4]).
No que concerne aos benefícios dos medicamentos, as pessoas idosas acreditam que se o médico prescreve os fármacos, é porque os mesmos são necessários e benéficos para a manutenção da autonomia e controlo da doença: “acredito que o médico receita os medicamentos porque eles devem fazer-me bem” (P5). Contudo, em estreita relação com este sentimento, as pessoas idosas referiram não sentir qualquer bem-estar associado à ingesta dos antidiabéticos orais: “não sinto nada de especial em termos de benefícios, a única vantagem é o facto das análises estarem melhores quando tomo a medicação” (P6).
A polimedicação surge como um problema real e transversal aos entrevistados referindo estes: “eu tomo muitos remédios todos os dias” (P9); “tenho comprimidos em casa que não sei para o que são” (P3); “tenho que dividir os comprimidos por caixas, pois eu tomo imensos” (P12); “o doutor devia prescrever menos” (P12).
No que concerne aos condicionantes à adesão, o modo como as pessoas encaram a necessidade em aderir a um regime medicamentoso, interfere significativamente com o seu comportamento: “eu simplesmente não gosto de tomar comprimidos” (P8). A cronicidade da doença é também referida como entrave ao sucesso terapêutico: “se isto fosse como um antibiótico eu ainda tolerava, agora assim, todos os dias ter que beber aqueles comprimidos todos até ao fim da minha vida é mau” (P2); bem como o é o esquecimento da toma da medicação: “esqueço-me às vezes da medicação” (P1); “às vezes esqueço-me, principalmente quando vou jantar fora” (P8); e o seu custo económico: “os comprimidos são muito caros, e eu não tenho dinheiro para comprar os medicamentos todos” (P3); “o doutor devia de ter em consideração o custo dos medicamentos quando prescreve, nem todos têm dinheiro para isso” (P12).
Por sua vez, no que respeita à segurança na terapia medicamentosa constatou-se que as pessoas idosas apresentam dificuldades na gestão diária: “já não vejo muito bem, e as embalagens têm letras pequenas e os comprimidos não são muitos grandes … a maior dificuldade é distinguir os comprimidos” (P2); “distingo os comprimidos pelas cores e pelas formas, já não consigo ler os nomes” (P3); “o senhor da farmácia mostra-me os comprimidos e eu decoro os que tenho que tomar pela cor e tamanho” (P11); e que as crenças sobre os medicamentos interferem na sua gestão: “medo que a medicação me faça mal ao estômago” (P5); “tenho medo de tomar tantos comprimidos” (P7); “vi uma reportagem na televisão em que diziam que os medicamentos matam” (P8).
Uma relação de distanciamento com o profissional de saúde contribui, também, para a não adesão: “há uns comprimidos que eu deixei de tomar . . . mas não avisei porque tenho medo que se zanguem comigo” (P3); “o médico e o enfermeiro deviam trabalhar em conjunto” (P8); “devia haver uma vigilância mais apertada . . . se calhar a minha atitude face aos comprimidos surge no seguimento da falta de interesse pelos profissionais de saúde” (P10).
Estratégias promotoras da adesão à medicação
As pessoas idosas entrevistadas reconhecem nos enfermeiros a capacidade de fomentar um comportamento aderente: “.acredito que os enfermeiros podiam-me ajudar a tomar sempre os medicamentos” (P1); “se os enfermeiros tivessem mais tempo para ajudarem-me com os comprimidos eu sentir-me-ia mais segura” (P9).
Nesta categoria emergiram duas subcategorias: intervenções comportamentais e intervenções educacionais.
As intervenções comportamentais incluem atividades que visam aumentar a comunicação e aconselhamento, simplificar regimes medicamentosos e envolver os utentes no tratamento: “caixas já preparadas com os medicamentos para a semana” (P1); “os enfermeiros deviam conseguir ir às casas das pessoas” (P3); “o enfermeiro devia falar connosco na consulta e depois devia efetuar um telefonema” (P12).
Relativamente às intervenções educacionais, as pessoas idosas reconhecem que os programa educacionais são um instrumento valioso para aumentar o conhecimento das pessoas: “podiam esclarecer as nossas dúvidas e receios e no final entregar um papel para eu poder mostrar aos meus filhos” (P7); “mais apoio, mais informação, pois se calhar sou irresponsável devida à falta de conhecimento” (P10); “até podiam fazer sessões conjuntas, para partilhar ideias” (P4).
Dos relatos acima descritos denota-se a importância da transmissão da informação, bem como os fatores predisponentes da não adesão.
Discussão
Os dados obtidos no decurso da presente investigação requerem uma reflexão profunda e uma abordagem multifatorial. Se, por um lado, existe o diagnóstico de uma doença crónica e a prescrição de um regime medicamentoso, por outro existe uma pessoa com todas as suas crenças e vivências que irá condicionar o decurso desta fase de transição. Parece ser inquestionável que viver com a toma diária de medicamentos é um processo complexo, extenuante e dinâmico (Al-Musawe et al., 2019; Gast & Mathes, 2019), sobretudo na população idosa devido às alterações fisiológicas associados ao envelhecimento (WHO, 2019). Gerir um regime medicamentoso requer a capacidades e habilidades, bem como a incorporação de uma panóplia de comportamentos no dia a dia, através de uma ajuda diferenciada (Gast & Mathes, 2019; WHO, 2019). À semelhança com outros estudos, as pessoas idosas entrevistadas reconhecem que os medicamentos são necessários para a manutenção da saúde e promoção da qualidade de vida, contudo a sua gestão encontra-se comprometida devido a fatores intrínsecos (tais como sexo, idade, alterações cognitivas, esquecimento, entre outros) e extrínsecos (tais como, complexidade do regime medicamentoso, sistema nacional de saúde pouco desenvolvido) (Al-Musawe et al., 2019; Brown et al., 2016). É sem sombra de dúvida imperativo aprofundar as questões que interferem com a adesão, já que uma gestão ineficaz pode conduzir à perda de autonomia, independência, qualidade de vida, aumento de morbilidade e mortalidade (Brown et al., 2016; Karam et al., 2020).
Os achados deste estudo evidenciam que viver com medicamentos implica um reajustamento ao estilo de vida e para tal, os enfermeiros devem delinear e implementar estratégias que possibilitem à pessoa idosa viver esta fase de transição de forma saudável, harmoniosa e positiva (Karam et al., 2020)m .
Do verbatim é possível inferir que o diagnóstico de uma doença crónica nem sempre é positivamente integrado nas experiências de saúde, o que inviabiliza uma transição saudável e, como consequência, a prescrição da medicação é dificilmente aceite, o que parece condicionar o comportamento futuro. De facto, parece ser difícil mudar um comportamento adquirido ao longo do ciclo vital, pois trata-se de um processo complexo e moroso, com muitos retrocessos.
A cerca dos fatores relacionados com a medicação, os informantes, dão especial enfoque à polimedicação. No estudo desenvolvido por Morin et al. (2018), constatou-se uma realidade igualmente preocupante, com uma média de 4,6, e uma prevalência de polimedicação (mais de cinco medicamentos) de 44% e de excessiva polimedicação (mais de dez medicamentos) de 11,7%, o que perfaz um total de 55,7% das pessoas que constituem a amostra com excesso de medicação. Outro grupo de investigadores relatou uma prevalência de polimedicação entre 26,3% e 39,9%, em pessoas idosas da Europa (Midão et al., 2018). Este cenário levanta sérias preocupações sobre a saúde da população envelhecida pois a complexidade do regime medicamentoso condiciona as rotinas diárias (Al-Musawe et al., 2019; Leelakanok et al., 2017; Midão et al., 2018; WHO, 2019). De acordo a evidência científica, a ingestão regular de mais de cinco medicamentos é um fator preditor de reações medicamentosas adversas, com direta associação para o aumento de complicações macrovasculares, hospitalizações e da mortalidade por todas as causas (Al-Musawe et al., 2019; Leelakanok et al., 2017; WHO, 2019).
É de referir que a complexidade do regime medicamentoso não se restringe ao número de medicamentos a ingerir, mas também à frequência das tomas e às atitudes requeridas para a ingestão do medicamento correto, na dose certa e no horário estabelecido (WHO, 2019). Neste sentido, e de acordo com a evidência prévia, quanto maior o número de medicamentos prescritos e ingeridos diariamente, maior o risco de interações e erros medicamentosos, o que conduz a uma maior probabilidade de perda de qualidade de vida, complicações a nível sistemático e morte (Al-Musawe et al., 2019; WHO, 2019).
Nesse sentido, os horários das tomas devem ser adaptados à individualidade de cada pessoa, na certeza, porém, que quanto menor o número de horários diferentes, maior será a taxa de adesão (Leelakanok et al., 2017). Neste sentido, a literatura defende que os regimes medicamentosos devem ser simplificados (Aminde et al., 2019; Brown et al., 2016).
Para além da complexidade, outro aspeto reportado como condicionante à adesão é o facto de ser necessário ingerir a medicação prescrita para uma doença crónica durante toda a vida. A obrigatoriedade da manutenção de um regime medicamentoso conduz à sensação de dependência e potencia a fragilidade e induz sentimentos de tristeza, ansiedade e revolta (Al-Musawe et al., 2019; Leelakanok et al., 2017; WHO, 2003). O comportamento da pessoa face à terapêutica medicamentosa, condiciona o sucesso do plano de cuidados com vista à manutenção do autocuidado e qualidade de vida percecionada. Assim, a não adesão pode originar reações adversas severas, com necessidade de intervenções médicas e de enfermagem complexas, o que irá conduzir ao aumento das despesas em saúde, quer através de custos diretos quer indiretos e imensuráveis.
A não adesão não intencional é originada predominantemente pelo esquecimento, sendo que os informantes não utilizam nenhum tipo de memorando com o intuito de facilitar a toma diária da medicação. Conclusões semelhantes foram obtidas no decurso de outras investigações (Aminde et al., 2019).
Relatos de não adesão intencional foram referidos e são ligados, essencialmente, às crenças e convicções. Num estudo desenvolvido por Tavares et al. (2013), 5,2% da amostra associava a não adesão ao domínio das crenças, sendo que as crenças em torno dos medicamentos podem contribuir para a sua aceitação ou não. Assim, é determinante que a pessoa idosa estabeleça uma relação de confiança com o profissional de saúde, para que, desse modo, as crenças previamente estabelecidas sobre os medicamentos possam ser desmistificadas e, como tal, a pessoa idosa possa reconhecer a necessidade da toma da medicação para viver de forma saudável.
Os achados deste estudo, reforçam como essencial a pessoa idosa sentir-se respeitada, legitimando a importância do respeito e confiança na díade pessoa doente-profissional de saúde. As consultas de enfermagem devem ocorrer num clima de respeito, disponibilidade, sem juízos de valor, o que permitirá a partilha das rotinas diárias e crenças das pessoas, conduzindo assim à obtenção de informações relevantes para o processo saúde-doença, que permitam descrever o real comportamento (Brown et al., 2016). Na realidade, as pessoas idosas valorizam e dão sentido às palavras, aos sorrisos, ao tempo disponibilizado, ao olhar, ao toque e à forma como decorre o diálogo com os profissionais. Ressalta ainda, que os enfermeiros, após a mudança de um plano de medicação, devem estabelecer um contacto telefónico monitorizando a adaptação ao mesmo, quais os efeitos adversos, dúvidas e benefícios sentidos. O acompanhamento e vigilância das pessoas idosas, com estas necessidades, não deve ocorrer apenas no espaço físico do centro de saúde (Brown et al., 2016). Os enfermeiros têm, assim, o dever de instruir, ensinar e treinar as pessoas, capacitando-as para a independência e autonomia.
Reportando à situação económica, há que assumir que os medicamentos são dispendiosos, representando uma quota significativa do orçamento familiar e condicionando desse modo a adesão (Tavares et al., 2016). Reconhecer a pobreza pode ser perturbador para muitas pessoas, pelo estigma social e pelo sentido de falta de controlo na vida. Considerando estes aspetos, acredita-se que sempre que um fármaco é prescrito e não é adquirido, o profissional de saúde responsável pela gestão do regime medicamentoso deveria ser notificado da não aquisição. Um sistema de informação em saúde devidamente delineado, verdadeiramente centrado no cidadão, tornaria possível averiguar o porquê da não aquisição e propor soluções alternativas.
A gestão da medicação depende de vários fatores e tem diferentes expressões. Face ao exposto, a adesão à medicação deve ser promovida atendendo às cinco dimensões da adesão (WHO, 2003), constando-se que a identificação dos fatores individuais da não adesão se assume como ferramenta valiosa na elaboração de um plano de intervenção individualizado. As pessoas têm interesse em adquirir conhecimentos e competências para gerir a sua doença e medicação, parecendo valorizar conselhos, orientações e recomendações dos médicos e dos enfermeiros, e reportam a gestão da medicação como dependente de vários fatores (tais como aceitação, crenças, situação económica, entre outros) e com diferentes expressões (tais como necessidade, dependência, revolta, tristeza). Acredita-se que a adesão à medicação pode ser promovida através da implementação de uma intervenção complexa com capacidade de atuar a um nível multifatorial.
Como limitação do estudo, refere-se a realização das entrevistas apenas em duas USFs, apontando para a necessidade de ampliar o estudo a outros contextos. Também, a falta de uma prática consistente como entrevistador, pode revelar-se uma limitação, na medida em que pode ter facilitado a ocultação de aspetos relevantes para a compreensão do fenómeno em estudo.
Conclusão
A gestão do regime medicamentoso complexo revela-se como cansativo e difícil para as pessoas. Gerir um regime medicamentoso requer capacidades e habilidades que vão além da ingestão do medicamento certo, no horário certo. Pelo que se apurou no decurso da investigação, a pessoa doente sente-se como um agente passivo, um mero cumpridor das indicações fornecidas pelos profissionais de saúde, contrariamente ao que a literatura defende como sendo fulcral para uma gestão eficaz do regime medicamentoso.
A complexidade medicamentosa é reconhecida pelas pessoas como uma condicionante à não adesão, porém existem outras barreiras, motivo pelo qual este estudo se assume como uma mais-valia, ao permitir compreender como as pessoas lidam com o diagnóstico de uma doença crónica e gerem o regime medicamentoso. Esta investigação permitiu compreender que as pessoas têm dificuldade em gerir o regime medicamentoso, sendo fatores preditores da não adesão a complexidade medicamentosa, o custo dos medicamentos, a relação estabelecida entre a pessoa doente e o profissional de saúde, entre outros. Pode-se afirmar-se que, se os enfermeiros intervirem nesta dimensão, contribuirão para a promoção da adesão medicamentosa e, consequentemente, para o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas.
Assim, os enfermeiros têm que valorizar a complexidade das experiências vivenciadas pelas pessoas idosas face ao regime medicamentoso, diagnosticar atempadamente as pessoas com uma gestão do regime medicamentoso ineficaz e intervir no sentido de ultrapassar as condicionantes da não adesão e promover o autocuidado neste domínio. Acreditamos que a mudança é somente passível perante a perseverança, uma rede de suporte familiar estruturada e uma parceria eficaz entre a pessoa doente e os profissionais de saúde. Por último, salienta-se que este estudo atesta as dificuldades das pessoas idosas na gestão do regime medicamentoso, ligadas à sua complexidade e aos sentimentos e emoções negativas vivenciados, bem como reafirma a necessidade de desenvolver investigação que resulte em intervenções dirigidas às necessidades concretas das pessoas idosas com doença crónica, com a consequente implementação de modelos interventivos e personalizados que possibilitem a estas pessoas envelhecer de forma saudável, ativa e participativa.