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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serVI no.2 Coimbra dez. 2023  Epub 29-Maio-2023

https://doi.org/10.12707/rvi22006 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)

Teor da informação partilhada: Do discurso à documentação na tomada de decisão clínica em enfermagem

Content of shared information: From discourse to documentation in clinical decision-making in nursing

Contenido de la información compartida: Del discurso a la documentación en la toma de decisiones clínicas en enfermería

Regina Paula Moita Esteves1 
http://orcid.org/0000-0002-0302-7976

António Fernando Salgueiro Amaral2 
http://orcid.org/0000-0001-9386-207X

1 Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Serviço de Urgência Pediátrica, Departamento de Pediatria, Coimbra, Portugal

2 Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, Coimbra, Portugal


Resumo

Enquadramento:

A qualidade dos cuidados depende da informação partilhada oralmente nas transições de cuidados e documentada no processo clínico.

Objetivo:

Analisar a informação partilhada (oral e escrita) e a sua implicação no âmbito da tomada de decisão clínica em enfermagem e da continuidade de cuidados no serviço de urgência pediátrica, e identificar o paradigma emergente da conceção de cuidados.

Metodologia:

Abordagem qualitativa, através do estudo de caso, baseado em Yin recorrendo a três métodos: transcrição da passagem de turno, processo documentado e processo realizado pelo perito.

Resultados:

Maior valorização de dados respeitantes a processos corporais não intencionais, sobretudo na transmissão oral. A informação documentada evidencia maior detalhe no âmbito dos processos adaptativos, contudo incipiente para uma conceção estruturada e intencional da assistência de enfermagem.

Conclusão:

Sobressai que a informação partilhada oral e escrita, esta focalizada maioritariamente na doença e não tanto na pessoa como um todo. A informação autónoma de enfermagem parece omissa relativamente à dimensão da pessoa, nas respostas humanas às transições e aos processos de vida.

Palavras-chave: passagem de turno; registos de enfermagem; continuidade de cuidados; teoria de enfermagem

Abstract

Background:

Quality of care depends on the information shared orally during shift handovers and documented in the clinical records.

Objective:

To analyze the verbal and written information shared in shift handovers and its impact on clinical decision-making in nursing and the continuity of care in a pediatric emergency ward, as well as identify the emerging paradigm for care.

Methodology:

Qualitative approach, based on Yin’s case study process, using three methods: transcription of the shift handover, documented process, and process carried out by the expert.

Results:

The results show increased sharing of information about unintentional body processes, especially in oral transmission. Although documented data includes more detailed information about adaptive processes, it is incipient for a structured and intentional conception of nursing care.

Conclusion:

The verbal and written information shared in shift handovers mainly focuses on the disease rather than the individual as a whole. Autonomous nursing information does not address the dimension of the person, the human responses to transitions, and the life processes.

Keywords: handover; nursing records; continuity of care; nursing theory

Resumen

Marco contextual:

La calidad de los cuidados depende de la información compartida oralmente en las transiciones de cuidados y documentada en la historia clínica.

Objetivo:

Analizar la información compartida (oral y escrita) y su implicación en la toma de decisiones clínicas en enfermería y en la continuidad de los cuidados en urgencias pediátricas, e identificar el paradigma emergente del diseño de cuidados.

Metodología:

Enfoque cualitativo, a través del estudio de casos, basado en Yin, en el que se utilizan tres métodos: transcripción del cambio de turno, proceso documentado y proceso llevado a cabo por el experto.

Resultados:

Mayor valoración de los datos sobre procesos corporales involuntarios, especialmente en la transmisión oral. La información documentada muestra más detalle sobre los procesos adaptativos, pero aún es incipiente para una concepción estructurada e intencional de los cuidados de enfermería.

Conclusión:

Cabe señalar que la información oral y escrita compartida se centra, sobre todo, en la enfermedad y no en la persona en su conjunto. Parece que falta información autónoma de enfermería en relación con la dimensión de la persona, las respuestas humanas a las transiciones y los procesos vitales.

Palabras clave: cambio de turno; registros de enfermería; continuidade de la atención; teoría de en fer mería

Introdução

Atualmente assiste-se a um aumento progressivo da consciencialização da relevância da informação enquanto recurso essencial para a qualidade em saúde. A informação produzida pelos enfermeiros torna públicas as áreas do exercício profissional sobre as quais estes tomam decisões. A nível hospitalar, a transmissão de informação entre diferentes prestadores é um processo crítico que permite assegurar a continuidade de cuidados e a segurança dos clientes (Giske et al., 2018).

Os momentos de transição entre os enfermeiros da mesma equipa, designados por passagem de turno (PT), ocorrem geralmente três vezes ao dia para cada cliente, transferindo-se a responsabilidade pelos cuidados em cada um destes momentos. Porém, a decisão sobre qual a informação a partilhar é um desafio para os profissionais, na medida em que, se em alguns casos os enfermeiros têm tendência para transmitir informação em excesso, noutros, partilham informação insuficiente, irrelevante e desnecessária, ou omitem aspetos importantes (Sousa et al., 2019).

Em conjunto, a transmissão oral da informação e o plano de cuidados, asseguram a continuidade de cuidados, creditada pela realização de um plano terapêutico proposto, garantindo um trabalho contínuo, com recurso à informação recolhida nos turnos anteriores e à efetivação do plano de cuidados (Ordem dos Enfermeiros, 2015).

A tomada de decisão clínica dos enfermeiros é subsidiada por modelos e teorias de enfermagem que enformam o conhecimento específico da disciplina. Este conhecimento é vertido nos sistemas de informação (SI) em uso nos diferentes contextos e traduz a tomada de decisão clínica dos enfermeiros pelo processo de enfermagem.

Apesar do crescente interesse em utilizar a teoria para orientar a prática de enfermagem, as fragilidades inerentes a esse processo têm determinado avanços e recuos, com resultados que variam de acordo com os contextos da prática (Ribeiro et al., 2018).

O principal objetivo deste estudo é analisar a informação partilhada pelos enfermeiros e a sua implicação no âmbito da tomada de decisão clínica em enfermagem, e da continuidade de cuidados, identificando o paradigma emergente da conceção de cuidados.

Considerando que a informação deve ser encarada como um recurso a ser gerido no âmbito da promoção e introdução de programas de melhoria contínua dos cuidados de saúde, nomeadamente os que se encontram na esfera da tomada de decisão em enfermagem, uma análise da informação partilhada permitirá retirar contributos para a melhoria dos cuidados de enfermagem.

Enquadramento

No contexto das sociedades atuais, a informação assume uma grande importância no âmbito da saúde, na medida em que as instituições necessitam dela para executar a sua missão e cumprir os objetivos a que se propõem.

Os enfermeiros são o grupo profissional da saúde que mais informação criam, processam e usam, para alem de que, são os que têm maior proximidade com os doentes e deles detêm um conhecimento elevado, assim como, das suas famílias e/ou comunidades (Jesus & Sousa, 2011). Desta forma, a partilha de informação é um ponto central na prestação de cuidados, quando adequada é importante para garantir a continuidade de cuidados e a qualidade da assistência (Sousa et al., 2019).

A relevância da informação encontra-se diretamente dependente da perceção do utilizador final (enfermeiro), que é responsável pela tomada de decisão, considerando que a informação é de qualidade se ela for relevante para as suas necessidades. Assim, o valor da informação dependerá do potencial da sua utilização para produzir resultados (Sousa, 2006).

Um dos momentos privilegiados de partilha de informação entre os enfermeiros é a PT ou passagem em enfermagem. Numa transição de cuidados habituais, o tipo de transmissão de informação mais frequente é através da comunicação verbal, complementada com a escrita (Sexton et al., 2004).

Em geral, o objetivo da PT de enfermagem é a transferência de informações relevantes para continuidade de cuidados ao cliente, no entanto, não há acordo sobre seu conteúdo (Johnson et al., 2012).

Num estudo realizado na Grécia por Rikos et al. (2018). verificou-se que as informações da PT, em 81,8% dos casos, não se baseavam em diagnósticos de enfermagem e não eram consistentes com a melhor prática clínica. Refere ainda que, a maioria das passagens de turno se centravam em responder aos vários problemas biológicos e clínicos, ou nas necessidades dos doentes, negligenciando-se outros aspetos da assistência de enfermagem.

A Direção-Geral da Saúde (2017) defende a utilização da técnica Identify, Situation, Background, Assessment, and Recommendation (ISBAR) com o objetivo de promover a segurança do cliente na transição de cuidados, permitindo uma comunicação eficaz.

A transmissão oral da informação e o plano de cuidados documentado no Sistemas de Informação em Enfermagem (SIE) asseguram a continuidade de cuidados. O SIE revela-se fundamental para conciliar a segurança e a qualidade no exercício profissional, uma vez que, ao integrarem conhecimento baseado em evidência, disponibilizando algoritmos decisórios importantes para a excelência da prática clínica, constitui uma ferramenta de grande relevância no suporte à tomada decisão (Jesus & Sousa, 2011).

No entanto, apesar da evidência científica e dos instrumentos de suporte ao exercício da profissão, as atitudes e práticas dos enfermeiros relacionadas com doentes e famílias, denunciam o distanciamento entre os modelos expostos na teoria de enfermagem e os modelos de exercício profissional usados nos contextos da prática (Fernandes et al., 2015).

Apesar de ser bem visível a relevância da documentação, encontramos na literatura estudos onde se concluiu haver omissões nos registos de enfermagem.

Questão de investigação

Qual o teor da informação partilhada na PT, documentada no SIE, e a necessária, para assegurar a continuidade de cuidados pelos enfermeiros do serviço de urgência?

Metodologia

Optou-se por uma abordagem de ênfase qualitativa, através do estudo de caso, baseado em Yin (2010). Tendo em conta os objetivos delineados para o estudo, a análise só faz sentido no contexto onde os enfermeiros desenvolvem a sua prática profissional, o que se transmite oralmente, e o que se regista, pode ser influenciado por vários fatores, entre outros, os pessoais e de contexto.

A unidade de análise é o registo (do processo documentado e do realizado pelo perito) e a informação da PT das crianças/adolescentes recebidas pelo investigador. Os dados foram sujeitos a uma análise documental e de conteúdo segundo Bardin (2014).

Definiu-se como população todas as crianças que o investigador recebesse no âmbito da sua atividade profissional em Unidade de Internamento de Curta Duração (UICD). As crianças recebidas pelo investigador poderiam ser provenientes do ambulatório, estar em observação há menos de 24 horas, ou estar internadas no serviço de urgência (superior a 24 horas), depois de 25 de fevereiro de 2020 por um período de um mês. Foi possível analisar 31 passagens de turno e os processos documentados dessas crianças, de acordo com os critérios de inclusão.

Iniciou-se a colheita de dados pela transcrição da PT. O investigador recebe o turno, transcrevendo toda a informação transmitida, sendo posteriormente verificada com o registo áudio de forma a certificar a qualidade da transcrição. Todos os enfermeiros foram informados da gravação áudio e da sua intenção autorizando a que a mesma fosse feita.

De seguida recolheu-se toda a informação do processo de enfermagem produzida no SClinicoV2® de 31 crianças, recebidas pelo investigador, e que ficaram à sua responsabilidade. Esta análise alude às representações do exercício profissional que se evidenciam nos registos produzidos acerca dos cuidados de enfermagem.

Por último, o perito, nesse mesmo turno, elaborou o processo de enfermagem das crianças em análise, mediante a informação que tem disponível naquele momento da prestação de cuidados. A informação disponível refere-se aos dados da PT, aos dados registados no processo e á informação que o investigador possuía na altura, do contacto que já teve com a criança e família. Portanto, o processo do perito é sempre um processo com uma acomodação mais rigorosa dos dados, mas não é o processo ideal, na medida em que não foi obtida outra informação junto da família e criança para planear intervenções mais dirigidas. Desta análise, procura-se apurar a informação necessária para a tomada de decisão e continuidade de cuidados das crianças/famílias analisadas.

Os dados analisados de acordo com o método da análise de Bardin (2014), realizou-se a pré-análise com leituras “flutuantes” das passagens de turno transcritas. De seguida iniciou-se a fase de exploração do material ou codificação, e nesta fase ajudou o facto de existir já um quadro teórico de temas baseados na evidência científica e que serviram como um ponto de partida para a codificação, ou seja, para a determinação das categorias. Assim, surgiu o processo de Enfermagem (avaliação inicial; atividade diagnóstica; diagnóstico; intervenções enfermagem); intervenções interdependentes; motivo de internamento e recados. Na última fase é realizada a inferência.

Recorreu-se à técnica de triangulação, entendida como “que utiliza uma combinação de mais do que uma estratégia no mesmo estudo” (Streubert & Carpenter, 2013, p. 351). Desta forma, triangulou-se os dados obtidos na PT, com a informação documentada, e processo elaborado pelo perito.

O estudo obteve parecer positivo, referência nº 011/CES, pela Comissão de Ética da instituição hospitalar da região centro.

Resultados

O objetivo da investigação orientou-se para a identificação da informação partilhada na PT, documentada no processo de enfermagem e a que se encontra omissa no âmbito da tomada de decisão clínica em enfermagem. A análise permitiu definir as áreas temáticas enunciadas na Figura 1: área autónoma; área interdependente; motivo de internamento e outros dados/recados (dados que emergiram das notas gerais do processo documentado, sendo os recados informação de caráter organizativo, logístico e administrativo).

Figura 1 Representação esquemática das áreas temáticas em análise respetivas categorias, subcategorias e sub-subcategoria 

Informação da PT

É centrada nos focos do domínio da função e processos corporais, sendo evidente a transmissão de um elevado volume de dados relacionados com a vigilância/atividade diagnóstica. O enunciado dos diagnósticos não difere da linguagem médica, relacionando-se com a queixa principal, mostrando que a informação relativa aos processos adaptativos criança/adolescente/família bastante mais escassa. As intervenções interdependentes, nomeadamente a medicação e exames complementares de diagnóstico, tiveram grande representatividade na informação transmitida, assim como, os recados, valorizadas no discurso.

Informação documentada

Igualmente centrada, em larga medida, nos aspetos relacionados com a doença da criança, no âmbito da gestão de sinais e sintomas. Salienta-se a importância atribuída às intervenções relacionadas com a vigilância de forma a prevenir complicações.

Verifica-se uma elevada valorização do papel parental e parceria de cuidados, levando à tomada de decisões acerca da parentalidade no hospital, o que permite dar visibilidade aos cuidados centrados na família.

Informação omissa

Destaca-se a ausência de informação sobre a atividade autónoma de enfermagem relativamente à dimensão da pessoa, nas respostas humanas às transições e aos processos de vida. A parceria de cuidados que se estabelece com os pais, mostrou-se incipiente no que se refere às intencionalidades terapêuticas orientadas para os resultados. Assim, encontra-se omisso a prescrição do cuidado de enfermagem quanto ao detalhe, que traduza a intencionalidade.

Discussão

O objetivo da PT é a transmissão de informação relevante que garanta a continuidade de cuidados e qualidade na assistência ao doente (Rikos et al., 2018). Neste estudo verifica-se que, a informação se centra, em larga medida, nos aspetos relacionados com a doença da criança, no âmbito da gestão de sinais e sintomas, orientada pela lógica executiva do cuidado, contendo dados provenientes de vigilâncias/observações relativas à dimensão destes processos corporais. As intervenções de enfermagem que são relatadas e consideradas relevantes para a transmissão, visam a recuperação da condição física da criança.

No âmbito dos diagnósticos de enfermagem, constata-se que há transmissão de vários dados de atividade diagnóstica sem referir o enunciado declarativo do diagnóstico de enfermagem, o que leva o enfermeiro que recebe a informação a ter de deduzir qual o foco de enfermagem. A este propósito, Rikos et al. (2018), no estudo acima referido, verificou que a informação não operava com base nas melhores práticas da PT, tendo em conta que, as informações transmitidas não incluíam dados baseados em diagnósticos de enfermagem. Assim, podemos inferir que, a forma como os enfermeiros selecionam a informação a partilhar tem a ver com as suas próprias conceções de enfermagem.

A transmissão de informação no âmbito da atividade diagnóstica, tendo como foco o Papel Parental, também foi observada em várias passagens de turno, “Mãe deseja fazer os puffs que já faz em casa” (PT8), no entanto, surge de forma solta” e pouco consistente. Esta perspetiva é corroborada por Mendes e Martins (2012), no estudo realizado sobre a parceria nos cuidados de enfermagem em pediatria, ao considerarem existir uma visão fragmentada do trabalho em parceria. Ainda nesta perspetiva, fazendo alusão ao estudo de Sousa (2012), os enfermeiros facultaram informação e mostraram disponibilidade aos pais, todavia, observou-se a inexistência de um diálogo formal acerca da importância da sua participação nos cuidados.

A hospitalização da criança constitui um evento crítico na vivência da parentalidade, sendo que, também se verifica a valorização deste aspeto ao relevar informação, como por exemplo: “Quando chegaram . . . uma mãe muito ansiosa com uma labilidade emocional muito marcada” (PT10); “Estes pais estão muito ansiosos porque ainda não há um diagnóstico certo” (PT27), corrobora esta evidência. Frequentemente, os pais experimentam durante a hospitalização, sentimentos como o medo, a ansiedade e a frustração. A ansiedade está associada ao trauma e à dor imputados à criança (Sousa, 2012). Estes eventos críticos aumentam o grau de consciencialização dos pais, e, consequentemente aumentam a sua vulnerabilidade.

Constata-se, por vezes, a verbalização de dados relativos à consciencialização dos pais, enquanto propriedade universal da transição. A consciencialização é uma característica definidora da transição (Meleis, 2010). Assim sendo, para se considerar que a pessoa experimenta uma transição, esta necessita de ter algum nível de consciencialização das mudanças que estão a ocorrer. “. . . mas ela esta convencida que vai amanhã embora” (PT2), a mãe não parece ter conhecimento da condição do filho, sendo um dado importante para a definição da condição do papel parental e para a instituição das terapêuticas de enfermagem que visem a promoção da consciencialização.

Pelo exposto, verifica-se que as conceções emergentes não são sistemáticas, no que concerne a dados transmitidos, de modo a efetivar a parceria de cuidados, nem é transmitida consistentemente a forma como a hospitalização está a ter impacto no desempenho do papel, quer ao nível da consciencialização das mudanças, quer ao nível do envolvimento dos pais. Há por vezes referências a condições dificultadoras, sobretudo no âmbito do estatuto socioeconómico. A filosofia de cuidados centrados na família não emerge do discurso dos enfermeiros, pois as referências à família e à sua organização são incipientes, podendo este facto estar relacionado com a curta duração do internamento no serviço de urgência.

Na área interdependente (prescrições médicas, atitudes terapêuticas e exames complementares de diagnóstico), o motivo de internamento e outros dados/recados, mostrou-se relevante para os enfermeiros durante a PT.

O método oral continua a ser o método mais popular de comunicação nas passagens de turno (Kim & Oh, 2016). No entanto, vários estudos vêm reforçar a importância do uso de outras ferramentas, como o processo informatizado, de modo a melhorar o conteúdo e a reduzir as omissões.

No que concerne à informação documentada e relativamente à avaliação inicial, observa-se que esta foi realizada em quase todos os processos analisados. Os enfermeiros valorizam os hábitos alimentares em detrimento dos restantes hábitos da criança e adolescente, mostrando-se um padrão de registo no serviço de urgência, mesmo quando estes permanecem mais do que 24 horas internadas.

Quanto à expressão de diagnósticos de enfermagem na documentação, verifica-se novamente um predomínio de diagnósticos no âmbito da função/processos corporais, na linha do que é transmitido oralmente, e que vem de encontro a estudos desenvolvidos por vários autores nas últimas duas décadas. De acordo com Silva (2006), há fatores que condicionam o conteúdo da documentação de enfermagem e que se relacionam, entre outros, com a própria conceção de cuidados de enfermagem. Nesta lógica, é correto inferir que ainda estamos fundamentalmente embasados no modelo biomédico para a conceção de cuidados.

Diagnósticos no âmbito dos processos adaptativos, relacionando-se essencialmente com o foco papel parental, o qual foi identificado em quase todos os processos analisados. Assim, a documentação de enfermagem atesta que os pais são clientes dos enfermeiros, e não apenas a criança doente. Daqui emerge a ideia de que, os cuidados centrados na criança e família são o paradigma da enfermagem pediátrica.

O escasso significado dos aspetos centrais para o desempenho de atividades no âmbito do tomar conta: aprendizagem cognitiva (potencial para melhorar o conhecimento - documentado em dois processos) e capacidades demonstradas pelos pais (observado em nenhum processo), evidência que a promoção da parentalidade parece ser uma dimensão dos cuidados de enfermagem que ainda não é sistematicamente documentada. Nesta perspetiva, verifica-se que a expressão de intervenções do tipo informar é reduzida, à semelhança do estudo realizado por Sousa (2012), onde refere que, estas intervenções seriam uma das que se associam às necessidades identificadas no domínio da aprendizagem para o exercício da parentalidade. Esta evidência pode dever-se ao facto de os doentes permanecerem no SU por períodos curtos.

As intervenções de enfermagem autónomas mais documentadas foram as do tipo observar, que reportam atividades diagnósticas, as quais decorreram da atividade de vigilância/observação contínua do doente. No domínio atender, observamos intervenções maioritariamente relacionadas com o foco papel parental, essencialmente “apoiar e negociar o papel parental”.

Na documentação da área interdependente, a informação produzida pelos enfermeiros, evidenciou o cumprimento das prescrições. Na categoria outros dados/recados, a informação é documentada em notas gerais, referindo-se principalmente ao destino da criança, serviço ou transferência, registado em quase todos os processos.

Quanto à informação omissa, atendendo à descrição feita pelo perito salienta-se que, apesar do diagnóstico dor ser muito valorizado em contexto de urgência, sobressaiu a omissão de informação sobre este foco, nomeadamente a expressão de dor e estratégias não farmacológicas para o seu alívio, assim como, o planeamento de intervenções neste âmbito. Essencialmente, dá-se relevância à avaliação da intensidade da dor, de forma contínua e regular, de modo a otimizar a terapêutica.

A informação relacionada com os critérios de atividade diagnóstica do foco papel parental também se encontra omissa nesta análise. Os dados indicam o desejo dos pais em participar nos cuidados, no entanto, não explicitam até que ponto desejam ser envolvidos e quais os cuidados pelos quais desejam ser responsáveis. A negociação tende a ser feita pontualmente, em vez de fazer parte de um processo planeado, implicando que a parceria aconteça conforme as necessidades vão surgindo.

Nos processos em que foi identificado o foco papel parental, encontramos prescritas as intervenções “Apoiar e Negociar o Papel Parental”, todavia, sem nenhuma especificação que vá ao encontro das necessidades identificadas. Em que medida o apoio que os enfermeiros vão prestar a estes pais difere do apoio a prestar a outros?

Que cuidados são negociados? Verificamos que, tanto a natureza como o nível de participação parental nos cuidados, não permitem o conhecimento do contexto dinâmico dessa negociação. Estas evidências são corroboradas no estudo realizado por Sousa (2012). Dizer-se numa PT que os cuidados desenvolvimentais (mudança da fralda, alimentação, sono, entre outros) prefere ser a mãe a realizar, exceto no período da noite, é algo que parece distante. Para o perito é importante essa informação constar no processo porque dá intencionalidade aos cuidados e promove a continuidade dos mesmos.

Na parceria de cuidados é necessário o conhecimento da família. Esta é uma das premissas para a fase de avaliação respeitante ao Modelo de Parceria, por conseguinte, o Modelo de Avaliação Familiar de Calgary é uma ferramenta muito útil para este propósito. Verificámos existirem dados sobre a dimensão estrutural (estrutura interna da família), no entanto, não são visíveis quaisquer referências em relação à avaliação de desenvolvimento e da funcionalidade. Surgem as questões: como se organizam os pais para dar resposta ao internamento? Que tarefas desenvolvimentais executam uns e outros? Como é o contexto familiar? Existem crenças associadas ao desempenho do papel? Neste contexto, é relevante conhecer se, tanto o pai como a mãe, desenvolvem as mesmas atividades e de que forma, principalmente quando alternam a permanência na hospitalização. Pela análise documental dos resultados, não foi evidente a intencionalidade na ação terapêutica dos enfermeiros na identificação diagnóstica e prescrição das intervenções que visam garantir as melhores respostas às necessidades das famílias.

Relativamente ao autocuidado podemos notar que o serviço de urgência não tem como área de atenção este foco. Dos nove processos de adolescentes analisados, o perito constatou em quatro deles, défices no autocuidado, no entanto, nenhum diagnóstico de enfermagem desta natureza foi identificado. Neste sentido, o diagnóstico de enfermagem e os fatores condicionantes básicos do autocuidado não foram considerados relevantes, enquanto área de atenção de enfermagem, comprometendo a continuidade na assistência ao adolescente no desempenho do seu autocuidado.

Mesmo que não tenham défices no autocuidado (teoria do défice), os hábitos dos adolescentes, também são pouco documentados, tal como a informação sobre como realizam as atividades/ações de autocuidado (teoria do autocuidado) e quem preferem que os compense nas limitações (teoria dos sistemas de enfermagem). Se esta informação não ficar registada coloca-se em causa a continuidade de cuidados.

Verifica-se que os focos no domínio das emoções também não foram identificados, como é o caso do medo e da ansiedade (apenas identificado em um adolescente). Uma das mais traumáticas experiências hospitalares para as crianças é a hospitalização de urgência. Neste contexto, o medo é considerado como preponderante na experiência da criança, e daí decorre que seja essencial realizar a sua gestão, no sentido de promover a mobilização ou elaboração de mecanismos de conforto (coping; Diogo et al., 2016).

Ganhos em conhecimento e capacidades dos pais e da criança/adolescente também são uma dimensão incipiente, quer na documentação de enfermagem quer na informação transmitida oralmente, assim como, os aspetos relacionados com o autocuidado, na transição desenvolvimental. Desta forma, podem ficar omissas todas as intervenções que deem resposta aos problemas de enfermagem neste âmbito.

As conclusões que este estudo permitiu alcançar, não são suscetíveis de poderem ser generalizadas, uma vez que se trata de um estudo de caso, em que o fenómeno estudado apresenta características muito específicas.

Consideramos também como limitação, o facto de o processo do perito não constituir um processo ideal, tendo sido realizado apenas com base nos dados que tinha ao seu dispor na altura (processo de enfermagem), não explorando outros dados relevantes da criança e família, essenciais para a tomada de decisão autónoma de enfermagem.

Conclusão

A informação centra-se, em larga medida, nos aspetos relacionados com a doença da criança no âmbito da gestão de sinais e sintomas, quer ao nível da transmissão oral quer ao nível da produção documental. Não obstante o estudo ter sido conduzido numa unidade de urgência pediátrica, e desde logo, estas serem áreas de atenção inequívocas e prementes, sabemos que a dimensão dos cuidados de enfermagem ultrapassa largamente a conceção biomédica, na medida em que, lidamos com crianças/adolescentes em desenvolvimento, assim como, com pais a gerirem o evento crítico da hospitalização e da mudança no seu desempenho parental, por vezes, para o resto da vida.

Em relação às intervenções planeadas, salienta-se a importância atribuída às intervenções relacionadas com a vigilância de forma a prevenir complicações. Desta forma, destaca-se a perspetiva de que se realiza uma importante descrição da condição de doença da criança, sendo os registos bastante sensíveis à verdadeira situação clínica, não levantando dúvidas nos cuidados de enfermagem prestados nesta área, concluindo-se ser este um aspeto positivo dos cuidados de enfermagem evidenciado neste estudo.

Uma parte da informação transmitida nas transições de cuidados não é concordante com a informação vertida na documentação, tendo em conta que: o papel parental (avaliação da condição e parceria) raramente é referenciado na PT.

A evolução feita sobre a parceria de cuidados ao nível do registo é outro aspeto positivo que sobressai neste estudo. No entanto, verifica-se que ainda há um caminho a percorrer, pois as intenções dos enfermeiros no planeamento da parceria de cuidados que estabelecem com os pais, mostram-se incipientes no que se refere às intencionalidades terapêuticas orientadas para os resultados.

Verifica-se que as concessões emergentes não são sistemáticas, na medida que, a informação autónoma de enfermagem parece omissa relativamente à dimensão da pessoa, nas respostas humanas às transições e aos processos de vida. É sabido que, para os processos adaptativos, os enfermeiros necessitam de mais premissas para a tomada de decisão clínica, e a ausência de referenciais teóricos estruturados é um fator dificultador à operacionalização dos cuidados, notando-se ainda alguma dificuldade em introduzir aspetos característicos dos modelos expostos, nos modelos em uso nas práticas profissionais.

O reconhecimento do teor da informação partilhada permite a reflexão da relevância dessa mesma, por forma a melhorar os cuidados prestados.

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Como citar este artigo: Esteves, R. P., & Amaral, A. F. (2022). Teor da informação partilhada: Do discurso à documentação na tomada de decisão clínica em enfermagem. Revista de Enfermagem Referência, 6(2), e22006. https://doi.org/10.12707/RVI22006

Recebido: 30 de Maio de 2022; Aceito: 09 de Janeiro de 2023

Autor de correspondência Regina Paula Moita Esteves E-mail: rereginaesteves@gmail.com

Conceptualização: Esteves, R. P.

Curadoria de dados: Esteves, R. P.

Análise formal: Esteves, R. P.

Investigação: Esteves, R. P.

Metodologia: Esteves, R. P.

Administração do projeto: Esteves, R. P.

Supervisão: Amaral, A. F.

Redação do rascunho original: Esteves, R. P.

Redação- revisão e edição Amaral, A. F.

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