Introdução
O arquipélago de Cabo Verde é constituído por 10 ilhas e cinco ilhéus principais, de origem vulcânica, estendendo-se por cerca de 4033 km2, verificando-se uma disparidade populacional entre as ilhas, na qual, com base em dados de 2019, a Ilha de São Vicente era a que apresentava a maior densidade (371,05 habitantes/km2), seguida pela ilha de Santiago (312,45 habitantes/km2), dados apresentados pelo Instituto Nacional de Estatística Cabo Verde (INECV; 2021). Segundo a mesma fonte, dois hospitais centrais (um no concelho da Praia e outro em São Vicente) e quatro regionais constituem a rede de estruturas de saúde (concelhos da Ribeira Grande de Santo Antão, Sal, Santa Catarina e São Filipe). Dados de 2016 (INECV, 2021) indicavam que na República de Cabo Verde existiam 408 médicos (7,68/10000 habitantes) e 690 enfermeiros (12,99/10000 habitantes). A transferência do doente impõe-se quando esgotados os meios locais necessários ao diagnóstico, tratamento ou seguimento, sendo que em situações de emergência, os doentes devem ser transferidos para os hospitais centrais ou regionais mais próximos, após a sua estabilização, com o intuito de não se comprometer a vida do doente durante o transporte (Lima, 2016). Tendo por base o relatório de contas de 2019 emanado pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS; 2019), ocorreram nesse ano 3.574 transferências internas, das quais 300 (8,4%) foram consideradas de máxima urgência.
O transporte inter-hospitalar da pessoa em situação crítica constitui, para Ferreira et al. (2019), um dos momentos mais delicados dos cuidados de enfermagem, podendo despoletar diversas vivências, acarretando sentimentos de preocupação e dificuldades quanto à intervenção adequada a enveredar na sua efetivação. Para estes autores, elevados níveis de conhecimento e confiança são exigidos ao enfermeiro, que permitam escolhas adequadas em prol da qualidade e eficiência, no que concerne à prestação de cuidados. O transporte inter-hospitalar da pessoa em situação crítica deverá ocorrer em condições de segurança (para o doente e enfermeiro), pelo que, como salienta Filho et al. (2020), requer um planeamento prévio que vise a minimização de riscos. Neste estudo pretendeu-se conhecer as vivências dos enfermeiros de uma ilha de Cabo Verde no que concerne ao transporte inter-hospitalar (entre ilhas) da pessoa em situação crítica.
Enquadramento
Segundo a Ordem dos Enfermeiros (OE) de Portugal, a pessoa em situação crítica “é aquela em que a vida se encontra ameaçada por falência ou eminência de falência de uma ou mais funções vitais e cuja sobrevivência depende de meios avançados de vigilância, monitorização e terapêutica” (OE, 2018, p.19362). Mínimas alterações podem acarretar grandes instabilidades no doente em estado crítico, causando uma detioração da situação clínica, fruto de uma incapacidade de adaptação ou devido às reservas fisiológicas encontrarem-se reduzidas ou esgotadas (nulas), para fazer face às alterações súbitas (Pavão, 2021). O transporte de doentes entre hospitais ou entre os serviços de uma mesma instituição hospitalar, decorre da necessidade de se poder proporcionar um nível assistencial superior, ou visando a realização de exames complementares de diagnóstico e/ou terapêutica, e está associado a alguns riscos (Ordem dos Médicos & Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, 2008). O transporte do doente crítico envolve três tipos: primário, secundário e terciário (Pavão, 2021). O primário reporta-se ao transporte da vítima entre o local onde se verifica a emergência e uma unidade de saúde. O secundário refere-se ao transporte entre duas unidades hospitalares (inter-hospitalar). No terciário o transporte ocorre na própria unidade hospitalar (entre serviços). O transporte da pessoa em situação crítica desde o local de origem da emergência até uma unidade de saúde, ou entre instituições, pode ocorrer por via terrestre, aérea ou marítima. De acordo com a Ordem dos Médicos e Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos (2008) três fases integram o transporte secundário e intra-hospitalar do doente crítico: a decisão, o planeamento e a efetivação. A decisão relativa ao transporte do doente crítico constitui um ato médico, no qual deve-se ter em consideração os riscos inerentes ao doente, bem como com o processo de transporte. O planeamento da ação está a cargo da equipa médica e de enfermagem, no qual se deverá atender a aspetos como a coordenação, a comunicação, a estabilização, a equipa, o equipamento, o transporte e a documentação. É nesta fase que se seleciona e contacta o serviço de destino, avaliando-se a distância do percurso e o tempo provável para percorrer o mesmo. Ainda nesta fase, e relativamente ao transporte inter-hospitalar, recorre-se ao protocolo de avaliação para esse tipo de transporte (score de risco), cujo resultado define as necessidades de recursos para o acompanhamento, a monitorização, o equipamento e o tipo de veículo, referente a qualquer nível de gravidade. De forma proativa, medidas preventivas devem ser providenciadas nas fases de maior risco de ocorrência de possíveis acidentes (inoperacionalidade do acesso venoso, reserva de oxigénio insuficiente, entre outros). A efetivação do transporte será da responsabilidade da equipa de transporte que o assegura, sendo que somente após a entrega do doente crítico no serviço recetor é que cessa a responsabilidade técnica e legal da mesma, exceto se o doente regressar ao local de origem, deslocando-se apenas para efetuar exames complementares ou atos terapêuticos. Antes do transporte, a equipa deve verificar se todas as medidas para a sua otimização foram tomadas, não descorando a operacionalidade dos equipamentos e da mala de transporte, bem como se integram os necessários registos médicos, de enfermagem e exames complementares de diagnóstico (Pavão, 2021).
Rodrigues e Martins (2012), no âmbito do transporte inter-hospitalar por via marítima entre duas ilhas do arquipélago dos Açores, realizaram um estudo qualitativo de abordagem fenomenológica, numa amostra de oito enfermeiros, em que se procurou analisar as vivências dos enfermeiros, tendo verificado que associado ao transporte efetivo, emergiu um sentido de responsabilidade acrescida para com o doente e sua família, do qual eclode uma vertente técnica (conhecimentos e perícia), uma vertente humana (relação de ajuda) e ainda uma vertente ética (garantia da privacidade do doente crítico, tomada de decisão e proteção da situação de saúde/doença, e ingerência de terceiros). O estudo permitiu ainda descortinar sentimentos negativos (desagradáveis) respeitantes ao planeamento e à efetivação do transporte, mas também sentimentos positivos. Concluíram ainda que as dificuldades sentidas advêm do deficit de formação, do espaço inadequado para se transportar o doente, das más condições atmosféricas, do enjoo, do ruído e oscilações do barco, que interferem na assistência ao doente crítico. Num estudo qualitativo, Delgado (2018) procurou descrever a importância do enfermeiro no processo de evacuação interna de doentes críticos entre duas ilhas de Cabo Verde, identificando várias dificuldades, entre as quais a inexistência de recursos materiais e humanos, as condições desfavoráveis dos meios de transporte, as falhas/inexistência de comunicação entre os profissionais que enviam e os que rececionam o doente.
O enfermeiro desempenha um papel fulcral no transporte inter-hospitalar, pelo que um conjunto de competências específicas devem ser desenvolvidas para a prestação de cuidados ao mais alto nível, em termos qualitativos, reduzindo-se ao máximo os riscos, como nos refere Fernandes et al. (2022). Estes autores, numa revisão scoping, envolvendo documentos publicados e não publicados desde 2001, destacam, relativamente ao papel do enfermeiro no transporte inter-hospitalar, a necessidade em garantir a segurança do doente crítico com recurso à monitorização hemodinâmica, na procura em antecipar a instabilidade. Salientam ainda que a gestão diferenciada da dor e do bem-estar constitui um dos papéis determinantes do enfermeiro.
Questão de investigação
Quais as vivências dos enfermeiros de uma ilha de Cabo Verde sobre o transporte inter-hospitalar da pessoa em situação crítica?
Metodologia
Para dar resposta à questão de investigação, optou-se por uma metodologia qualitativa, com base num grupo focal (GF) de enfermeiros. Para Silva et al. (2014) o GF constitui um instrumento metodológico essencial para a recolha de dados. O GF facilita o contacto rápido e fácil com a população que se pretende investigar (Vilelas, 2020). Obteve-se por amostragem não probabilística, intencional, uma amostra de oito enfermeiros a quem se aplicou uma entrevista semiestruturada, numa data e hora agendadas em conformidade com a disponibilidade dos mesmos, ocorrendo esta em julho de 2022. Solicitado previamente um parecer a uma Comissão de Ética relativamente ao estudo, cujo resultado foi favorável (Parecer n.º 110/2022). A participação no GF implicou o consentimento informado e autorização para se realizar a gravação áudio, garantindo-se o direito de abandonar o estudo em qualquer momento. O processo do GF teve por base as cinco fases preconizadas por Silva et al. (2014): planeamento, preparação, moderação, análise dos dados e a divulgação dos resultados. Na fase de planeamento, para a seleção dos elementos definiram-se como critérios de inclusão: enfermeiros a desempenharem funções nas estruturas de saúde numa ilha de Cabo Verde, com experiência no transporte inter-hospitalar (interilhas) da pessoa em situação crítica. Delinearam-se como principais eixos estruturantes a abordar com o GF: o conceito de doente crítico e de transporte inter-hospitalar; os sentimentos vivenciados pelos enfermeiros aquando do transporte inter-hospitalar (interilhas) da pessoa em situação crítica; as principais dificuldades vivenciadas e a importância do enfermeiro relativamente ao transporte inter-hospitalar. A construção prévia do guião de entrevista atendeu a um leque de questões pré-definidas, visando ancorar o debate à temática central: vivências dos enfermeiros relativamente ao transporte inter-hospitalar (interilhas) da pessoa em situação crítica. Estruturou-se este em duas partes, no qual na primeira pretendeu-se efetuar a caracterização sociodemográfica da amostra (sexo; idade; estado civil; habilitações académicas; tempo de serviço na profissão; e tempo de serviço no âmbito do transporte da pessoa em situação crítica). A segunda parte visou a exploração da temática, tendo por base: i) o conhecimento sobre o conceito de doente crítico e de transporte inter-hospitalar; ii) a forma como se efetua o transporte inter-hospitalar (interilhas); iii) os sentimentos vivenciados no processo de transporte inter-hospitalar da pessoa em situação crítica; iv) principais dificuldades vivenciadas relativamente ao transporte inter-hospitalar (interilhas) da pessoa em situação crítica; v) importância do enfermeiro no que concerne ao transporte inter-hospitalar da pessoa em situação crítica. Visando uma maior fluidez do discurso, incluíram-se um grupo de questões de reforço. De salientar que o guião de entrevista foi previamente aplicado a um enfermeiro com as mesmas características do GF, permitindo descortinar não existir dificuldades que exigissem a reformulação de qualquer questão. A fase de preparação envolveu o recrutamento dos enfermeiros, bem como a logística necessária para a realização da discussão. Remeteu-se um convite aos enfermeiros por correio eletrónico para participarem no estudo, informando e explicando os objetivos da investigação, o método de pesquisa e as regras de participação. Foram realizados 12 convites e aceites 11, sendo que três, por motivos pessoais/profissionais, não conseguiram estar presentes na data e hora agendada. A fase de moderação reporta-se à entrevista, cuja duração se aproximou das duas horas, promovendo-se uma discussão ativa. Para a sua fluidez, teve-se em consideração aspetos como o respeito, a liberdade de expressão, promovendo-se a autorrevelação entre os participantes, pelo que nesta fase o moderador apenas mantém a conversa na direção certa, de acordo com as questões-chave, sem emitir juízos de valor e possibilitando a participação de todos, como nos salientam Krueger e Casey (2015). A entrevista ocorreu por videoconferência (plataforma Zoom), sendo efetuada apenas gravação áudio. A fase da análise dos dados envolveu a transcrição da gravação áudio, complementando-se com as notas recolhidas por escrito aquando da moderação. De referir que após a transcrição o material áudio foi devidamente destruído. A análise dos dados transcritos teve por base as fases descritas por Bloor et al. (2001), a codificação/indexação, o armazenamento/recuperação e a interpretação. A última fase reporta-se à divulgação dos resultados, produzindo-se um documento (trabalho de projeto), no qual se tornou omisso qualquer elemento que possibilitasse a identificação dos participantes, através da codificação (E1 a E8), assegurando-se a confidencialidade e o anonimato.
Resultados
A amostra ficou constituída por oito enfermeiros, maioritariamente do sexo feminino, com uma média de 35,13 anos de idade (DP = 9,33 anos). Sete enfermeiros possuíam o curso de licenciatura em enfermagem e um o bacharelato, encontrando-se este a frequentar o complemento de licenciatura em enfermagem. Apenas um enfermeiro era detentor de uma especialidade na área de enfermagem (materno-infantil). O tempo médio de serviço em enfermagem situava-se nos 12,22 anos, com um mínimo de 2 anos e um máximo de 27 anos, enquanto o tempo médio envolvendo a prestação de serviço no âmbito do transporte da pessoa em situação crítica, situava-se nos 10 anos.
Doente crítico e transporte inter-hospitalar (interilhas): conhecimento dos enfermeiros sobre os conceitos
Quando questionados sobre o conceito de doente crítico emergiram duas subcategorias: Doente com perigo iminente de vida e doente com necessidade de cuidados especializados ou meios avançados (Tabela 1). O doente com perigo iminente de vida foi a subcategoria em que se enquadrou o maior número de unidades de registo, como nos refere o E7 “é aquele que apresenta perigo iminente de vida, causada por trauma ou doença”. Quanto ao conceito de transporte inter-hospitalar, todos os enfermeiros associaram à transferência do doente entre instituições de saúde.
Sentimentos vivenciados pelos enfermeiros ao cuidar da pessoa em situação crítica durante o transporte inter-hospitalar (interilhas)
Em relação aos sentimentos vivenciados pelos enfermeiros aquando do transporte- inter-hospitalar emergiram duas subcategorias (Tabela 2): Sentimentos negativos (angústia, medo, preocupação, indignação, impotência, sufoco, tristeza, raiva, aflição, nervosismo, receio, stress e insegurança) e Sentimentos positivos (alívio, satisfação, alegria, responsabilidade, esperança, empatia, fé, resiliência, amor, força, otimismo, zelo, coragem, comprometimento e motivação). A totalidade da amostra relatou sentimentos negativos, sendo maioritariamente relacionados com o meio de transporte (por carência/défice e atendendo às más condições atmosféricas/agitação marítima/enjoo de movimento) e com o estado do doente (gravidade e instabilidade), como evidenciado nos relatos exemplificativos apresentados pelo E5 e E8 (Tabela 2). Os sentimentos positivos reportam-se essencialmente à entrega do doente no hospital de destino, evidenciados com base nos termos: alegria, alívio, satisfação, entre outros.
Principais dificuldades vivenciadas pelos enfermeiros no transporte inter-hospitalar (interilhas)
Relativamente às principais dificuldades vivenciados pelos enfermeiros no transporte inter-hospitalar surgiram seis subcategorias (Tabela 3): Carência/dificuldades ao nível dos meios de transporte; Carência de recursos materiais apropriados para assistência durante o transporte; Dificuldades para assegurar o conforto e privacidade do doente; problemas ao nível da rede referenciação/comunicação inter-hospitalar; ausência de médico durante o transporte; e Custos relacionados com a impossibilidade de regresso do enfermeiro logo após a entrega do paciente.
Todos os participantes enumeraram aspetos relacionados com a carência/dificuldades ao nível dos meios de transporte, como por exemplo a inexistência de helicóptero ou barco específico para o transporte, obrigando ao transporte da pessoa em situação crítica em embarcações comerciais de passageiros, ou até mesmo em barcos de pesca, cujas condições não são as adequadas, como evidencia o E4. A segunda subcategoria reporta-se à carência de recursos materiais apropriados para assistência durante o transporte, de que são exemplo a inexistência de uma garrafa de oxigénio portátil, ou de uma mala adequada de primeiros socorros, bem como a inexistência de uma maca para colocar o doente, bem evidenciado no discurso do E6. A terceira subcategoria, referente às dificuldades para assegurar o conforto e privacidade do doente, decorre da primeira categoria, evidente no discurso do E5, pois como a maioria dos transportes são efetuados nos barcos de passageiros, e até mesmo em barcos de pesca, estes não possuem uma sala destinada ao doente, o que resulta na dificuldade para assegurar o conforto e privacidade do doente. Por outro lado, esta dificuldade decorre da indisposição gastrointestinal (náuseas e vómitos) associada à viagem marítima (enjoo de movimento). Os problemas ao nível da rede de referenciação/ comunicação inter-hospitalar surgem como a quarta subcategoria, integrando discursos referentes a falhas na coordenação e comunicação entre as instituições de saúde, como relatado na unidade de registo exemplificativa do E5. A sexta subcategoria prende-se com os recursos humanos, no qual a ausência do médico durante o transporte constitui outra das dificuldades mais apontadas, visível no discurso do E8. Com o mesmo número de registos (três) surge a sétima subcategoria, denominada de custos relacionados com a impossibilidade de regresso do enfermeiro após a entrega do doente para custear a estadia na ilha de destino, integrando discursos respeitantes às dificuldades em regressar de imediato ao local de origem, implicando gastos com estadia, alimentação e meio para o regresso.
Com base na análise dos discursos fornecidos ao longo do GF, foram sendo apontadas sugestões pelos participantes, consideradas de eleição para a minimização de algumas das dificuldades descritas, respeitantes: a disponibilização de meios específicos para o transporte de doentes; a melhoria ao nível dos recursos materiais, como a integração de equipamentos portáteis (exemplo: garrafa de oxigénio portátil, monitores); ao incremento de recursos humanos médicos, necessários para integrar no acompanhamento; a integração de protocolos de atuação específicos; a formação no âmbito do suporte avançado de vida.
Importância dos enfermeiros no transporte inter-hospitalar (interilhas) da pessoa em situação crítica segundo a perspetiva dos participantes
Sobre a importância dos enfermeiros no transporte inter-hospitalar da pessoa em situação crítica emergiram duas subcategorias: elevada importância na estabilização do doente; e importante para a satisfação das necessidades multidimensionais do doente. A importância do enfermeiro para a estabilização do doente foi destacada por todos os enfermeiros, do qual se extrai parte da unidade de registo exemplificativa do E3: “asseguramos o bem-estar do doente, estando o doente bem ou não, temos de manter a calma para poder dar resposta à situação, e minimizar os riscos, manter o doente estabilizado e entregar o doente na instituição de destino” (E3). Cinco elementos salientaram a importância do enfermeiro no que concerne à satisfação das necessidades multidimensionais da pessoa em situação crítica acompanhada, associando-lhes essencialmente um papel multiprofissional, como evidenciado pela E2 “desempenhamos muitos papeis . . . enfermeiros, médicos, psicólogos, até de capitão de barco … e muitas vezes fazemos papel de familiares, então temos que tentar ajudá-lo em todos os sentidos, porque és a única pessoa que ele tem aí” (E2).
Discussão
Neste estudo a maioria da amostra associou ao conceito de doente crítico o preconizado pela OE (2018), assente no perigo iminente de vida e na respetiva necessidade de meios avançados para reverter essa situação. O transporte inter-hospitalar, entendido como a transferência de doentes entre instituições de saúde, foi devidamente apontado pela totalidade dos enfermeiros, reconhecendo-se as fases (decisão, planeamento e efetivação) que integram todo o processo, como descrito pela Ordem dos Médicos e Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos (2008). Quanto aos sentimentos reportados pelos enfermeiros, são essencialmente de índole negativo (desfavorável), assemelhando-se em parte, aos apontados em estudos que envolveram um idêntico contexto (transporte inter-hospitalar interilhas), como os estudos de Delgado (2018) e Rodrigues e Martins (2012). Pela análise interpretativa do conteúdo é possível determinar que estes resultam essencialmente das dificuldades vivenciadas. Apontaram-se ainda sentimentos positivos (agradáveis), como no estudo de Rodrigues e Martins (2012), relacionados com o êxito na entrega do doente na instituição hospitalar de destino, literalmente descritos como: alívio, satisfação, entre outros.
No que respeita às principais dificuldades vivenciadas, evidenciam-se as dificuldades ao nível dos meios de transporte, por problemas de ligação interilhas, por ausência de meios de transporte adequados ou com condições mínimas para o transporte da pessoa em situação crítica. Os constrangimentos com as evacuações, quer internas quer externas, relativamente à assistência médica e ao transporte foram identificados pela Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania (2018), considerando o panorama ao nível nacional como extremamente preocupante. A carência de recursos materiais apropriados para a assistência durante o transporte foi a segunda subcategoria que emergiu. Na fase de planeamento devem-se considerar os equipamentos a utilizar, sendo que a sua carência pode comprometer a qualidade e segurança da assistência. Bourn et al. (2018) salientam que o equipamento de transferência deve ser durável, compacto e intuitivo. Destacam ainda a necessidade de incluir equipamento adicional para a abordagem da via aérea, respiração e circulação, mantido em saco próprio para as transferências. No Reino Unido a Sociedade de Cuidados Intensivos, em colaboração com a Faculdade de Medicina Intensiva, emanaram guidelines visando a promoção de padrões elevados de cuidados aquando da transferência de doentes críticos (Intensive Care Society & Faculty of Intensive Care Medicine, 2019) recomendando que para o transporte do doente crítico o equipamento a utilizar nesse ambiente deva ser adequado. Dado que aquando de um transporte da pessoa em situação crítica deve existir uma monitorização contínua, tal implica a necessidade de se utilizarem equipamentos próprios (monitores portáteis com um visor devidamente iluminado, com capacidade de exibir eletrocardiograma, saturação de oxigénio, pressão arterial, entre outros). As dificuldades para assegurar o conforto e a privacidade do doente constituiu outra das subcategorias mais evidenciadas, sendo um dos aspetos também destacado por Delgado (2018) e Rodrigues e Martins (2012). Considera-se que estas dificuldades decorrem por um lado, da utilização de meios de transporte não específicos (barcos comerciais de passageiros e barcos de pesca), sem condições próprias para assegurar esse conforto e privacidade. Por outro lado, decorrem das condições da viagem por via marítima, sob influencia das condições atmosféricas, resultando frequentemente em indisposições gástricas (náuseas e vómitos), quer para o doente, quer para o profissional de saúde. Pela ordem decrescente das principais dificuldades, emergiram expressões que se enquadram na quarta subcategoria, denominada de problemas ao nível da rede referenciação/comunicação inter-hospitalar. Se forem seguidas boas práticas, problemas neste âmbito podem ser prevenidos, antes de se efetivar qualquer transferência, de que são exemplos as descritas no Regulamento n.º 964/2020 da Entidade Reguladora da Saúde (2020) de Portugal, respeitante à transferência de utentes entre os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde. O mesmo descreve que deve existir um contacto prévio (preferencialmente telefónico) com o responsável da instituição de destino, no qual se explana a situação do doente em termos clínicos (quadro clínico, com formulação de diagnóstico e prognóstico), e expõem-se os motivos associados à necessidade da transferência (motivos e benefícios da transferência), confirmando-se a disponibilidade de recursos para a receção do doente. Este contacto deverá ser devidamente registado no processo clínico do doente, com identificação dos responsáveis de ambas as instituições (origem e destino), indicando-se a data e hora em que ocorreu o contacto, bem como a identificação de quem efetiva o respetivo transporte. O mesmo regulamento salienta que o estabelecimento de origem deve atender à estabilização clínica do doente. Por fim, com um menor número de registos emergiram as subcategorias respeitantes à ausência de médico durante o transporte e aos custos despendidos com a impossibilidade de regresso imediato do enfermeiro após entrega do paciente (alojamento, alimentação, viagem de regresso). Relativamente à necessidade ou não de acompanhamento médico, a utilização de um score de risco de transporte (Ordem dos Médicos & Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, 2008) define as necessidades de recursos para o acompanhamento, a monitorização, o equipamento, referente a qualquer nível de gravidade, pelo que uma grelha devidamente adaptada ao contexto em causa poderia auxiliar na gestão dos recursos. Ao longo das dificuldades também foram emergindo propostas de solução, em áreas como os meios de transporte, os recursos humanos e materiais, com destaque para a formação e implementação de protocolos de atuação. Matias et al. (2022), respeitante a uma análise sistemática de métodos mistos, no qual se procurou analisar de que forma as intervenções de uma equipa multiprofissional promovem a segurança no transporte de pacientes em estado crítico, envolvendo 15 estudos publicados no período de 2012 a 2021, destacam nas suas conclusões, a importância da padronização do transporte do doente que se encontra em estado crítico, através da criação de protocolos institucionais, bem como de procedimentos específicos, lista de verificação e adequação dos respetivos equipamentos. Para além destas, salientam ainda a importância da formação contínua e do treino de competências na capacitação das equipas, visando uma cultura de segurança.
A elevada importância atribuída ao papel do enfermeiro no que concerne ao transporte inter-hospitalar da pessoa em situação crítica está patente nos discursos da totalidade dos participantes, com destaque para a estabilização do doente e para a satisfação das necessidades multidimensionais do mesmo. Fernandes (2022) enfatiza a existência e a importância dos enfermeiros dedicados a esta atividade, dotados de experiência e competências diferenciadoras, formação e treino mais específico, com boas habilidades comunicacionais, e capacidade de trabalho em equipa.
Os relatos baseados nas vivências dos enfermeiros possibilitam apenas um primeiro diagnóstico da situação, referem-se a um único contexto espaço-temporal pelo que os resultados não permitem generalizações, apenas visam uma reflexão inicial, a partir do qual se poderão avançar para estudos mais complexos, envolvendo amostras de maior dimensão e um maior leque de variáveis.
Conclusão
Desde a estabilização prévia do doente crítico até a sua entrega no hospital de destino, o papel do enfermeiro no transporte inter-hospitalar é de extrema importância no garante da sobrevivência da pessoa em situação crítica. Vários fatores podem condicionar esse garante, bem como intensificar sentimentos negativos aquando da necessidade da sua realização, pelo que importa descortinar os mesmos. Neste estudo auscultaram-se as vivências de um pequeno grupo de enfermeiros de uma ilha de Cabo Verde no que concerne ao transporte inter-hospitalar (interilhas) da pessoa em situação crítica. Os sentimentos experienciados integram dois grupos antagónicos: os de índole negativo e os de índole positivo. Os sentimentos negativos resultam das vivências experienciadas em condições menos favoráveis, como o transporte de doentes em meios não específicos (barcos comerciais e barcos de pesca) e das viagens marítimas (por más condições atmosféricas/agitação marítima/enjoo de movimento). A carência de recursos materiais apropriados para a efetivação do transporte e as dificuldades para assegurar o conforto e privacidade do doente foram, entre outros, aspetos que mereceram destaque. As principais linhas orientadoras recomendam que o transporte seja efetuado por equipas próprias, devidamente formadas e experientes, com equipamentos adequados e certificados para o tipo de transporte necessário. A utilização de meios de transporte marítimos específicos para o transporte inter-hospitalar, com equipas próprias e munidos de equipamento/material adequado são uma referência para a melhor assistência à pessoa em situação crítica. Na impossibilidade de aceder a estes meios específicos, a integração em embarcações de um espaço devidamente condicionado, com equipamentos confiáveis (testados previamente) melhoraria as condições de trabalho. O estabelecimento de parcerias internas e externas poderão constituir uma mais-valia, seja na melhoria/partilha de recursos humanos e materiais, seja ao nível da transferência de conhecimentos no âmbito do transporte da pessoa em situação crítica, contemplando formação em urgência/emergência (suporte básico e avançado de vida, trauma), com destaque para a importância de implementação de protocolos de atuação, tendo como propósito uma assistência segura e de qualidade.