Introdução
As condições de sobrevida neonatal encontram-se no centro da agenda global de saúde e nos objetivos do desenvolvimento sustentável. No Brasil, a asfixia perinatal representa um importante problema de saúde pública (Almeida et al., 2017).
Dos três milhões de nascimentos no país, observam-se, diariamente, 12 óbitos neonatais precoces relacionados com asfixia, sem anomalias congénitas, cinco delas em recém-nascido (RN) de termo. A insuficiência respiratória e o choque são exemplos de alterações hemodinâmicas, que geram, inadequada, libertação de oxigénio para atender às necessidades metabólicas da célula (asfixia), o que pode levar a uma paragem cardiorrespiratória (PCR) ou até à morte (National Association of Emergecy Medical Technicians [NAEMT], 2017).
Para tanto, torna-se imprescindível identificar o nível de conhecimento da equipa multidisciplinar, que atua junto do RN de risco, acerca da PCR e dos cuidados pós-reanimação, de modo a utilizar-se conhecimento técnico-científico, habilidade prática e comportamento ético e respeitoso.
A presente investigação justifica-se e é relevante pela necessidade de identificar os desafios, limitações de conhecimento e possibilidades de capacitação da equipa multiprofissional que atua na Unidade neonatal. Além de sistematizar os cuidados pós-reanimação com impactos face ao prognóstico, utilizando-se tecnologias seguras e cuidados humanizados para um olhar integral ao RN e à sua família.
Nesta perspetiva, o objetivo do estudo foi avaliar o conhecimento da equipa multidisciplinar acerca dos cuidados ao RN pós-reanimação.
Enquadramento
A partir das orientações do Comité de Ligação Internacional sobre Reanimação (ILCOR) e do Consenso Internacional sobre Reanimação Cardiopulmonar e Cuidados Cardiovasculares de Emergência, Ciência com Recomendações de Tratamento (CoSTR) entende-se reanimação como um conjunto de procedimentos com o intuito de manter a estabilidade hemodinâmica e o apoio à vida do RN, de modo a preconizar: a manutenção da temperatura; monitorização das frequências, cardíaca e respiratória, em níveis compatíveis com a vida; deteção de gás carbono isolado exalado para ventilação mecânica não invasiva; necessidade de oxigénio suplementar; e técnicas de compressão torácica, entre outros (Berg et al., 2023).
Um estudo de Neto et al. (2022), realizado na região norte brasileira, constatou que a prematuridade, a identificação de muito baixo ou extremo baixo peso ao nascer, o Apgar menor que sete no 5º minuto, o RN pequeno para a idade gestacional (PIG), a presença de mecónio, o uso de tabaco, ausência de companheiro e abortos espontâneos, número de consultas pré-natais, sexo masculino, entre outros, foram considerados fatores de riscos com maiores oportunidades de manobras avançadas para tal reanimação (Migoto et al., 2018).
É imprescindível que a estrutura da sala de partos e os profissionais responsáveis pelo cuidado ao RN que estejam preparados para qualquer intercorrência e condição crítica ao nascimento. Esta equipa multidisciplinar de saúde deve ter competência para realizar anamnese materna com identificação das condições de risco fetal, o material deve estar adequadamente preparado para uso imediato, deve ter agilidade, eficiência, domínio científico e aptidão técnica. Deve, também, ser treinada para diagnosticar rapidamente as alterações de sinais vitais, a disfunção do aporte de oxigénio nos tecidos, a fim de agir prontamente, diminuir a possibilidade de reanimação cardiorrespiratória (RCP) e maximizar a sobrevivência e recuperação neurológica (Melo et al., 2021). O propósito é evitar as causas de morbimortalidade, tanto precoces quanto tardias, que podem levar a falência de múltiplos órgãos, lesão cerebral ou ambas (Fundação Oswaldo Cruz, 2019; NAEMT, 2017).
O sucesso da reanimação fortalece-se com estes cuidados pós-reanimação, que pressupõem a presença de uma equipa qualificada, munida de tecnologias e estratégias sistemáticas que favoreçam a intervenção adequada, em tempo oportuno, com o objetivo de dar suporte cardiorrespiratório e neurológico, contribuindo, assim, para melhor prognóstico e redução da morbimortalidade (Wyckoff et al., 2020).
Questão de investigação
Qual o nível de conhecimento da equipa multidisciplinar acerca dos cuidados ao RN pós-reanimação?
Metodologia
Pesquisa transversal, descritiva, com abordagem, predominantemente, quantitativa, realizada numa maternidade-escola na cidade de Fortaleza-CE-Brasil, no período de junho a julho de 2021.
A população foi composta por todos os profissionais da equipa multidisciplinar (enfermeiros, técnicos de enfermagem, médicos, fisioterapeutas) da unidade neonatal, selecionados por conveniência, convidados por carta convite impresso, anexado em flanerógrafo e enviada por mensagem, após a autorização dos coordenadores. A amostra final foi composta por 110 profissionais dos setores: Centro Obstétrico, Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal Convencional (UCINCo) e Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN). Dentre os critérios de inclusão, considerou-se: ter pelo menos 6 meses de atuação na unidade neonatal, sendo excluídos aqueles que por razões de doença ou por motivos pessoais não estavam presentes durante o período da colheita de dados.
A colheita de dados ocorreu somente após aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa (Parecer n.º 4.741.197), atendendo aos parâmetros contidos na Resolução n.º 466/2012, de 12 de dezembro, e às determinações do Ofício Circular n.º 2/2021/CONEP/SECNS/MS, de 24 de fevereiro (Ministério da Saúde & Conselho Nacional de Saúde, 2012; Ministério da Saúde, 2021).
Após indicação de ter aceite o convite, o participante recebeu o link, referente ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e um questionário eletrónico estruturado no Google Forms®, utilizando uma escala do tipo Likert (1 correspondia a discordo, 2 a nem concordo nem discordo e 3 a concordo).
O instrumento apresentava caráter sociodemográfico e ocupacional para caracterização dos profissionais (sexo, idade, profissão, escolaridade, tempo de formação, tempo de experiência profissional, capacitação) e questões relativas ao nível de conhecimento acerca dos cuidados pós-reanimação neonatal (controlo de temperatura, frequência cardíaca, frequência respiratória, saturação de oxigénio, transporte) e o uso de tecnologias em saúde para suporte à prática clínica. Para elaboração desta segunda parte, utilizou-se o Guideline de Reanimação Cardio Pulmonar (RCP) como referência já validada, para avaliar o nível de conhecimento dos profissionais (American Heart Association [AHA], 2020).
Para a análise dos dados, utilizou-se estatística descritiva com frequência absoluta e relativa, organizados e armazenados em folhas de cálculo do software Excel, apresentados em tabelas, discutidas à luz de literatura pertinente. A investigação seguiu as diretrizes do STrengthening the Reporting of OBservational studies in Epidemiology da rede EQUATOR (Elm et al., 2007).
A fim de melhor se classificar o nível de conhecimento, foram estabelecidos conceitos positivo e negativo para qualificar as respostas dos profissionais. Para tanto, 110 respostas representam o percentual de 100% desta confirmação. Os critérios adotados para análise foram os índices de classificação sugeridos por Saupe e Horr (1982), sendo que quanto maior o índice de positividade melhor a qualidade da assistência, facto reconhecido por um melhor nível de conhecimento do profissional, são eles: assistência desejável com (100% de poaitividade); assistência adequada (90 a 99% de positividade); assistência segura (80 a 89% de positividade); assistência limítrofe com (71 a 79% de positividade); e assistência sofrível (70% a menos de positividade).
Resultados
Evidenciou-se uma predominância do sexo feminino (84,5%) e idade entre 30 a 40 anos (50,9%). Entre as classes profissionais, 28 (25,5%) eram médicos, 23 (20,8%) fisioterapeutas, 31 (28,2%) enfermeiros e 28 (25,5%) eram técnicos de enfermagem. Sobre o grau de escolaridade, verificou-se que 56 (50,9%) possuíam pós-graduação Latu Sensu, 11 (10%) Stricto Sensu na modalidade Mestrado, e apenas 2 (1,8%) na modalidade Doutorado. O tempo de formação de maior prevalência foi entre aqueles com mais de 10 anos (45,9%), convergindo com o maior tempo de experiência profissional (49,1%).
Na Tabela 1 evidencia-se que a maioria dos profissionais (n = 91; 82,7%) já vivenciou, pelo menos, um episódio de reanimação neonatal e os devidos cuidados pós-reanimação, havendo uma prevalência de fisioterapeutas (n = 22; 95,7%) e médicos (n = 26; 92,8%). Corroborando o número de profissionais que participaram em cursos de aperfeiçoamento em reanimação neonatal, com destaque para fisioterapeutas (n = 22; 95,7%) e médicos (n = 24; 85,7%), enfermeiros (n = 19; 61,3%) e técnicos de enfermagem (n = 20; 71,4%).
A Tabela 3 apresenta a classificação sobre o conhecimento dos profissionais quanto à monitorização dos parâmetros vitais após um episódio de reanimação e o impacto que os cuidados subsequentes podem causar no prognóstico da criança. Considerando os critérios adotados para classificação da assistência sugeridos por Saupe e Horr (1982), a monitorização da temperatura, frequência cardíaca, frequência respiratória e saturação de oxigénio foi considerada adequada (85,7% a 100% dos profissionais). Ou seja, 99,1% de adequação quanto ao nível de conhecimento e índice de positividade acerca do conhecimento e qualidade da assistência durante os cuidados ao RN após RCP.
Acerca da necessidade de dosagem de gasometria, esta apresentou-se como limítrofe com 71,8% de índice de positividade. No que se refere à verificação da pressão venosa central, débito urinário, glicemia e enzimas cardíacas, revelou-se como nível de conhecimento sofrível, sendo que se apresentou de 20,9%, no máximo, 60,0%, conforme Tabela 2.
Quando questionados acerca do uso de tecnologias como suporte para assistência segura e de qualidade, apenas 57,2% (n = 63) dos profissionais afirmaram usar alguma tecnologia, sendo prevalente o uso de tecnologias duras 88,9% (n = 56), padrão que foi reforçado quando questionados quanto a sugestões de tecnologias para a melhoria do cuidado, permanecendo o predomínio do uso de tecnologias duras 51,6% (n = 31), conforme apresentado na Tabela 3.
Nota. = Ventilador mecânico, ventilador manual em T, oxímetro de pulso, monitor cardíaco, incubadora de transporte, berço aquecido, bomba de infusão contínua, CPAP, cateter umbilical, baby puff, respirador portátil, termómetro, hidratação venosa, drogas, exames laboratoriais, HOOD, eco funcional; 2 = Monitorização cerebral, monitor cardíaco, baby puff, eco funcional, controlo hemodinâmico, capnógrafo, ventilador manual em T, oxímetro de pulso, incubadora de transporte, CPAP.
Discussão
Com intervenções para reduzir a morbimortalidade neonatal, como: acesso das mulheres aos serviços de saúde, precocemente, na gestação; reconhecimento de situações de risco durante o período pré-natal, cuidados individualizados, escuta ativa e comunicação terapêutica, é possível promover ações e intervenções assertivas. A assistência ao parto e pós-parto, também, necessita ser realizada por profissionais capacitados e com conhecimentos atualizados, capazes de diagnosticar complicações, bem como aplicar tratamento efetivo e imediato de reanimação, a fim de contribuir para redução de óbitos maternos e neonatais (Pedroso et al., 2021).
A preparação da equipa multiprofissional para o cuidado direcionado e eficaz, bem como a participação destes em cursos de aperfeiçoamento é fundamental para o atendimento a RN reanimados, como demonstrado em cerca de 77% (n = 85) dos profissionais, os quais participaram em cursos de reanimação.
Ressalta-se, também, a importância do Processo de Enfermagem (PE) como método sistematizado que, muitas vezes, é percebido no cotidiano da UTIN com reduzida criticidade e desprovido de perspetivas políticas, sociais, culturais e económicas para a visibilidade da profissão. Por isso, corrobora-se que o PE deve ser pensado e incorporado por todos os membros da equipa de enfermagem (Servo et al., 2021).
O que permite uma clínica ampliada e sistematizada de boas práticas, dando ao enfermeiro maior autonomia e apoio, uma vez que permite o julgamento clínico para aplicabilidade das suas intervenções, com ações eficientes e eficazes para a tomada de decisão sobre o cuidado. Além da promoção do vínculo entre o utente/família e a equipa multidisciplinar, minimizando os erros, além da melhora de comunicação interdisciplinar do cuidado (Carvalho et al., 2017).
Quanto ao uso adequado de recursos materiais, evidencia-se priorizar os equipamentos destinados à manutenção da temperatura, permeabilidade das vias aéreas, ventilação, circulação e administração de medicamentos, tudo preparado, testado e de fácil acesso antes mesmo do nascimento (Melo et al., 2021).
Para a análise da qualidade da assistência, os resultados revelaram que os cuidados quanto ao controlo da temperatura são adequados e agente preditor de qualidade do atendimento (NAEMT, 2017). A AHA (2020) e Maurício et al. (2018) destacam esse controle contínuo para evitar e tratar a febre imediatamente após PCR, direcionando a temperatura para 32,0ºC a 34,0ºC ou apenas o controlo direcionado de temperatura, mantendo-a entre 36,0ºC e 37,5ºC para minimizar o dano neurológico (SBC, 2019).
A ventilação pulmonar adequada é o ponto crítico, através dela é possível inflar os pulmões, promover dilatação vascular, levando a hematose (AHA, 2020).
Quanto ao suporte de oxigenação e ventilação, evidências apresentam como meta a normoxemia entre 94% e 99% e destaca-se a observação da frequência respiratória e saturação de oxigénio como adequados pela equipa multiprofissional participante deste estudo (AHA, 2020; NAEMT, 2017; SBC, 2019).
Em relação à monitorização hemodinâmica é primordial a manutenção da perfusão dos órgãos vitais com controlo da frequência cardíaca, pressão arterial e débito urinário, entre outros parâmetros (AHA, 2020; SBC, 2019). O que não aconteceu com a vigilância do débito urinário, classificada como sofrível, revelando-se como um dos pontos vulneráveis da assistência.
A monitorização dos níveis glicémicos é considerado pela AHA (2020) como fundamental para identificar fatores de risco, os dados colhidos revelaram que o controlo glicémico está entre as intervenções mais negligenciadas pelos profissionais.
O qual fundamenta-se em oferecer os primeiros sinais de aviso de variações não-previstas e que exigem intervenções em tempo real (Haddad & Évora, 2008). Assim, a análise dos processos do cuidado revela-se como uma ferramenta de gestão importante no caminho de uma assistência segura, eficaz e alinhada com as evidências científicas.
Como limitação, destaca-se a realização da pesquisa num momento pandémico, trazendo dificuldades na análise dos resultados, especialmente, na amostragem por conveniência, o que impede uma compreensão ampla do nível de conhecimento.
Como contribuições refere-se que, ao classificar o nível de conhecimento dos profissionais, apontam-se lacunas quanto ao impacto do desempenho profissional sobre a recuperação do doente, com consequente qualidade da prática assistencial requer antecipação e preparação destes para fazer uso de tecnologias aliadas ao processo de sistematização do cuidado.
Espera-se atenção para o incentivo e direcionamento nas atividades de educação permanente, contribuindo efetivamente para a redução do risco de morte e lesões adicionais advindas da asfixia neonatal (Pescador Chamorro et al., 2022).
Para tanto, destacam-se o uso de técnicas como metodologias ativas e práticas de simulação realística para o aprendizado, além do debriefing imediado como proposta para melhorar a conduta e favorecer o nível de conhecimento acerca da RCP neonatal. Como foi evidenciado em um estudo que utilizou a simulação clínica e o debriefingde forma imediata, auxiliado por facilitador, fato que pode contribuir para o desenvolvimento de habilidades em reanimação neonatal, incluindo técnicas/cognitivas e comportamentais (Gamboa et al., 2018).
Conclusão
Conclui-se que a equipa multidisciplinar apresentou adequado índice de positividade do conhecimento (99,1%) quanto aos sinais vitais e saturação de oxigénio; conhecimento limítrofe para dosagem de gasometria (71,8%) e sofrível (20,9% a 60,0%) na verificação da pressão venosa central, débito urinário, glicemia e enzimas cardíacas, frente aos cuidados pós-reanimação do neonato.
Compreende-se a necessidade de ações efetivas de qualificação profissional, educação contínua e sensibilização para um olhar holístico ao RN. A avaliação do conhecimento dos profissionais presentes na assistência ao RN reanimado torna-se valiosa, uma vez que o cuidado se reflete no prognóstico de vida do doente, além das consequências futuras advindas de uma reanimação adequada, segura e efetiva. Confirma-se, portanto, a hipótese quanto ao insatisfatório e sofrido nível de conhecimento da equipa em determinados aspetos. Facto que proporciona a necessidade de capacitação contínua. Considera-se, ainda, a realização de mais estudos a respeito do assunto para melhoria do processo de reanimação e dos cuidados aos RN reanimados.