Introdução
Nos últimos anos, houve um crescimento exponencial da violência, compreendendo uma violação dos direitos humanos. Segundo o Relatório o Relatório Anual de Segurança Interna de 2022, verificou-se um aumento da criminalidade geral (14,1%), criminalidade violenta e grave (14,4%), violência doméstica (15%) e da delinquência juvenil (50,6%), em comparação a 2021 (Sistema de Segurança Interna, 2023).
A maioria das vítimas de agressões recorre ao serviço de urgência (SU) e geralmente quem os recebe numa fase inicial são os enfermeiros. Neste sentido, estes assumem uma posição privilegiada na deteção precoce, identificação, recolha e preservação de vestígios. Como ainda, no encaminhamento para as autoridades competentes. Naturalmente, a prioridade do atendimento é a preservação da vida da pessoa. No entanto, é crucial reconhecer e documentar procedimentos potencialmente relevantes para questões médico-legais (Lynch & Duval, 2011). A recolha de vestígios é competência dos Órgãos de Polícia Criminal (OPC). Mas, o facto de as vítimas serem recebidas frequentemente pelos enfermeiros no SU, exige que estes se preparem para esta função. Por exemplo, os enfermeiros especialistas em Enfermagem Médico-cirúrgica na Área da Pessoa em Situação Crítica devem garantir os cuidados de saúde e assegurar a preservação de vestígios de prática de crime (Regulamento n.º 429/2018 da Ordem dos Enfermeiros, 2018). Do mesmo modo, os enfermeiros com competência acrescida diferenciada em Enfermagem Forense (EF) têm responsabilidades no processo de recolha e preservação de vestígios de interesse médico-legal (Regulamento n.º 728/2021 da Ordem dos Enfermeiros, 2021), dentro dos limites legais e inseridos na equipa multidisciplinar do SU. A inexistência de protocolos adequados para a recolha e preservação de vestígios forenses no SU constitui uma problemática que afeta a eficácia das investigações criminais (Silva & Santos, 2022). Sem protocolos claros e padronizados, os enfermeiros podem inadvertidamente destruir ou contaminar vestígios cruciais, durante a prestação de cuidados às vítimas, que podem ser essenciais para identificar suspeitos e resolver crimes. Neste sentido, esta problemática justifica a necessidade de desenvolver e implementar diretrizes claras e abrangentes para orientar os cuidados de enfermagem centrados nos melhores interesses das vítimas, família ou comunidade, conforme previsto no Regulamento nº 728/2021 da Ordem dos Enfermeiros [OE] (2021).
Face ao exposto, este estudo pretendeu criar e validar um instrumento orientador de boas práticas, dirigido aos enfermeiros, e teve como objetivos: construir um protocolo de intervenções de recolha e preservação de vestígios forenses para o serviço de urgência; e validar o conteúdo do referido protocolo.
Enquadramento
A EF é definida como uma área de exercício baseada na resposta aos problemas da pessoa, família e comunidade enquanto inseridos em cenários de violência, acrescentando à prática clínica a salvaguarda de vestígios relevantes em contexto criminal, articulando a enfermagem com o sistema judicial, objetivando a defesa dos seus direitos (Regulamento n.o 728/2021 da Ordem dos Enfermeiros, 2021).
O SU, sendo muitas vezes o primeiro local onde as pessoas vítimas de crime são assistidas, constitui um ambiente rico em oportunidades na identificação, recolha e preservação de vestígios forenses. Neste seguimento, os enfermeiros, são o primeiro grupo profissional no atendimento das vítimas logo no processo de triagem (Donaldson, 2020) e têm o dever da preservação de vestígios que possam ter relevância médico legal (Berishaj et al., 2020).
Os enfermeiros, no domínio das suas competências, prestam cuidados de enfermagem eficazes para preservar os vestígios de indícios de prática de crime, identificar as situações de suspeita de crime e proceder ao encaminhamento das mesmas para as autoridades competentes (Regulamento n.o 429/2018, 2018).
Adicionalmente, ao enfermeiro compete, dentro dos limites legais, a participação no processo de recolha e preservação de vestígios com relevância criminal, através do cumprimento de regras básicas assentes nos requisitos inerentes à cadeia de custódia e na colaboração com as entidades envolvidas no processo de investigação, respeitando normas e protocolos (Regulamento n.º 728/2021 da Ordem dos Enfermeiros, 2021). Nesta linha de orientação, emerge a necessidade de estes serem detentores de conhecimentos atualizados, que sirvam de suporte às boas práticas na assistência à vítima, no que respeita à recolha e à preservação de vestígios forenses (Pires, 2021). Complementarmente, Foresman-Capuzzi (2014), reconhece que o exercício dos enfermeiros no SU, deve ser orientado mediante protocolos e técnicas com o recurso a kits de material para o estabelecimento da cadeia de custódia.
Por outro lado, no que respeita à gestão de vestígios forenses, a EF deve ter em conta os pressupostos e os limites legais de forma a garantir a sua validade jurídico-processual. Legalmente, os agentes da autoridade são os responsáveis pela prova material (Sheridan et al., 2011). Porém, o exercício dos enfermeiros é fundamental na preservação da integridade dos vestígios (Lynch & Duval, 2011). Na perspetiva dos enfermeiros, a não preservação destes vestígios pode ser um obstáculo à aplicação da justiça sob pena de não serem salvaguardados os direitos humanos, as normas legais, os princípios éticos e a deontologia profissional. Contudo, a sua intervenção não deve ser direcionada para a realização da investigação criminal (McGillivray, 2005). Neste sentido, torna-se importante “melhorar o conhecimento e competências técnicas na matéria por parte dos profissionais, incluindo o fortalecimento das capacidades de trabalho cooperativo” (Direção-geral da Saúde [DGS], 2016, p. 98). Paralelamente, é desejável a prevalência do princípio do dever de colaboração, enquanto facilitador da cooperação entre o setor da saúde e da justiça, contribuindo para elevar a eficácia na investigação criminal. Por conseguinte, é indispensável, a convergência de linguagens para aprofundar o conhecimento comum acerca dos procedimentos que são realizados (DGS, 2016). Neste contexto, a falta de formação e de protocolos que orientem os cuidados à vítima de crime constituem um obstáculo na recolha e preservação de provas, como concluem Dumarde et al. (2022), Furtado et al. (2021), Sakallı e Aslan (2020) e Silva e Santos (2022). Complementarmente, Pires (2021) e Ribeiro (2020) reconhecem o desenvolvimento de protocolos forenses como pilar fundamental da prática baseada na evidência no que respeita à EF no SU.
Questões de investigação
Que itens devem constar num protocolo de intervenções de recolha e preservação de vestígios forenses para o serviço de urgência?
O protocolo de intervenções de recolha e preservação de vestígios forenses para o serviço de urgência, por meio da técnica de Delphi, alcança validade?
Metodologia
Para dar resposta às questões de investigação, desenvolveu-se um estudo metodológico, com abordagem quantitativa e descritiva, organizado em duas fases: a construção do protocolo de recolha e preservação de vestígios forenses no SU e, posteriormente, a validação do seu conteúdo, recorrendo a um grupo de peritos, através da técnica de Delphi. A construção do protocolo adveio de uma revisão integrativa da literatura que incluiu a análise de estudos anteriores, relatórios técnicos, manuais de procedimentos e pesquisas científicas relevantes, nos últimos 10 anos e analisados por dois peritos forenses, para garantir um protocolo baseado em evidências sólidas e eficazes.
A fase seguinte consistiu na validação do seu conteúdo recorrendo à técnica Delphi. Tal como referem Scarparo et al. (2012), a técnica de Delphi destina-se a situações de ausência de dados, falta de dados históricos, carência de abordagens multidisciplinares ou para o desenvolvimento de novas ideias. Neste estudo, optou-se por uma amostra não probabilística intencional, uma vez que é possível selecionar os participantes, pela sua pertinência e valor que podem acrescentar ao estudo (Marôco, 2010).
Considerando a multidisciplinaridade e a cooperação entre diversas entidades fundamentais, inicialmente, a amostra foi constituída por 30 peritos, entre enfermeiros com formação em ciências forenses, elementos do Núcleo de Apoio Técnico da Guarda Nacional Republicana (GNR), do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária (PJ) e da Secção de Polícia Técnica da Polícia de Segurança Pública (PSP). Os critérios de inclusão foram: aceitar participar no estudo de modo voluntário; serem enfermeiros reconhecidos pela Ordem dos Enfermeiros (OE) e pela Associação Nacional de Enfermagem Forense (ANEFOR) com formação pós-graduada em Ciências Forenses/Medicina Legal e serem elementos dos OPC (PSP, GNR e PJ) reconhecidos, pelas suas hierarquias, como peritos e com tempo de atividade na área da investigação criminal superior a 5 anos, indo assim ao encontro de Melo et al. (2011) na sustentação de que a perícia é atingida com uma experiência mínima de 2 ou 5 anos. Neste sentido, foram identificados peritos com colaboração da OE, da ANEFOR, do Comando da Doutrina e Formação da GNR, da Diretoria Nacional da PJ e da Diretoria Nacional da PSP. Os contactos com os peritos foram efetuados após a autorização dos mesmos.
O processo de validação do protocolo decorreu em duas rondas. Seguindo a ideia de Chang et al. (2010), considerou-se o Índice de Validade de Conteúdo (IVC) ≥ 0,75 como critério de decisão sobre a validade de cada item e, concludentemente, o protocolo no seu todo. Simultaneamente, utilizaram-se como critérios adicionais para a revisão final do protocolo, a convergência e ou divergência das sugestões e as recomendações apresentadas pelos peritos. Os peritos avaliaram o conteúdo de cada item no global segundo uma escala Likert com 5 opções de resposta (1 - discordo completamente; 2 - discordo; 3 - indiferente; 4 - concordo; 5 - concordo completamente). O valor do IVC foi calculado através da soma das respostas 4 e 5, divididos pelo número total de respostas (Alexandre & Coluci, 2011). Simultaneamente, em cada item, foi disponibilizado um espaço descritivo para que os peritos manifestassem a sua opinião e sugestões sobre os procedimentos propostos em cada situação forense.
A recolha de dados foi realizada através de questionário online (Google forms), constituído por uma parte relativa à caracterização sociodemográfica da amostra e uma segunda parte constituída pelos 19 itens que constituem o protocolo.
O tratamento de dados foi realizado com recurso aos softwares Microsoft Excel e IBM SPSS, versão 28.0. Foram aplicadas técnicas de estatística descritiva, tais como frequências absolutas e relativas e medidas de tendência central como média e desvio-padrão. Foram ainda calculados os valores do IVC por item e o IVC global.
Todos os dados foram recolhidos respeitando todos os procedimentos éticos, através da assinatura do Termo de Consentimento Informado Livre e Esclarecido, assim como, e aprovação Comissão de Ética (registo n.º 839 de 14 de fevereiro de 2022) de uma Unidade Local de Saúde do centro do país.
Resultados
O processo de revisão da literatura resultou na identificação das melhores práticas, técnicas e metodologias na área forense englobadas em 19 itens para submeter a apreciação dos peritos. Para contextualizar o protocolo, constituíram-se seis itens que incluíram Introdução do Protocolo, Objetivo do Protocolo, Âmbito do Protocolo, Conceitos, Quem Executa e Enquadramento Legal. Os restantes 13 itens envolveram os procedimentos técnicos recomendados às situações de: Gestão de Vestígios Forenses; preservação da Roupa, Pelos/Cabelos, Fluídos Corporais/Sangue/Secreções; Abordagem a Vítimas de Agressão Sexual, Vítimas de Arma Branca, Vítimas de Arma de Fogo, Vítimas de acidente de viação, Vítimas de intoxicação, Vítimas de Asfixia, Situação de Morte no SU e ainda, a criação de um conjunto (kit) de material de recolha e preservação de vestígios forenses.
Na 1ª ronda da fase de validação obtiveram-se 24 respostas. Relativamente à caracterização sociodemográfica, 29,2% (n = 7) da amostra, eram enfermeiros, 8,3% (n = 2) elementos da GNR, 25% (n = 6) pertencentes à PJ e 37,5% (n = 9) elementos da PSP. Foi assim, constituído um grupo heterogéneo com vista a uma apreciação multidisciplinar, baseada em perspetivas e experiências diversificadas. No grupo de 24 peritos verifica-se uma prevalência minoritária do género feminino, representando por 12,5% (n = 3) enquanto a maioria de 87,5% (n = 21) corresponde ao género masculino. A idade dos peritos variou entre os 38 e os 58 anos, (média = 54,4 ± 4,99). Em relação às habilitações académicas dos peritos, 42% (n = 10) completaram o ensino secundário, 4% (n = 1) com o nível de bacharelato, 29% (n = 7) detentores de licenciatura, 21% (n = 5) com o grau de mestre e 4% (n = 1) com doutoramento.
Em relação à formação em ciências forenses, a maior parte, 59,1% (n = 13) possuía formação técnica, 22,7% (n = 5) com pós-graduação, 13,6% (n = 3) dos peritos detinham o título de mestre e 4,5% (n = 1) doutorado na área forense, dois peritos optaram por não responder a esta questão, contudo, detinham uma vasta experiência em investigação criminal.
Relativamente à frequência com que lidavam com vítimas e/ou locais de crime, 33,3% (n = 8) dos peritos afirmaram que lidam pelo menos três vezes por semana com vítimas ou locais de crime e apenas 8,3% (n = 2) assumem que nunca lidam com este tipo de situações, na sua atividade profissional, no entanto, cumprem os critérios de inclusão.
Os peritos exerciam a sua atividade entre 6 e 33 anos (média = 21,8 ± 6,83). Para garantir uma diversidade na experiência profissional, foram selecionados peritos de diversas áreas do país, com a zona centro representando 62,5% (n = 15) e a zona sul 20% (n = 5), 8,3% (n = 2) exerciam funções na zona norte e as regiões autónomas estão representadas por 4,2% (n = 1) cada.
Seguidamente, na Tabela 1 estão representados todos os itens do protocolo proposto. Na 1º ronda o IVC global foi de 0,82 com variações entre 0,75 e 0,88 para cada item, e médias de resposta entre 4,13 ± 0,99 e 4,58 ± 0,72, na escala de 1 a 5.
IVC | M | DP | |
---|---|---|---|
Introdução do Protocolo | 0,88 | 4,38 | 0,82 |
Objetivo do Protocolo | 0,79 | 4,25 | 1,03 |
Âmbito do Protocolo | 0,83 | 4,35 | 0,89 |
Conceitos | 0,79 | 4,50 | 0,83 |
Quem executa | 0,79 | 4,13 | 0,85 |
Enquadramento Legal | 0,75 | 4,21 | 0,83 |
Gestão de Vestígios Forenses | 0,88 | 4,58 | 0,72 |
Roupa | 0,83 | 4,42 | 1,02 |
Cabelo/Pelos | 0,79 | 4,38 | 0,82 |
Fluídos corporais/Sangue/Secreções | 0,88 | 4,38 | 0,71 |
Lesões | 0,79 | 4,38 | 0,82 |
Vítimas de Agressão Sexual | 0,83 | 4,46 | 0,78 |
Vítimas de Arma Branca | 0,75 | 4,25 | 0,85 |
Vítimas de Arma de Fogo | 0,83 | 4,29 | 0,86 |
Vítimas de Acidente de Viação | 0,88 | 4,50 | 0,72 |
Vítimas de Intoxicação | 0,88 | 4,42 | 0,72 |
Vítimas de Asfixia | 0,83 | 4,38 | 0,77 |
Vítima cadáver | 0,83 | 4,29 | 0,75 |
Kit material | 0,79 | 4,13 | 0,99 |
Nota. IVC = Índice de validade de conteúdo; M = Média; DP = Desvio-padrão.
Após análise dos resultados e sugestões, foi enviado novo questionário para aprimorar o instrumento, focando, essencialmente, aspetos de linguagem técnica, legislação, competências dos OPC e dos enfermeiros, pelo que o Enquadramento Legal foi dos itens com menor IVC (0,75). Destacou-se a importância da preservação dos vestígios (em vez da sua recolha) e do reconhecimento dos registos dos registos de enfermagem na proteção das vítimas e, concludentemente, na aplicação da justiça. Em relação à 2ª ronda, participaram 18 peritos (cinco enfermeiros, quatro elementos da PJ e nove elementos da PSP), todos confirmaram ter participado na 1ª ronda. O IVC global foi de 0,89, com variações entre 0,78 e 0,94 em cada item, e médias de resposta superiores a 4, na escala de 1 a 5 (Tabela 2).
IVC | M | DP | |
---|---|---|---|
Introdução do Protocolo | 0,89 | 4,44 | 0,86 |
Objetivo do Protocolo | 0,94 | 4,56 | 0,62 |
Âmbito do Protocolo | 0,94 | 4,61 | 0,78 |
Conceitos | 0,94 | 4,53 | 0,80 |
Quem executa | 0,89 | 4,50 | 0,86 |
Enquadramento Legal | 0,89 | 4,50 | 1,04 |
Gestão de Vestígios Forenses | 0,83 | 4,33 | 1,19 |
Roupa | 0,83 | 4,22 | 1,00 |
Cabelo/Pelos | 0,89 | 4,39 | 0,85 |
Fluídos corporais/Sangue/Secreções | 0,83 | 4,39 | 0,92 |
Lesões | 0,83 | 4,22 | 1,06 |
Vítimas de Agressão Sexual | 0,83 | 4,17 | 0,86 |
Vítimas de Arma Branca | 0,78 | 4,28 | 0,96 |
Vítimas de Arma de Fogo | 0,83 | 4,28 | 1,02 |
Vítimas de Acidente de Viação | 0,89 | 4,50 | 0,86 |
Vítimas de Intoxicação | 0,94 | 4,56 | 0,78 |
Vítimas de Asfixia | 0,83 | 4,39 | 0,92 |
Vítima cadáver | 0,94 | 4,28 | 0,90 |
Kit material | 0,94 | 4,33 | 0,97 |
Nota. IVC = Índice de validade de conteúdo; M = Média; DP = Desvio-padrão.
Discussão
Na revisão da literatura foram reconhecidas e aplicadas as mais recentes metodologias no desenvolvimento dos itens que devem constar num protocolo de recolha e preservação de vestígios forenses no SU. Por exemplo, a elaboração do protocolo de forma a garantir uma cadeia de custódia sólida com procedimentos detalhados na documentação, desde a recolha dos vestígios até à sua entrega às autoridades competentes, conforme as recomendações da DGS (2016). Por outro lado, o protocolo especifica o uso de embalagens e recipientes apropriados para os diferentes tipos de vestígios, com base nas diretrizes da DGS (2016) e do Instituto Nacional de Medicina Legal e das Ciências Forenses (2013). Desta forma, as melhores práticas e técnicas forenses identificadas na revisão da literatura foram traduzidas em ações concretas no protocolo, reforçando a sua credibilidade e utilidade, num conjunto de situações consideradas por Gomes (2014) e Filmalter et al (2018) como frequentes no SU, e que requerem uma intervenção específica.
Posteriormente, o protocolo proposto foi validado por uma equipa multidisciplinar de peritos através da constituição de um painel de Delphi. A técnica de Delphi revelou-se vantajosa, na medida em que se baseia no pressuposto de que a multiplicidade de perspetivas do grupo de peritos produzirá um resultado mais válido, em relação à avaliação individual de um perito (Niederberger & Spranger, 2020). Analogamente, a formação de grupos heterogéneos é proficiente quando se pretende uma validação multidimensional e multidisciplinar (Marques & Freitas, 2018).
Os resultados obtidos na 1ª ronda alcançaram um IVC global de 0,82, indicando concordância geral dos peritos com os itens do protocolo. Todos os itens receberam sugestões de alteração de conteúdo, relacionadas com as competências dos enfermeiros e dos OPC, na gestão dos vestígios. Neste sentido, respondendo às sugestões dos peritos, decidiu-se realizar 2ª ronda, almejando aperfeiçoar o protocolo.
Na 2ª ronda, após a reformulação do protocolo, o IVC global aumentou para 0,89, o que significa que os peritos consideraram o conteúdo melhorado e adequado ao que se propõe (Alexandre & Coluci, 2011). Releva-se o IVC máximo de 0,94 nos itens Objetivo, Âmbito e Conceitos do protocolo, refletindo o reconhecimento da importância da existência dos protocolos de recolha e preservação de vestígios forenses no SU, tal como concluem os estudos de Dumarde et al. (2022), Furtado et al. (2021), Sakallı e Aslan (2020) e Silva e Santos (2022). Do mesmo modo, o IVC de 0,94 no item Kit de material representa uma convergência de opiniões dos peritos sobre a existência de material específico para padronização dos procedimentos forenses, assim como Foresman-Capuzzi (2014). No geral, os peritos mantiveram uma concordância acima de 0,78 relativa aos itens, selecionados na revisão da literatura e que compõem o protocolo, reforçando a sua relevância e validade, mencionando que “a fundamentação é pertinente e justifica a criação do protocolo” e que “aborda os aspetos fundamentais, para o contexto, e evidencia a pertinência de protocolos/procedimentos de atuação sistematizados”. Todavia, mantiveram clara a opinião sobre a separação de competências dos OPC e dos enfermeiros. Tal como refere McGillivray (2005), os enfermeiros não devem direcionar a sua atuação para a investigação criminal, mas sim para preservação dos vestígios em risco de serem destruídos. Do mesmo modo, reforçaram a ideia de que, legalmente, os agentes da autoridade são os responsáveis pela prova material (Sheridan et al., 2011).
Concomitantemente, o recurso a questionários online permitiu a participação de peritos distribuídos por todo o continente e ilhas, promovendo o tempo de reflexão e a adesão dos participantes reduzindo os custos e o tempo despendido (Marques & Freitas, 2018). Ambos os questionários foram enviados aos 30 peritos que, inicialmente, aceitaram participar no estudo. A abstenção registada (20% na 1ª ronda e 40% na 2 ª ronda) considerou-se dentro dos valores previstos neste tipo de técnica, sendo que é normal a perda de participantes ao longo das rondas (Marques & Freitas, 2018). Desta forma, o número de respostas poderá ser uma limitação deste estudo. Contudo, as respostas obtidas representam um número suficiente para a obtenção de resultados satisfatórios (Skulmoski et al., 2007). Além disso, todos os peritos que participaram na 2ª afirmaram ter participado na 1ª, o que representa alto nível de interesse e adesão. Por outro lado, o reconhecimento legal das intervenções do enfermeiro forense na recolha de vestígios, e a direção exclusiva deste protocolo aos enfermeiros, também poderão limitar a sua implementação nas suas funções interdependentes e dependentes dentro da equipa multidisciplinar do SU.
Complementarmente, a validação do protocolo foi realizada por uma equipa multidisciplinar, alicerçada no conceito base da EF em relação à articulação do sistema de saúde e do sistema jurídico processual. Deste modo, sustentou os resultados do estudo de Mota et al. (2021), ao relevar a importância da criação de diretrizes nacionais e institucionais baseadas nas mais recentes evidências da EF. Este estudo mostra que a criação de equipas multidisciplinares, que incluem profissionais de saúde e outras entidades envolvidas no processo de investigação, se traduz numa mais-valia na qualidade dos cuidados a vítimas acometidas de crime.
Por último, não foram realizadas mais rondas por se verificar estabilidade nas respostas, traduzida pelo baixo grau de divergência e inexistência de novas sugestões relevantes, tal como defendem Marques e Freitas (2018).
Conclusão
Em suma, este estudo permitiu identificar os itens constituintes e validar o conteúdo de um protocolo de recolha de vestígios forenses para o SU, atendendo às questões de investigação e ao alcance dos objetivos propostos com a obtenção de um IVC global de 0,89. Atualmente, o protocolo integra os procedimentos internos de um SU do centro do país e contempla avaliações periódicas da sua implementação, visando o aprimoramento e possibilidade de replicação em outros SU. Efetivamente, este trabalho preencheu uma lacuna importante na prática da EF no SU, ao promover a segurança e a eficácia do exercício da EF e a articulação eficaz entre os cuidados de saúde e o sistema jurídico. Todavia, a ausência de validação legal de vestígios recolhidos por profissionais, que não os OPC, constitui uma limitação à sua aplicação prática. Neste âmbito, o estudo centrou-se apenas nos enfermeiros, construindo um instrumento de trabalho para ser utilizado por estes, dentro das suas competências, inseridos numa equipa multidisciplinar do SU e balizados pelos limites legais. Sugere-se, futuramente, ampliar este estudo a médicos e outros profissionais da equipa do SU. Porém, importa salientar que os enfermeiros devem preservar e, excecionalmente, recolher vestígios em risco de destruição ou em situações que os OPC ainda não estejam presentes. Concludentemente, os enfermeiros visam cuidados centrados nos melhores interesses das vítimas, da família ou da comunidade, garantindo que nenhum procedimento forense se sobreponha aos cuidados de saúde emergentes.