Introdução
O Brasil foi o primeiro país do mundo em mortes de profissionais de enfermagem pela COVID-19, superando os Estados Unidos, Espanha e Itália. Em junho de 2020, identificaram-se duas centenas de mortes de profissionais de enfermagem, correspondendo a 30% das mortes por COVID-19. Ou seja, três em cada 10 óbitos de profissionais de enfermagem são de brasileiros, segundo levantamentos do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e do Conselho Internacional de Enfermagem (COFEN, 2020).
De acordo com dados do COFEN, até o dia 19 de junho de 2023, 65.029 profissionais de enfermagem foram infetados com COVID-19, com 872 óbitos. Na região Sul do Brasil, ocorreram 13.471 casos e 109 óbitos entre estes profissionais (COFEN, 2023).
A literatura internacional sublinha a importância do trabalho destes profissionais, que foram centrais e indispensáveis no processo de cuidados durante a pandemia (Liu et al., 2020). Destaca-se a sua atuação desde o cuidado direto à pessoa e familiares, promovendo a humanização, até às atividades de gestão, que englobam a vigilância epidemiológica, reorganização e adequação da estrutura física, funcionamento dos serviços de saúde, recursos humanos e medidas de segurança à pessoa e equipa de saúde (COFEN, 2022).
Até ao momento, não foram encontrados estudos realizados no Estado do Rio Grande do Sul (RS) sobre a prevalência de COVID-19 entre profissionais da Enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem) na atenção primária à saúde (APS) e o impacto na saúde. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2023), aproximadamente 10 a 20% das pessoas experimentam uma variedade de efeitos de médio e longo prazo após recuperação da sintomatologia associada à infeção COVID-19, os quais podem durar semanas, meses e até anos.
Neste sentido, o objetivo desta investigação foi identificar a prevalência de COVID-19 e de sintomas pós-infeção entre os profissionais de enfermagem na atenção primária à saúde (APS) e fatores associados.
Enquadramento
O ano de 2020 teve um impacto significativo na história da Enfermagem, tendo sido designado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e pela OMS para comemorar o ano internacional dos profissionais de enfermagem e parteiras. O objetivo foi reconhecer o trabalho destes profissionais e defender a sua valorização, o que compreende investimentos e melhoria das condições de trabalho, educação e crescimento profissional (OPAS, 2020). Neste ano, os sistemas de saúde no mundo e os profissionais enfrentaram a grave pandemia causada pelo novo vírus da classe coronavírus (Brasil, 2020).
A COVID-19 foi detetada inicialmente em Wuhan, na China. Em meados de janeiro de 2020, foram confirmados alguns casos noutros continentes e na região das Américas (OMS, 2020a). Em final de fevereiro de 2020 foi reconhecida no Brasil, após a confirmação do primeiro caso oriundo do continente europeu. Em meados de março, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como pandemia e no final de março, o Ministério da Saúde decretou o estado de transmissão comunitária em território nacional (OMS, 2020a; Brasil, 2020). Embora a incidência, até o momento, tenha caído devido à vacinação global de mais de 13 bilhões de doses, desde o início da crise sanitária, que os casos ultrapassaram 768 milhões em todo o mundo e o número de mortos ultrapassou os 6 milhões, segundo dados da OMS (2023).
A COVID-19 é uma doença infectocontagiosa provocada pelo vírus SARS-Cov-2, o qual é transmitido por contacto direto com uma pessoa contaminada ou com objetos e superfícies contaminados. A doença afeta principalmente o sistema respiratório, podendo provocar desde sinais e sintomas leves, semelhantes a uma gripe, até à Síndrome Respiratória Aguda Grave e evoluir para óbito, especialmente na presença de fatores de risco, nomeadamente a idade, problemas respiratórios e cardiovasculares crónicos, entre outras comorbilidades que afetam a imunidade. Entretanto, a COVID-19 é uma doença sistémica e pode afetar outros sistemas além do respiratório, inclusive provocar sequelas pós-infeção (OMS, 2023).
A presença de sinais e sintomas que persistem ou se desenvolvem após a infeção aguda da COVID-19 têm sido denominados COVID-19 persistente ou Síndrome da COVID-19 longa (Martín-Garrido & Medrano-Ortega, 2022). Alguns estudos de revisão evidenciaram que os sintomas pós-COVID-19 mais prevalentes foram a fadiga, dor de cabeça, dificuldade de atenção, perda de cabelo, dispneia, tosse persistente, comprometimento cognitivo, sequelas neurológicas, perda do olfato ou paladar, dores musculares e doenças inflamatórias (Brasil, 2023; Martín-Garrido & Medrano-Ortega, 2022; Lopes et al, 2023). É importante, também, destacar os sintomas e transtornos mentais como ansiedade, insônia e depressão (Lopes et al, 2023), especialmente entre os profissionais de enfermagem que estiveram na linha de frente para o combate da COVID-19.
Um estudo da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) sobre profissionais de saúde e COVID-19 mostrou que quase um quarto dos trabalhadores entrevistados em 2020 apresentavam sintomatologia associada a episódio depressivo (OPAS, 2022). Alguns estudos brasileiros realizados com profissionais de saúde e de enfermagem, que estavam envolvidos no combate à COVID-19 nos serviços de APS, evidenciam a presença de esgotamento mental, desgaste emocional, sofrimento e esgotamento psíquico, síndrome de burnout, elevada exposição ao estresse e risco elevado para a presença de transtorno mental (Rezer e Faustino, 2022; Tamborini et al, 2023).
O trabalho constitui-se como um importante determinante para o processo de saúde-doença. Na profissão de enfermagem, o trabalho tem contribuído significativamente para o adoecimento dos trabalhadores ao longo dos anos, fomentando a reflexão acerca da invisibilidade do trabalho realizado por estes profissionais e a sua valorização no contexto laboral (Nascimento et al., 2022). Muitos profissionais de enfermagem atuam com problemas de saúde relacionados com as grandes exigências psicológicas, suporte social deficiente e transtornos mentais comuns, que acaba implicando em prejuízos à assistência, perda de produtividade e danos à sua saúde do paciente (Silva-Costa et al, 2020).
As situações adversas como pandemias, catástrofes e demais eventos imprevisíveis estressantes exigem dos profissionais, não somente competência técnica, mas também preparação psicológica e emocional elevada (Marques et al., 2020). Além das preocupações com a segurança pessoal, é preciso considerar a exaustão física e mental entre os profissionais da saúde, dificuldades na tomada de decisão e ansiedade pela dor de perder pessoas a quem se presta cuidados, colegas e a possibilidade de transmitir a doença para familiares. Cabe destacar que a complexidade dos cuidados, o contacto com pessoas clinicamente instáveis, e a vivência de situações de morte frequente agravam o desgaste físico e mental dos enfermeiros (Miranda et al., 2020).
Questões de investigação
Qual a prevalência de COVID-19 e de sintomas pós-infeção entre os profissionais de enfermagem na APS? Quais os fatores sociodemográficos, laborais e de saúde associados à prevalência da COVID-19 e a prevalência de sintomas pós-infecção entre os profissionais de enfermagem na APS?
Metodologia
Trata-se de um estudo transversal descritivo. A população alvo deste estudo foram todos os 423 profissionais de enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem) de uma região de saúde do Rio Grande do Sul (RS), esses que ficaram na linha de frente doscuidados durante a COVID-19. A região era composta por 33 municípios, 70 estabelecimentos de APS cadastrados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde e aproximadamente 230.814 habitantes. Foram excluídos profissionais de enfermagem atuantes em serviços de APS que não fossem de administração municipal, como àqueles geridos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).
Todos os profissionais de enfermagem foram convidados a responder ao formulário de investigação, durante os quatro meses de estudo e obteve-se resposta de 78 participantes. Destes, foram excluídos dois por assinalarem o item de recusa para participar, um por falta de preenchimento do formulário de pesquisa e um que foi respondido por profissional que não pertence aos municípios da região alvo, resultando assim um total de 74 respostas elegíveis para análise deste estudo.
Na tentativa de ampliar a amostra, o convite de participação da pesquisa foi encaminhado três vezes aos gestores dos 33 municípios. Além disso, foi solicitado aos gestores da região a divulgação da pesquisa via e-mail e whatsapp para os enfermeiros da região. Foi prestada também uma entrevista à TV da cidade para divulgação do estudo. A entrevista presencial não foi recomendada pelo comitê de ética pelo fato do estudo ter sido realizado em período de pandemia.
As variáveis deste estudo foram a prevalência de COVID-19 e prevalência de sintomas pós-infeção em profissionais de enfermagem, a partir das variáveis: teste para COVID-19 (não; sim periodicamente; sim - por exposição; sim - quando apresenta sintomas); resultado positivo (não; sim em uma ocasião; sim - em ocasiões diferentes); sintomas pós-infeção COVID-19 (sim; não); se sim, quais (resposta aberta).
Foram coletadas também variáveis de exposição: sexo (masc; fem); idade em anos (contínua); cor da pele (branca; parda; negra; amarela; indígena); situação conjugal (com e sem companheiro); profissão atual (enfermeiro; técnico; auxiliar de enfermagem); área de trabalho (zona urbana; semi-urbana; rural); tempo de experiência na enfermagem em anos (contínua); se fuma ou já fumou (sim; não); diagnóstico médico de algum problema de saúde (sim; não), se sim, tipos (múltipla escolha - distúrbio cardiovascular, respiratório, osteomuscular, mental, renal, e/ou endócrino); uso de medicação (sim; não), se sim, se é prescrição médica (sim; não). Para fins de análise, a variável idade foi categorizada utilizando ponto de corte 40 anos, sendo que a idade mínima foi de 25 e a máxima de 60 anos. A variável tempo de experiência de trabalho também foi categorizada utilizando ponto de corte de 5 anos, considerando ser um tempo interessante para conhecer o serviço e as necessidades de saúde da população.
Os dados foram recolhidos no período de abril a julho de 2022 por meio de um formulário único e eletrónico, estruturado, pré-codificado e autoaplicável, construído por investigadores do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e posteriormente adaptado por investigadores da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões Campus de Erechim (URI Erechim). Para esta adaptação, foi realizado um teste piloto do questionário e após a sua análise observou-se a necessidade de ajustar e modificar algumas questões conforme realidade da região e período de pandemia.
O formulário eletrónico foi enviado através da representante da região de saúde aos profissionais de enfermagem da APS. Os dados recolhidos foram introduzidos em Excel, codificados e posteriormente analisados no mesmo programa. Foi realizada análise descritiva das variáveis, incluindo cálculos de prevalência para as variáveis categóricas ordinais e nominais; e média, mediana e desvio-padrão para as variáveis numéricas contínuas e discretas. Foi feita análise descritiva e utilizado o teste qui-quadrado para comparação de proporções, considerou-se como valor de significância estatística p < 0,05. A análise dos dados foi realizada no programa estatístico Stata, versão 14.0.
A pesquisa foi submetida à Comissão de Ética da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI Erechim e aprovada com parecer nº 4.607.988 e CAAE 44631321.5.1001.5351, em abril de 2021.
Resultados
Do total das pessoas que responderam ao questionário online, 96% eram mulheres, com média de idade em anos foi de 39,5 (DP = 8,0), 87,8% cor da pele branca, 51,4% atuavam como auxiliar ou técnico de enfermagem e 48,6% eram enfermeiros, 76,4% atuavam em serviços de APS na zona urbana e 85,1% possuíam seis ou mais anos de trabalho.
Quanto ao perfil de saúde, 86,3% não fuma ou nunca fumou, 36,5% possuía diagnóstico médico de algum problema de saúde. Destes, 40,7% possuíam diagnóstico de distúrbio cardiovascular, 37,0% distúrbio endócrino, 29,6% distúrbio mental, 11,1% distúrbio respiratório, 14,8% distúrbio osteomuscular, 3,7% cancro/tumor, 3,7% problema renal e 3,7% distúrbio imunológico. Destes profissionais, 56,8% fazia uso de medicação e todos os medicamentos sob prescrição médica (Tabela 1).
Durante a pandemia, 60,8% dos profissionais foram testados para COVID-19 somente quando apresentavam sintomas, 43,8% (n = 32) testaram positivo apenas numa ocasião e 16,4% (n = 12) em ocasiões diferentes (reinfeção). Tal como apresentado na Tabela 2, na análise de associação verificou-se que a prevalência de resultados positivos para teste de COVID-19 foi significativamente maior entre as mulheres (p = 0,029) e entre os profissionais que fazem uso de medicação contínua para alguma morbidade (p = 0,023).
Variáveis | n(%) |
Sexo | |
Masculino | 3(4,0) |
Feminino | 71(96,0) |
Total | 74(100,0) |
Faixa Etária | |
18-39 | 42(56,8) |
40-60 | 32(43,2) |
Total | 74(100,0) |
Cor Pele | |
Branca | 65(87,8) |
Parda | 9(12,2) |
Total | 74(100,0) |
Profissão | |
Aux./Téc. Enfermagem | 38(51,4) |
Enfermeiro (a) | 36(48,6) |
Total | 74(100,0) |
Área de Trabalho | |
Zona Urbana | 55(76,4) |
Zona semi-urbana e rural | 17(23,6) |
Total | 72(100,0) |
Missings | 2 |
Tempo Experiência de Trabalho | |
0 a 5 anos | 11(14,9) |
6 anos ou mais | 63(85,1) |
Total | 74(100,0) |
Fuma ou Já fumou | |
Sim | 10(13.7) |
Não | 63(86,3) |
Total | 73(100,0) |
Missings | 1 |
Diag. Médico Morbidades | |
Sim | 47(63,5) |
Não | 27(36,5) |
Total | 74(100,0) |
Medicação Contínua | |
Sim | 32(43,2) |
Não | 42(56,8) |
Total | 74(100,0) |
Teste para covi-19 no serviço | |
Não | 12(16,2) |
Sim periodicamente | 7(9,5) |
Sim - por exposição | 10(13,5) |
Sim - por sintomas | 45(60,8) |
Total | 74(100,0) |
Positivo para covid-19 | |
Não | 29(39,7) |
Uma ocasião | 32(43,8) |
Em ocasiões diferentes | 12(16,4) |
Total | 73(100,0) |
Missings | 1 |
Sintomas pós-infeção | |
Sim | 17(38,6) |
Não | 27(61,4) |
Total | 44(100,0) |
Entre os participantes, 38,6% (n = 17) referiram a presença de algum sintoma pós-COVID-19. A maioria dos participantes destacou a perda de memória ou dificuldade de concentração (58,8%), seguido de dores no corpo (23,5%), perda de olfato e/ou paladar (17,7%), fadiga (17,7%), queda de cabelo (11,8%), entre outros (Figura 1). Na análise de fatores associados aos sintomas pós-COVID, verificou-se que a prevalência foi significativamente maior entre os profissionais de enfermagem com diagnóstico médico de alguma morbidade (p = 0,022; Tabela 2).
COVID-19 (n.73) | Sintomas Pós-Infeção (n.44) | ||||
Variáveis | X 2 | p | X 2 | p | |
Sexo | 0,029 | ----- | |||
Masculino | 33,3 | 0,0 | |||
Feminino | 62,0 | 38,6 | |||
Faixa Etária | 0,302 | 0,074 | |||
18-39 | 54,8 | 26,1 | |||
40-60 | 67,7 | 52,4 | |||
Cor Pele | 0,875 | 0.947 | |||
Branca | 60,9 | 38,5 | |||
Parda | 55,6 | 40,0 | |||
Profissão | 0,988 | 0.353 | |||
Aux./Téc. Enfermagem | 59,5 | 45,5 | |||
Enfermeiro (a) | 61,1 | 31,8 | |||
Área de Trabalho | 0,104 | 0.430 | |||
Zona Urbana | 65,5 | 33,3 | |||
Zona semi-urbana e rural | 37,5 | 50,0 | |||
Tempo Experiência de Trabalho | 0,436 | 0.942 | |||
0 a 5 anos | 72,7 | 37,5 | |||
6 anos ou mais | 58,1 | 38,9 | |||
Fuma ou Já fumou | 0,547 | 0,844 | |||
Sim | 70,0 | 42,9 | |||
Não | 58,1 | 38,9 | |||
Diag. Médico Morbidades | 0,217 | 0,022 | |||
Sim | 70,4 | 57,9 | |||
Não | 54,4 | 24,0 | |||
Medicação Contínua | 0,023 | 0,109 | |||
Sim | 71,4 | 46,7 | |||
Não | 45,2 | 21,4 |
Nota. X 2 = Teste qui-quadrado.
Discussão
Os profissionais de enfermagem estão na linha de frente do cuidado e, portanto, foram mais suscetíveis à infeção. Várias evidências indicam níveis de exposição e contaminação em grau elevado de profissionais de saúde por COVID-19 (Teixeira et al., 2020). Conforme levantamento realizado pelo COFEN e do Conselho Internacional de Enfermagem (ICN) no mês de junho de 2020, dentre as mortes por COVID-19 entre os profissionais de enfermagem, a maioria foi do sexo feminino, jovens, com maior proporção na faixa etária de 40 a 60 anos, com alguma condição de saúde e que não deveriam ter convívio com casos suspeitos de COVID-19 (COFEN, 2020).
Mais de um terço dos participantes do estudo apresentaram alguma morbidade e na sua grande maioria patologias crónicas - ou patologias pertencentes ao grupo de risco para a COVID-19. Muitos dos profissionais de enfermagem referiram principalmente problemas cardiovasculares, endócrinos, mentais, respiratórios e imunológicos. Destes, mais de metade faz uso de medicação sob prescrição médica. Estes resultados corroboram com as publicações do Ministério da Saúde, sobre condições e fatores de risco a serem considerados para possíveis complicações da COVID-19 (Brasil, 2023).
Destaca-se que, a recolha de dados deste estudo foi realizada em meados do ano de 2022. Neste sentido, vários problemas de saúde reportados pelos profissionais de enfermagem, podem ser consequência da pandemia ou de infeções pela COVID-19. Entretanto, somente um estudo longitudinal retrospetivo poderia confirmar esta relação de causa e efeito.
No que concerne aos testes para COVID-19, os resultados deste estudo evidenciam uma fragilidade dos serviços de saúde, quanto aos serviços de saúde disponíveis aos profissionais de enfermagem, quer quando estes não são testados, quer quando são testados em caso de sintomatologia. De acordo com a OMS, a maioria dos indivíduos com COVID-19 podem ser assintomáticos (OMS, 2023). Mesmo assim, a transmissão para colegas, familiares e utentes do serviço é possível.
Os profissionais de saúde são um grupo de risco para a COVID-19 por estarem expostos diretamente às pessoas que testaram positivo, recebendo uma alta carga viral (Teixeira et al., 2020). Além disso, as reinfeções podem estar relacionadas ao contacto direto com a pessoa, muitas vezes em situação grave, e em condições de trabalho frequentemente inadequadas (Teixeira et al., 2020). Destaca-se ainda que, as reinfeções entre os profissionais de enfermagem podem estar relacionadas com a pouca adesão às recomendações de segurança pessoal. Não há literatura que comprove esta afirmação, mas sabe-se que profissionais expostos ao stress ocupacional, exaustão física e mental, desgaste e sofrimento psicológico, podem desenvolver défice de atenção (Huang et al, 2020; Tamborini et al, 2023).
Estes resultados evidenciam que a imunidade ativa natural que ocorre pela infeção não existe no caso da COVID-19, ou se existe, ocorre por um período de tempo muito curto. Conforme a OMS (2020b), alcançar a imunidade da população com vacinas seguras e eficazes, e não pela infeção, torna a doença mais rara e salva-vidas. Expor a população ao vírus da COVID-19 com intuito de alcançar a “imunidade de grupo populacional” é uma atitude cientificamente problemática e antiética. Deixar a COVID-19 propagar-se pelas populações, de qualquer idade ou estado de saúde, levou às infeções desnecessárias, sofrimento e muitas mortes (OMS, 2020b).
Entre os sintomas pós-COVID-19 identificados entre os profissionais de enfermagem, destaca-se que quase 60% apresentou perda de memória ou dificuldade de concentração, tal como reportado numa revisão recente (Lopes et al, 2023). Um estudo experimental recente evidenciou que a disfunção da memória é um resultado tardio da exposição cerebral à proteína spike do coronavirus 2 (SARS-CoV-2), que é libertada pelas células durante a infeção, atingindo o sistema nervoso central (Fontes-Dantas et al, 2023).
Outros sintomas pós-COVID reportados pelos participantes foram dores no corpo, perda de olfato e/ou paladar, fadiga, queda de cabelo, entre outros como ansiedade, deficiência de vitaminas, bronquiolite, tosse, insónia e refluxo gástrico. Na Itália, um estudo com pessoas recuperadas da infeção após hospitalização por COVID-19, identificou que 87,4% dos casos, independentemente da idade, apresentou persistência de pelo menos um sintoma pós-COVID-19, sendo os mais frequentes a fadiga e a dispneia (Nogueira et al., 2021). Um estudo de coorte realizado no hospital Jin-in-Tan da China, observou que, nos pacientes pós-infeção da COVID-19, algumas sequelas comuns foram: fadiga, dificuldade de sono, ansiedade, depressão e, em casos mais graves, função pulmonar prejudicada, e queda de cabelo (Perfoll et al, 2022).
A pandemia não só impactou na organização dos serviços de saúde, mas também a saúde física e mental dos profissionais, especialmente aqueles que prestavam cuidados na linha de frente. Devido à natureza e às condições de trabalho às quais os enfermeiros estão submetidos, Silva e Araújo (2021) evidenciaram que há fragilidades e vulnerabilidades de diversas fontes, que consequentemente geram sentimentos negativos, alterações psicológicas, e desgastes físicos e mentais. Noutro estudo (Dantas, 2021), os resultados evidenciaram que, no cotidiano, os profissionais de saúde experienciam o desgaste emocional por conviver com fatores stressantes, relacionados com o ambiente de trabalho, e que estes se intensificam em momentos de epidemias e pandemias. O estresse mental e o adoecimento psicológico afeta o sistema cardiovascular, o sistema hormonal, o sistema metabólico, a saúde social, a memória, a cognição, o sono, insatisfação pessoal e as relações interpessoais, interferindo no desempenho do trabalho (Loures et al., 2002; Silva e Torres, 2020).
Tanto a prevalência de infeção por COVID-19, quanto a prevalência de sintomas pós-infeção foram maiores entre profissionais que relataram presença de morbidades e uso de medicação contínua para doenças crónicas. Segundo o estudo de Marziale et al (2022), a presença de comorbidades, como hipertensão arterial sistémica e obesidade nos profissionais de saúde da linha de frente, ofereceu maior risco de contágio para a COVID-19. De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (2024) as comorbidades crônicas provocam um estado inflamatório crônico, tornando a pessoa suscetível a outros quadros inflamatórios ou infeciosos mais graves e com complicações, como o que ocorre na COVID-19. Se considerar apenas o período inicial da pandemia, até maio de 2020, 72% dos óbitos por COVID-19 foram de pessoas com mais de 60 anos, sendo que 70% apresentava pelo menos um fator de risco, sendo os principais: diabetes, obesidade e hipertensão (Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, 2024). Uma das limitações desta investigação foi o tamanho da amostra, que reduziu o poder estatístico das análises e afetou a capacidade de identificar outras possíveis associações significativas. A amostra pequena dificultou a utilização de testes e análises mais rebuscadas. Este estudo foi realizado com financiamento próprio, o que dificultou o deslocamento para estar com os profissionais presencialmente. Em relação às morbidades, foi investigado se o diagnóstico ocorreu antes ou durante a pandemia, para tanto, uma relação definitiva de causa e efeito só poderá ser estabelecida por meio de estudo longitudinal. Além disso, trata-se de um estudo de uma região específica, e apesar de alguns destes resultados já terem sido apontadas na literatura, estes não podem ser generalizados.
Conclusão
Entre os profissionais de enfermagem da APS testados para COVID-19 durante a pandemia, quase metade apresentou resultado positivo numa única ocasião e uma proporção considerável em ocasiões diferentes (reinfeção). Quase um terço dos profissionais apresentou sintomas pós-infcção, com destaque para perda de memória, seguido de dores no corpo, perda de olfato e/ou paladar, fadiga e queda de cabelo. A prevalência de infeção por COVID-19 e sintomas pós-infeção foi maior entre os profissionais de enfermagem com diagnóstico médico de alguma morbidade e em uso de medicação contínua.
Os resultados oferecem subsídio para compreender as necessidades em saúde dos profissionais de enfermagem, destacando a importância de estratégias que procuram o cuidado da saúde do trabalhador. A pandemia e o seus impacto negativo na saúde física e mental repercutem nos dias atuais, em período pós-pandemia. Neste sentido, as ações para o acompanhamento dos profissionais de saúde precisam de ser pensadas. A fragilidade dos profissionais de saúde repercute na qualidade da prestação de cuidados. Sugerem-se estratégias que visem a minimização das sequelas e recuperação da saúde dos profissionais de enfermagem, como por exemplo, acompanhamento precoce em consulta com avaliação física e mental, programas de psicoestimulação para a recuperação da perda de memória, reabilitação específica e assistência psicológica.
Sugerem-se estudos longitudinais para comprovar relação de causa e efeito entre infeção por COVID-19, sintomas pós-infeção e as comorbidades. Além disso, são necessários estudos que evidenciam o impacto da pandemia na saúde mental dos profissionais de enfermagem. Por outro lado, os resultados contribuem para melhorar aspetos dos serviços de saúde e de gestão, para o combate a futuras crises sanitárias.