Introdução
O acolhimento em situações de violência detém um significado de grande valor para aqueles que recebem cuidados, apresentando um caráter multidimensional. A sua abrangência é reconhecida como um dos pilares fundamentais da Política Nacional de Humanização (PNH), orientado não apenas as formas de assistência e os aspetos físicos dos espaços de saúde, mas também a postura profissional, marcada pela ética, pela escuta qualificada, pela consideração das queixas, pelo empoderamento dos utentes no processo de saúde e doença, pela melhoria da qualificação profissional e, sobretudo, pelo trabalho em equipa (Gomes et al., 2011).
O acolhimento denota um posicionamento ético que não tem um momento exato de ser desenvolvido, está relacionado com a conduta profissional ou de um grupo que presta cuidados ao próximo, como os profissionais de saúde. Reconhecido como uma das etapas da linha de cuidados, ela foca não em uma postura empática, mas também no compromisso de aconchegar e abrigar crianças e adolescentes, objetivando prestar cuidados com resolutiva (Palheta et al., 2020).
No ambiente hospitalar, a violência também está presente, e para identificá-la, os profissionais de saúde precisam estar capacitados para reconhecer situações de maus-tratos durante sua rotina profissional. As situações de violência contra diferentes vítimas, em diversas faixas etárias, podem ser percebidas ou não diante de alguns quadros clínicos. Sinais como pequenas lesões, muitas vezes consideradas normais na infância, comportamentos diferenciados ou mesmo reações agressivas, podem indicar casos de violência, resultando sempre em prejuízos para as vítimas.
Crianças possuem um maior risco de sofrer violência, especialmente pela sua vulnerabilidade. Elas têm maior potencial em sofrerem danos à saúde; algumas vezes permanentes, com repercussões físicas, psicológicas e sociais por toda a vida. Nestas circunstâncias, a violência, pode ser considerada como sendo devida ao uso de força física ou a submissão ao poder, através de ameaça ou na prática. Pode ser perpetrada contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade. Como consequência, pode resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação (Martins-júnior et al., 2019; Maia et al., 2020).
No contexto infantil, utiliza-se o termo maus-tratos para se referir a agressões cometidas contra crianças e adolescentes, abrangendo tanto o âmbito familiar quanto institucional e os espaços sociais em geral. Considerado um problema de saúde pública mundial, de natureza multifatorial, os maus-tratos representam uma violação dos direitos humanos e envolvem aspetos sociais, culturais, económicos e políticos (Oliveira et al., 2022). Como consequência, a violência pode resultar em morte, impactos psicológicos, alterações no desenvolvimento e privação. Os maus-tratos podem ser classificados como: negligência, maus-tratos físicos, abuso sexual, maus-tratos psicológicos e/ou emocionais. Portanto, qualquer sinal ou sintoma apresentado por uma criança ou adolescente pode ser um alerta de que ela seja uma possível vítima dessas formas de violência (Marcolino et al., 2022).
Um aspeto relevante a ser considerado é que a condição socioeconómica baixa tem uma relação direta com casos de maus tratos. Entretanto, estudos mostram a ocorrência de casos em outras camadas sociais, desmistificando este espeto (Barcellos et al., 2021). Portanto, recomenda-se uma abordagem individualizada e aprofundada para os casos que se apresentam nos serviços de saúde (Júnior et al., 2015).
Neste contexto, dados estatísticos evidenciam que 300 milhões de crianças com idade de 2 e 4 anos sofrem com frequência violência física e psicológica pelos pais, ou seja, quase três em cada quatro crianças são alvo de violência no mundo (Riba & Zioni., 2022).
Um estudo epidemiológico (Barcellos et al., 2021) identificou que todos os casos de maus-tratos na infância, no período de 2009 a 2018, registraram o seu pico máximo de ocorrência em 2014. As vítimas mais comuns foram crianças com idades entre 1 e 4 anos, de origem branca, sendo a violência sexual a forma predominante, muitas vezes perpetrada pelos próprios pais.
Os resultados evidenciaram lacunas no preenchimento das notificações por parte dos profissionais, afetando desta forma o sistema de registo.
Nos espaços terapêuticos de acolhimento desta população, é obrigatória a notificação por parte dos profissionais da saúde, em casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos infantis (Santos et al., 2019).
A obrigatoriedade da notificação foi instaurada no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2001. O objetivo era implementar um instrumento único de notificação dos casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos infantis. Embora os profissionais de saúde saibam que as crianças detêm direitos previstos na Constituição Brasileira, a garantia destes ainda é um grande desafio (Veloso et al., 2017).
Inegavelmente, ainda persiste uma predominância do modelo de assistência focado na problemática da criança nos casos de maus-tratos, sem que sejam consideradas as questões familiares, socioeconómicas, políticas e culturais. A não adoção de um modelo de assistência multidimensional pode ser prejudicial, uma vez que não se levam em consideração aspetos mais amplos que compõem o ser humano. Ainda que exista um espaço físico e organizado para o acolhimento destas crianças, a prática não ocorre de maneira eficaz. Portanto, avançar desde o acolhimento, identificação dos sinais e sintomas e notificação é crucial para obter um diagnóstico real da situação (Marcolino et al., 2022).
Neste sentido, este estudo teve como objetivo descrever o conhecimento e a prática dos profissionais de saúde no atendimento de crianças em situação de maus-tratos sob a ótica do acolhimento.
Enquadramento
O profissional de saúde precisa compreender que o acolhimento é uma estratégia de cuidado para crianças em situação de maus-tratos. É necessária uma interpretação mais ampla, incluindo a organização de um espaço físico com salas privativas, uma equipa qualificada e um atendimento sensível, com uma abordagem mais acessível a essas crianças (Marcolino et al., 2022; Marques et al., 2022).
A negligência é considerada como uma forma de maus-tratos, e muitas vezes, não é percebida pela população e até mesmo pelos profissionais de saúde. Apresenta um aspeto particular, pois está relacionada com a falta de cuidados com a criança que pode causar danos irreversíveis para a vítima e para os membros da família (Macedo et al., 2020). Desse modo, entende-se por negligência atos voluntários dos pais, ou desconhecimento de cuidados com a criança (Simões et al., 2021).
Estudos revelam que os maus-tratos acrianças são frequentemente tolerados socialmente, devido à influência de costumes populares e por se tratarem de um fenómeno sociocultural e multifatorial (Barcellos et al., 2021). Os profissionais de saúde podem apresentar dificuldades em identificar casos de maus-tratos no público infantil, interferido assim, na notificação e impactando nos dados epidemiológicos.
A investigação do histórico de abuso, o conhecimento da criança e da sua família para um diagnóstico preciso, e o medo de possível punição que a criança possa vir a sofrer, são os pilares das dúvidas que os profissionais enfrentam perante esta temática (Martins-Júnior et al., 2019). Além disso, a literatura aponta que a desinformação, o preconceito, o receio de se envolver em obrigações legais e a negação são fatores que podem interferir na prática dos cuidados prestados pelos profissionais de saúde em casos de maus-tratos infantis (Veloso et al., 2017).
Desta forma, este estudo consolida-se no conceito de acolhimento entendido como um dos alicerces da linha de cuidado, essencial no ambiente hospitalar, conforme apolítica do SUS.
Questão de investigação
Qual conhecimento e a prática dos profissionais de saúde do ambiente hospitalar no que tange os maus-tratos infantis?
Metodologia
O estudo foi desenvolvido como parte de um projeto de pesquisa aprovado pela Universidade Federal Fluminense, intitulado “Criança em situação de maus-tratos: Conhecimento e prática dos profissionais de saúde”, com o parecer 4.048.428 e CAAE: 29159119.0.0000.5243. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória. O cenário escolhido foi um Hospital Municipal localizado na Baixada Litorânea do Estado do Rio de Janeiro, na cidade de Rio das Ostras. Este hospital municipal oferece serviços de emergência e internação pediátrica pelo SUS.
Inicialmente, o serviço contava com 32 profissionais, quatro estavam de férias, todos os 28 profissionais foram convidados, cinco recusaram a participar, restando um total de 23 participantes que prestavam cuidados aos serviços de emergência e internamento pediátrica hospitalar. Os critérios de inclusão foram: ser profissional de saúde no setor de emergência e/ou internamento pediátrico e estar em atividade profissional no período da colheita de dados. Os critérios de exclusão foram aplicados aos profissionais que não se sentiam confortáveis para falar sobre maus-tratos na infância e aqueles que não tivessem atendido nenhuma criança em situação de maus-tratos/violência. Os participantes foram previamente convidados a participar do estudo e as entrevistas foram agendadas conforme a disponibilidade do profissional, e todos compareceram. Os profissionais foram identificados através das suas respetivas profissões, seguidas do número da sequência da entrevista: Enfermeiro, Psicólogo, Nutricionista (Assistente Social 4; E1, P2, N3, AS4).
A técnica da colheita de dados utilizada foi a entrevista não diretiva individual (Minayo, 2014), conduzidas pela pesquisadora e académica, em sala reservada. Foram realizadas duas entrevistas piloto, que validaram os temas da entrevista não diretiva individual, estas foram transcritas e avaliadas e incluídas no estudo. As entrevistas foram realizadas através de gravação de áudio sem necessidade de qualquer ajuste, com duração média de 7 minutos. Todos os participantes receberam um termo de consentimento esclarecido, o qual evidenciou a explicação da pesquisa. Todos eles assinaram, consentindo a gravação da entrevista. O limite de entrevistados foi determinado pelo ponto de saturação dos dados. As transcrições dos áudios foram apresentadas aos participantes sem necessidade de correções, bem como os resultados do estudo.
O formulário foi dividido em duas etapas, sendo a primeira etapa com dados socioeconómicos relacionados com a formação profissional e a capacitação na área de violência. A segunda etapa foi a entrevista não-diretiva individual, com os seguintes temas: maus-tratos em crianças; atendimento no hospital de casos de violência; prática de cuidado dos profissionais de saúde e rotina de atendimento de casos de maus-tratos contra a criança. Os temas foram elaborados a partir do levantamento bibliográfico. A colheita de dados foi realizada no período de setembro a dezembro de 2022, em ambiente hospitalar no setor pediátrico. Não houve a presença de outras pessoas no momento da entrevista.
A análise temática foi o método selecionado para a análise dos dados. Seguindo o modelo proposto por Minayo (2014), o processo de análise temática foi dividido em três etapas: a) Pré-análise, onde os documentos foram selecionados e relacionados com as hipóteses e objetivos da pesquisa. b) Na exploração do material, procurou-se compreender o texto através da codificação, identificando expressões ou palavras significativas. c) No tratamento dos resultados e interpretação, foram acrescentadas as opiniões do investigador e interpretações embasadas no conteúdo teórico. Utilizando a técnica de Colorimetria, foram identificados 27 temas, os quais foram agrupados em unidades temáticas para a construção do capítulo de análise.
Resultados
O estudo contou com 23 profissionais de saúde, com participação de nove enfermeiros (39%), quatro técnicos de enfermagem (17%), seis médicos (26%), uma assistente social (1%), uma psicóloga (4%), uma nutricionista (4%) e um fisioterapeuta (4%). Houve a predominância do sexo feminino, totalizando 21 mulheres (84%) entrevistadas. A idade dos participantes foi uma média de 38 anos. O tempo médio de formação profissional foi de 16 anos. Dentre os 23 participantes, 17 não haviam realizado cursos de capacitação em maus-tratos infantis. Durante as entrevistas, cada profissional de saúde relatou, em média, ter atendido cerca de 10 casos de maus-tratos. Foi observado que muitos profissionais basearam suas definições de maus-tratos em conhecimentos prévios durante as entrevistas. As categorias originaram-se de 26 unidades temáticas, tais como: Conhecimento do profissional em relação a violência, Insegurança do conhecimento/(des)conhecimento do cuidado, Rotina de atendimento, Tipos de violências atendidas, Dificuldade profissional, deram origem a primeira categoria: 1. (Des)conhecimento profissional diante da suspeita e confirmação dos casos de maus-tratos na criança.
O segundo agrupamento abordou o cuidado da criança, sinais e sintomas de violência na criança, formas de violência, perfil da vítima, suspeita de violência, responsável pela violência, perfil do abusador, reação emocional da criança, reação familiar diante da suspeita. Essas unidades temáticas deram origem à segunda categoria: O atendimento prático no ambiente hospitalar: Tipos de maus-tratos à criança.
O terceiro agrupamento incluiu os sentimentos dos profissionais, ação profissional frente a violência, reação emocional dos profissionais, formas de violência, organização familiar, vigilância na comunidade, equipa multidisciplinar, guarda da criança, frequência de casos, conduta multiprofissional além do hospital. Estas unidades temáticas deram origem a terceira categoria: O acolhimento: cuidado profissional no ambiente hospitalar.
(Des)conhecimento profissional diante da suspeita e confirmação dos casos de maus tratos na criança: Os participantes abordam o conhecimento que os profissionais desenvolveram na identificação dos casos de maus-tratos a crianças. “vai de contra aos princípios, da integridade física, mental, psicológica e que isso possa levar consequências psicossomáticas para criança. Então eu considero a violência isso.” (P3)
“Ainda bem que a gente tem o Estatuto, porque a gente não conseguia identificar que violência psicológica, era uma violência . . . a gente amplia o leque da questão da violência e dos maus-tratos” (P7)
“A gente vai aprendendo só em olhar . . . não é uma coisa simples, de tudo que acontece em casa quando a criança cai” (P20)
Os participantes relataram que ao longo do tempo desenvolveram um entendimento mais amplo sobre violência e maus-tratos, adquirindo habilidades para identificar casos de maus-tratos em crianças. Quanto à categoria O atendimento prático no ambiente hospitalar: Tipos de maus-tratos à criança, esta abordou o atendimento profissional dos diferentes tipos de violência sofridos pelas crianças. “Teve fratura em três partes a perninha, ela era bebê”. (E2); “Os professores . . . conseguiram colocar a bermudinha nela e viram muitas marcas de cinto, muitas marcas de colher de pau, mão queimada . . . e nós questionamos a ela (mãe)”. (E14);
A violência não é só . . . tratar mal uma criança, mas você deixar de cuidar, deixar dedar o que ela precisa, não só . . . digo de medicação, mas de alimento, de ensino . . . negligenciar. (E21)
Os participantes relataram o atendimento de crianças em situação de maus-tratos com descrição detalhada de lesões físicas e de cuidados básicos, denotando negligência.
Destacou-se também a mãe como principal perpetradora dos maus-tratos à criança. O acolhimento: cuidado profissional no ambiente hospitalar. Essa categoria aborda o cuidado profissional e como acolhimento surge na forma de cuidado destas crianças em situação de maus-tratos.
“A gente não fica replicando sempre as mesmas perguntas, porque a gente entende que a criança sofre várias vezes . . . , mas a gente faz esse acolhimento” (A7);
“Aqui no hospital a gente faz essa acolhida . . . contribui para que aquela criança seja atendida . . . de modo integral” (A8); “Mas aqui a gente da enfermagem, do nosso setor a gente presta atendimento de enfermagem, acolhimento de enfermagem, as medicações. (E21)”
Os profissionais descreveram que oferecem acolhimento por meio dos cuidados prestados à criança, seguindo uma rotina necessária conforme exigido pelos casos. Foram mencionados cuidados, procedimentos e uma preocupação em preservar integralmente a criança, tanto física quanto emocionalmente.
Discussão
A violência tem vindo a consolidar-se como um problema de saúde pública. No Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial. Crianças e adolescentes, por estarem numa fase de desenvolvimento físico, psicológico e emocional, são mais vulneráveis e, consequentemente, apresentam um maior risco de se tornarem vítimas de violência. Observa-se um crescente número de casos de violência praticados contra este público. (Marques et al., 2021)
No ambiente hospitalar, para a equipa que presta cuidados no setor de pediatria, o sexo feminino foi o predominante entre os profissionais. A enfermagem é uma profissão que historicamente tem sido predominantemente ocupada por mulheres, e essa característica permanece até os dias de hoje. Sendo assim, estar diante de uma equipa cujos seus membros são, em sua maioria, femininos, torna-se compreensível entender o dia a dia das atividades que os profissionais exercem, caracterizado por apresentar maior habilidade e delicadeza na prestação de cuidados. Pode identificar-se essa habilidade nas palavras de um profissional de enfermagem, que demonstra preocupação em não replicar as perguntas sobre a situação vivenciada por uma criança que sofreu violência, evidenciando na prática uma estratégia de cuidado. (Andrade et al., 2022).
Quanto a capacitação profissional, identificou-se pouco preparação da equipe de saúde, com exceção de alguns profissionais de enfermagem. Estes procuraram a própria capacitação através de cursos à distância, congressos e seminários. No entanto, os profissionais de saúde demonstraram limitações no contexto do reconhecimento e manuseio da violência, bem como a implementação de uma abordagem integrada e intersectorial com outras equipas. Diante disto, é notável a fragilidade na formação profissional em relação aos maus-tratos, quando se trata da área da saúde. Deste modo, é fundamental criar estratégias na formação profissional e para as equipas de saúde implementando este tema na educação continuada, grupos de discussão em grupo, além de desenvolver mecanismos de suporte às equipas de saúde. É essencial focar na disponibilização de instrumentos eficazes para que estes atuem de forma efetiva na proteção das crianças (Santos et al., 2019).
Foi destacado o desenvolvimento de habilidades relacionado com o tempo de formação profissional e ao conhecimento sobre os direitos da criança. Então, prestar cuidados a este público requer conhecimento, habilidade e sensibilidade, um desafio para os profissionais de saúde, considerados peças indispensáveis na identificação de maus-tratos na infância.
Alguns estudos apontam que os profissionais de saúde apresentaram resistência em denunciar os casos de violência, por medo das consequências, falta de conhecimento e dúvidas quanto ao diagnóstico. Esta postura foi identificada num estudo desenvolvido no sertão de Pernambuco, o qual, aponta que existe medo dos profissionais em denunciar casos de violência (Martins-Júnior et al., 2019; Ribeiro et., 2021). Não se pode afirmar, mas a recusa dos profissionais em participar deste estudo pode estar relacionada com este medo.
A suspeita ou a confirmação de maus-tratos contra a criança e o adolescente é considerada mundialmente um dano contra a integridade física e mental do indivíduo, resultante de situações nocivas de agressões, maus-tratos e lesões decorrentes de atos violentos. A notificação é obrigatória, pois segundo a Portaria n.º 1.271/2014, a notificação compulsória deve ser realizada em todas as unidades de saúde de serviços públicos ou privados (Veloso et al., 2017).
A necessidade de identificar, relatar e encaminhar ao conselho tutelar, reforça a necessidade de notificação. No entanto, existe uma diferença da rotina de notificação, tanto para os casos de violência sexual quanto para a tentativa de suicídio, pois a partir da ocorrência, estes devem ser notificados semanalmente como casos de urgência, em relação aos demais tipos de violência. Apesar de ter sido destacada a falta de um fluxo de atendimento no ambiente hospitalar, cada região precisa realizar um fluxo de atendimento direcionando os casos identificados para o conselho tutelar, pois a centralização das notificações permite o desenvolvimento de atividades de proteção para a criança, interrupção do abuso e o desenvolvimento de medidas de assistência a estas crianças e aos seus familiares. Com a organização dos dados, estes auxiliam na avaliação da região em relação aos casos de violência e o direcionamento de investimentos públicos locais, regionais, municipais e estaduais (Conceição et al., 2020; Silva et al., 2019).
A negligência é apontada como a falta de provisão das necessidades básicas para o desenvolvimento social e emocional de crianças sob cuidados dos pais ou responsáveis. Na faixa etária infantil inferior ou igual a 5 anos, os principais responsáveis pelos maus-tratos são os pais, e a negligência é evidenciada como a primeira forma de maus-tratos. Ressalta-se que dentro das atitudes de pais que negligenciam os seus filhos estão a falta de cuidados de saúde, desleixo com a higiene pessoal, e até mesmo a falta de atenção em geral (Ferreira et al., 2019; Pedroso & Leite, 2023).
Um estudo aponta que a prevalência de casos de bebés que sofreram negligência dos pais, resulta do escasso conhecimento das necessidades que a criança precisa, e do próprio desconhecimento do conceito de negligência (Macedo et al., 2020). O estudo também apontou que mulheres são as maiores perpetradoras de maus-tratos, supostamente resultado da sobrecarga de trabalho, questões económicas e familiares (Simões et al., 2021).
Para os casos de agressões físicas e abusos sexuais, o comportamento profissional exige uma abordagem mais resolutiva e emergente, uma postura distinta em relação aos casos de negligência. Isto deve-se ao fato de que os casos de negligência nem sempre são reconhecidos como violência pelos profissionais de saúde e não geram tanto impacto na sociedade (Santos et al., 2019).Abordando os locais onde a violência pode ocorrer, a maioria dos estudos aponta a residência da criança como o local mais frequente, porém, outro espaço a ser considerado é a escola. Estas instituições desempenham um papel fundamental na identificação de maus-tratos, uma vez que fazem parte da rede de vigilância contra a violência dirigida a crianças e adolescentes (Ferreira et al., 2019). Uma das responsabilidades da escola é proteger a criança, identificando os envolvidos, acolhendo-os e encaminhando-os de forma articulada para os serviços responsáveis. Reforçando essa conduta, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA-1990) determina que instituições, sejam públicas ou privadas, que recebam crianças, mesmo que temporariamente, devem receber capacitação para identificar suspeitas e confirmar casos de maus-tratos, e comunicar esses casos ao Conselho Tutelar (Fontoura et al., 2021; Silva & Camargo, 2023).
Nesta mesma linha, é crucial que os profissionais de saúde detenham um amplo entendimento das políticas públicas que protegem as crianças e adolescentes, proporcionando um respaldo adequado em situações de maus-tratos. No entanto, esta questão foi pouco explorada pelo público entrevistado, remetendo para uma lacuna de conhecimento dos profissionais de saúde sobre as leis de proteção da criança e do adolescente (Veloso et al., 2017). Portanto, é necessário desenvolver ações educativas para divulgar atividades relacionadas com os direitos das crianças e adolescentes, visando preencher esta lacuna e fortalecer a capacidade dos profissionais de saúde em lidar com tais situações de forma eficaz.
No ambiente escolar, frente a casos de maus-tratos, é essencial implementar ações que promovam a autonomia e valorizem os indivíduos marginalizados em contextos de violência, garantindo assim os seus direitos (Campos & Urnau, 2021). Contudo, surge a questão sobre a existência de capacitação na área da educação que permita ao corpo docente e aos funcionários da escola identificar os sinais de maus-tratos e operacionalizar as medidas adequadas.
Sendo assim, autores apontam que a capacitação e a prática ainda são deficientes na formação profissional, influenciando em resultados insatisfatórios (Bisset al., 2015; Marques et al., 2022).
A adoção da linha de cuidados pela equipa de saúde, pode ser uma estratégia para atingir a integralidade. Apoiada em princípios organizativos do sistema único de saúde, possibilita produzir o cuidado desde atenção básica até aos níveis de complexidade de atenção (Barrenechea et al., 2020). Esta precisa adotar as etapas de acolhimento, atendimento, notificação, seguimento para proteção social e rede de cuidados. Os profissionais de saúde, ao acompanharem a criança e a sua família até à alta, desenvolvem uma prática singular. Estes necessitam acionar a rede de cuidados e proteção do território e instaurar o trabalho intersetorial de proteção às crianças em situação de violência (Costa & Tacsiy, 2020).
Sendo um dos pilares da linha de cuidados, o acolhimento está intrínseco no modo de falar e agir, uma conduta para traçar o cuidado, visto que esta prática é efetiva nos atendimentos e considerada como a primeira etapa para cuidar de crianças e adolescentes sob o contexto de violência (Rossato et al., 2018).
O acolhimento não está inserido em algo concreto sobre um local ou espaço, mas denota um posicionamento ético que não vai definir qual o momento certo do profissional em realizá-lo. Esta etapa da linha de cuidados concentra-se também na divisão de angústias, saberes e criatividade, traz consigo o compromisso de aconchegar e abriga a criança e adolescentes que chegam com as suas demandas, afim de resolver com responsabilidade cada situação apresentada (Marcolino et al., 2022; Palheta et al., 2020). Um dos impedimentos do acolhimento no ambiente hospitalar é um olhar centrado no problema. A atenção profissional fica voltada para um cuidado direcionado de urgência e emergência, não respeitando a integralidade do caso. Muitos serviços de emergência não identificam, não rastreiam ou não relatam situações de maus-tratos, uma vez que os profissionais não estão atentos para situações de maus tratos quando esta acontece. (Marcolino et al., 2022).
Os profissionais devem interagir diretamente e estabelecer métodos que facilitem a identificação, notificação e intervenção dentro das suas áreas de atuação, sempre em consonância com o SUS (Fassarella et al., 2020). Uma limitação do estudo é que foi realizado apenas numa região do Estado do Rio de Janeiro.
Conclusão
O estudo identificou que o conhecimento dos profissionais de saúde foi desenvolvido com a prática profissional, relacionado com a experiência dos atendimentos, o tempo de formação e a sensibilidade da equipa de saúde. O estudo apontou para um déficit capacitação entre os profissionais, salvo em alguns indivíduos que procuraram aprimoramento por iniciativa própria, como na equipa de enfermagem.
A dificuldade em identificar suspeitas ou confirmações de casos de maus-tratos à criança foi uma realidade na prática clínica hospitalar. No entanto, o grupo estudado conseguiu aplicar a primeira etapa do processo de acolhimento no ambiente hospitalar através de uma conduta profissional humanizada. Apesar da falta de um espaço físico privado dentro do ambiente hospitalar para diminuir o stresse e o sofrimento da criança, a equipe de saúde desenvolveu estratégias utilizando uma escuta sensível, o envolvimento e o conhecimento dos casos apresentados, proporcionando um cuidado individualizado para crianças e adolescentes. Ainda assim, é indispensável criar um espaço físico de acolhimento no ambiente hospitalar, pois a privacidade e o conforto são essenciais nos primeiros momentos de acolhimento e cuidado, ajudando a atenuar a violência vivenciada. Crianças menores são mais vulneráveis, no que tange aos sinais e sintomas de maus-tratos. Destaca-se uma maior visibilidade da negligência, por parte dos profissionais de saúde e população de um modo geral, considerada como um dos tipos de maus-tratos, reforçando a necessidade de notificação.
É importante destacar que o acolhimento não se deve restringir somente ao ambiente hospitalar, mas desenvolver uma articulação na esfera local, regional e municipal: precisa. Deve existir um fluxo de atendimento com encaminhamento dos casos identificados para o conselho tutelar, pois a centralização das notificações permite o desenvolvimento de atividades de proteção para a criança, interrupção do abuso e implementação de medidas de assistência para essas crianças e para as suas famílias.
Incentivar o treinamento e a capacitação dos profissionais de saúde sobre os sinais de maus-tratos, aliado à implementação de políticas públicas, pode auxiliar na estruturação e resolução desta problemática. É fundamental proteger e encorajar os profissionais de saúde na identificação dos casos de violência nas suas instituições de saúde pelos gestores. Foi identificada uma lacuna na produção científica sobre a prática profissional e maus-tratos infantis em ambiente hospitalar. Portanto, esses resultados apontam para a necessidade de uma maior investigação na área da criança e maus-tratos no ambiente hospitalar.