Introdução
As cirurgias da anca são habitualmente realizadas no contexto de doença degenerativa. Independentemente do tipo de técnica cirúrgica aplicada na artroplastia primaria da anca (ATA), as cirurgias de anca causam dor aguda pós-operatória (DAPO) significativa. A DAPO emerge como causa de morbilidade e mortalidade associada aos procedimentos cirúrgicos e quando inadequadamente controlada está associada a um comprometimento funcional e da qualidade de vida, a um atraso no tempo de recuperação, a uma duração prolongada do uso de opioides e a custos mais elevados com os cuidados de saúde (Gan, 2017). Além disso, a presença e a intensidade da dor aguda durante ou após a cirurgia são preditivas do desenvolvimento de dor crónica (Gan, 2017).
Apesar das orientações clínicas baseadas na evidência, o tratamento da DAPO permanece inadequado (Joshi et al., 2019). Como possíveis razões para o fracasso na abordagem da dor aguda incluem-se: o conjunto de recomendações publicadas apresentarem um carácter geral; as recomendações convencionais revêm predominantemente intervenções monoanalgésicas em comparação com placebo; e, para além disso, agrupam habitualmente diferentes procedimentos cirúrgicos, não considerando que estes têm características de dor variáveis, como a natureza da dor - somática ou visceral, a localização, intensidade e duração específica (Joshi et al., 2019).
O reconhecimento das limitações acima descritas levou à formação do grupo de trabalho denominado Procedure Specific Postoperative Pain Management (PROSPECT), que fornecem aos profissionais de saúde recomendações práticas e baseadas em evidências de forma a facilitar a tomada de decisão clínica em todas as etapas do período peri-operatório, de acordo com procedimentos cirúrgicos específicos (Joshi et al., 2019).
Uma organização estrutural eficiente no tratamento da dor é amplamente reconhecida como aspeto fundamental nos cuidados ao doente. Neste contexto, importa fortalecer a intervenção dos enfermeiros nos cuidados pós-operatórios e nas Unidades de Dor Aguda (UDA), em particular na avaliação da dor, na vigilância, ensino e implementação de protocolos em DAPO (Rawal, 2016).
O aumento recente do uso de técnicas de analgesia locorregional no controlo da DAPO em Portugal e a escassez de estudos publicados justificam a pertinência deste estudo. A finalidade deste estudo é contribuir para o conhecimento dos enfermeiros sobre as necessidades de cuidados de enfermagem à pessoa com dor, em particular dos que resultam da avaliação pós-operatória (intensidade da dor, efeitos adversos sistémicos e recurso a analgesia de resgate com opioides). Comparar a eficácia do bloqueio de nervo femoral e cutâneo lateral da coxa (BNF+CLC), bloqueio do grupo nervoso pericapsular e cutâneo lateral da coxa (PENG+CLC) e bloqueio da fáscia ilíaca (BFI) em doentes submetidos a ATA é o objetivo geral preconizado para este trabalho.
Enquadramento
A osteoartrose é uma das principais causas de dor e incapacidade funcional, com maior prevalência na população idosa dada a sua natureza degenerativa. O número de pessoas afetadas a nível mundial aumentou 48% entre 1990 e 2019 (Hunter et al., 2020). A cirurgia de substituição da articulação é a intervenção recomendada para recuperar a função e aliviar a dor nas articulações afetadas em pessoas que mantenham dor ou limitação na realização das atividades de vida diárias, após tentativa de tratamento conservador ou outros tratamentos cirúrgicos prévios, como se refere (Direção-Geral da Saúde [DGS], 2012).
Independentemente do tipo de técnica cirúrgica aplicada na ATA, estas cirurgias causam DAPO significativa, com grande potencial para um controlo inadequado e complicações adicionais. Sendo uma patologia com maior prevalência na população idosa, a analgesia convencional sistémica nem sempre corresponde à analgesia ideal, pelos efeitos adversos associados ao uso de opioides no pós-operatório, nomeadamente náuseas, vómitos, obstipação e outros (Girón-Arango et al., 2018; Ying et al., 2023).
Uma revisão recente confirmou que a DAPO continua a ser comum, pois cerca de 20% dos doentes sofrem de dor intensa nas primeiras 24 horas após a cirurgia, um número que se manteve praticamente inalterado nos últimos 30 anos (Small & Laycock, 2020). Os dados do Programa de Melhoria da Qualidade Peri-operatória do Reino Unido de 2021-2023 confirmam que continua a ser um problema significativo, pois 37% dos doentes referiram dor moderada e 18% referiram dor severa no local da cirurgia, nas 24 horas seguintes à cirurgia (Royal College of Anaesthetists, 2023).
O BNF e o BFI são técnicas analgésicas usadas no controlo DAPO na cirurgia da anca. Mais recentemente, Girón-Arango et al. (2018) descreveram o PENG que anestesia o nervo femoral, o nervo obturador e obturador acessório. Ao preservar os componentes motores da força muscular do quadríceps, esta técnica pode proporcionar melhor conservação da função motora. No estudo comparativo randomizado, duplo cego, unicêntrico de Lin et al. (2021) foi possível comparar a eficácia analgésica entre o bloqueio PENG e BNF. Os resultados demonstraram que o grupo de doentes que recebeu bloqueio PENG para controlo da DAPO experimentaram menos dor nas primeiras 4 horas após cirurgia, sem diferenças detetadas em ambos os grupos ao fim de 24 horas. A força do quadríceps foi mais preservada nos doentes do grupo PENG. Não foi possível avaliar as diferenças no consumo de opioides.
Com o objetivo de comparar os resultados do bloqueio PENG versus BFI em doentes submetidos a ATA, Ying et el. (2023) elaboraram uma revisão sistemática e metanálise que demonstrou não existirem diferenças nos scores de intensidade de dor às 24 horas. No entanto, o consumo global de analgésicos em 24 horas foi significativamente menor com o uso de bloqueio PENG. Dos escassos dados obtidos, não foram encontradas diferenças sobre os efeitos adversos relacionados com o usos de opioides, como náuseas e vómitos, em ambos os grupos. Os investigadores concluem que a qualidade das evidências sugere que o bloqueio PENG pode resultar em melhor analgesia do que o bloqueio BFI. Os dados sobre a atividade motora e as complicações associadas não permitiram retirar conclusões.
O grupo PROSPECT publicou em 2021 o conjunto de recomendações para a gestão da DAPO após ATA, preconizando que o BFI ou a analgesia por infiltração local são recomendadas, especialmente se houver contraindicações para os analgésicos de base e/ou em doentes com elevada expectativa de dor no pós-operatório. O recurso ao BNF (risco de aumento do grau de bloqueio motor), bloqueio do plexo lombar e a administração de gabapentinóides não são recomendados, uma vez que os efeitos adversos ultrapassam os benefícios (Anger et al., 2021). As técnicas cirúrgicas e anestésicas parecem ter um impacto menor na DAPO, ainda que a realização de anestesia espinal seja recomendada pela associação a melhores resultados pós-operatórios, em comparação com a anestesia geral. Porém, os estudos em relação aos seus benefícios sobre o DAPO permanecem inconclusivos, pelo que a sua escolha deve basear-se noutros critérios que não a dor (Anger et al., 2021).
Questão de investigação
Como se caracteriza o nível de intensidade de dor dos doentes submetidos a ATA com técnicas de bloqueio de nervo periférico? Quais os efeitos adversos no uso de técnicas de bloqueio de nervo periférico em doentes submetidos a ATA? Como se caracteriza o recurso à analgesia de resgate com opioides? Existem diferenças dos níveis de intensidade de dor dos doentes submetidos a ATA em função do tipo de bloqueio (BNF+CLC; PENG+CLC e BFI)? Existem diferenças nos efeitos adversos dos doentes submetidos a ATA em função do tipo de bloqueio (BNF+CLC; PENG+CLC e BFI)?
Metodologia
Estudo analítico-correlacional e retrospetivo. Foram incluídos os doentes seguidos na UDA de um hospital do norte de Portugal, submetidos a ATA e técnicas de bloqueio de nervo periférico para controlo da DAPO, no período entre 01 de janeiro de 2013 e 15 outubro de 2023. A seleção dos participantes foi obtida por amostragem não probabilística por conveniência. Critérios de inclusão: idade superior a 18 anos; ambos os sexos; cirurgia sob anestesia subaracnoídea; doentes sem alterações neuro-cognitivas; e sem registos incompletos. Os dados foram obtidos a partir de uma base de registos clínicos da UDA em formato Microsoft Excel, da responsabilidade do serviço de anestesiologia. Esta base constituiu-se como o instrumento de recolha de dados deste estudo. Os dados extraídos incluíram: idade (classes etárias); sexo (feminino/masculino); níveis de intensidade de dor em repouso e em movimento (Escala Descritiva Verbal: 0 - sem dor; 1 - dor ligeira; 2 - dor moderada; 3 - dor intensa; 4 - dor insuportável); níveis de bloqueio motor (Escala de Bromage: M1 - sem bloqueio; M2 - ligeira diminuição força muscular; M3 - acentuada diminuição da força muscular; M4 - bloqueio completo); níveis de bloqueio sensitivo (Níveis adotados pela equipa: S1 - sem parestesias; S2 - parestesias em pequena área; S3 - parestesias em todo o membro); utilização de analgesia de resgate (sim/não); presença de efeitos adversos sistémicos (sim/não); e técnica de bloqueio de nervo periférico utilizada (BNF + CLC; PENG+CLC; BFI). Os dados recolhidos resultam da avaliação efetuada pelos enfermeiros da UDA nas primeiras 24 horas após procedimento cirúrgico, exceto os dados sociodemográficos e identificação da técnica de analgesia regional que resultam dos registos iniciais de toda a equipa. Estes dados foram extraídos no mês de outubro de 2023, pelo primeiro autor deste artigo, após autorização da Direção do Serviço de Anestesiologia. A fiabilidade do processo é assegurada pelo tamanho da amostra, pela descrição detalhada do procedimento de recolha de dados e pela confirmação do processo por um segundo investigador (segundo autor do artigo). O estudo foi desenvolvido de acordo com a evidencia científica atual e obteve o parecer favorável n.o 169/2023 do Conselho de Administração da instituição e da Comissão de Ética do Hospital onde foi realizado.
Os dados foram exportados e analisados utilizando o Python Programming Language (versão 3.12). Para a descrição estatística foram utilizadas as frequências absolutas e relativas. A natureza discreta e não contínua das variáveis categóricas e ordinais utilizadas neste estudo, assim como os pressupostos subjacentes aos testes de normalidade permitem considerar não ser apropriado ou relevante a aplicação dos testes de normalidade. Deste modo, para determinar se existiam diferenças estatisticamente significativas entre os grupos foi utilizado o teste não paramétrico Teste U Mann- Whitney (U), escolhido devido à sua capacidade de comparar grupos independentes quando os dados não seguem uma distribuição normal, precedido do teste Qui-quadrado para verificar as diferenças com todos os grupos. Um nível de significância de p < 0,05 foi adotado para todas as análises.
Resultados
No estudo foram incluídos os registos relativos a 994 doentes, maioritariamente mulheres (53,0%) e situados no intervalo entre os 60 e os 79 anos de idade (60,2%). A técnica de BNF+CLC foi utilizada com maior frequência (77,5%), seguida por uma ampla distância da PENG+CLC (14,4%) e BFI (8,1%). Depois das 24 horas, foram prescritas pelos enfermeiros reavaliações em 12,7% do total de doentes, os principais motivos foram a presença de dor moderada a intensa ou efeitos adversos.
Na avaliação da intensidade da dor em repouso, a maioria dos doentes referiu estar sem dor (82,7%), mas em movimento a maioria dos doentes referiu dor ligeira (55,2%). Na avaliação em movimento, existem 17,6% de doentes que referiram sentir pelo menos dor moderada (Tabela 1).
Tabela 1 : Caracterização do nível de intensidade de dor, em repouso e movimento, nas primeiras 24h (n = 994)
Em repouso | Em movimento | ||||
n | % | n | % | ||
Sem dor | 822 | 82,7 | 270 | 27,2 | |
Dor ligeira | 148 | 14,9 | 549 | 55,2 | |
Dor moderada | 21 | 2,1 | 156 | 15,7 | |
Dor intensa | 3 | 0,3 | 18 | 1,8 | |
Dor insuportável | 0 | 0,0 | 1 | 0,1 |
Nota. n = Frequência; % = Percentagem.
A maioria dos doentes não referiu efeitos adversos associados às técnicas de bloqueio quando avaliado nas primeiras 24 horas após ATA. Dos reduzidos efeitos adversos, os mais frequentes foram o bloqueio sensitivo com parestesias em pequena área (13%), seguido do bloqueio motor com ligeira diminuição da força muscular (4,9%). As náuseas e vómitos foram os efeitos sistémicos mais frequentes (3,5%; Tabela 2).
Tabela 2 : Caracterização dos efeitos adversos, nas primeiras 24h (n = 994 )
Efeitos adversos | n | % | |
Bloqueio motor | M1 - sem bloqueio | 945 | 95,1 |
M2 - ligeira diminuição força muscular | 49 | 4,9 | |
M3 - acentuada diminuição força muscular | 0 | 0,0 | |
M4 - bloqueio completo | 0 | 0,0 | |
Bloqueio sensitivo | S1- sem parestesias | 864 | 86,9 |
S2 - parestesias em pequena área | 129 | 13,0 | |
S3 - parestesias em todo o membro | 1 | 0,1 | |
Efeitos sistémicos | Sem efeitos | 955 | 96,1 |
Náuseas/vómitos | 35 | 3,5 | |
Hipotensão | 2 | 0,2 | |
Tontura | 1 | 0,1 | |
Outro | 1 | 0,1 |
Nota. n = Frequência; % = Percentagem.
A analgesia de resgate com opioides foi utilizada numa pequena percentagem dos doentes (7,8%).
Na Tabela 3 apresentam-se os resultados relativos à distribuição dos doentes de acordo com os diferentes níveis de intensidade de dor em função das técnicas de bloqueio utilizadas.
Tabela 3 : Nível de intensidade da dor, em repouso (R) e movimento (M), em função das técnicas de bloqueio de nervo periférico (n = 994)
Níveis Intensidade de Dor | BNF+CLC 1 (n = 770) | PENG+CLC 2 (n = 143) | BFI 3 (n = 81) | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |||
Dor em repouso | R0 - sem dor | 641 | 83,2 | 112 | 78,3 | 69 | 85,2 | |
R1 - dor ligeira | 110 | 14,3 | 28 | 19,6 | 10 | 12,3 | ||
R2 - dor moderada | 16 | 2,1 | 3 | 2,1 | 2 | 2,5 | ||
R3 - dor intensa | 3 | 0,4 | 0 | 0,0 | 0 | 0,0 | ||
R4 - dor insuportável | 0 | 0,0 | 0 | 0,0 | 0 | 0,0 | ||
Dor em Movimento | M0 - sem dor | 213 | 27,7 | 41 | 28,7 | 16 | 19,8 | |
M1 - dor ligeira | 419 | 54,4 | 74 | 51,7 | 56 | 69,1 | ||
M2 - dor moderada | 123 | 16,0 | 25 | 17,5 | 8 | 9,9 | ||
M3 - dor intensa | 14 | 1,8 | 3 | 2,1 | 1 | 1,2 | ||
M4 - dor insuportável | 1 | 0,1 | 0 | 0,0 | 0 | 0,0 |
Nota. n = Frequência; % = Percentagem; BNF+CLC - bloqueio nervo femoral + cutâneo lateral da coxa; 2 PENG+CLC - bloqueio do grupo nervoso pericapsular + cutâneo lateral da coxa; 3 BFI - bloqueio da fáscia ilíaca.
Na resposta à questão “Existem diferenças dos níveis de intensidade de dor dos doentes submetidos a ATA em função do tipo de bloqueio?”, foi efetuado inicialmente o teste Qui-quadrado, mas este não revelou diferenças estatisticamente significativas (em repouso (2 = 3,999746, p = 0,676; em movimento (2 = 7,65138, p = 0,468). Ainda assim, tendo em conta os valores obtidos, foi efetuado o teste U Mann-Whitney que também não revelou diferenças estatisticamente significativas entre o nível de intensidade da dor, em repouso ou movimento, e as diferentes técnicas de bloqueio de nervo periférico utilizadas (Tabela 4).
Tabela 4 : Comparação entre níveis de intensidade de dor e técnicas de bloqueio de nervo periférico
Técnicas de bloqueio | Em repouso | Em movimento | |||
Teste U Mann- Whitney (U) | p | Teste U Mann- Whitney (U) | p | ||
(BNF+CLC) + (PENG+CLC) | 52449,0 | 0,172 | 54855,0 | 0,939 | |
(BNF+CLC) + (BFI) | 31777,5 | 0,662 | 30696,0 | 0,795 | |
(PENG+CLC) + (BFI) | 6176,0 | 0,228 | 5725,5 | 0,873 |
Nota. p = nível de significância; p < 0,05; BNF+CLC - bloqueio nervo femoral + cutâneo lateral da coxa; PENG+CLC = bloqueio do grupo nervoso pericapsular + cutâneo lateral da coxa; e BFI = bloqueio da fáscia ilíaca.
Não se observaram diferenças nos efeitos adversos dos doentes submetidos a ATA em função do tipo de bloqueio (BNF+CLC; PENG+CLC e BFI), exceto entre dois grupos no grau de bloqueio sensitivo. O PENG+CLC apresentou menor grau de bloqueio sensitivo (Tabela 5).
O bloqueio motor foi semelhante nas três técnicas, mas o PENG foi aquele que também causou menos bloqueio motor (97,9%) quando comparado com o BFI (92,6%), com uma diferença próxima do limite significância (U Mann-Whitney = 5484.0, p = 0,052).
Tabela 5 : Grau de bloqueio sensitivo e valores médios de dor em função das técnicas de bloqueio de nervo periférico (n = 994 )
BNF+CLC 1 (n = 769) | PENG+CLC 2 (n = 143) | BFI 3 (n = 81) | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |||
Bloqueio sensitivo | S1 - sem parestesias | 662 | 86,1 | 132 | 92,3 | 70 | 86,4 | |
S2 - parestesias em pequena área | 107 | 13,9 | 11 | 7,7 | 11 | 13,6 | ||
Valores médios de dor | 1,139142 | 1,076923 | 1,135802 |
Nota. n = Frequência; % = Percentagem; BNF+CLC n = Frequência; % = Percentagem; - bloqueio nervo femoral + cutâneo lateral da coxa; PENG+CLC2 = bloqueio do grupo nervoso pericapsular + cutâneo lateral da coxa; BFI3 = bloqueio da fáscia ilíaca.
Na resposta à questão “Existem diferenças nos efeitos adversos dos doentes submetidos a ATA em função do tipo de bloqueio?”, foi efetuado inicialmente o teste Qui-quadrado para verificar as diferenças com todos os grupos, mas este não revelou diferenças estatisticamente significativas ((2 = 4,156659, p = 0,125). Ainda assim, tendo em conta os valores obtidos foi efetuado o teste U Mann-Whitney, o qual revelou existir uma diferença estatisticamente significativa entre as técnicas de BNF+CLC e PENG+CLC (p = 0,041; Tabela 6).
Tabela 6 : Comparação entre o grau de bloqueio sensitivo e as técnicas de bloqueio de nervo periférico
Técnicas de bloqueio | Teste U Mann- Whitney (U) | p |
(BNF+CLC) + (PENG+CLC) | 58404,5 | * 0,041 |
(BNF+CLC) + (BFI) | 31248,5 | 0,934 |
(PENG+CLC) + (BFI) | 5450,5 | 0,156 |
Nota. p = Nível de significância; * p < 0,05; BNF+CLC = Bloqueio nervo femoral + cutâneo lateral da coxa; PENG+CLC = Bloqueio do grupo nervoso pericapsular + cutâneo lateral da coxa; BFI = Bloqueio da fáscia ilíaca.
Discussão
O uso de técnicas regionais especificas para o local cirúrgico tem mostrado ser eficaz, como parte da analgesia multimodal para o controlo da DAPO. Os resultados obtidos refletem a avaliação efetuada, num período de 10 anos, pelos enfermeiros da UDA de um hospital da região norte, nas primeiras 24 horas após ATA com o objetivo de comparar a eficácia analgésica de três diferentes técnicas de bloqueio de nervo periférico. A técnica de bloqueio de nervo periférico utilizada com maior frequência foi o BNF+CLC (77,5%), seguida por uma ampla distância do PENG+CLC (14,4%) e do BFI (8,1%). Este dado pode ser justificado pelo fato de a maioria dos anestesiologistas ter incorporado estas técnicas na sua prática clínica mais tardiamente. O PENG é a técnica mais recente, tendo sido descrita apenas em 2018 (Girón-Arango et al., 2018; Martínez Martín et al., 2023; Morrison et al., 2021). O possível viés das análises pela sobre-representatividade da técnica BNF foi excluído com a realização de análises retirando os dados anteriores a 2019, confirmados os mesmos resultados.
Foi possível observar que não existem diferenças estatisticamente significativas nos níveis de intensidade de dor quando comparadas as três técnicas utilizadas. Estes dados podem ser confirmados por outros estudos como o de Lin et al. (2021), cujo estudo comparativo randomizado entre o PENG e o BNF não encontraram diferenças significativas (p = 0,53). A revisão sistemática realizada por Ying et al. (2023) também permitiu demonstrar que a DAPO pode ser controlada com bloqueio PENG ou com BFI, mas sem diferenças nos scores de intensidade de dor às 24 horas.
Nas primeiras 24 horas após ATA, a maioria dos doentes em repouso não refere dor (82,7%), enquanto em movimento referem dor ligeira (55,2%). Estes resultados são semelhantes aos encontrados em outros estudos que observaram um predomínio da dor ligeira nas primeiras 24 horas após o procedimento da ATA (Lin et al., 2021; Martínez Martín et al., 2023). Noutra revisão sistemática que comparou o PENG com o BFI, os autores concluíram não existirem diferenças nos níveis de dor, em repouso e em movimento, às 24 horas após cirurgia (Andrade et al., 2023).
De salientar que 17,6% dos doentes descreveram a dor em movimento como sendo de intensidade moderada a insuportável. Para uma maior eficácia no controlo da dor aguda, o recurso às técnicas analgésicas associa-se à analgesia sistémica, numa abordagem multimodal, de acordo com as recomendações internacionais (Anger et al., 2021; Girón-Arango et al., 2018; Rawal, 2016).
A administração de analgesia de resgate ocorreu sempre que solicitada pelo doente e/ou proposta dos enfermeiros após avaliação para níveis de intensidade de dor referida de moderada a insuportável. Os esquemas analgésicos de resgate incluem o uso de opioides (tramadol e morfina). No presente estudo, a analgesia de resgate foi utilizada numa percentagem reduzida de doentes (7,8%), confirmando a limitada utilização de opioides. Em paralelo, as náuseas e vómitos surgiram numa percentagem reduzida de doentes (3,5%). Este resultado reforça a evidência de que os bloqueios periféricos desempenharam um papel importante na redução do consumo de opioides e, consequentemente, na redução dos riscos associados à analgesia sistémica, nomeadamente náuseas e vómitos do pós-operatório (Andrade et al., 2023; Anger et al., 2021; Girón-Arango et al., 2018; Morrison et al., 2021; Pascarella et al., 2021).
A maioria dos doentes não refere ou apresenta efeitos adversos associados ao uso de bloqueios de nervo com anestésicos locais. Estes resultados são similares ao descrito no estudo de Morrison et al. (2021). Entre os efeitos adversos identificados, os mais frequentes foram o bloqueio sensitivo com parestesias em pequena área (13%), seguido do bloqueio motor com ligeira diminuição da força muscular (4,9%). Na relação entre o bloqueio sensitivo e as técnicas de bloqueio de nervo periférico utilizadas verificou-se uma diferença estatisticamente significativa quando comparados os grupos de BNF+CLC e PENG+CLC (p = 0.041), com os doentes submetidos ao PENG+CLC a terem menor grau de bloqueio sensitivo. Não foram encontrados estudos que permitissem interpretar este resultado. No entanto, sob o ponto de vista anatómico este dado pode ser justificado pelo fato de o PENG ser uma técnica seletiva para os ramos articulares do nervo femoral, obturador e obturador acessório sem abranger inervação cutânea e muscular do nervo femoral e cutâneo lateral. Nos resultados obtidos, o bloqueio motor foi semelhante nas três técnicas, talvez um número maior de observações pudesse demonstrar uma melhor preservação da função motora no PENG, como descrito por Girón-Arango et al. (2018).
Os estudos demonstraram uma melhoria na qualidade analgésica associada ao uso destas técnicas de bloqueio, na redução do consumo de opioides, dos tempos de internamento e das complicações a curto e longo prazo, como por exemplo o tromboembolismo e a dor crónica (Lin et al., 2021; Pascarella et al., 2021).
Na revisão da literatura foi possível observar que os estudos avaliaram comparativamente no máximo duas técnicas e alguns com limitações no número de participantes. Os resultados deste estudo poderão contribuir para o aumento da informação direcionada para procedimentos cirúrgicos específicos.
Podem ser consideradas algumas limitações neste estudo, das quais se destacam o fato de não permitir extrair conclusões para a melhor estratégia analgésica em doentes submetidos a ATA para além das 24 horas e o número de doentes em algumas variáveis ter sido reduzido, o que pode ter comprometido a validação das questões colocadas. Foram excluídos participantes por registos incompletos ou imprecisos, problema habitual nos estudos retrospetivos, sendo que estes resultados não podem ser generalizáveis para outras populações.
Conclusão
A avaliação efetuada pelos enfermeiros da UDA, nas primeiras 24 horas após ATA, com recurso à utilização de três técnicas de bloqueio de nervo periférico em combinação com analgesia sistémica, revela uma abordagem adequada da DAPO. Os resultados não revelam diferenças estatisticamente significativas da eficácia analgésica quando comparadas as três técnicas de bloqueio de nervo estudas. Porém, permitem sugerir que o PENG+CLC está associado a uma analgesia eficaz, com menor grau de bloqueio sensitivo quando comparado com o BNF+CLC. Os dados relativos à preservação da função motora são escassos não permitindo uma conclusão semelhante.
Este estudo pode ser considerado como uma evidência preliminar em analgesia específica para procedimento cirúrgico e permite justificar a necessidade de ensaios clínicos randomizados.