Introdução
A preocupação com as infeções em ambiente hospitalar teve em Semmelweis uma referência, quando atuou no sentido de as prevenir e controlar as infeções puerperais (Carraro, 2004).
As infeções associadas aos cuidados de saúde (IACS) são infeções adquiridas durante os cuidados e procedimentos de saúde, que não estavam presentes, ou em processo de incubação, no momento da sua admissão (World Health Organization [WHO], 2016). De acordo com a WHO, com base num estudo multicêntrico europeu, a proporção de doentes com doenças infecciosas em UCI pode ultrapassar 50%, sendo que a maioria são IACS (WHO, 2016). As IACS têm impactos ao nível dos cuidados de saúde, sociais, familiares e individuais, pois exigem mais recursos humanos, financeiros e materiais, prolongamento do internamento, assim como, aumento de reinternamentos.
Entre as IACS, a pneumonia associada à ventilação (PAV) é a mais comum e a que apresenta maior prevalência nas UCI (Guillamet & Kollef, 2015), reconhecendo-se a grande diversidade de fatores associados ao seu surgimento. Neste sentido, é objetivo do estudo analisar determinantes da PAV, em doentes internados numa UCI de um Hospital Central do Norte de Portugal.
Enquadramento
O conceito de infeção hospitalar sofreu evolução ao longo do tempo. Atualmente IACS, é um conceito mais abrangente. A OMS, refere-se às IACS como infeções que surgem nos doentes que se encontram num hospital, ou em outra instituição de saúde, a receber cuidados e que não estavam presentes, ou em processo de incubação, aquando da admissão (WHO, 2016). Jadot et al. (2018), define-as como uma infeção que afeta uma pessoa quando internada, quando visita ou exerce a sua atividade profissional num hospital ou num serviço de ambulatório, bem como as infeções adquiridas em clínicas e outras instituições de saúde onde os indivíduos recorrem.
Atualmente é reconhecida e assumida a presença de IACS por todos os operadores dos cuidados de saúde, existindo um claro interesse em reduzir a sua incidência devido ao aumento das comorbilidades e mortalidade dos doentes. O aumento do risco de mortalidade é provocado pelo aumento da resistência antimicrobiana, de doentes imunocomprometidos, com deficits nutricionais, e pela exposição do doente a procedimentos e dispositivos invasivos (Pina et al., 2013). Tem custos acrescidos pela necessidade de internamentos mais longos, e pelo aumento do consumo de recursos. As IACS têm um impacto negativo na qualidade de vida do doente, assim como na sua segurança e na dos profissionais, estimando-se que a nível global cerca de 1,4 milhões de pessoas adquirem uma IACS (WHO, 2009). Em Portugal, verificou-se que o número de óbitos associados às IACS em internamento foi aumentando sucessivamente entre 2010 e 2014, de 2.973 para 4.606 (Direção-Geral da Saúde [DGS], 2018). A literatura evidencia quatro tipos de IACS (Pina et al., 2013): Infeções das Vias Respiratórias Inferiores (IVRI); Infeções das Vias Urinárias (IVU); Infeções do Local Cirúrgico (ILC); Infeções da Corrente Sanguínea (ICS).
O Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA), em 2014, adotou uma estratégia multimodal de promoção das precauções básicas de controlo de infeção (PBCI), que devem ser adotadas pelos profissionais de saúde, visando a redução do risco de infeção e a transmissão cruzada (Ministério da Saúde [MS] & DGS, 2017), com medidas de prevenção adequadas a cada tipo de infeção. No que concerne à PAV é importante: desinfetar e tomar os cuidados adequados para limitar a contaminação durante a utilização dos tubos, ventiladores e humidificadores; evitar mudança de tubos respiratórios; evitar antiácidos e inibidores H2; fazer aspiração traqueal estéril; e administrar cuidados com cabeceira em posição elevada (Goulão, 2014).
A PAV é uma das IACS com maior prevalência nas UCI e afeta diretamente doentes em estado crítico e que necessitam de ventilação mecânica invasiva (Hellyer et al., 2016; MS & DGS, 2018). O diagnostico é feito com base numa pneumonia que ocorre 48 horas após a intubação endotraqueal, em que não houvesse suspeita dessa doença na admissão, até às 72 horas pós extubação endotraqueal (Rodrigues et al., 2016). A PAV, é responsável por quase metade de todos os casos de pneumonia adquirida em hospital (American Thoracic Society [ATS] & Infectious Diseases Society of America [IDSA], 2005). Rawal et al. (2018) revelam que a PAV é das IACS mais frequentes, está associada ao aumento da morbilidade e mortalidade, aumenta o tempo de ventilação mecânica, com aumento dos dias de internamento na UCI, e é responsável por uma taxa de mortalidade superior a 50%. Para Hunter (2012), cerca de 50% de todos os antibióticos administrados nas UCI são para o tratamento da PAV.
Os resultados de estudos sobre a incidência da PAV são heterogéneos. Ramirez et al. (2012) referem taxas entre 9% e 67% nos doentes submetidos à ventilação mecânica, enquanto Klompas et al. (2014) referem que 5% a 15% dos doentes que foram submetidos à ventilação mecânica desenvolvem PAV.
As causas mais frequentes para o aparecimento da PAV estão relacionados com os dispositivos médicos, nomeadamente o TET, a pressão do cuff, sondas nasogástricas, ventilação mecânica invasiva prolongada, aspiração de líquidos de condensação nas traqueias de ventilação, reintubações endotraqueais, acumulação de secreções na orofaringe posterior, infeções da mucosa oral, infeções dentárias, estado de imunossupressão, nível de consciência, idade, estado nutricional, politraumatizados (torácicos e cervicais), gravidade da situação clínica aquando da admissão, infeções em outros órgãos ou patologia respiratória anterior, nomeadamente a doença pulmonar crónica obstrutiva, tratamento com antibiótico nos últimos 30 dias e uso de fármacos vasoativos, havendo fatores modificáveis e não modificáveis (Alecrim et al., 2019; Feng, et al., 2019; Rodrigues et al., 2016; Sethi, 2019).
O avanço tecnológico e científico na área da medicina intensiva tem tido desenvolvimento acelerado, com um conjunto de intervenções invasivas de suporte à vida, que são vitais para o doente crítico (Cruz & Martins, 2019) sendo a ventilação mecânica (VM) é um destes suportes, podendo ser não invasiva (VMNI), ou invasiva (VMI), (Melo et al., 2014). No entanto estas intervenções invasivas têm associados riscos que podem ser prevenidos.
Uma das medidas mais eficazes na prevenção das IACS são os feixes de intervenções bundle. Em Portugal (Portugal, 2015; 2017), a DGS instituiu uma bundle com seis intervenções, que visam a prevenção da PAV.
Assim, a prevenção de IACS que decorrem do uso da VM deve ser uma preocupação central dos profissionais de saúde, já que grande parte das complicações que decorrem deste tipo de ventilação podem ser prevenidas, ou tratadas com rapidez, a par de outras que apenas podem ser amenizadas (Sole et al., 2013). A prevenção da PAV é um indicador da qualidade dos cuidados de enfermagem, sendo que a implementação de protocolos de prevenção reduz em 50% ou mais, a taxa de infeção, o que realça a necessidade de se adotarem boas práticas baseadas na evidência científica (Matos & Sobral, 2010). Neste sentido, os profissionais de enfermagem devem desenvolver a sua prática com base em evidências, através de intervenções simples e económicas que diminuam a probabilidade de ocorrência da PAV (Wood & Winters, 2011).
Questão de investigação
Quais as determinantes da pneumonia associada à ventilação invasiva numa unidade de cuidados intensivos, de um hospital central do norte de Portugal?
Metodologia
Desenhou-se um estudo observacional, transversal, descritivo-correlacional e retrospetivo (Fortin, 1999), numa unidade de cuidados intensivos polivalente de um hospital central do norte de Portugal.
A amostra foi constituída pelos registos dos doentes internados na unidade, em 2016 e 2017, sendo critério de inclusão ter sido ventilados e ter registos no sistema informático, ficando constituída por 705 registos. A definição do espaço temporal foi devido à disponibilidade dos dados do sistema, e ao fato deste ter tido um upgrade, considerando-se que nesses anos já havida maturidade do sistema de registos.
Para a recolha de dados, solicitou-se ao Serviço de Sistemas e Tecnologias de Informação e Comunicação os dados disponíveis em vários programas informáticos (B-ICU Care® da B-Simple® e SClinico®), tendo em consideração as variáveis de interesse para o estudo. Com base na revisão da literatura identificaram-se variáveis sociodemográficas (sexo e idade); caraterísticas clínicas (exemplo: doenças anteriores ao internamento, tratamento prévio com antibióticos, doença respiratória crónica, pressão do cuff; nível do TET, uso de clorohexidina 0.2% oral, presença de sonda nasogástrica, tempo de ventilação invasiva, modo de ventilação invasiva, reintubação endotraqueal, nível de consciência, contagem de leucócitos, valor de proteínas, valor de albumina, diagnóstico de entrada, valor APACHE II e infeção noutros órgãos
As variáveis estavam operacionalizadas como categóricas e quantitativas, conforme o carregamento efetuado no sistema informático.
Para o tratamento de dados utilizaram-se técnicas de estatística descritiva, de acordo com a variáveis quanto à escala de medida. Na análise bivariada, para as variáveis quantitativas verificamos os pressupostos para a utilização de testes paramétricos (t para duas amostras independentes), normalidade de distribuição (teste de Kolmogorov-Smirvov ou teste de Shapiro-Wilk) e homogeneidade de variâncias (teste de Levene). Nas situações em que os pressupostos não se encontravam assegurados, recorremos ao teste U-Mann-Whitney. Para as variáveis nominais recorreu-se ao teste de independência de Qui-Quadrado e ao teste exato de Fisher. Para a avaliação das variáveis determinantes da PAV, recorremos à regressão logística.
Alguns dados clínicos não tinham informação disponível, sendo avaliado se existiam diferenças de dados omissos entre o grupo com e sem PAV, o que não se verificou.
O software utilizado foi o IBM SPSS Statistics, versão 27.0, para Windows e o nível de significância admitido foi de 5%.
O estudo foi autorizado pelo Conselho de Administração da instituição, após parecer favorável da respetiva Comissão de Ética com o número 29/21. Não sendo adequado aceder ao nome e contacto dos doentes, não foi solicitado o consentimento informado, sendo garantido à instituição a proteção da identidade e dos dados assegurando-se, desta forma a confidencialidade, o anonimato dos doentes e da instituição.
Resultados
Os 705 doentes com registo no sistema de informação tinham idades entre os 16 e os 92 anos, com média de 61,5 ± 16,2 anos e mediana de 64 anos, sendo que 50,8% tinham entre 25 e 64 anos, 46,8% mais de 65 anos e os restantes menos de 24 anos, predominado o sexo masculino (59,7%).
Quanto à condição analítica à entrada, a contagem de leucócitos (n = 705) variou entre 0,01x109/L e 465,63 x109/L, com média de 14,25 x109 ± 20,63 x109/L e mediana de 11,49; nas proteínas totais (n = 694), a variação foi entre 19g/L e 105g/L (média de 54,95 ±١ 1,03/L e mediana de 55,5); e na albumina (n = 702), em g/L, variou entre 4,70 e 51,6 (média 28,43 ± 7,11 e mediana de 28,5). Relativamente à gravidade do doente (n = 703), o nível de consciência (Escala de Glasgow), variou entre 3 e 15, sendo a média de 9,93 ± 4,93 e a mediana de 11. A gravidade da doença, avaliado através da APACHE II, variou entre 0 e 52, com média de 23,28 ± 9,04 e mediana de 23.
Os diagnósticos foram organizados de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID 10). Assim à entrada, destacaram-se as doenças do aparelho circulatório (31,5%), seguido de lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas (16,3%), doenças do aparelho respiratório (15,7%) e do aparelho digestivo (12,6%). A maioria dos doentes (78,9%) teve admissão médica, 15,2% admissão cirúrgica não programada e os restantes por admissão cirúrgica programada. A maioria (92,8%) não teve tratamento prévio com antibióticos, nem apresentou infeção noutros órgãos (64%). Para 12,5%, a infeção mais frequente foi a pneumonia (este diagnóstico não foi contabilizado como PAV, por não cumprir os critérios de diagnóstico), seguida da infeção abdominal (7,5%) e da infeção urinária (4%). Praticamente todos doentes (99,6%) não foram diagnosticados com nenhuma doença respiratória crónica.
No que se refere aos cuidados inerentes ao feixe de intervenções da prevenção da PAV n = 705; Tabela 1), em 86% foi usada clorohexidina a 0,2% oral, 90,2% tinham uma sonda nasogástrica, em 2,0% ocorreu reintubação endotraqueal e 90,6% não tiveram elevação da cabeceira a 30°/45°.
PAV | |||||||
Não | Sim | ||||||
N | N | Valor p | Razão de chances | ||||
Uso de clorohexidina 0.2% oral | Não | 96 | 3 | 0,605 | - | ||
Sim | 577 | 29 | |||||
Elevação da cabeceira (30/45) | Não | 610 | 29 | 1,000 | - | ||
Sim | 63 | 3 | |||||
Presença de sonda nasogástrica | Não | 64 | 5 | 0,354 | - | ||
Sim | 609 | 27 | |||||
Reintubações endotraqueal | Não | 669 | 22 | < 0,001 | 76,023 | ||
Sim | 4 | 10 |
Nota. PAV = Pneumonia associada à ventilação; N = Número de casos; Valor p = Significância.
Quando analisados os registos da pressão do cuff, a pressão mínima variou entre 0 e 35 cm H2O (média de 24,59 ± 7,23 e mediana de 26, correspondendo o percentil 75 a 28) e a pressão máxima entre 0 e 363 cm H2O, com média de 36,22 ± 30,79 sendo o percentil 25 e a mediana são coincidentes em 25 e o percentil 75 foi de 34. O tempo de ventilação, em dias, variou entre 0 e 79 dias (média de 8,55 ± 10,43 dias e mediana de 4,63 dias).
Dos 705 registos, constatou-se que 32 pessoas desenvolveram PAV (Tabela 2), representado uma taxa de incidência de PAV de 4,5%.
Da avaliação de fatores relacionados com a PAV observam-se diferenças entre os sexos (X1 2 = 13,313; sig = 0,000), com maior incidência no sexo masculino, com cerca de sete vezes mais hipóteses de desenvolver PAV.
PAV | Valor p | Razão de chances | |||
Não | Sim | ||||
N | N | ||||
Sexo | Feminino | 281 | 3 | < 0,001 | 6,929 |
Masculino | 392 | 29 |
Nota. PAV = Pneumonia associada à ventilação; N = Número de casos; Valor p = Significância.
Não se verificaram diferenças para a idade, no entanto, se o nível de significância for relaxado para 10%, as pessoas que desenvolveram PAV têm uma média de idade inferior (56,68 ± 18,55 versus 61,75 ± 15,97).
A análise de diferenças para o hemograma (leucócitos) e para a bioquímica (proteínas totais e albumina) não evidenciou diferenças significativas, bem como no que se refere à gravidade da situação clínica. No entanto, relativamente ao nível de consciência, constatou-se que, se considerarmos o teste unilateral à esquerda (t701 1,833; sig = 0,034), existe uma diferença estatisticamente significativa, a qual se traduz na média com valores mais baixos nos doentes que desenvolveram PAV.
No que se refere ao tratamento prévio com antibiótico (Tabela 3), observam-se diferenças (Fisher: sig = 0,000), em que os doentes com tratamento prévio com antibiótico desenvolvem, com maior frequência PAV (cerca de 49 vezes) do que os restantes.
PAV | Valor p | Razão de chances | ||||||
Não | Sim | |||||||
N | N | |||||||
Tratamento prévio com antibióticos | Não | 644 | 10 | < 0,001 | 48,85 | |||
Sim | 29 | 22 |
Nota. PAV = Pneumonia associada à ventilação; N = Número de casos; Valor p = Significância.
Nos doentes que desenvolveram PAV, os diagnósticos de entrada mais frequente foram as lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externa e as doenças do aparelho circulatório, no entanto não se observaram diferenças significativas. No diagnóstico de entrada observaram-se diferenças nas lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas (X1 2 = 27,442; sig = 0,000), conforme consta na Tabela 4.
PAV | ||||||
Não | Sim | |||||
N | N | Valor p | ||||
0,000 | ||||||
Lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas | 99 | 16 |
Nota. PAV = Pneumonia associada à ventilação; N = Número de casos; Valor p = Significância.
De entre os indivíduos com diagnóstico de PAV 71,9% tiveram admissão médica e 28,1% foram admitidos por cirurgia não programada, sendo que a incidência de PAV é independente do tipo de admissão (X1 2 = 5,907; sig = 0,055).
Relativamente às intervenções da bundle e a reintubação endotraqueal observaram-se diferenças significativas com a PAV nas pessoas onde ocorreu reintubação (Fisher: sig = 0,000), com cerca de 76 vezes mais probabilidades de desenvolver PAV (Tabela 5).
PAV | |||||||
Não | Sim | ||||||
N | N | Valor p | Razão de chances | ||||
Reintubações endotraqueal | Não | 669 | 22 | < 0,001 | 76,023 | ||
Sim | 4 | 10 |
Nota. PAV = Pneumonia associada à ventilação; N = Número de casos; Valor p = Significância.
Na pressão cuff mínima, observaram-se diferenças significativas (U = 6282,5; sig = 0,002), as quais se traduzem em ordenações médias, com valores mais baixos nos doentes que desenvolveram PAV (218,66 versus 319,48; Tabela 6). Por outro lado, na pressão cuff máxima encontrou-se um cenário oposto (U = 5829,5; sig = 0,001), onde as ordenações médias foram significativamente superiores nos que desenvolveram PAV (418,18 versus 308,76). Quanto ao tempo de ventilação, observaram-se diferenças significativas (t703 = -7,098; sig = 0,000), em que os doentes que desenvolveram infeção foram aqueles que estiveram ventilados durante mais tempo (20,91 ± 16,94 versus 7,96 ± 9,65).
PAV | Valor p | ||||
Não | Sim | ||||
M | DP | M | DP | ||
Pressão Cuff Mínimo | 24,82 | 6,99 | 20,26 | 10,66 | 0,025* |
Pressão Cuff Máximo | 36,06 | 30,97 | 39,40 | 27,40 | 0,562 |
Tempo de ventilação (d) | 7,96 | 9,65 | 20,91 | 16,943 | <0,001* |
Nota. PAV = Pneumonia associada à ventilação; M = Média; DP = Desvio-padrão; Valor p = Significância.
Modelo de Regressão Logística
Após a análise bivariada foi elaborado um modelo que permitisse prever o risco de desenvolvimento de PAV, incluindo-se as variáveis em que se observaram diferenças. Assim a regressão logística com o método Enter revelou que o nível de consciência (b nc = -0,055; (2 Wald (1) = 0,886; sig = 0,347), a pressão cuff mínima (b pcmin = -0,051; (2 Wald (1) = 2,657; sig = 0,103), a pressão cuff máxima (b pcmax = 0,003; (2 Wald (1) = 0,141; sig = 0,707) e o sexo (b sexo = 1,269; (2 Wald (1) = 2,596; sig = 0,107) não apresentaram um efeito estatisticamente significativo sobre o Logit da probabilidade de desenvolver PAV. Por outro lado, o tratamento prévio com antibiótico (b trat = 4,007; (2 Wald (1) = 41,876; sig = 0,000), as lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas como diagnóstico de entrada (b lesões = 1,826; (2 Wald (1) = 10,811; sig = 0,001), a ocorrência de reintubação endotraqueal (b reint = 3,355; (2 Wald (1) = 14,240; sig = 0,000) e o tempo de ventilação em dias (b temp = 0,05; (2 Wald (1) = 4,213; sig = 0,040) apresentaram um efeito estatisticamente significativo sobre o Logit da probabilidade de um doente desenvolver PAV, de acordo com o modelo Logit ajustado (G2 (8) = 134,383; sig = 0,000; (2 Wald (8) = 2,716; p = 0,951; R2 CS = 0,193; R2 RN = 0,605; R2 MF = 0,558). Assim, recorrendo ao método Forward:LR ajustou-se um novo modelo, estatisticamente significativo, apenas com as variáveis tratamento prévio com antibiótico, as lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas como diagnóstico de entrada, a ocorrência de reintubação endotraqueal e o tempo de ventilação em dias. Segundo este modelo, a probabilidade de desenvolver PAV (Y = 1), aumenta exponencialmente com o tempo de ventilação, ou seja, o Odds Ratio de desenvolver PAV relativamente a não desenvolver PAV aumenta 6,7% por cada dia de ventilação. Para o mesmo tempo de ventilação a probabilidade de um doente desenvolver PAV tendo tratamento prévio com antibióticos é sempre maior que aqueles que não realizaram este tratamento (58,964 para 1); a probabilidade de um doente com diagnóstico de entrada lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas é sempre maior do que os doentes sem este diagnóstico (7,443 para 1); o mesmo acontecendo para os doentes onde ocorreu reintubação endotraqueal, com maior probabilidade de desenvolvimento de PAV, (28,861 para 1). A percentagem de pessoas corretamente classificadas pelo modelo é de 96,6%. A sensibilidade do modelo é de 50% e a especificidade é de 98,8%. Assim, conclui-se que o modelo tem utilidade razoável para classificar novas observações, como também apresenta uma boa capacidade discriminante (ROC c = 0,958; sig = 0,000). Os resultados obtidos permitem fazer várias inferências acerca das determinantes associadas à PAV (Tabela 7).
Discussão
A pneumonia associada à ventilação é uma complicação grave que pode afetar os doentes que são submetidos à ventilação invasiva. Em 2015, DGS introduziu uma bundle com objetivo de prevenir a sua ocorrência. Ao longo do tempo a incidência da PAV veio a diminuir e, em 2017, alcançou o seu valor mais baixo, 6,6% (DGS, 2018).
Contrariando a literatura onde a idade mais avançada surge como um dos fatores de risco (Feng et al., 2019; Rodrigues et al., 2016), no presente estudo só se torna significativa se relaxássemos para o nível de 10%, em que a idade do grupo que desenvolveu a PAV é inferior ao grupo que não teve este diagnostico. Estes resultados poderão estar relacionados com a área de influência do hospital, onde predomina uma população jovem. O sexo revelou uma associação significativa, com maior incidência da PAV no sexo masculino. Estes resultados divergem dos de Rodrigues et al. (2016), onde o predomínio foi no sexo feminino, o que pode dever-se ao facto da amostra ser composta por mais pessoas do sexo masculino.
Os resultados demonstram uma associação entre o diagnóstico de PAV e o tratamento prévio com antibiótico. De facto, de acordo com vários autores, o tratamento com antibiótico recente e o uso de fármacos vasoativos é um determinante da PAV (Feng et al., 2019; Rodrigues et al., 2016). Neste estudo, doentes que fizeram tratamento prévio com antibiótico desenvolvem, com maior frequência, (cerca de 49 vezes mais). A alteração do equilíbrio do microbioma e as resistências dos microrganismos nomeadamente dos Staphylococcus aureus, Pseudomonas aeruginosa, Acinetobacter spp. e Enterobacter spp. (Niederman & Craven, 2005), podem justificar estes resultados.
Os resultados demonstraram também que uma pessoa que tenha sido submetida a uma reintubação endotraqueal tem aproximadamente 76 vezes mais probabilidade de desenvolver PAV. Este facto poderá estar relacionado com a aspiração do conteúdo na orofaringe devido á ineficaz defesa da via aérea, o que vai de encontro a resultados de outros estudos em que a PAV ocorre em 10 a 20% dos doentes que são submetidos a reintubação endotraqueal nas UCI (Hellyer et al., 2016). Feng et al. (2019) e Rodrigues et al. (2016) acrescentam ainda as sondas nasogástricas, e a ventilação mecânica invasiva prolongada como determinantes da PAV.
Os resultados obtidos por via da regressão logística foram bastante reveladores, na medida em que demonstraram que o tratamento prévio com antibiótico, bem como as lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas como diagnóstico de entrada, a ocorrência de reintubação endotraqueal e o tempo de ventilação em dias, foram estatisticamente significativas para o desenvolvimento da PAV, o que corrobora o que refere Miller (2018). Ainda em relação aos determinantes, verificou-se que a probabilidade de desenvolver PAV aumenta com o tempo de ventilação e que, por cada dia de ventilação, a probabilidade de desenvolver PAV aumenta 6,7%. De acordo com Matos e Sobral (2010, citado em Safdar et al., 2005), as vias aéreas artificiais, contribuem para a PAV pois: estabelecem um acesso direto às vias aéreas inferiores; diminuem as defesas locais, pela interferência no mecanismo da tosse; promovem a disfunção mucociliar ficando o doente incapaz de prevenir a aspiração. As secreções acumuladas na região subglótica atuam como reservatório do crescimento bacteriano, produzem inflamação das vias aéreas promovendo a sua colonização e provocam lesão do epitélio. A aspiração deste conteúdo bacteriano pode ocorrer quando há relaxamento do cuff, espasmos da traqueia, estimulação do doente, reatividade provocada pela redução da sedação ou mobilização do doente durante os cuidados. No que se refere ao tratamento com antibióticos a probabilidade de desenvolver PAV é sempre maior nos que realizaram este tratamento. Tal, pode dever-se ao facto do tratamento com antibiótico prévio, nos últimos 30 dias, aumentar significativamente a probabilidade de infeção por organismos resistentes a antibióticos (Sethi, 2019). Além disso, referindo-se à pneumonia adquirida em hospital, como o caso da PAV, Sethi (2019) aponta o tratamento antibiótico prévio como um fator de risco. Na verdade, a literatura revela que os antibióticos exercem influencia no desenvolvimento desta IACS. A PAV com início precoce, até ao 5º dia, é provocada por microrganismos sensíveis a antibióticos (Staphylococcus aureus, sensível à Oxacilina, Haemophilus influenze e Streptococcus pneumoniae; Goulão, 2014); por outro lado, a PAV com início tardio, após o 5º dia, é geralmente provocada por microrganismos resistentes a antibióticos (Niederman & Craven, 2005).
Por fim, apurou-se que a probabilidade de um doente com diagnóstico de entrada lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas desenvolver PAV é sempre maior do que os doentes sem este diagnóstico, e o mesmo se verifica nos doentes onde ocorreu reintubação endotraqueal. A intubação endotraqueal é, de facto, um fator determinante da PAV (Feng et al., 2019; Miller, 2018; Rodrigues et al., 2016). Até porque, como Hellyer et al. (2016) salientam, a PAV ocorre em 10 a 20% dos doentes que são submetidos a intubação endotraqueal e VM nas UCI.
No desenvolvimento do estudo deparou-se com algumas limitações. Dado o estudo ser retrospetivo, o acesso à informação foi através dos registos informáticos, tendo surgido dúvidas acerca do seu rigor, nomeadamente no que se refere à elevação da cabeceira da cama, à pressão de cuff e outras infeções. Também a interoperacionalidade dos sistemas (B-ICU Care® da B-Simple® e SClinico®), em que se teve de recorrer a informação dispersa.
Conclusão
Os resultados do estudo permitem identificar determinantes para o desenvolvimento da PAV, nomeadamente o sexo, o tratamento prévio com antibiótico, o nível de consciência mais baixo, a reintubação endotraqueal, a pressão cuff mínima e o tempo de ventilação. Através da regressão logística, constatando-se que o tratamento prévio com antibiótico, lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas como diagnóstico de entrada, a ocorrência de reintubação endotraqueal e o tempo de ventilação em dias, foram estatisticamente significativos para o desenvolvimento da PAV. Além disso, verificou-se que a probabilidade de desenvolver PAV aumenta exponencialmente com o tempo de ventilação e que, por cada dia de ventilação, a probabilidade de desenvolver PAV aumenta 6,7%.
Os resultados evidenciam a existência de um conjunto de determinantes modificáveis e que podem ser objeto de minimização através dos cuidados prestados pelos profissionais de saúde, em que a implementação do feixe de intervenções assume particular relevância. Assim, recomenda-se, ao nível da prática: uma formação regular e contínua, de modo a atualizar e consolidar conhecimentos e procedimentos; a realização de auditorias à bundle da PAV; a extubação endotraqueal o mais precocemente possível, evitando ventilação invasiva prolongada, mas com critério de modo a prevenir reintubações, a criação de protocolos de desmame ventilatório pode ser uma importante ajuda; uma vigilância atenta e proativa junto do doente, de modo a prevenir extubações acidentais, especialmente durante a fase de diminuição da sedação; a promoção da ventilação não invasiva sempre que possível, pode ser uma alternativa à reintubação; a avaliação e otimização da pressão de cuff (para valores entre 20- 30mmH2O, sempre que possível), pelo menos três vezes ao dia; alertar para a prescrição excessiva/prolongada ou sem critério de antibióticos; registos rigorosos e completos que não só permitam uma boa continuidade de cuidados, mas também por imperativos legais e de investigação.
Do ponto de vista da investigação, recomenda-se: a realização de um estudo com registos mais recentes, entendendo-se que uma comparação de registos em diferentes anos seria importante para se perceber a evolução e as mudanças ocorridas em termos de registos; a realização de um estudo com observação para verificar o cumprimento desta bundle; a replicação do estudo noutras UCI, assim como a introdução de outras variáveis (tempo de uso de noradrenalina ou outros fármacos vasopressores).