1. Introdução
As eleições presidenciais de 2021 em Portugal são um acontecimento singular na história da democracia portuguesa contemporânea. A disputa ficou indelevelmente marcada pela terceira vaga de contágio por Covid-19 e a reincidência de graves efeitos sociais e económicos da crise pandémica no país. A declaração do novo estado de emergência, a 15 de janeiro, ocorreu em plena campanha oficial, afetando-a no modo e na substância e obrigando a um ajustamento das ações planeadas, subtraindo mobilidade, mobilização e rua aos/às sete candidatos/as. Neste cenário, a simples realização de atos democráticos colocou desafios às habituais formas de comunicação e de “fazer política”, abrindo espaços inovadores, embora na generalidade restritivos, às estratégias e ações das campanhas eleitorais. Os contactos com os/as eleitores/as reduziram-se, salvo exceções onde se tornaram “manifestos ideológicos” sobre convicções políticas e a própria pandemia.
Este contexto favoreceu a fermentação de discursos populistas e a radicalização do debate político. Convém lembrar que o rótulo de “populista” é quase sempre utilizado para descrever um leque vasto de indivíduos, partidos e movimentos, da esquerda à direita, que estruturam a sua estratégia política em torno de uma conceção dualista e simplificadora da realidade, baseada em juízos e dicotomias fáceis, com vista a dividir a sociedade em grupos ou indivíduos, categorizados como “bons e maus”. Na verdade, e por isso preocupante e difícil de discernir em democracias plenas, os movimentos populistas “aceitam” determinadas regras democráticas, embora se manifestem, ruidosamente, contra os valores da democracia liberal. As mensagens centram-se em valores xenófobos, racistas, homofóbicos e sexualmente conservadores, embora não abandonem os princípios do capitalismo neoliberal.
Neste artigo propomo-nos analisar a cobertura conferida nos jornais televisivos da noite da RTP1, SIC, TVI e CMTV às duas candidatas à Presidência, Ana Gomes e Marisa Matias. O objetivo é aprofundar um tema menos explorado nos estudos sobre o populismo, a questão de género e o lugar da mulher na política, na sociedade globalizada. Este é o enfoque, não se ignorando a existência de estudos que versam especificamente sobre a representação simbólica de líderes femininas de movimentos populistas de extrema-direita (e.g., Siim e Meret 2015; Snipes e Mudde 2020). Trata-se de uma dimensão que abrange a relação entre o capitalismo neoliberal, sob as suas formas financeira e digital, e o crescimento da extrema-direita populista-conservadora, a qual implica todos os fundamentalismos, incluindo os religiosos, em particular os católicos e pentecostais. Esta dimensão do populismo deve ser analisada tendo em conta, primeiramente, a transição de um capitalismo financeiro para o digital, associado às alterações na conceção e “escassez” de trabalho, bem como à precarização que atinge, maioritariamente, as mulheres1. Acresce que o ângulo de género no populismo pode ser entendido como uma reação política, social e religiosa ao que é designado por “ideologia de género”, considerada, em muitos países ocidentais e democráticos, como “colonização ideológica”, promovida por vozes decadentes ocidentais, incluindo lobbies ativos na UE e ONG (Dietze e Roth 2020). Neste contexto, os discursos das candidaturas populistas sobre as mulheres articulam-se, prioritariamente, com base em temáticas como educação sexual das crianças e jovens; afirmação da família heterossexual tradicional; negação dos direitos LGBTI+; valorização/desvalorização de estereótipos da masculinidade e feminilidade.
O estudo empírico compreende as seguintes perguntas de investigação: 1) que temas privilegiam as candidatas?; 2) que indicadores de comunicação não-verbal constituem a sua performance televisiva?; 3) ao nível da narrativa jornalística desenvolvem estratégias eleitorais assentes na sua afirmação como mulheres, feministas e defensoras de uma agenda de igualdade?; 4) há um direcionamento das ações de campanha para grupos de mulheres, sobretudo após o episódio “Vermelho em Belém”?
2. Contexto português
As eleições presidenciais de 2021 realizaram-se a 24 de janeiro, tendo a campanha eleitoral decorrido entre 10 e 22 do mesmo mês. Entre as sete candidaturas, incluíam-se duas mulheres, Ana Gomes e Marisa Matias, ambas do quadrante de esquerda.
A participação política feminina desde a Revolução democrática de 1974 em Portugal apresenta momentos, sobretudo a partir de meados dos anos 90 do século XX, em que se denunciou o campo político como um “clube masculino” e se identificou, como problema da democracia, a invisibilidade e o défice de participação das mulheres (Cabrera e Martins 2019a; Cabrera 2021). Entre estes momentos destaca-se a aprovação, em 2006, da “Lei da Paridade de Género” (Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto), que estabelece que as listas eleitorais para a Assembleia da República, o Parlamento Europeu e as autarquias locais devem assegurar uma representação mínima de cada um dos sexos, atualmente fixada em 40%. Este mecanismo constituiu um avanço legislativo significativo - ainda que, na sua génese, carecesse de consenso político generalizado -, que favoreceu o aumento gradual e partidariamente transversal da participação política feminina. Esse incremento abarca igualmente os governos, ainda que a Lei da Paridade não tenha aplicação direta na composição dos executivos. Não obstante, constata-se a manutenção dos glass ceilings nas posições executivas e no topo da hierarquia de poder, como sucede na Presidência da República, que nunca foi liderada por uma mulher. Além disso, em quase cinco décadas de regime democrático, poucas foram as mulheres que concorreram a esta eleição: Maria de Lourdes Pintasilgo em 1986 e, apenas 30 anos depois, em 2016, com as candidaturas de Maria de Belém Roseira e Marisa Matias. Estas duas candidatas investiram em estratégias de afirmação como mulheres, feministas e defensoras de uma agenda de igualdade (Almeida 2016).
Como referido, nas presidenciais de 2021, a participação política feminina foi assegurada por Ana Gomes e Marisa Matias, esta última recandidatando-se. Trata-se de duas mulheres cujo percurso pessoal e profissional, de modo distinto e representando duas gerações diferentes, está inquestionavelmente ligado à luta pela igualdade de género e pela afirmação da participação política das mulheres.
Ana Gomes tem uma história de intervenção nas áreas diplomática e política. Foi deputada ao Parlamento Europeu entre 2004 e 2019, eleita pelo Partido Socialista (PS). O grande trunfo político de Ana Gomes foi a forma como abraçou a causa timorense nos quatro anos em que foi chefe da missão diplomática portuguesa na Indonésia, durante o processo de independência de Timor-Leste (1999-2003). Para Ana Gomes, a crítica e a denúncia são constantes, visíveis em dossiers internacionais, como os voos secretos da CIA, ou em casos de corrupção e de má governação, mesmo aqueles em que o seu partido está envolvido (Henriques 2019). Um caso recente que suscitou emoções extremas foram as questões ligadas ao Benfica desvendadas pelo hacker Rui Pinto. As suas opiniões são fortes e extremas. Há algo de radicalidade associado ao discurso de Ana Gomes, que não é, de facto, uma mulher moderada. São estas características intrínsecas à sua personalidade que abrem caminho a procedimentos associados ao populismo. Desde 17 de maio de 2020 que refletia na possibilidade de ser candidata à Presidência da República, sobretudo depois das declarações do primeiro-ministro, António Costa, que instava o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a recandidatar-se e aventava a hipótese de o vir a apoiar. Ana Gomes entendia que era indispensável uma candidatura da área socialista e um erro o PS não ter um candidato próprio. Ana Gomes considerou que a voz da esquerda democrática ligada ao PS seria fundamental justamente numa altura em que projetos de extrema-direita se afirmavam, como a candidatura de André Ventura, líder do Chega (Alvarez 2020). Apresenta formalmente a sua candidatura a 10 de setembro de 2020 e anuncia como prioridade política o preenchimento do espaço da esquerda tradicional do PS e o combate ao populismo de extrema-direita (Coelho 2020).
Marisa Matias reclama para si o orgulho da sua origem rural na aldeia de Alcouce, distrito de Coimbra, uma infância vivida numa casa sem água e sem luz, os dias passados a apascentar gado. Para esta candidata, os laços familiares e os afetos ainda residem por lá e não há campanha onde as imagens de Alcouce não estejam presentes. Estudou em Coimbra, na área de sociologia política, e o seu tirocínio político entrelaçou-se entre Alcouce, Coimbra e depois Lisboa (Câncio 2015; Lopes 2015). Aderiu ao Bloco de Esquerda (BE) em 2005, sendo eleita quatro anos mais tarde pela primeira vez para o Parlamento Europeu, onde continua a desempenhar as funções de eurodeputada. Em 2016 concorreu pela primeira vez à eleição para a Presidência da República, apoiada pelo BE, ficando em terceiro lugar, com 10,12% dos votos. Marisa Matias afirmou na altura que sentia muito orgulho e responsabilidade em ser mulher e candidata (Ferro 2016). Em seu entender, uma das áreas fundamentais para o combate à desigualdade de género é a da fiscalidade (Matias 2018), com atenção aos desníveis no emprego e salários. Na apresentação da sua candidatura para as presidenciais de janeiro de 2021, manifestou-se como “republicana laica e socialista”, declarou-se como “candidata contra o medo” e comprometeu-se durante a campanha “a ouvir, a dar voz à gente sem medo, a apoiar a coragem de quem cuida dos outros” (Botelho e Sapage 2020).
3. Jornalismo, campanhas eleitorais e género
As campanhas eleitorais são tradicionalmente um campo de luta política, mas também jornalística, numa dinâmica de mediatização em que as lógicas política e mediática se sobrepõem, em busca de atingir objetivos específicos nos seus respetivos campos (Grabe e Bucy 2009; Hepp e Krotz 2014). Mesmo em contexto pandémico, os/as jornalistas não esmorecem o habitual clima de cobertura adversarial face aos partidos e aos políticos e, também, procedimentos miméticos, os quais se enquadram na ideia de partilhar uma comunidade interpretativa e na preferência de socializar entre pares (Zelizer 1993; Crouse 2003). Já os atores políticos, em função das circunstâncias adversas, reforçam, atualizam e improvisam estratégias de comunicação, com vista a sair do “confinamento político” e a criar eventos, ou melhor, pseudo-eventos, capazes de chamar a atenção dos/as jornalistas e de aumentar a visibilidade nos media, tendo como objetivo superar o vazio, provocado pelas medidas sanitárias, e a concorrência dos adversários em campanha.
A tensão entre instituições e atores políticos e mediáticos decorre em torno do grau da “visibilidade da mensagem” e da forma como as mensagens - verbais e visuais - são acondicionadas, tendo em vista a apreensão final pelos/as eleitores/as (Harcup e O’Neill 2017). Outro fator de tensão é o tratamento das sondagens. Os media tendem a eleger “ganhadores” e “perdedores” em função desses resultados, surgindo como kingmakers ou killers of dreams (Graber e Dunaway 2010).
Obviamente o conflito é uma característica da democracia e constitui um fator de potencial mobilização para a cidadania e para a participação em eleições. Contudo, as coberturas centradas em notícias com elevado grau de conflitualidade, onde se acentuam os aspetos mais negativos, se acirram contradições entre candidaturas, se focam e instigam os insultos, em detrimento das temáticas estruturantes, constituem fatores de enfraquecimento e desqualificação das democracias (Jackson e Thorson 2015).
Outro aspeto valorizado neste enquadramento analítico é a comunicação não-verbal, reconhecida como uma componente importante nas estratégias de comunicação política, na perspetiva da construção da imagem do político e nas formas de este se expressar e persuadir os/as eleitores/as (Lieb e Shah 2010; Rodríguez-Escanciano e Hernández-Herrarte 2010; Seiter e Weger 2020).
Assume-se que o ato eleitoral de 2021 constituiu um desafio às práticas discursivas dos/as jornalistas, não apenas pelo facto de se encontrarem condicionados/as nos seus movimentos, em resultado das medidas sanitárias impostas pelas autoridades, mas também face a uma campanha pontuada por um candidato antissistema, André Ventura, que criou uma rutura política e discursiva, em que se acentuaram os indicadores de “fulanização”, críticas e insultos. Com efeito, a cobertura destas presidenciais conferiu grande visibilidade ao conflito político, não só entre candidatos/as, como entre estes/as, o Governo e o Presidente da República em exercício. A seleção do conflito como ângulo noticioso na maioria das peças televisivas e a visibilidade outorgada a declarações desta natureza atribuíram uma enorme centralidade ao candidato que maior ênfase proporcionou a esta estratégia na campanha. São os seus atos e discursos que prevalecem como referentes, ou contrapontos, para os media, candidatos/as e cidadãos/ãs nesta campanha eleitoral.
O caso do “Batom Vermelho”, com réplicas no “Vermelho em Belém”, centrado em discursos machistas e discriminatórios face às mulheres, é um exemplo. Este episódio tem origem na noite de 13 de janeiro quando, num comício em Portalegre, André Ventura dirigiu insultos a Jerónimo de Sousa, João Ferreira, Ana Gomes e Marisa Matias. O candidato afirmou:
Jerónimo de Sousa é aquele avô bêbedo que a gente tem em casa. Depois de beber uns copos começa a dizer assim umas coisas e a partir de um certo momento começa a não achar muita graça às piadas. Temos ainda o João Ferreira, com aquele ar de operário beto de Cascais… Quando eu ouço uma candidata como a Ana Gomes, como se fosse a aura da pureza, e importa uma vacina ilegal… De facto, para contrabandista falta pouco. Depois temos a Marisa Matias. Não quero dizer nada de que me arrependa amanhã, mas não está muito bem em termos de imagem, performance… Assim com os lábios muito vermelhos.
Já por si o facto de duas mulheres concorrerem a esta eleição - o que, como referido, ainda constitui a exceção - justificaria uma análise da cobertura jornalística das suas campanhas, procurando determinar a existência de um enviesamento de género na cobertura da política, assente numa conceção que afasta as mulheres do poder e as enquadra à luz de estereótipos de género. Estudos anteriores sobre a realidade política portuguesa vieram comprovar a prevalência desta “mediação genderizada” (e.g., sobre o caso português, Martins 2015; Cabrera et al. 2016; Cabrera e Martins 2019a; 2019b). Num plano mais global, esses enviesamentos foram confirmados na meta-análise empreendida por Aaldering e Van der Pas (2020), tendo por base 90 estudos incidindo sobre cerca de 4 mil mulheres políticas e 750 mil peças noticiosas. No presente caso, a dimensão de género é articulada com a presença de um candidato populista de extrema-direita cujo discurso se caracteriza pela agressividade e misoginia. O referido episódio, que deu origem ao movimento “Vermelho em Belém”, constitui uma oportunidade para, do prisma dos media e do jornalismo, aprofundar a relação entre género e populismo.
4. Estudo empírico
Metodologia
O estudo empírico debruça-se sobre as peças dos serviços noticiosos da noite, dos canais de televisão portugueses de acesso aberto RTP1 (Telejornal), SIC (Jornal da Noite), TVI (Jornal das 8) e CMTV (CM Jornal 20h). O período de análise decorreu entre 10 de janeiro, dia do arranque oficial da campanha, e 22 de janeiro, quando a mesma foi encerrada. A constituição do corpus fez-se a partir da identificação de peças noticiosas relativas às ações de campanha das sete candidaturas.
Foi aplicada ao corpus recolhido a técnica de análise de conteúdo, metodologia que permitiu o registo e tratamento numérico dos conteúdos manifestos tendo como objetivo extrair indicadores capazes de suportar inferências sobre a temática em análise, com vista à compreensão da forma como se processou a cobertura. Esta é uma técnica de investigação aplicável a todos os meios de comunicação, visando a descrição sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto (Cunha e Peixinho 2020), bem como a objetividade e a sistematização de dados, com a finalidade de apontar indicadores que permitam a sua generalização em contextos semelhantes (Bauer e Gaskell 2002). O percurso envolve uma fase de pré-análise e a posterior formulação de categorias unívocas de análise, isto é, categorias teoricamente fundamentadas e justificadas, de forma a atenuarem as ambiguidades de interpretação, utilizando-se para tal um instrumento de codificação. Segue-se a recolha de dados, parametrizados pelas categorias, registados no programa Excel.
As categorias utilizadas fundamentam-se em literatura relevante acima revisitada, trabalhos empíricos anteriores e nos objetivos do estudo, que visam apreender a representação das candidatas às presidenciais de 2021 através da cobertura jornalística televisiva da campanha eleitoral.
5. Resultados
O corpus é constituído por 281 peças noticiosas. Os canais diversificaram as rubricas sobre as presidenciais, nomeadamente a TVI com o programa “Respostas Imperfeitas”, e a CMTV, com as entrevistas aos/às candidatos/as conduzidas pelo jornalista Octávio Ribeiro.
O Telejornal da RTP1 registou o maior número de peças (84), seguido pelo Jornal das 8 da TVI (76), do Jornal da Noite da SIC (65) e do CM Jornal 20h da CMTV (56). É percetível que os canais televisivos tendem a apresentar uma peça por candidato/a, em cada serviço noticioso, excetuando Vitorino Silva que, tendo decidido fazer campanha online a partir da sua casa, teve uma cobertura mais limitada.
Ana Gomes, João Ferreira e Marisa Matias surgem com 40 peças (14,23%) cada um; André Ventura com 39 (13,88%); Tiago Mayan Gonçalves com 35 (12,46%); Marcelo Rebelo de Sousa, que entrou na campanha eleitoral apenas a 15 de janeiro, obteve 33 registos (11,74%); e Vitorino Silva 24 peças (8,54%). Foram anotadas 30 peças (10,68%) que referem várias candidaturas. Por conseguinte, Ana Gomes e Marisa Matias encontram-se no conjunto das candidaturas com maior visibilidade mediática conferida em número de peças.
N = 281 peças noticiosas (difundidas pelo Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20h (CMTV) entre 10 e 22 de janeiro de 2021).
i) Temas dominantes
Os temas dominantes são muito diversos e dispersos nas sete candidaturas. Embora se tenham codificado dois temas principais por cada peça noticiosa, estes foram agregados e agrupados em quatro macrotemas: 1) temas mais diretamente relacionados com a pandemia e o contexto de estado de emergência e confinamento; 2) temas indiretamente relacionados com a pandemia e o estado de emergência; 3) temas associados à campanha e ao combate político; 4) temas específicos da agenda de campanha.
Na campanha de Ana Gomes os temas diretamente associados à pandemia representam mais de um terço dos retratados nas peças, a par dos estritamente ligados ao combate político. Se o contexto de pandemia prevaleceu na agenda noticiosa, o mesmo se poderá dizer do enquadramento político, designadamente, as peças focadas nos apoios à candidata, ou na sua ausência (recorde-se que o seu partido não apoiou oficialmente qualquer candidato/a), bem como nas críticas a adversários, Presidente da República e Governo. A campanha é marcada por um tom mais acintoso. Sobressaem como temas específicos da campanha questões da democracia, corrupção ou justiça, sendo marginais os temas indiretamente relacionados com o contexto da pandemia, como economia, desemprego e trabalho.
Macrotemas | Temas | % |
---|---|---|
Mais diretamente relacionados com o contexto de estado de emergência e novo confinamento | Confinamento | 7,9 |
Crise pandémica | 6,6 | |
Encerramento de escolas | 6,6 | |
Saúde (inclui SNS) | 11,8 | |
Vacinação | 1,3 | |
Subtotal | 34,2 | |
Indiretamente relacionados com o contexto de estado de emergência e novo confinamento | Economia /Empresas | 2,6 |
Emprego/ Desemprego/ Trabalho | 1,3 | |
Subtotal | 3,9 | |
Estritamente campanha e combate político | Apoios à candidatura | 15,8 |
Críticas a candidatos/as, PR e Governo | 13,2 | |
Apelo ao voto | 3,9 | |
Funções presidenciais | 1,3 | |
Subtotal | 34,2 | |
Específicos da agenda da campanha | Democracia (inclui riscos) | 9,2 |
Corrupção | 5,3 | |
Justiça | 2,6 | |
Segurança | 2,6 | |
Ataques a jornalistas | 1,3 | |
Balanço da campanha | 1,3 | |
Comunidade cigana | 1,3 | |
Constituição | 1,3 | |
Cultura | 1,3 | |
Populismo | 1,3 | |
Subtotal | 27,5 |
N=40 peças difundidas no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20h (CMTV) entre 10 e 22 de janeiro de 2021; referenciados 76 temas.
Similarmente, perpassa a cobertura jornalística da campanha de Marisa Matias o novo estado de emergência, com uma expressão de 37,1%. Porém, por contraste, ganham relevância os temas focados nos efeitos sociais e laborais da pandemia e a pobreza (28,2%). São ainda distintivos os temas específicos da campanha, com prevalência dos “insultos”, em referência aos ataques do candidato André Ventura. Tratando-se de uma candidata apoiada pelo BE, o tema dos apoios à candidatura é marginal, sendo também jornalisticamente menos valorizadas as críticas aos adversários, Presidente da República e Governo.
Macrotemas | Temas | % |
---|---|---|
Mais diretamente relacionados com o contexto de estado de emergência e novo confinamento | Crise pandémica | 11,5 |
Saúde (inclui SNS) | 11,5 | |
Confinamento | 9,0 | |
Encerramento de escolas | 5,1 | |
Subtotal | 37,1 | |
Indiretamente relacionados com o contexto de estado de emergência e novo confinamento | Emprego / Desemprego / Trabalho | 25,6 |
Economia / Empresas | 1,3 | |
Pobreza | 1,3 | |
Subtotal | 28,2 | |
Estritamente campanha e combate político | Apelo ao voto | 6,4 |
Críticas a candidatos/as, PR e Governo | 3,8 | |
Apoios à candidatura | 1,3 | |
Balanço da campanha | 1,3 | |
Subtotal | 12,8 | |
Específicos da agenda da campanha | Insultos | 7,7 |
Ambiente | 3,8 | |
Cultura | 3,8 | |
Democracia (inclui riscos) | 2,6 | |
Ataques a jornalistas | 1,3 | |
Igualdade | 1,3 | |
Populismo | 1,3 | |
Subtotal | 21,8 |
N=40 peças difundidas no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20h (CMTV) entre 10 e 22 de janeiro de 2021; referenciados 78 temas.
ii) Comunicação não-verbal
No plano da comunicação não-verbal, os registos recolhidos revelam diferenças significativas no que respeita aos movimentos do corpo, expressão de emoções e indumentária.
Quanto ao primeiro aspeto, Ana Gomes surge com um comportamento descontraído, mas também tenso, enquanto Marisa Matias se apresenta com um ar sobretudo descontraído.
As candidatas também se distinguem na expressão de emoções: Ana Gomes com maior manifestação de assertividade e Marisa Matias demonstrando maior aproximação e nenhuma agressividade ou distanciamento.
Em termos de indumentária, Ana Gomes surge sempre com uma aparência mais formal e Marisa Matias mais colorida e informal.
Eixos de análise | Categorias | Ana Gomes | Marisa Matias |
---|---|---|---|
Movimentos do corpo | Descontração | 40,0 | 67,5 |
Rigidez | 5,0 | 0,0 | |
Sorriso | 17,5 | 20,0 | |
Tensão | 37,5 | 12,5 | |
Total | 100,0 | 100,0 | |
Emoções | Agressividade | 10,0 | 0,0 |
Aproximação | 10,0 | 32,5 | |
Assertividade | 52,5 | 25,0 | |
Cumplicidade | 2,5 | 17,5 | |
Distanciamento | 10,0 | 0,0 | |
Total | 100,0 | 100,0 | |
Indumentária | Colorida | 2,5 | 50,0 |
Formal | 42,5 | 10,0 | |
Informal | 35,0 | 40,0 | |
Sem Colorido | 20,0 | 0,0 | |
Total | 100,0 | 100,0 |
N=80 peças noticiosas difundidas no Telejornal (RTP1), Jornal da Noite (SIC), Jornal das 8 (TVI) e CM Jornal 20h (CMTV) entre 10 e 22 de janeiro de 2021 (Ana Gomes - 40 peças; Marisa Matias - 40 peças).
O contraste entre as candidatas não permite validar a existência de uma cobertura homogénea assente na idealização de um perfil político feminino, aproximando as mulheres de um comportamento mais doce e cooperativo.
Na análise não se identificou a prevalência de entourages femininas a acompanhar as ações de campanha - ainda que se considere que as medidas de confinamento e as recomendações de evitar agrupamentos ou manter o distanciamento social conduziram a uma reorganização das estratégias de campanha, com menos rua e pessoas. Por outro lado, com algumas exceções, não foi percetível uma estratégia da apresentação das candidatas como mulheres, pelo menos comparativamente com o sucedido nas presidenciais de 2016, em que foi mais explorada a novidade de duas candidaturas femininas ao fim de 30 anos. Ainda assim, a análise permitiu recensear ações políticas mais direcionadas às mulheres e ao seu universo de necessidades e preocupações, além da valorização do “ângulo feminino” na abordagem jornalística, sobretudo no que concerne à candidatura de Marisa Matias.
A título ilustrativo, na entrevista à candidata apoiada pelo BE conduzida por Octávio Ribeiro (Jornal CM 20h, CMTV, 14/01/2021, 20h20), este insiste em qualificá-la como “um símbolo do poder feminino”, leitura à qual a entrevistada não adere. Esta limita-se a concordar que “em Portugal nós não temos mulheres a mais na política. […] E acho bem que a política não seja já totalmente só dominada por homens”. Porém, ressalva que considera que as “políticas” preconizadas são o mais importante, reputa de positiva a existência de “variação”, “que tenhamos gostos quer masculinos quer femininos”, desviando-se de uma resposta direta à questão “Há uma maneira feminina de fazer política?”:
Eu acho que a história nos diz que não há propriamente uma maneira feminina e uma maneira masculina. Há políticas que nos distinguem. […] O que é importante é que a gente perceba que a sociedade é composta por homens e mulheres e ser representante das populações significa tentar ser o mais próximo possível das populações. (Jornal CM 20h, CMTV, 14/01/2021, 20h20)
Esta linha de questionamento não é adotada pelo mesmo jornalista quando entrevista Ana Gomes, a 17 de janeiro.
Em algumas situações de campanha, são as próprias eleitoras que rodeiam as candidatas e proclamam uma partilhada condição feminina. Por exemplo, na Mouraria, em Lisboa, onde uma ação de despejo ameaça deixar várias pessoas sem casa, a peça jornalística da RTP capta o seguinte diálogo entre Marisa Matias e uma cidadã:
MM: Vocês são o exemplo de luta, do direito à habitação.
Cidadã: Somos mulheres. É a palavra-chave, somos mulheres.
MM [sorri e concorda]: Sim. (Telejornal, RTP1, 14/01/2021)
iii) Impacto do episódio “Vermelho em Belém”
De forma inesperada, o episódio do “Batom Vermelho”, desencadeado pelo insulto de André Ventura a Marisa Matias, acaba por propiciar um momento iconográfico de afirmação feminina.
Num primeiro momento, a cobertura jornalística das televisões analisadas não destrinça as declarações de André Ventura dirigidas a vários/as candidatos/as, procurando os/as jornalistas recolher as reações dos/as visados/as, numa prática ritualizada assente na exploração noticiosa do conflito. No dia seguinte ao comício em que foram produzidas, a 14 de janeiro, apenas o Telejornal exibe o vídeo das declarações de André Ventura, enquanto nos demais serviços noticiosos são apenas referidas. Há também pouco consenso entre as estações sobre como enquadrar estas declarações: na RTP1 trata-se de “um nível de insulto nunca ouvido numa campanha” (14/01/2021, 20h22); no Jornal das 8 da TVI, as declarações de André Ventura são “críticas” e “palavras menos simpáticas [dirigidas] a todos os adversários” (14/01/2021, 20h33).
A consciencialização sobre o caráter profundamente sexista das declarações ocorre apenas no dia 15 de janeiro, já em sequência da contestação viral às mesmas nas redes sociais. Só nesta data os noticiários de prime time que integram o corpus refletem a posição de vários/as candidatos/as às declarações de André Ventura visando especificamente Marisa Matias e que deram origem ao movimento “Vermelho em Belém”. A própria candidata afirma:
Senti-me muito feliz com a onda de solidariedade em relação a mim e às outras mulheres, que ainda hoje têm de ouvir este tipo de comentários.
O insulto de André Ventura às mulheres não diz nada sobre as mulheres, e diz tudo sobre esse senhor.
No Jornal das 8 da TVI de 16 de janeiro, o pivô assinala:
Aconteça o que acontecer nestas eleições, a campanha fica desde já marcada por uma cor, esta [aponta para os lábios vermelhos do cenário]. Depois de, nas últimas horas, as redes sociais terem multiplicado lábios pintados de vermelho, uma espécie de onda de indignação, depois do comentário do candidato André Ventura, e que tinha como alvo Marisa Matias.
Nas redes sociais Ana Gomes solidariza-se em palavras e em gestos com a sua adversária:
“Estou com todas as mulheres e homens progressistas deste país que o ‘Vermelho em Belém’ faz a diferença”, declara, enquanto pinta os lábios de vermelho. Este momento é destacado em vários serviços noticiosos, como no Jornal da Noite da SIC, numa peça em que se associa o “vermelho” também à ideia “de convergência de esquerda”.
Nas peças noticiosas salienta-se ainda a capitalização deste movimento por parte de dirigentes do BE, o partido que apoia MM. Num comício, a 16 de janeiro, José Manuel Pureza pinta os lábios de vermelho enquanto discursa. Noutra iniciativa, no dia seguinte, o líder histórico bloquista Francisco Louçã declara: “Quem vota à esquerda sabe com quem contamos. E por isso digo-te, Marisa: leva todas as cores do arco-íris mas, por favor, põe o vermelho em Belém”.
Os lábios pintados tornam-se, por outra via, símbolo de empoderamento feminino e de esperança, pela sua apropriação por parte de grupos de mulheres. As peças jornalísticas também ecoam esta dimensão, que converge com uma das bandeiras da candidatura de Marisa Matias, a de dar visibilidade e voz a pessoas em situação vulnerável. A título ilustrativo, tal sucede numa ação de campanha no Porto, em que trabalhadoras precárias do Instituto de Emprego e Formação Profissional envergam uma máscara com a imagem dos lábios pintados.
6. Conclusões
Começa por destacar-se o contraste de imagens jornalísticas das duas candidatas às eleições presidenciais portuguesas de 2021. Em relação a uma das candidatas, esbateu-se o quadro simbólico tendente à idealização do perfil e agenda políticos no feminino, aproximando as mulheres de um comportamento mais doce e cooperativo e também de preocupações sociais, como a pobreza e as desigualdades por esta geradas. Ainda que ambas oriundas do quadrante da esquerda, a apresentação e representação das candidatas traduzem menos homogeneidade e mais diversidade na prestação política no espaço público.
Foi a categoria que definimos como “Insultos” que marcou a agenda da campanha eleitoral das presidenciais de 2021. O insulto é uma ofensa, um ultraje, uma injúria, uma forma de violência verbal, que tem como objetivo humilhar e rebaixar o adversário. O insulto foi a arma política primordial que André Ventura utilizou de forma contumaz, e equitativa, contra todos os adversários políticos.
Em Portalegre, no comício que se realizou a 13 de janeiro de 2021, o candidato procurou ridicularizar e insultar vários dos seus oponentes, tendo como principais destinatários as duas mulheres candidatas à Presidência da República: Ana Gomes e Marisa Matias. A sua intolerância é em relação às mulheres livres, emancipadas, de esquerda, que defendem a igualdade de género e que, por uma ou outra razão, lhe disputam o território machista e o domínio patriarcal.
Ana Gomes é vista como a principal adversária com quem disputa o segundo lugar nestas eleições. Para ela vão os insultos de “contrabandista”, e acaba por a integrar na sua argumentação contra os estrangeiros e contra a comunidade cigana, quando afirma “Ana Gomes não és bem-vinda a Portugal [...] nunca serás Presidente da República”. A candidata, por seu turno, mobiliza-se para o combate direto contra André Ventura. O desígnio maior da campanha é travar o seu arqui-inimigo ideológico (representante da “ultradireita”, como o classifica), o que acaba por aproximar os temas específicos de campanha de ambos.
A partir da análise efetuada da cobertura televisiva, pode concluir-se que a abordagem de género é ativada sobretudo nas peças protagonizadas por Marisa Matias que, tanto no plano da comunicação política como mediática, é mais associada às questões das mulheres, como a precariedade do trabalho, a menor valorização das profissões onde estão em maioria, a violência doméstica, agravadas no contexto de pandemia. Embora resista a este enquadramento, ela é vista como “um símbolo do poder no feminino”. André Ventura escolhe atacá-la precisamente na vertente da afirmação do poder feminino e as suas observações machistas originaram o movimento de solidariedade “Vermelho em Belém”.
Qual é o significado, então, da alusão aos lábios vermelhos? O vermelho simboliza poder, vitalidade, mas também ambição e paixão. Isto afronta e provoca o machismo de Ventura, que não deixa de demonstrar o seu desprezo pelas mulheres, ao ponto de as destituir de vontade própria quando afirma que “não gosta de mulheres pintadas”. Esta atitude, de menosprezo pelas mulheres, é comum na extrema-direita populista e foi usada como arma para as ofender e, simultaneamente, oprimir e estigmatizar. De uma forma geral, é uma reação típica de quem tem medo de perder a sua masculinidade perante uma mulher sem medo.
Dietze e Roth (2020, 7) associam ao populismo de direita “uma obsessão com o género e a sexualidade em diferentes arenas”2, o que significa que as representações que oferecem se pautam por reafirmar o valor da família nuclear heteronormativa, a rejeição da educação sexual e do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ao mesmo tempo que promovem o regresso da mulher ao lar e às suas funções “tradicionais”. O populismo de direita procura, deste modo, resolver a crise da masculinidade nas sociedades ocidentais, reafirmando a masculinidade por meio de estratégias antigénero, tais como cercear medidas antidiscriminatórias e projetos contra a igualdade de oportunidades (Sauer 2020).
A reação contra as palavras de Ventura foi forte e expressiva nas redes sociais, indo além de Marisa Matias e do BE. A situação uniu também as mulheres candidatas. Ana Gomes fez questão de publicar a sua imagem na Internet a pintar os lábios. Sobretudo para os candidatos de esquerda, o vermelho foi apropriado como símbolo, não apenas de solidariedade entre mulheres candidatas, de afirmação da igualdade, mas também do vigor de um projeto ideologicamente situado à esquerda contra as propostas da extrema-direita.
Os locais de indignação generalizada e imediata foram as redes sociais, por onde proliferaram os lábios pintados de vermelho. Devido a este episódio, “a campanha fica desde já marcada por uma cor” (TVI). Porém, a informação televisiva de prime time apenas despertou para o tema reativamente, a partir da intensidade do movimento gerado externamente, noutros fora. Num primeiro momento, a nosso ver problematicamente, as televisões banalizaram estes insultos que incidiram sobre os traços femininos e feministas de uma candidata.