Esta maneira de escrever, que me parece desenrolar-se no sentido da verdade, ajuda-me a emergir da solidão e da obscuridade da recordação individual, a fim de descobrir uma significação mais geral.
Annie Ernaux, Um lugar ao sol seguido de uma mulher (2022, 111)
1. Introdução: afasias pós-coloniais, arquivos e experiências no baú
Não é muito comum iniciar uma introdução com uma nota mais pessoal; porém, penso que é a minha experiência, como a de tantas outras pessoas, que me ajuda a estar, hoje, num lugar de pensamento e de investigação sobre o que foram e o que são as vidas, as narrativas de todos/as aqueles/as que viveram e testemunharam vários contextos históricos que são estruturantes da historicidade colonial e pós-colonial portuguesa. Sou filha de duas vitórias, palavras que curiosamente se escrevem no feminino: a independência moçambicana e a democracia portuguesa. A viragem que se realizou nestes dois países longamente ligados entre si forjou e influenciou os modos de estar e de pensar de milhares de homens, mulheres e crianças. Em 1976, um ano após a independência formalmente reconhecida em Moçambique e dois anos depois da Revolução dos Cravos, desembarquei no aeroporto da Portela. Com 4 anos, viajei sozinha sob a vigilância de uma hospedeira conhecida dos meus pais que permaneceram em Maputo. Até aos 9 anos de idade, de 1976 a 1980, vivi em pensões que o governo português criou de modo a poder acolher as centenas de milhares de pessoas que retornavam ou as que entravam pela primeira vez em Portugal. A experiência da descolonização e do retorno levou-me a viver em duas pensões em Lisboa. Aquelas eram a metáfora do crepúsculo do império, representavam aquilo que o discurso colonial na sua versão mais lusotropicalista ostentava para todos os seus súbditos: éramos muitos e diversos, o que comprovava que Portugal não era um país pequeno. De facto, foi nestas pensões que absorvi as emoções e experiências que, mais tarde, me inspiraram a querer perceber o que verdadeiramente representa para nós o sentido de diversidade cultural e de consciência histórica.
Não obstante os vários trabalhos nas áreas de estudos pós-coloniais, estudos de memória, da antropologia cultural, da sociologia e da história contemporânea portuguesa, não há sinais de nenhuma investigação focada sobre o que foram estes anos de vivência naquelas pensões. Destaco como exceção o romance de Dulce Maria Cardoso O Retorno (2012), onde a autora descreve e analisa ficcionalmente as emoções e enquadramentos humanos de quem a história empurrou para um mesmo espaço de acolhimento. Após este livro, não há registo de mais nenhuma reflexão em torno desses anos de habituação e de reconstrução de vidas no Portugal pós-descolonização. Importa contudo sinalizar alguns trabalhos que vêm demonstrando a carência de vozes na história oficial do Portugal democrático e pós-colonial (Khan 2015; Martins 2015; Martins & Moura 2018; Peralta 2019; Mata & Évora 2021; Ribeiro 2021; Khan e Ribeiro 2022; Sousa, Khan e Pereira 2022). Entre os vários compromissos de trazer estas questões para o debate público, destacam-se textos focados na compreensão dos silêncios e ausências construídos e aceites em torno do que resultou da guerra colonial para quem nela combateu, para as famílias que absorveram os traumas e as mágoas, as feridas dos ex-combatentes. Nesse caminho, urge destacar os trabalhos de Margarida Calafate Ribeiro (2007), de Margarida Calafate Ribeiro e António Sousa Ribeiro (2004; 2013; 2018), bem como de Maria Manuela Cruzeiro (2004), que escreve uma das mais contundentes reflexões sobre o pacto de emudecimento e de esquecimento português coletivo: “Escondemos demasiados esqueletos no armário, que um dia, quando menos esperamos, nos caem aos pés. [...] fingimos que tudo vai bem. Somos exímios gestores do silêncio, mesmo quando falamos. Especialmente quando falamos” (Cruzeiro 2004, 31).
Esta incapacidade ou recusa de olharmos para o nosso passado impede-nos de ver, sentir e mapear outras realidades humanas, essenciais e legítimas para a composição da moldura histórica da colonialidade e pós-colonialidade portuguesa. Esta incongruência com que nos deparamos no espaço democrático português começa a constituir um enorme buraco à medida que vamos testemunhando a existência de tantos arquivos humanos importantes para discernir o pulsar inteiro do que é hoje este Portugal que chama para si o título de um país multicultural. O desconhecimento dos ‘Outros’ que constituem a nossa história coletiva prejudica a construção de um sentido de cidadania ativo, crítico e vigilante. A falta de estímulo político, social e cívico para a partilha de perceções e de perspetivas daqueles/as que refizeram as suas trajetórias de vida e de identidade na sociedade portuguesa resultou numa afasia (Stoler 2011)1 que enfraquece e desestabiliza a ideia de igualdade e de fraternidade histórica. Esta incomunicabilidade tem tido custos elevados nos processos de identificação e de pertença de muitos/as portugueses/as que pela sua tez de pele, religião e origens geográficas são rotulados/as como não-portugueses/as. Associada a esta situação, são ainda visíveis a presença de mecanismos e lógicas de colonialidade que tornam escassas as possibilidades de uma maior inclusão cultural de comunidades portuguesas, embora erroneamente representadas e percebidas como minorias (Khan et al. 2021; Khan 2021a; Khan 2022). Paulo de Medeiros (2015, 8) reflete com grande clarividência sobre a complexidade pós-colonial portuguesa, ao salientar que
As análises académicas da condição pós-colonial de Portugal podem parecer evidentes mas na realidade são prova de um esforço intelectual para confrontar modos de pensar e de agir tão enraizados através de séculos que, apesar de nocivos, aparentam ser naturais. Refiro-me tanto à mentalidade imperialista como ao complexo de inferioridade prevalente pelo menos depois do Ultimato britânico de 1890 (mas que tem raízes muito mais profundas). [...] muito resta ainda por fazer para se compreender como a condição pós-colonial é vivida no quotidiano português.
Esta reflexão crítica vai ao encontro do problema que o presente artigo procura enfrentar. Por um lado, a afasia pós-colonial portuguesa e, por outro, o desconhecimento de arquivos, experiências e memórias humanas tão relevantes quanto essenciais para entendermos que abarcar o pensamento da sociedade portuguesa requer a destreza histórica de criticamente pensar as várias camadas desta intrincada vivência maior que é o povo português dentro de um mosaico ‘colorido’ de vozes e de narrativas. A recusa de nos restringirmos a uma forma única de contar e de reformular a história de Portugal é fundamental para sopesar a responsabilidade, o exercício e o papel da pós-memória no contexto português pós-colonial. De facto, é urgente construir pontes de diálogo, de escuta e de análise de patrimónios familiares escondidos, de vivências que merecem um lugar mais público, uma representação mais efetiva no espólio histórico de Portugal. Com maior rigor, entender a pós-memória é, principalmente, discernir que esta é uma escolha, uma criação ativa e interativa que a todos pertence, na medida em que são muitas e diferentes as experiências, os impactos e as expectativas que emergem do trabalho de identificar dimensões não apenas pessoais, mas certamente familiares, grupais, comunitárias e coletivas. Sair do espaço social exíguo, limitado e apertado que as narrativas hegemónicas produzem (Meneses 2021) é um desafio que as novas gerações têm assumido por se sentirem corresponsáveis e testemunhas de experiências que, não obstante não terem sido nelas sujeitos, são sentidas como parte integrante da sua identidade, da sua visão do mundo. Maria Rice Bellamy (2016, 4) tece, a meu ver, um pensamento claro e iluminador quando observa:
Como testemunhas dos traumas de seus pais, os filhos da pós-memória vivenciam o que Cathy Caruth chama de “a traumatização de quem escuta”. Essa traumatização reflete a quebra de limites subjetivos devido à intimidade tanto do ambiente familiar quanto da relação entre narrador e testemunha. […] Uma representação útil do mecanismo da pós-memória, esta ideia de comunhão intersubjetiva sugere um espaço habitado por narradores e ouvintes, sobreviventes e descendentes, no qual as fronteiras temporais e subjetivas se diluem, permitindo que as memórias de um assombrem e contaminem o outro.2 (Bellamy 2016, 4)
Em “Memória; Resistência; Temperança; Sul; Revoluções”, Bruno Sena Martins relembra o papel familiar como lugar de estabilidade e de uma vigilância atenta aos vários desafios encontrados no contexto de deslocamentos, retornos e desterritorialização pós-coloniais:
[A]cho importante que não nos esqueçamos injustamente daquelas e daqueles que vieram antes. As nossas mães e pais, muitos deles, lutaram num quadro de sentidos que não era favorável a uma articulação confrontacional e, portanto, atuando no seio de resistências quotidianas.
Essa resistência quotidiana, fez com que os nossos pais e as nossas mães escolhessem lidar com as estruturas do racismo, com a precariedade económica definindo como objetivo que os seus filhos pudessem ter um futuro melhor. (Khan e Ribeiro 2022, 100)
Este chão que muitos pisaram representou uma espécie de um encontro novo com maneiras diversas de ser português (Khan 2006; 2009), que se impunha como uma semântica diferente de interrogar os sentidos identitários que, paulatinamente, foram sendo engolidos pelas dinâmicas familiares, pelos seus repertórios de memórias e pelos arquivos de uma história íntima muito distante daquela que circula nas ruas, nos lugares públicos, nos discursos políticos da democracia portuguesa. Como testemunha de partilhas familiares, fui crescendo como um elo entre nós do mesmo fio narrativo, vivendo realidades abissais: entre o interior doméstico e o exterior público. Como salientou Marianne Hirsch (2008; 2012), que inaugurou o termo pós-memória, esta é o exercício entre imaginação e narração, um paradigma não apenas de uma rememoração reparativa, mas, essencialmente, um dever de reformular, reescrever e de reeducar que a segunda geração assume como compromisso, empenhamento, responsabilidade e criatividade perante experiências familiares e intergeracionais assumidas como estruturantes do sujeito da pós-memória. Acima de tudo, a pós-memória é, de acordo com a autora, uma relação temporal e intergeracional ativa, proativa e interativa, já que não é “an identity position but a generational structure of transmission” (Hirsch 2012, 114).
2. Ecologias de saber e a pós-memória no feminino
Escreve Boaventura Sousa Santos que “o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis” (2007, 3). Sirvo-me deste postulado como ponto de partida para manifestar a seguinte assunção: o pensamento pós-colonial português é também ele fruto de uma historicidade fechada, restrita e pouco inclusiva da diversidade humana dos Outros. Em Portugal a Lápis de Cor (2015), investiguei, a partir de entrevistas a vários sujeitos da experiência descolonizadora africana em Portugal, o sentido de pós-colonialidade para eles/as. Muitos/as dos/as entrevistados/as comentavam a inexistência de um conhecimento socialmente produzido e debatido em torno do que era este Portugal pós-colonial a partir das suas histórias de vida. Com rigor, o espólio em torno das vivências de muitos/as que vieram para o território português permanece ainda ausente dos debates públicos, da consciência histórica do que designei por pós-colonialismo do quotidiano (Khan 2015). O desconhecimento dessas outras faces humanas, sociais, culturais e identitárias ecoa ainda hoje nos vários estudos que vão alertando para a ignorância da nossa história maior (Pimenta 2022; Rendeiro 2022; Sousa 2022). Os perigos destas ausências face a uma abordagem unilateral de contar a história danifica todo um imaginário multicultural e democrático (Khan 2015).
De facto, encaminhar a nossa atenção não apenas para a ideia de ausências sociais, mas para a relevância histórica e humana desta ausência de outros saberes e de experiências pós-coloniais é importante por duas razões: por um lado, para uma compreensão cabal do papel da pós-memória na contemporaneidade portuguesa; e, por outro, para uma maior perceção da copresença de uma miríade de visões que importa estudar e mapear. Particularmente, no âmbito deste texto, importa cuidadosamente destacar o papel de uma experiência feminina da pós-memória no labor de trazer para a arena pública todos estes arquivos, espólios e patrimónios construídos como minoritários, secundários e periféricos no imaginário pós-colonial português. Especificar claramente estas duas dimensões - a pessoal e a pública - da pós-memória no contexto português é essencial para demonstrar a flexibilidade e abertura do conceito para outros contextos que não aqueles onde este emergiu - refiro-me ao trabalho de Marianne Hirsch (2012) e ao impacto do Holocausto na segunda-geração (cf. Farges et al. 2018, 82). Hirsch dedica plena atenção ao primor do pensamento, da reflexão e da argumentação feminista como uma alternativa legítima para uma ecologia de saberes3 no que diz respeito a uma infindável lista de problemas sociais, históricos e culturais, muito especificamente: a abordagem feminista sobre questões como memória cultural e intergeracional, género e descolonização, trauma, exílio, abuso sexual, violência doméstica, escravatura. A sua clarividência sobre o empenhamento dos estudos feministas é sustentada em temáticas que mostram bem o escopo que a memória e a pós-memória no feminino representam para a autora:
A escrita feminista sobre abuso sexual e violência contra as mulheres tem-se preocupado intensamente com a memória, o trauma e a transmissão na família e na sociedade. As preocupações com a política da descolonização, exílio, migração e imigração numa perspetiva de género deram origem a questões sobre o arquivo e a transmissão da memória através de fronteiras espaciais e geracionais. (Hirsch & Smith 2002, 3)4
Como salienta Caroline Hong (2020, 130), “ nas duas décadas desde que usou o termo pela primeira vez, ficou claro que as aplicações e implicações da pós-memória não se limitam ao Holocausto, à fotografia, à narrativa gráfica, onde Hirsch começou, mas é um conceito amplo e e portátil, que influenciou o pensamento sobre trauma e memória em variadas histórias, culturas, formas e campos”.5 Particularmente, chamo a atenção para o trabalho de Maria Rice Bellamy (2016) no qual a autora reivindica uma visão menos patriarcal e masculina no modo de pensar e de analisar os traumas, as violências físicas e psicológicas, a resistência e resiliência das mulheres na sua complexa experiência derivada da longa história da escravatura nos Estados Unidos. Na sua análise de romances escritos por mulheres sobre as narrativas, vozes e vivências de mulheres ficcionalmente representadas, Bellamy remete-nos para o que podemos designar de uma pós-memória necessária e urgente de alma feminina, ao salientar o seguinte:
Nestes casos, a identificação com a herança traumática exige que a filha da pós-memória recupere a voz silenciada, o corpo violentado e o conhecimento desacreditado da vítima, ao mesmo tempo que se reconhece como herdeira do legado da violência. As narrativas examinadas em Bridges to Memory manifestam um afastamento do mundo das representações pós-memoriais, geralmente dominado pelos homens. (Bellamy 2016, 8; enfâse minha)6
Alertando para a riqueza de experiências familiares de várias comunidades asiáticas imigrantes, os trabalhos de Ma Vang (2012), Long Bui (2016) e Caroline Hong (2020) apresentam reflexões e pistas estimulantes viradas para uma pedagogia ativa e reparadora ancorada à pós-memória. Salientam que as narrativas históricas oficiais dos países de acolhimento pós-imperial falharam ao praticar políticas de memória que ignoram e rasuram as contribuições destas comunidades e dos seus arquivos para um mapeamento mais inteiro e justo da historicidade social e económica de várias nações que se construíram e enriqueceram pelo esforço de integração destes milhares de imigrantes e das suas gerações (Vang 2012; Bui 2016). Esta “[i]nexistência [que] significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível” (Santos 2007, 4) é claramente sentida nesta vontade de ressignificar os parâmetros e critérios de contar os outros lados da história comprometida em cimentar ausências sociais e uma certa ignorância histórica, cujas implicações resultam na preservação de lados abissais e fraturantes que eternizam estereótipos, rótulos e perceções dos Outros como estranhos, subalternos e minoritários em contextos nos quais estes Outros têm com justiça histórica algo a dizer. Nesse sentido, a pós-memória é um reflexo de uma geração que não aceita viver e habitar em antigas lógicas de colonialidade e de subalternidade, exigindo da sua parte e em nome dos seus antecessores um maior reconhecimento e dignidade sobre o seu passado e, sobretudo, sobre a resistência e luta domésticas e esforços familiares realizados pelos/as seus/suas antepassados/as.
As ferramentas para realizar este caminho de uma cidadania mais participativa e proativa são ampla e extremamente criativas. A vontade de reparar, repor e reescrever as histórias dentro da História (Sousa, Khan e Pereira 2022; Thakkar 2020) é diversa e percorre diferentes áreas de imaginação e de criação: autobiografia, romance, poesia, música, artes plásticas e visuais, teatro, cinema, documentário, pinturas murais, entre outros campos de trabalho da pós-memória, são recursos culturais e identitários que os sujeitos da pós-memória feminina usam para expressar e migrar para os canais de debate e de consciência públicos as narrativas e vivências que eram como espaços em branco na história oficial dos países pós-coloniais e pós-imperiais. Long Bui (2016, 114) exalta este tremendo labor dos filhos e filhas da pós-memória, quando escreve:
O repertório do refugiado aponta para a rica interação entre desejos privados e a procura pública através de gestos corporais, um aspeto crucial da condição de refugiado que não tem apenas que ver com desorientação ou dispersão espacial, mas com reorientações corporais/espaciais. Por exemplo, muitos/as filhos/as americanizados/as dos refugiados/as vietnamitas nunca estão livres de perceções mais amplas dos vietnamitas nos Estados Unidos como “pessoas do barco” ou “recém-saídos do barco”. Como a sua imagem pública neste país está entrelaçada com a de seus pais, a geração seguinte passa a reconhecer a condição de refugiado/a como uma parte central das suas identidades como americanos/as e das suas performances de cidadania cultural.7
3. Pós-memória no feminino no contexto da pós-colonialidade portuguesa
As observações de Long Bui aplicam-se também à sociedade portuguesa, no que diz respeito aos obstáculos e dificuldades que as gerações atuais ainda sofrem em termos de racismo, discriminação e de uma estruturante desigualdade social, económica e identitária. Se não somos tidos como “boat people”, quantos de nós não escutamos no quotidiano, nas ruas e em outros locais frases e atropelos como “preto vai para a tua terra”, “mulatinha boa”, “preto que cheira a catinga”, entre outros insultos que revelam a preocupante falta de conhecimento histórico e social sobre quem são estes Outros e como, também eles, são parte desta cidadania e historicidade portuguesas. Grada Kilomba (2020), em Memórias da Plantação8, é exímia no esculpir, denunciar e retratar a partir de vozes femininas essas internas incongruências, discrepâncias e desequilíbrios sociais e culturais sofridos na pele de muitas mulheres em situações de uma feroz vulnerabilidade laboral e económica. Outras autoras vêm contribuindo com os seus trabalhos, alguns de cariz ficcional, biográfico e autobiográfico, social e antropológico, com todo um manancial de situações, histórias pessoais, familiares e comunitárias que nos implicam a todas nesta urgência de recusar afasias pós-coloniais, ausências humanas que importam para a reescrita e reformulação da história portuguesa colonial e pós-colonial (e.g. Gusmão 2007; Sousa 2017; Peralta 2019; Ribeiro 2021; Khan 2022; Pimenta 2022; Rendeiro 2022). Embora escassos, como observei nas primeiras linhas deste artigo, os trabalhos realizados por mulheres, pensados e sentidos na sua alma e carne, são uma primavera anunciada, o vislumbre otimista para o estudo da pós-memória feminina e feminista da pós-colonialidade portuguesa.
Como herdeira de múltiplos conhecimentos que resultaram do encontro entre culturas e identidades, sinto-me implicada no cuidado que devemos ter relativamente ao modo como assumimos o nosso posicionamento para evitarmos o perigo de autoridades de pós-memória. Para ser mais precisa, importa tomarmos em consideração uma extensa gramática de experiências que não podem e não devem sobrepor-se e valorizar-se em detrimento de outras formas de estar e de pensar a reparação das nossas vozes, dos nossos arquivos e repertórios ocultos e ausentes da memória pública portuguesa. Como sujeito da diáspora pós-colonial, tomei, ao longo da minha vida, consciência clara de que as mulheres que compõem o mosaico da pós-colonialidade portuguesa são muitas e diversas, mulheres afrodescendentes, indianas e brancas de experiência africana (Khan 2009). Dito isto, não será ousado defender e acreditar na assunção de que também a pós-memória no feminino terá de se vigiar no sentido de não cair em armadilhas que possam destacar determinadas narrativas em prejuízo de outras não menos legítimas e importantes.
De facto, a pós-memória no feminino em Portugal tem testemunhado com fulgor e estímulo o trabalho criativo de escritoras afrodescendentes que vêm, com o seu labor artístico e imaginativo, desobedecer aos cânones de uma produção literária muito ocidental e masculina. Com precisão, os romances de Djaimilia Pereira de Almeida, Esse cabelo (2015), Luanda, Lisboa, Paraíso (2018) e Maremoto (2021); de Yara Monteiro, Essa Dama Bate Bué (2018); de Tvon, Um Preto muito português (2017); de Luísa Semedo, O canto da Moreia (2019); e de Patrícia Moreira, As novas identidades portuguesas (2020), são alguns dos títulos que dão corpo a uma nova ecologia de saberes que pretende dar conhecimento dos registos pessoais e sociais das comunidades afrodescendentes habitantes na grande narrativa pós-colonial portuguesa. Na sua maioria são jovens escritoras que trazem para os seus textos outros contextos geopolíticos essenciais e incontornáveis para uma leitura histórica mais completa do que é esta multiculturalidade pós-colonial portuguesa, a partir dos contextos originais dos/as seus/suas antecessores/as, de Moçambique, Angola, Cabo Verde, Goa, São Tomé e Príncipe. Muitas destas ‘filhas’ e mulheres da pós-memória furam o pudor, a invisibilidade, a exclusão, o emudecimento e a afasia pós-colonial subjetivamente vividos e sentidos, revisitando através das suas personagens problemas sociais e comunitários, desigualdades estruturais, lógicas internas de racismo, solidão, exílio cultural, ambivalência identitária, nomeadamente, trazendo para a luz do dia os Outros escondidos, camuflados e esquecidos deste Portugal retórica e aparentemente inclusivo e democrático (Ribeiro 2021). Margarida Rendeiro tece uma leitura assaz vibrante e atenta dos romances de Luísa Semedo (2019) e de Patrícia Moreira (2020), oferecendo uma revisão minuciosa da multiculturalidade portuguesa ao afirmar que “A promoção da imagem de modernidade fundada na multiculturalidade revela-se frágil quando a tensão social, resultante da coexistência de diversas identidades étnico-culturais, reforça o seu desajustamento perante a realidade do país pós-colonial, revelando até que ponto o passado colonial permanece fantasmagoricamente" (Rendeiro 2022, 25).
Porém, é fulcral alargar este nosso foco a outras realidades e sujeitos da pós-memória feminina, tão relevantes quanto constituintes da pós-colonialidade portuguesa. Darei algum destaque às visões e narrativas das ‘filhas’ da pós-memória portuguesa branca de experiência africana e da descolonização portuguesa. Começaria com os romances de Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios (2002), O Vento Assobiando nas Gruas (2002) e A noite das mulheres cantoras (2011), nos quais a narrativa dos retornos, da integração e do encontro dos/as brancos/as de experiência africana com os/as da metrópole são detalhados revelando com o rigor da escrita da escritora os registos de amargura, violência psicológica, subalternização, exílio e perda que marcaram as vidas de muitas mulheres engolidas pela hegemonia cultural, mental, económica e social masculina. Gostaria, mormente, de sinalizar um dos melhores romances que tocam no âmago da nossa pós-colonialidade, O Vento Assobiando nas Gruas, no que concerne à incapacidade de fraternidade, diálogo e reconhecimento equitativo entre povos entrelaçados pela mesma história do colonialismo português. Um trabalho que fala abertamente sobre saúde mental, solidão, manipulação psicológica, racismo estrutural, cegueira histórica e fraturas culturais existentes na sociedade portuguesa com os seus Outros do pós-colonialismo. Embora ficcional, este é um trabalho tão sociologicamente atual quanto o era na altura da sua publicação.
Outros trabalhos que merecem a nossa atenção pela sua coragem e originalidade são, sem dúvida, os textos biográficos/autobiográficos/ficcionais de Isabela Figueiredo em Caderno de memórias coloniais (2009), assim como a continuidade humana e sociológica que a escritora dá nos seus outros livros, tais como A gorda (2016) e, mais recentemente, Um cão no meio do caminho (2022). Em Caderno de memórias coloniais, Isabela Figueiredo perfura todo um imaginário de esplendor e de brilho colonial através da explosão de sentimentos, de vivências ligadas à família e ao comportamento paternal e patriarcal e que servem de metáforas para explorar a hipocrisia da retórica colonialista e a ausência de respeito que os colonos brancos tinham para com a população moçambicana autóctone. As suas palavras escrevem e retratam os corpos colonizados manipulados, violentados, desvirtuados pela arrogância dos brancos, mas é, certamente, o corpo e o olhar da criança e mais tarde da mulher adulta que erguem os véus que ocultam também a mágoa, a dor, o estilhaçar de uma superioridade humana que verdadeiramente não existia, pois, por debaixo de um aparente estatuto superior civilizacional e progressista que sustentava o imaginário da colonialidade portuguesa no seus territórios colonizados, as memórias coloniais desocultadas no encontro inesperado com o Portugal democrático vão fazendo cair as máscaras, os engodos e as ilusões. É forçosamente como filha de um colono branco que a autora se vê confrontada com a realidade crua e inóspita de uma sociedade que olha para ela como retornada, encurralada numa visão social coletiva portuguesa que via todos aqueles que desaguavam em águas lusitanas como retornados indesejáveis. Memória, solidão, ressabiamento e exclusão são nomes que corroem e percorrem doentiamente a mente e corpo descolonizados, que perturbam toda uma vida pensada e imaginada como sendo eternamente africana, não obstante a cor da pele da criança e da mulher. Retomando sob vários outros ângulos a vida dos retornados em Portugal, em A gorda e em Um cão no meio do caminho, a autora intensifica o seu empenho em criticamente pensar o que foram as vidas das pessoas que socialmente foram sancionadas, insultadas e encurraladas numa prisão social e cultural como “retornados”.
Certamente muitos outros trabalhos virão a ser publicados com outros ângulos e outras abordagens que não estes que foram até aqui mapeados. Mas estes exemplos mostram como estamos num caminho e num compromisso de refutar afasias pós-coloniais, de partilhar e de mostrar outras formas ocultas e tidas como inexistentes, que nos permitem pensar e refletir com maior minúcia sobre como tantas outras experiências humanas são necessárias para compormos de uma forma equilibrada, justa, reparadora e plena quer a nossa cidadania, quer a nossa visão histórica da diversidade humana e cultural na sociedade portuguesa. Por escrever estão tantos outros problemas e situações que exigem muito cuidado pela sua delicadeza e complexidade. Como filha e herdeira de uma teia enorme de narrativas, sou e identifico-me não apenas como um sujeito feminino da pós-memória, mas como uma reverberação viva de uma pós-memória polifónica, porque as experiências de mulheres que testemunhei e absorvi - goesas, moçambicanas, portuguesas - são muito diferentes e não podem cair no mesmo rótulo, numa mesma gramática, numa homogénea produção de saber e de conhecimento.
Temas como a violência doméstica, subjugação cultural, solidão, resistência e diferentes crenças religiosas no contexto familiar e saúde mental são ainda arquivos escondidos nas narrativas de vida e de identidades das nossas avós e mães: as ‘filhas’ e mulheres da experiência colonial e pós-colonial de expressão portuguesa. Por isso, é relevante demonstrar nos nossos projetos de pensamento e de investigação a destreza, a sensibilidade e a perseverança de trazer para o lado da partilha e da fraternidade as memórias femininas caladas. Há palavras que precisam ser escritas sem vergonha e de alma aberta - falo de um reconhecimento dos nossos passados, das lutas, resistências, fé e esperança que nos trouxeram até aqui, para delas e com elas nos inspirarmos cada vez mais nesta que é uma responsabilidade que nos aguarda com esplendor e futuros. Termino com Valeria Castro e faço minhas as suas palavras cantadas: “Canta de pulmón/tu historia no se desafía/Eres aliciente/Eres lo que le hace falta a la gente/ Ay, guerrera, yo te llevaré en el alma la vida entera” (2021)9.