Introdução: tirar da sombra, trazer à luz
A sombra do que se desconhece é sempre enorme.
Isabela Figueiredo, Caderno de memórias coloniais (2017, 202)
Este artigo tem por objetivo propor um debate crítico sobre os trabalhos que a antropóloga e cineasta Catarina Alves Costa1 (n. 1967) tem realizado em torno do legado de Margot Dias2 (1908-2001), etnóloga autodidata e precursora em Portugal da utilização do registo fílmico em pesquisas de campo.
A hipótese que colocamos é que, desde que reorganizou as imagens em movimento captadas por Margot3 durante as missões para o estudo dos Maconde4 de Moçambique, dirigidas pelo marido desta, o antropólogo Jorge Dias, entre 1957 e 1961, Catarina tem vindo a prestar, ao longo da sua trajetória científica e artística, um valioso contributo para a compreensão da autonomia dos trabalhos desta etnóloga. Assim, Catarina revela Margot como autora de maior dimensão do que até aqui foi reconhecido.
No documentário Margot5, realizado por Catarina, esta recorda que o primeiro encontro entre as duas se deu em 1996, quando tinham 88 e 29 anos, respetivamente. No dizer de Catarina, em voz off na película, Margot sentiu, nessa altura, que a jovem era uma “aprendiz de antropóloga”6; por sua vez, Catarina intuiu que a longeva etnóloga “tinha estado à espera que alguém interrogasse o seu trabalho”7. É a Catarina quem cabe o pioneirismo dessa interrogação, com a realização de muitas horas de entrevistas em que Margot desfia as suas memórias, fornecendo a matéria-prima para alguns dos trabalhos que a realizadora traria à luz cerca de duas décadas mais tarde: os filmes etnográficos compilados em DVD (2016), e a realização dos documentários Viagem aos Makonde de Moçambique (2019) e Margot (2022).
Por outras palavras, esta pesquisa8 pretende compreender de que forma o olhar de Catarina traz à luz a relevância da participação de Margot nas missões capitaneadas pelo marido, nas quais atuava como assistente, retirando da sombra a sua obra em nome próprio. Tal efeito decorre do modo como Margot e o seu legado são apresentados por Catarina e entendidos pelo público, no tempo presente, o qual se caracteriza por várias transições, sendo a que nos leva das teorias fundacionais do status quo eurocêntrico às novas abordagens da experiência humana com o prefixo pós aquela que nos interessa.
Primeiro, os trabalhos de Margot foram desenvolvidos sob o ideário da política colonial, no âmbito da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português9. Assim, abordar as relações entre observar e ser observado, sob o olhar pretensamente neutro de etnólogos europeus diante de culturas tradicionais africanas - quando os movimentos de libertação de Moçambique começavam a emergir - remete as questões coloniais para a lente da crítica pós-colonial. Sobre o prefixo pós no pós-colonialismo, esclarece José António Dias (2006, 323) que o mesmo “indica não uma divisão temporal, histórica, mas antes uma crítica das estruturas hierárquicas de poder do colonialismo”. Deste modo, o pós-colonialismo, ao analisar criticamente a forma como as consequências do colonialismo são coletivamente partilhadas pelas sociedades que o viveram (McMillin 2009), constitui-se como instância alternativa de reflexão e de produção de conhecimento sobre o passado e o presente.
Segundo, os trabalhos de Catarina resultam de um processo de investigação e criação que interpela a memória. Assim, abordar as relações entre recordar e ser recordado, sob o olhar de uma antropóloga pertencente à geração dos netos de Margot, e que com ela estabeleceu uma relação de proximidade - visando uma experiência marcante, vivida em Moçambique, no período pré-guerra colonial - submete as questões recordadas à lente revivescente da pós-memória. Proposto por Hirsch (2008), o conceito de pós-memória refere-se à relação mnésica que as pessoas estabelecem com experiências traumáticas, vividas por entes significativos, num tempo anterior ao seu nascimento. Relatadas de forma sentida na primeira pessoa, essas experiências passam a constituir memórias dos que as escutam, a partir de um “sentido de conexão viva”10 (Hirsch 2008, 104), tornando-se estes os seus guardiões. Procurando expandir o sentido deste processo de transmissão, Sarlo reflete sobre a “memória de segunda geração” admitindo também outros factos abrigados “na rememoração da experiência” (2007, 18). Vecchi (2020, 3) valida esta proposta, reconhecendo que há que atender ao “problema mais amplo e universal da salvação de passados incómodos e ameaçados”.
Não surpreende que Ribeiro (2019, 7) postule a complexidade da constituição da pós-memória, pois esta não se baseia “numa simples transmissão, antes implica um posicionamento activo […] de membros de uma segunda geração”, dependendo “da capacidade e da disponibilidade dos sujeitos para se envolverem aprofundadamente num processo de construção” (Ribeiro 2022, 14). Com efeito, a transmissão acontece igualmente na memória coletiva, na memória cultural ou na memória geracional. Todavia, a problematização que Paez e Liu (2011) fazem destes conceitos sugere a ausência do “posicionamento ativo” e do “processo de construção”, já que estes se referem a experiências que reforçam os valores culturais dominantes.
Também Khan (2016, 363) defende uma pós-memória que vá para além da partilha espontânea de experiências entre gerações. Segundo a autora, a pós-memória efetiva-se ao trazer à tona memórias guardadas no espaço da intimidade, a partir do estabelecimento de relações de confiança, da “vontade de resgatar silêncios [...] e de resistir salutarmente ao esquecimento”.
Deste modo, propomos que o contributo de Catarina para a compreensão do legado de Margot seja entendido à luz de um processo de pós-memória. As memórias transmitidas por Margot a Catarina não se confinam ao espaço/tempo da relação entre ambas; são sobretudo matéria para a obra que a antropóloga e cineasta desenvolveu a partir de um posicionamento e da sua capacidade e disponibilidade para a construir. Ao abordar o trabalho de Margot sob a lente da crítica pós-colonial, Catarina também “procura o olhar da outra realizadora, que conheceu no fim da sua vida”11, usando a lente da pós-memória.
Para ensaio da nossa hipótese, reunimos toda a informação à qual tivemos acesso e que nos sugeriu, desde logo, uma abordagem multimétodo com recurso a técnicas de análise qualitativa. A revisão de literatura compreendeu vários tipos de escritos de e sobre Margot e Jorge Dias e Catarina Alves Costa: trabalhos científicos, recortes de imprensa, sinopses, notas de intenções, e a brochura que acompanha a coleção de DVDs (fundamental para o aprofundamento do conceito de antropologia visual e para entender a obra de Margot). O visionamento interpretativo de audiovisuais incluiu os filmes etnográficos realizados por Margot, bem como a entrevista12 que concedeu a Catarina e a Joaquim Pais de Brito, à época diretor do Museu Nacional de Etnologia (MNE), incluída nos DVDs; Viagem aos Makonde de Moçambique, numa sessão do projeto Cultures, Past & Present13 (com a presença e comentários da realizadora), bem como o mais recente Margot e seu trailer. A visita ao MNE para observar criticamente o acervo relacionado com o trabalho desta etnóloga fez também parte da metodologia. Por fim, analisámos outros suportes de comunicação da obra fílmica de Catarina, como cartazes e capas de DVDs.
Apresentamos de seguida os principais aspetos que concorrem para o ensaio da nossa hipótese.
Margot Dias: de pianista a etnóloga autodidata entre os Macondes
O que sempre desejei não está lá escrito porque os desejos da mulher não podem existir.
Paulina Chiziane, Ventos do Apocalipse (2021, 271-272)
Margot Schmidt, alemã, era pianista quando conheceu Jorge Dias, português, antropólogo e professor, a lecionar língua portuguesa na Alemanha, no fim da década de 1930. Casaram-se em 1940. Margot interessava-se por etnologia, assinando revistas especializadas. De acordo com West (2006), terá sido ela quem sugeriu ao marido esta área de estudos, como possibilidade de conciliação entre o prazer de conhecer culturas tradicionais e o exercício de uma profissão académica. Em 1944, já com dois filhos, decidem viver em Portugal. Numa afirmação sobre o contexto do país que encontrou, Margot revela: “As mulheres iam coser as meias e cozinhar e eu não queria”14.
Segundo Lupi (1984), a até então pianista começa a fazer a sua transição profissional em 1947, com a admissão no Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, como coletora musical, aí permanecendo dez anos. Para isso, teve de ler e estudar por conta própria. Nas suas palavras, na condição de autodidata “tem que se pensar muito mais, para perceber […] eu tenho pensar próprio”15. A sua paixão pela etnologia é explicitada nesta afirmação: “é muito forte esta impressão de estar com pessoas de uma outra cultura, tentar percebê-los” (Costa 2016, 16).
Em 1957 integrou o quadro da Junta de Investigação do Ultramar, sendo efetivada como primeira assistente, já na MEMEUP, em 1958. É nessa circunstância que acompanha Jorge Dias, responsável por dirigir, entre 1957 e 1961, três missões em Moçambique, com foco no Planalto de Mueda16. Na entrevista, Margot confidencia: “O António17 não queria que eu entrasse na Missão. Foi o Adriano Moreira18 que insistiu”19.
Na primeira expedição, em 1957, não levaram câmara de filmar porque, na visão de Jorge Dias, para além de dispendiosa, era desnecessária. Foi por insistência de Margot que, em 1958, houve verba para a adquirir. Os filmes etnográficos são um registo da vida do povo Maconde: as sociabilidades, os rituais, as artes, as tecnologias, e a construção de instrumentos musicais, como os lamelofones.
As expedições geraram quatro monografias sob o título Os Macondes de Moçambique. O volume I é dedicado a “Aspectos Históricos e Económicos”; o volume II refere-se à “Cultura Material”; o volume III presta atenção à “Vida Social e Ritual”; e, por fim, o volume IV revela a “Sabedoria, Língua, Literatura e Jogos”. Margot é coautora, com o marido, dos volumes II e III. Pelo volume II, receberam o Prémio Gago Coutinho e pelo volume III foram galardoados com o Prémio Abílio Lopes do Rego (Lupi 1984, 411). O volume V, sobre escultura e música, especialidades de Margot, nunca foi editado.
Margot fez sozinha a viagem ao Planalto, em 1961, para concluir o estudo para este volume. Para além desta pesquisa, sabe-se que realizou outras sozinha como, em 1959, sobre os Chopes, em Gaza. Após o término das missões, em 1962, Margot foi elevada à categoria de investigadora no Centro de Estudos de Antropologia Cultural.
Os filmes de Margot são exibidos atualmente como objetos curatoriais no MNE, todavia sem a contextualização que permita entender quem foi a sua realizadora, o que representaram à época e o que podem significar nos dias de hoje20. Sarmento e Martins notam também que nas fichas de catalogação das amostras de produtos usados pelos Maconde, expostas no MNE, “pode-se ler que [...] foram recolhidas por Margot Dias, que o visitante mais incauto não sabe quem é” (2020, 26).
Margot Dias para além de Jorge Dias
… se a mulher pretende um reconhecimento igual ao do seu parceiro masculino deve trabalhar duas ou três vezes mais.
Paulina Chiziane, “Eu, mulher… por uma nova visão do mundo” (2013, 203)
Jorge Dias é reconhecido por vários autores (Lupi 1984; West 2006; Leal 2016) como o etnólogo português de maior renome internacional. Foi também o grande impulsionador da criação do MNE, em 1965, tendo sido, em conjunto com os investigadores das missões21, responsável pela recolha do seu extenso acervo de cultura material. No seu “pensar próprio”, Margot problematizava: “A inexistência de museus de Etnologia pode ter sido uma das causas da falta de respeito pelas culturas africanas” (Dias 1990, 9).
Sobre o casal Dias, Sanches esclarece que Margot viveria à sombra do seu marido, fornecendo-lhe apoio de forma constante “como seria de esperar em tempos de defesa da divisão de papéis de género” (2017, 714), o que também justifica a sua presença nos espaços de intimidade das mulheres Maconde, inacessíveis aos restantes investigadores. Margot observava que os rituais de puberdade femininos funcionavam para as mulheres como “uma espécie de vingança do autodomínio a que têm de sujeitar-se na vida quotidiana, no convívio com os homens e no respeito pelo costume” (Dias e Dias 1970, 229). Através das mais variadas expressões, como a dança e o canto, em momentos de convívio e diversão, elas “procuravam evidentemente desforrar-se” (Dias e Dias 1970, 233). O olhar de Margot apresenta-se, assim, como fundamental para conhecermos a condição da mulher Maconde.
Margot, como artista, teria uma visão mais ampla da realidade do Planalto do que a dos demais investigadores. O olhar de Margot, “emotivo e cúmplice”22, captava as centelhas das transformações que já se pressentiam naquele território. Em Margot, a etnóloga recorda o cuidado com que foi tratada em 1961, quando lá regressou sozinha: os macondes evitaram falar-lhe sobre o massacre de Mueda23, ocorrido no ano anterior, para não comprometer a relação que haviam construído.
A indissociação do trabalho de Margot do empreendido pelo marido não parecia ser um ponto de reflexão para ela. Questionada sobre os cadernos de campo de Jorge Dias, afirmava: “Não se pode dizer, hoje, o que é de um ou de outro”24. Ao mesmo tempo, apontava para um armário onde os cadernos estavam guardados, no qual só foram encontrados originais com a sua caligrafia.
Entre os escritos de Margot contam-se também vários diários. De acordo com Cook (1978, 53), este tipo de registo “sempre foi uma forma de autoexpressão para as mulheres, para as quais outras vias estavam fechadas”25. Apesar de tal peia, como sabemos, a “marca” de Margot não se restringiu à criação de suporte escrito; destacou-se sobretudo no suporte fílmico, e também no sonoro, com som captado in loco e incorporado, a posteriori, na edição dos filmes etnográficos.
O facto de não ter publicado o volume V, referente a escultura e música, é justificado por Margot por não ter tido tempo suficiente para investigar, o quanto gostaria, a música dos Maconde. Com o falecimento de Jorge Dias, em 1973, Margot confrontar-se-ia com um dilema irresolúvel: “como publicar [o volume V] assinando com Jorge Dias sem saber se ele concordaria com o que estava escrito?” (Pais de Brito cit. em Canelas 2016). A publicação do livro O fenómeno da escultura Maconde chamada «moderna», de sua autoria, no mesmo ano, no qual reflete sobre questões estéticas e técnicas (Laranjeira 2017), pode ter sido a solução para não deixar na gaveta uma parte da investigação realizada. Em 1986, publicaria uma outra parte em Instrumentos Musicais de Moçambique, sobre o qual o prefaciador (Kubik 1986) enfatizava a originalidade e o rigor científico, recomendando a edição do volume V.
Catarina reconheceu, desde cedo, o pioneirismo do trabalho desenvolvido pela etnóloga, procurando “perceber de que modo a figura de Margot Dias, embora muitas vezes considerada periférica […], foi tão importante para o arranque de uma agenda de investigação que implicava o uso da imagem em movimento” (Costa 1998, 140), e destacando a figura de ponta que Margot representa numa área que, à época, se encontrava sob dominação masculina. Já em 1931, Virginia Woolf questionava os lugares permitidos às mulheres:
passará um longo tempo antes que uma mulher possa sentar-se para escrever um livro sem encontrar um fantasma para ser assassinado [...]. E se é assim em literatura, [...] como será nas novas profissões em que estão-se a incorporar agora pela primeira vez? (Woolf 2008, 51).
A simbiose profissional entre o casal Dias, num contexto em que muitas profissões estavam vedadas às mulheres, bem como o pioneirismo de Margot no uso da imagem em movimento na etnologia, justificam o interesse em aferir a relevância da sua participação nas missões e a real dimensão da sua obra. Recuperando a questão lançada por Carvalho: “A autoria feminina é capaz de inverter a relação patriarcal entre sujeito e objeto do olhar?” (2021, 2).
Margot Dias e a questão da autoria no feminino
Antes - agora - o que há de vir
[...] Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo do mundo.
Conceição Evaristo, Poemas da recordação
e outros movimentos (2017, 23)
A questão da autoria em Margot Dias parece-nos constituir um campo fértil de hipóteses a investigar. Aquela que aqui pretendemos ensaiar é a possibilidade de, através da lente revivescente da pós-memória, a obra de Catarina revelar Margot como autora de maior dimensão do que até aqui se havia admitido. Para tal, cruzaremos essa obra com o pensamento de vários/as autores/as, a fim de chegar a algumas conclusões.
Retomando a divisão de papéis enunciada por Sanches (2017), percebemos que a mesma é replicada nos processos de construção da memória através desta afirmação de Perrot (1989, 15): “Os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade. O mesmo ocorre com o seu modo de rememoração, da montagem […] do teatro da memória”. Ou seja, tem cabido às mulheres o cuidar do testemunho intergeracional, fixando determinadas práticas como “a transmissão das histórias familiares, [...] de mãe para filha, ao folhear álbuns de fotografias, aos quais, juntas, acrescentariam um nome, uma data, destinados a fixar identidades já em via de se apagarem”.
Catarina transpõe, em certa medida, as práticas acima descritas, características do espaço privado, para produções audiovisuais que, quando divulgadas no espaço público26, contribuem para retirar Margot do lugar periférico que lhe havia sido reservado. Para tal, faz uso de vários tipos de auscultação a Margot, projetando-a para um novo lugar enquanto sujeito da História. É precisamente neste lugar que a natureza e a dimensão do seu trabalho é revelada.
A sua personalidade é retirada da sombra através da lente da crítica pós-colonial, sobretudo nos documentários, quando Catarina confronta o passado das missões no contexto do colonialismo português com o presente independente da sociedade moçambicana. Na nota de intenções de Viagem aos Makonde de Moçambique, a cineasta afirma que pretendia usar na montagem do filme “material de arquivo que mostra o mundo que não se vê nas imagens de Margot” (Costa s/d, 41). Catarina referia-se a registos que revelam o mundo dos colonos e dos movimentos de libertação, que propõem uma reflexão sobre as missões no contexto do seu tempo, ressignificando-as no presente. Também Margot demonstra a presença da lente da crítica pós-colonial ao problematizar o significado dos filmes etnográficos para os macondes de hoje.
A dimensão do trabalho de Margot é trazida à luz através da lente revivescente da pós-memória, uma vez que a relação entre ela e Catarina não se esgota na “simples transmissão” de memórias; estabelece antes um diálogo entre gerações e um cruzamento de metodologias de trabalho, que amplificam a voz da etnóloga, bem como o olhar da antropóloga e cineasta. Aquando da apresentação de Margot no porto/post/doc 2022, Catarina assumia: “O que eu faço é uma tentativa de reconstituição de um processo de memória. No entanto, esta é uma memória que não é minha. Ou seja, projecto a minha memória numa memória mais antiga” (Costa 2022).
Este processo pode ser esclarecido à luz da ideia de Lejeune (2014, 225) de que “o autor é, por definição, alguém que está ausente”, mas que se revela pela sua capacidade de interpelação. Quando um trabalho lança questões e suscita emoções, experimentamos o desejo de o conhecer melhor. Lejeune explica este efeito, definindo-o como uma “ilusão biográfica” em que o autor seria a resposta que é dada à interpelação feita pela sua própria obra. A cronologia dos trabalhos de Catarina - o trabalho empírico com Margot27 (segunda metade da década de 1990), a reorganização dos filmes etnográficos em DVD (2016), o documentário contrapontual Viagem aos Makonde de Moçambique (2019) e o documentário com notas biográficas Margot (2022) - parece validar a utilização da lente da pós-memória a favor da visão defendida por Lejeune. Aliás, Catarina refere que Margot é resultado, em parte, do “impacto que ela teve em mim, quando eu era jovem” (Costa 2022).
A relação entre autoria e tempo já havia sido alvo da atenção de Possenti (2002, 112-113), quando defendia que “pode-se dizer provavelmente que alguém se torna autor quando assume (sabendo ou não) fundamentalmente duas atitudes: dar voz a outros enunciadores e manter distância em relação ao próprio texto”. Embora Margot visse os filmes etnográficos como “blocos de notas”28, ou seja, sem a linguagem própria do cinema, organizou-os de forma minuciosa. Neles vemos os Maconde enquanto protagonistas da sua cultura, ou seja, usando a sua voz enquanto “subalternos” (Spivak, 2021) do sistema colonial. Talvez por isso, Margot afirmasse que os filmes pertenciam aos moçambicanos.
Por outro lado, a reorganização que Catarina faz dos filmes de Margot estabelece a sua distância relativamente ao próprio “texto” - a antropóloga começou “por ver nestes filmes um Atlas, um sistema de pensamento” (Costa 2022) - o que induz ao reconhecimento da autoria da etnóloga, neste caso através do surgimento de uma diferente voz autoral instituída pela relação entre ambas. O “lugar autoral feminino” (Carvalho 2021) é também identificado na relação cerzida com os Maconde, tanto por Margot como por Catarina, ou seja, pela voz dada a outros enunciadores, segundo a formulação teórica de Possenti. Catarina parecia estar ciente desta relação desde o início, uma vez que entendia o filme etnográfico como “uma construção que passa pelas ideologias e interesses de quem o faz, dos que nele participam como personagens, [...], partindo do princípio também de que a Antropologia perdeu, de certo modo, a ‘inocência epistemológica’” (Costa 1998, 1). Anos mais tarde, ao discutir questões de antropologia visual, contrapunha a autorrepresentação à relação unidirecional entre observadores e observados, ou seja, ao “acto de filmar o outro hierarquicamente pensado como ‘a ser representado’” (Costa 2014, 4). Na sua visão, o “jogo” entre observadores e observados inclui a manipulação consciente “da forma como se querem ver na sua alteridade” (Costa 2014, 8).
Em todo este processo, o “posicionamento ativo” de Catarina parece manifestar-se de variadas formas, inclusive quando comparamos o cartaz de Margot com a capa da coleção de DVDs.
Fonte: Margot Dias (2016), Filmes etnográficos e filmSPOT (https://filmspot.pt/filme/margot-1037722)
Estes formatos apresentam a mesma foto em destaque. O tom caramelo usado como fundo é semelhante nos dois, o que reforça a ideia de continuidade. No cartaz, o fundo com a caligrafia de Margot evidencia as suas sistematizações como método de trabalho. A sua assinatura manual ganha destaque no título do filme. A duplicação da foto indicia que a memória do passado foi retomada no presente, sintetizada em imagens, pela lente da pós-memória. À foto a preto e branco, do passado, sobrepõe-se a colorida que evoca o tempo presente, remetendo para as “temporalidades sobrepostas” de Macedo, Almeida e Zanete (2022). Essa foto, impressa em papel, é segurada por uma mão negra e outra branca, convocando a relação entre o “eu” e o “outro”, tema incontornável na abordagem pós-colonial.
Uma certa releitura é o que parece resultar dos filmes do presente que tratam de filmes do passado. Traverso (2012, 161) alerta para o facto de que esta “tem sobretudo a ver, […], com a nossa forma de ver o mundo em que vivemos e a nossa identidade no presente”, validando o que já Rosenstone (1995) havia proposto sobre o filme enquanto modo de vermos o passado. A revisão de Catarina, ao tirar da sombra o trabalho empreendido por Margot, estabelece a relação entre o passado colonial e o presente independente a partir da lente da crítica pós-colonial.
É possível perceber também um certo espelhamento nestes filmes, realizados por uma mulher de câmara na mão inspirada por outra mulher de câmara na mão. Não será por acaso que Catarina afirma ver-se como uma espécie de “alter ego” de Margot (Costa 2022) já que, tal como ela, vai à procura de imagens. Em Margot, Catarina afirma: “Repito o gesto frágil de filmar a vida que acontece” (15’41’’ - 15’44’’). Em resultado da fecunda relação entre ambas, Catarina produz uma obra de fundamental importância para trazer à luz Margot Dias, “a mais importante antropóloga visual portuguesa do século XX”29, a partir da lente revivescente da pós-memória.
Da sombra à luz: conclusões possíveis e (ainda) algumas perguntas
A imbricação da história, da memória e da justiça está no centro da vida colectiva.
Enzo Traverso, O passado, modos de usar (2012, 107)
Este artigo pretendeu evidenciar o modo como os trabalhos de Catarina Alves Costa demonstram a relevância da autoria de Margot Dias na etnologia portuguesa.
Em que medida ser mulher, nas décadas de 1950/60, atuando em parceria com um renomado académico, seu marido, poderá ter contribuído para que fosse relegada para um papel secundário, embora tenha desenvolvido trabalhos autónomos e inovadores que denotam a sua autoria?
A reflexão que se impõe é o quanto a vivência pessoal poderá moldar a autoria de uma obra. A relação entre biografia e autoria é também retomada na reflexão de West (2006, 184): “De que modo é que as complexas experiências da vida de Jorge Dias e Margot explicam as contradições do seu trabalho?” A este respeito, Leal (2016) põe a hipótese de que, se os filmes etnográficos fossem realizados hoje, Margot provavelmente incluiria os seus comentários, envolvendo-nos na sua subjetividade.
Os filmes etnográficos são o elo entre as duas pesquisadoras/artistas e entre dois tempos, validando as palavras de Paulina Chiziane (1990, 12): “O passado persegue-nos e vive connosco cada presente”.
Este processo de tirar da sombra e trazer à luz, que constituiu o objeto de investigação, conduziu a que a interpretação de filmes e de outras formas de representação imagética (fotos e desenhos) permitissem restaurar um passado que evidencia a dimensão do legado de Margot Dias, investigadora multifacetada e precursora da antropologia visual em Portugal. Este legado é tanto mais admirável se atendermos à condição feminina no tempo e nos espaços em que trabalhou.
Catarina ressignifica o trabalho de Margot, para que seja conhecido por outros públicos, inserindo-o nas discussões pós-coloniais através de um processo de construção de pós-memória, de uma certa forma, atualizando-o para o século XXI. Olhando nos olhos de Margot, Catarina identifica e preenche um espaço nunca reivindicado pela etnóloga - “o imaginário e a história de quem filmou ficaram de fora”30 - mas que lhe pertence.
Os filmes em que Catarina revela Margot têm merecido vários tipos de reconhecimento, como o Prémio FCSH para melhor projeto das oficinas Arché, do DOCLisboa 2018, para o desenvolvimento do guião do filme Viagem aos Makonde de Moçambique.
Uma vez que o ensaio da nossa hipótese sugere a sua validação, seriam justificáveis a escrita de uma biografia crítica de Margot Dias, revelando o seu pioneirismo na realização dos filmes etnográficos em Portugal, a publicação do volume V, como era previsto inicialmente, e a criação de um material educativo no MNE31 a fim de dar a conhecer ao público quem foi a etnóloga e o trabalho que realizou.
A sombra de uma mulher e a sua câmara (ainda) pairam sobre os Macondes de Moçambique e é nesta senhora sombra, em que ela e a câmara formam uma unidade, bem como no exercício de pós-memória de Catarina Alves Costa, que mais perguntas poderão ser convocadas. Discursos artísticos como A Tendency to Forget (2015)32, da artista plástica e investigadora Ângela Ferreira, também direcionam o olhar para a obra de Margot Dias, revelando uma aproximação diferenciada e crítica, que confirma mais ângulos a serem explorados, num diálogo entre sombra e luz, contrariando a tendência ao esquecimento.