1. Introdução
Compreendendo o feminicídio - ou femicídio - como o resultado de um sistema combinado de opressões e violências físicas, morais, sexuais, sociais, raciais, econômicas e políticas vividas cotidianamente pelas mulheres, é possível analisar projetos artísticos originados em diferentes países das Américas sob os mesmos conceitos de produção de memória coletiva e viabilização de espaços sensíveis para dialogar o trauma. Entre os trabalhos selecionados para análise, destaca-se o uso de abordagens similares com o intuito de denúncia através do impacto visual. Se considerarmos o uso dos vestidos brancos manchados de vermelho nas performances da artista brasileira Panmela Castro, os sapatos vermelhos das intervenções da artista mexicana Elina Chauvet, e o REDress Project idealizado pela artista métis Jamie Black no Canadá, podemos verificar que os três projetos se relacionam como capítulos diferentes de uma mesma história de resistência contra as violências domésticas e de gênero, utilizando objetos do cotidiano de forma a conscientizar sobre o feminicídio e a memória das vítimas, bem como a trajetória de sobreviventes. A análise parte das reflexões de Hirsch e Smith (2002) sobre feminismo, memória cultural e pós-memória, em diálogo com o conceito de femigenocídio cunhado por Rita Segato, também dialogando com reflexões sobre memória e sensibilização a partir de Laurie Clark e Diana Taylor, demonstrando como a produção artística aqui discutida está alinhada com iniciativas comunitárias mais amplas de produção de memória sobre o feminicídio e a violência de gênero.
2. Femigenocídio e pós-memória
O Brasil e o México ocupam, respectivamente, o quinto e o sexto lugar do ranking de países com maior incidência de feminicídios publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU Mulheres 2017), e foram condenados por negligência estatal perante casos de feminicídio e violência de gênero pela Corte Interamericana de Direitos Humanos1, com o feminicídio sendo considerado um problema de caráter epidêmico, o que também ocorreu com a Guatemala. O Brasil lidera o ranking mundial de países com maior número de assassinatos de mulheres transexuais e travestis e o México fica em segundo lugar na lista2. Entretanto, apesar de países latino-americanos liderarem tais rankings, o feminicídio e a violência de gênero também se apresentam com intensidade no restante do continente americano, ainda que de forma mais invisibilizada culturalmente quando as vítimas não são mulheres brancas. Assim, podemos pensar no exemplo do Canadá, país em que mulheres indígenas são afetadas pela violência em um percentual seis vezes maior que mulheres brancas3.
A partir do pensamento da antropóloga argentina Rita Segato (2020), referência essencial para pensarmos a violência de gênero no continente americano, entendemos a questão do feminicídio como um fenômeno de extermínio das mulheres, seja em seu caráter de violência íntima, seja em seu caráter de violência impessoal em situações sancionadas pelo Estado ou pela dominância de um Segundo Estado - pensemos na dominância de cartéis ou milícias em algumas regiões da América Latina, por exemplo. Entretanto, a pesquisadora também aponta para a eliminação sistêmica de mulheres e meninas pelo sistema patriarcal através do conceito de femigenocídio (Segato 2020, 163). O femigenocídio seria o extermínio de caráter impessoal e sistemático de mulheres, especificamente de mulheres pertencentes a grupos mais vulneráveis, e cuja execução passa por um filtro de impunidade pelas estruturas do Estado colonial e patriarcal, tendo em vista que essa violência é, em sua maior parte, direcionada às mulheres negras, indígenas e trans.
Segato propõe o conceito de diferenciação para evidenciar a dimensão pública desses crimes que, segundo a autora, configuram um novo tipo de guerra contra as mulheres, o extermínio sistemático de uma categoria humana delimitada pelo gênero. A individualização que cristaliza o feminicídio dentro da categoria do doméstico, íntimo ou privado, de acordo com a autora, reforça estereótipos e “contribui para que os crimes contra as mulheres continuem sem ser percebidos pela opinião pública como ocorrências plenas da esfera pública por direito próprio”4 (Segato 2020, 94). Ou seja, possibilita a manutenção, no imaginário coletivo, de máximas como “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, utilizada para eximir sociedade e Estado, bem como invisibilizar culturalmente os grupos mais afetados.
Partindo dessa elaboração sobre o extermínio através da categoria de gênero, também podemos refletir acerca das formas de produção de memória coletiva e a necessidade de uma comunidade afetiva de acordo com o pensamento de Maurice Halbwachs (1990, 33). Assim sendo, é possível estabelecer paralelos entre o ainda recente trabalho sobre a memória das mulheres vítimas de violência de gênero nas Américas e o trabalho de instituições de memória focados em períodos de repressão como as ditaduras civis-militares na América Latina, por exemplo, com o uso de imagens e documentos de mortos e desaparecidos, ou ainda as instalações do artista francês de origem judaica Christian Boltanski (1944-2021) com fotografias e pertences de vítimas do Holocausto.
As estratégias de materialização da ausência são centrais nos processos artísticos contemporâneos que abordam o feminicídio através da busca por justiça encabeçada por sobreviventes e familiares de vítimas. A manutenção da memória dessas vítimas insere tais produções artísticas feministas em um contexto coletivo de troca de memórias traumáticas e valorização de experiências das pessoas afetadas como parte da discussão sobre a cultura vigente e a construção de políticas públicas para que o continuum de violência, exacerbado pelo colonialismo e por regimes de repressão, possa ser parado, ou ao menos desacelerado, para as próximas gerações. Essa articulação pode ser inserida no esforço de “expor as estruturas psicológicas e políticas de esquecimento e repressão que têm desempoderado as mulheres ou permitido que elas encobrissem suas dolorosas vidas passadas”5, como afirmam Hirsch e Smith (2002, 4) no contexto da pesquisa feminista em memória e contra-memória. E, ainda que opere em termos de prática artística, se apresenta como uma ferramenta interessante para mobilização comunitária, produção de memória e fonte de pesquisa que possibilita um diálogo interdisciplinar, além de possibilitar que essa memória invisibilizada possa irromper em espaços públicos, locais demarcados pela história oficial, mas que também são, por excelência, espaços de revolta.
Sendo assim, também podemos verificar que as produções artísticas analisadas são perpassadas pela noção de “atos de transferência” de Paul Connerton, referido tanto por Hirsch e Smith (2002, 5), quanto por Diana Taylor (2003, 1-52), que dedica um capítulo inteiro a destrinchar as formas como esse processo ocorre através do ato performático. Em Hirsch e Smith, essa noção é creditada como sendo responsável pelo entendimento sobre o que é memória cultural:
[...] um ato no presente pelo qual indivíduos e grupos constituem suas identidades ao relembrar um passado compartilhado com base em normas, convenções e práticas comuns e, portanto, frequentemente contestadas. Essas transações emergem de uma dinâmica complexa entre passado e presente, individual e coletivo, público e privado, lembrança e esquecimento, poder e impotência, história e mito, trauma e nostalgia, medos ou desejos conscientes e inconscientes. Sempre mediada, a memória cultural é o produto de experiências pessoais e coletivas fragmentadas, articuladas através de tecnologias e mídias que moldam e ao mesmo tempo transmitem memória. Os atos de memória são, portanto, atos performáticos, representação e interpretação. Eles requerem agentes e contextos específicos. Podem ser conscientes e deliberados; ao mesmo tempo, e isto é certamente verdade em caso de trauma, podem ser involuntários, repetitivos, obsessivos6. (Hirsch e Smith 2002, 5)
As autoras também atentam ao fato de que as dimensões de gênero, raça e classe permeiam todas as escolhas e disputas no âmbito cultural, o que é lembrado, o que é esquecido e quem determina as imagens, relatos, memórias e códigos que são preservados e transmitidos (Hirsch e Smith 2002, 6). Os trabalhos artísticos examinados a seguir, além de estarem inseridos em uma dinâmica de atos de transferência de uma memória traumática, também reivindicam espaço para essa memória no contexto cultural e político de seus respectivos países.
3. Intervenções artísticas feministas e memória sobre feminicídio
O projeto Zapatos Rojos (Fig.1), idealizado pela artista e arquiteta mexicana Elina Chauvet, surge em um contexto de oficinas comunitárias que a artista havia ministrado em Ciudad Juárez após receber aporte governamental para o incentivo de projetos comunitários com viés artístico direcionados a pessoas em situação de vulnerabilidade. A primeira intervenção foi executada em 22 de agosto de 2009, ao longo da Avenida Benito Juárez, que leva do centro da cidade até a ponte mais antiga na fronteira com El Paso, nos Estados Unidos, a Ponte Internacional Paso del Norte. Consistia em trinta e três sapatos doados por mulheres da comunidade local, pintados de vermelho e distribuídos ao longo das calçadas na avenida, criando um percurso simbólico na fronteira com os Estados Unidos e refletindo um dos trajetos cotidianos de diversas das mulheres mortas e desaparecidas na região desde os anos noventa. Os sapatos variam de estilo e compreendem tamanhos adultos e infantis, demonstrando o quão variadas são as condições para que o crime de feminicídio ocorra, e que não há discriminação de idade ou comportamento entre as vítimas, quebrando com a lógica de culpabilização das mesmas e de busca por uma justificativa individual.
Sobre a escolha de utilizar sapatos como item central do projeto, Chauvet (Janvier 2011) afirma que a metáfora lhe pareceu natural, já que eles são um fio condutor comum na pesquisa sobre os feminicídios da região, e que diversas jovens trabalham em lojas de sapatos ou nas maquilas que os fabricam. Entretanto, imagens forenses e documentais feitas nos locais de descobrimento dos corpos das vítimas de feminicídio em Juárez demonstram que os sapatos não são apenas um item simbólico. Muitas vezes, são um dos poucos resquícios identificáveis das vítimas.
Elina Chauvet passou a coletar sapatos entre 2009 e 2011, chegando aos trezentos pares, quando realizou uma itinerância no México, passando por diferentes cidades do país e finalizando com uma instalação do outro lado da fronteira, em frente ao consulado mexicano em El Paso, no Texas, momento que a artista credita pela internacionalização da obra (Janvier 2011; Delgado 2015). A partir de 2012 a intervenção passa por um intenso período de itinerância com a denominação Zapatos Rojos, Performance-Instalación, Arte Público. Além do México e dos Estados Unidos, foram realizadas intervenções em dezenas de países: Canadá, Argentina, Chile, Equador, Brasil, Guatemala, Paraguai, Noruega, Suécia, Reino Unido, Espanha, Itália, França, Israel e Bélgica. Através de apelos a doações e promovendo os encontros prévios para a pintura dos sapatos nas redes sociais, o engajamento comunitário passou a ser expressivo.
Os feminicídios de Ciudad Juárez também foram inspiração para a produção artística de outras artistas, sendo um dos exemplos as obras criadas por Teresa Margolles acerca do tema. Em Pesquisas, de 2016, a artista reúne os cartazes de busca pelas mulheres desaparecidas colados em muros e postes da cidade e os expõe de forma ampliada, sem retoques, mantendo os efeitos do tempo e das intervenções dos transeuntes. São trinta retratos colados diretamente nas paredes da sala expositiva. Fazendo o caminho inverso e partindo de outra região do país em que atualmente os números de feminicídio são mais elevados, o Estado de México, a artista Sonia Madrigal realiza intervenções com silhuetas femininas em superfícies espelhadas nos locais em que desapareceram mulheres ou em que seus corpos foram encontrados. As intervenções fazem parte do projeto artístico e documental La muerte sale por el oriente, iniciado em 2014.
A utilização de silhuetas para materializar ausências é uma estratégia familiar na arte ativista da América Latina, utilizada durante os movimentos contrários aos governos ditatoriais na década de oitenta, com destaque para as manifestações realizadas em Buenos Aires contra o governo da Junta Militar, responsável pelo desaparecimento de milhares de pessoas. Os siluetazos, como passaram a ser chamados, eram intervenções idealizadas pelos artistas Rodolfo Aguerreberry, Julio Flores e Guillermo Kexel, realizadas em parceria com diferentes grupos da sociedade civil, principalmente o movimento de Madres y Abuelas de Plaza de Mayo.
Se no México o entendimento do feminicídio inclui os crimes perpetrados com impessoalidade, no Brasil é possível perceber que a conotação cultural de domesticidade acerca do feminicídio faz com que o uso de vestidos brancos, que aludem ao casamento e à pureza, seja empregado.
Um exemplo do uso dos vestidos na produção artística brasileira pode ser encontrado na obra da artista e ativista carioca Panmela Castro. Ainda que nem todas as obras da artista dependam de um contexto participativo em sua realização, a sua produção é bastante informada por essa questão, sendo ela mesma uma sobrevivente de violência doméstica. Em 2010, Castro criou a Rede NAMI, organização que mistura programas de artes e direitos humanos, originada da necessidade de combater o machismo no grafite e na arte de rua, e que já prestou auxílio a mais de nove mil mulheres, com foco especial em mulheres negras, o grupo mais afetado pelo feminicídio no Brasil. Panmela, que também é mestre em Artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), abraça as definições de arte feminista e de ativismo comunitário. A questão do antirracismo também é central para a produção da artista carioca.
Em Caminhar, de 2017, a artista usa um vestido branco e, após mergulhar as pernas e a barra do vestido em uma bacia com tinta vermelha própria para o revestimento de pisos, realiza um percurso caminhando pelas ruas e deixando um rastro vermelho que aos poucos se apaga, o que a artista relaciona com a memória das vítimas de feminicídio, que serão esquecidas gradualmente. Em A Noiva, de 2019, Castro ateia fogo no vestido de noiva que está usando e despe-se conforme o fogo consome o tecido. Em ambos os casos, os vestidos são preservados depois da performance e exibidos como documentação e intervenção em espaços públicos e museais (Fig. 2). É possível afirmar que a crítica feita pela artista ao modo como são entendidos os crimes de violência de gênero no país, ainda muito atrelados ao passional e ao contexto doméstico, é bastante explícita, por demonstrar a degradação do símbolo de pureza feminina na lógica do matrimônio, seja pela tinta vermelha representativa do sangue, seja pelo fogo.
Uma estratégia similar já havia sido utilizada por Beth Moysés, em Diluídas em Água, de 2008. A artista combina a simbologia do vestido branco com o pigmento vermelho e os relatos das sobreviventes. A performance conta com a participação de dois grupos, um ainda no contexto das casas de referência, e outro de voluntárias que haviam vivido e superado as violências. Os vestidos brancos são cedidos para que as mulheres do primeiro grupo escrevam, em vermelho e no verso do traje, as memórias das quais gostariam de se desfazer, sendo depois disponibilizados para o segundo grupo, que completa o ritual da performance. Após uma breve procissão, as mulheres formam um círculo e retiram os vestidos, evidenciando as intervenções em caneta vermelha no verso, e então as roupas são esfregadas com sabão em uma bacia metálica até a água se tornar vermelha. Quando estão limpos, são torcidos e vestidos novamente e ocorre uma procissão de encerramento. O que resta nas bacias é a água que diluiu aquelas experiências, vermelha como se tivesse diluído ritualisticamente o sangue dos eventos que marcaram as participantes. Os vestidos, mesmo limpos, nunca voltam ao tom original, uma metáfora para a forma que as mulheres são afetadas pela violência.
As sensações de limpeza e purificação destacadas por Moysés, bem como as profanações em símbolos do feminino realizadas por Castro, podem ser interpretadas através dos conceitos de corporificação da memória e performance como ritual presentes no pensamento de Diana Taylor (2003, 20). A pesquisadora (Taylor 2012, 22) também afirma que “as performances operam como atos vitais de transferência, transmitindo o saber social, a memória e a consciência de identidade a partir de atos reiterados”7, e que diversas atividades podem ser lidas como performáticas, desde os protestos políticos, os desfiles militares, passando pelos velórios e carnavais. Essa lógica também pode ser aplicada à peregrinação silenciosa de sapatos vermelho-sangue criada por Elina Chauvet.
Os sapatos, os vestidos e os rituais de peregrinação silenciosa em memória de vítimas de feminicídio também podem ser encontrados em produções artísticas canadenses engajadas com os direitos das mulheres e da população 2SLGBTQQIA, denominação que engloba o conceito de two spirit presente nas culturas originárias, assim como o pleito da organização MMIWG (Missing and Murdered Indigenous Women and Girls) na América do Norte. Como organização, o MMIWG busca sanar o descaso governamental sobre as vidas indígenas através de três eixos com as seguintes motivações: a busca da verdade através da coleta de relatos, honrar essa verdade através de projetos públicos de educação, dar vida a essa verdade através da criação de um legado comemorativo e expressões artísticas. A organização, ativa de forma oficial desde 2015, reitera a importância de mulheres e two spirits como aqueles que dão vida às suas comunidades e são sagrados. Por causa da diversidade entre os povos das Primeiras Nações, Métis e Inuit, há o entendimento de que não existe uma solução igual para todos, precisando abarcar as diferenças entre as comunidades afetadas e reforçando o direito à segurança, à justiça, à saúde e à cultura (National Inquiry into MMIGW 2019).
É o caso do REDress Project, criado pela artista multidisciplinar métis Jaime Black em 2010 e apropriado posteriormente pelo movimento. A produção de Black envolve questões de memória, identidade e resistência a partir do entendimento de corpo e território como fontes de sabedoria cultural e espiritual. A primeira intervenção do projeto foi realizada em uma sala do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade de Winnipeg, no dia cinco de maio, data nacional para a conscientização sobre o tema, e consistia em uma série de vestidos vermelhos de diferentes estilos pendurados em memória das mulheres indígenas mortas e desaparecidas (Black 2020).
A ideia de usar a cor vermelha, de acordo com entrevista concedida por Black à rede de televisão canadense CTV News em 2015 (Suen 2015), surgiu após uma conversa com uma amiga também aborígene, que explicou que o vermelho é a única cor que os espíritos conseguem ver de acordo com as crenças de alguns povos originários. Em outra entrevista, concedida ao jornal estadunidense The Washington Post em 2019 (Jenkins 2019), a artista comenta a ligação da cor com o sangue que conecta todos nós em vida e à violência que o derrama. Ao longo dos anos foram realizadas diferentes intervenções com os vestidos vermelhos, preferencialmente em locais públicos de modo a chamar a atenção de mais pessoas, em diferentes cidades da América do Norte, levando o dia de conscientização sobre as mortes e desaparecimentos a ser chamado de Red Dress Day (Fig. 3). De acordo com informações da revista American Indian, publicada pelo National Museum of the American Indian, até 2019 mais de 400 vestidos foram doados ao projeto, incluindo doações das famílias das vítimas (Bolen 2019).
Outro projeto é a instalação com pares de linguetas decoradas de mocassins tradicionais, iniciado pela artista e escritora métis Christi Belcourt em 2012 e intitulado Walking With Our Sisters ou, em português, caminhando com nossas irmãs. O projeto foi iniciado com chamadas nas redes sociais pedindo doações dos itens, com a meta de conseguir 600 pares, de acordo com o site oficial do projeto. No período de um ano foram arrecadados mais de 1.600 pares de linguetas decorativas com bordados tradicionais, que não são costuradas nos mocassins de modo a representar as vidas inacabadas de mulheres e meninas indígenas e os caminhos interrompidos.
Ambos os projetos já foram tema de documentários e marcam as mobilizações no Canadá e Estados Unidos no dia de lembrança das vidas sagradas de meninas e mulheres indígenas que foram interrompidas. Além de mobilizarem as comunidades afetadas, são fontes de conscientização para a população no geral, que é incentivada a pendurar vestidos vermelhos na fachada de suas casas e em vitrines do comércio. As intervenções chamam atenção para o aspecto sagrado das vidas que foram perdidas, convidando a que mais pessoas reflitam sobre esse aspecto e como violências, principalmente contra comunidades vulneráveis e estigmatizadas pelo processo colonial, são banalizadas. As intervenções fazem parte de uma iniciativa maior que busca pressionar o governo em relação ao tema, desde a percepção cultural sobre mulheres indígenas, aos procedimentos de investigação e busca por justiça. Além disso, os projetos incentivam que diferentes povos indígenas possam acrescentar motivos decorativos e têxteis tradicionais de suas comunidades nas intervenções que realizam, promovendo a cultura e honrando a história particular de cada comunidade através da produção de memória em nome daquelas que se foram. Sendo assim, as intervenções são adaptadas e passam a trazer diferentes signos e composições, além de cartazes de protesto, informações sobre as vítimas e performances nas quais, ao vestir as roupas vermelhas, as participantes evocam a presença de suas irmãs mortas e desaparecidas (Black 2020; WWOS 2020).
Na introdução do livro Memory and Postwar Memorials: Confronting the Violence of the Past, Marc Silberman e Florence Vatan (2013, 4) levantam o questionamento sobre as possíveis abordagens da violência e do trauma de forma ética, sobre como podemos representar vítimas de extermínio de forma a sensibilizar um público cada vez mais acostumado com imagens violentas. Silberman e Vatan (2013, 5) reiteram a importância de projetos artísticos de construção de memória coletiva realizados em diálogo com a comunidade e com os espectadores, criando espaços de diálogo no cotidiano e gerando espaços de reflexão e nuance nos quais a amnésia coletiva é questionada e a barreira imposta por preconceitos transformada.
O livro também conta com textos da artista e pesquisadora Laurie Clark sobre os dispositivos retóricos e forenses de produção de cultura memorial coletiva, especificamente objetos de caráter metonímico, ou seja, objetos que de certa forma materializam a presença de vítimas de violência, ou a própria violência aos olhos do espectador. Tais objetos servem como substitutos daqueles que já não podem se fazer presentes. Para Clark, nós temos uma relação especial com objetos que habitam o espaço tridimensional conosco, como sapatos, roupas ou retratos, e mesmo quando não podemos tocá-los, eles propiciam uma relação de cinestesia empática. E segue:
Nós frequentemente usamos objetos como dispositivos mnemônicos. Confiamos que eles vão servir como suporte para coisas que queremos lembrar e acreditamos que eles têm a capacidade de convocar memórias em outros. Os objetos nos são familiares e são nossos familiares, no sentido de pertencerem aos nossos lares. Eles estão em estreito convívio conosco. Mesmo quando são representantes da violência, consideramos os objetos com presunção porque estão alojados nos cantos e recantos mais comuns de nossas vidas8. (Clark 2013, 155)
Ainda que uma performance não possa ser incluída em um arquivo ou musealizada de forma integral, pois é algo que só existe no tempo em que dura sua execução, e o que podemos arquivar são seus registros - e registros fotográficos, segundo Hirsch e Smith (2002, 6) são “veículos de transmissão” de memória cultural - e os objetos nela utilizados, a performance é memória corporificada e transmitida. Para Taylor,
A memória encarnada, por ser viva, excede a capacidade do arquivo de capturá-la. Mas isso não significa que a performance - como comportamento ritualizado, formalizado ou repetitivo - desaparece. As performances também se replicam a si mesmas através de estruturas e códigos próprios. Isso significa que o repertório, como o arquivo, é mediado. O processo de seleção, memorização ou internalização e transmissão ocorre dentro de (e por sua vez ajuda a constituir) sistemas específicos de representação. Múltiplas formas de atos corporificados estão sempre presentes, ainda que em um estado de constante de repetição. Eles se reconstituem a si próprios, transmitindo memórias, histórias e valores comunitários de um grupo/geração para a seguinte9. (Taylor 2003, 20-21).
Sendo assim, o uso de objetos familiares, como os vestidos ou os sapatos, nas intervenções artísticas aqui discutidas integram uma lógica mais ampla de produção de memória frente ao extermínio e à violência, nesse caso, a violência de gênero contra corpos femininos ou feminilizados. Também é necessário enfatizar que essas violências são exacerbadas quando tais corpos são negros, indígenas, fora dos padrões da cis-heteronormatividade ou em situação de maior vulnerabilidade econômica, o que ressalta o caráter sistemático com que crimes de feminicídio - ou transfeminicídio - são perpetrados, assim como o pacto social que protege aqueles que os cometem e que produz uma revitimização de mulheres.
Considerações finais
Ao visualizar as similaridades, tanto estéticas quanto em termos de abordagem, entre produções artísticas que surgem em contextos diferentes e são pautadas pelas particularidades da violência de gênero e suas intersecções com as demais violências que controlam corpos femininos e feminilizados, assim como operam instrumentalmente na limitação das liberdades desses corpos nas regiões que são produzidas, fica explícita uma linguagem artística de resistência em comum.
No caso de obras participativas ou realizadas no contexto do espaço público, é viabilizado um compartilhamento de experiências entre aqueles/as afetados/as pelo problema. Ou seja, além de estarem inseridas em um movimento de reivindicação de direitos, as artistas também possibilitam que o público, voluntário ou involuntário, possa realizar reflexões coletivas e individuais sobre o tema e as experiências abarcadas pelo mesmo, em um exercício que pode ter um caráter extremamente pessoal, mas que também pode ser de alteridade. Através dessas intervenções, é possível questionar os processos de culpabilização e revitimização, os aspectos que influenciam a sensação de vergonha e solidão, além do medo em denunciar. E, apesar desse sentimento de solidão ser um relato comum, talvez os trabalhos aqui analisados possam demonstrar que isso não precisa de ser necessariamente verdade, já que eles nos apontam para uma construção em rede, compreendendo as diferenças e valorizando as experiências de diferentes grupos de mulheres.
No contexto das comunidades afetadas, no qual a autora deste artigo se inclui, podemos pensar que, se existe um panorama artístico inserido no contexto de pós-memória feminista, com o intuito de preservar e difundir a memória das vítimas de feminicídio, bem como da luta de familiares e sobreviventes por justiça e reparações, as produções aqui abordadas funcionam como as narrativas que, em uma espécie de sincronia inesperada entre diferentes e múltiplas autoras, compõem essa história tão complexa. Uma história que ainda sofre com apagamentos sistemáticos seja quando falamos em arte e cultura, ou mesmo na forma em que os crimes de feminicídio e violência de gênero são noticiados.