Introdução
A comunicação consiste no processo pelo qual se compreende e partilha significados. Neste processo contamos, pelo menos, com oito elementos nucleares: (i) fonte/emissor, (ii) mensagem, (iii) canal, (iv) recetor, (v) feedback, (vi) ambiente, (vii) contexto e (viii) interferência (Pearson e Nelson 2000). A fonte ou a pessoa emissora é quem imagina, cria e envia a mensagem: primeiro concebe-a e depois encontra uma forma de a transmitir à audiência. Aqui, a mensagem representa então o estímulo, conteúdo ou significado que é transmitido. Ora, para a transmissão é necessário encontrar um canal por onde a mensagem possa ser veiculada de quem a emite para quem a recebe. Este último elemento recebe a mensagem da fonte, analisa-a e interpreta-a de uma forma que pode estar mais ou menos alinhada com aquela que a fonte intencionava. Neste sentido, quem recebe pode responder a quem emite a mensagem, transmitindo então feedback, de forma verbal ou não verbal. Contudo, nenhuma comunicação acontece sem estar enquadrada num ambiente e contexto. O ambiente está relacionado com a atmosfera física e psicológica onde a comunicação se desenvolve, enquanto o contexto implica o cenário e as expectativas envolvidas na interação, obviamente imbuídas em dinâmicas sociais pré-existentes, enquanto o ambiente oferece determinadas pistas para a construção desta partilha. Por último, a interferência representa tudo aquilo que pode bloquear ou impedir a mensagem de ser transmitida ou que influencia a sua compreensão e o seu significado original (McLean 2005). Todo este processo de comunicação é então facilitado por ferramentas, como a linguagem, que promovem a interação.
Como ferramenta de comunicação fundamental na interação humana, a linguagem abarca a expressão de pensamentos, sentimentos e emoções. Esta expressão pode acontecer de forma escrita, oral ou visual. Todavia, a linguagem está intrinsecamente imbuída de uma construção social constituída por um complexo sistema de crenças, atitudes e valores que influenciam marcadamente a forma como estruturamos as nossas crenças, redes relacionais e posições que assumimos socialmente (Cerqueira e Magalhães 2018; DeFranza, Mishra e Mishra 2020). Por tudo isto, a linguagem sofre influências notáveis baseadas em questões económicas, (pós)coloniais e de género que se refletem na nossa organização comunicativa em termos de estrutura, conteúdo e organização. A linguagem é então, ao mesmo tempo, um meio resultante da desigualdade produzida através das influências referidas e um eixo estrutural capaz de operar, ele mesmo, processos que podem resultar em diferença e desigualdade (De Varennes 1996; Cavanaugh 2020). Exatamente pelo reconhecimento destas complexas dinâmicas, importa problematizar o conceito de género, enquanto construção sociocultural que influencia e é influenciado pela estrutura linguística.
O género é, portanto, um termo complexo na sua génese e definição. Numa perspetiva tradicional, é usualmente apresentado como binário (i.e., feminino e masculino), apesar da compreensão científica sobre este termo o alargar a mais possibilidades e diversidades (Richards et al. 2016). Neste sentido, o género apresenta-se como a construção de categorias sociais que contribuem para o desenho e atribuição de expectativas, papéis e responsabilidades em função de se identificar alguém como sendo homem ou mulher (EIGE 2016; Cerqueira e Magalhães 2018). Ao longo do tempo e em diferentes contextos, o género tem sido muitas vezes associado e/ou definido em função do contexto sociolegal onde é vivido, podendo por isso ser legalmente definido - ainda que equivocamente - com base no sexo atribuído à nascença (Lindqvist, Sendén e Renström 2020). No entanto, em qualquer contexto, pela dimensão sociológica envolvida, as categorias de género estão imbuídas em estereótipos que acabam por traduzir-se em situações de desigualdade social. Aqui, a linguagem assume um papel preponderante na manutenção ou alteração de atitudes e comportamentos reprodutores de desigualdade (Scharrón-del Río e Aja 2020). Por outras palavras, a linguagem deve ser encarada como mutável pelo seu papel organizador de significados sociais, necessitando por isso de revisões que contribuam para a desconstrução da vulnerabilidade e desvantagem psicossocial em que se encontram determinados grupos sociais (Pereira et al. 2022; APA 2023). Esta vulnerabilidade envolve processos de estigma e discriminação que colocam esses mesmos grupos numa posição socialmente minoritária: e aqui, minoria não se refere ao número exato de pessoas representadas, mas sim à vulnerabilidade social a que estas pessoas estão sujeitas e as coloca em desvantagem no acesso a direitos, bens e serviços (Meyer 2003; Perkins e Wiley 2014).
No que concerne ao combate às desigualdades associadas à linguagem e comunicação, as características linguísticas inerentes a cada língua devem ser consideradas. As línguas apresentam-se como sistemas de comunicação com regras próprias de operação (Crystal 2011). A língua portuguesa pende, por exemplo, para uma perspetiva binária de género e essencialmente “masculina por defeito”. Por exemplo, é socialmente validada a utilização de formas masculinas para nos dirigirmos a um grupo de pessoas onde possa existir apenas um homem, invisibilizando as outras pessoas presentes. Contudo, pensar sobre uma comunicação inclusiva implica considerar os recursos disponíveis na língua para assegurar o processo de abolir e transformar a aplicação de palavras e expressões que possam ter um pendor discriminatório e estigmatizante para com determinadas pessoas e/ou grupos (Mikić, Mrčela e Golob 2018).
Assim, pensar em linguagem inclusiva está intimamente ligado ao conceito de autodeterminação. Aqui, falamos do processo de cada pessoa se reconhecer dentro de determinadas características que vê como definidoras da sua identidade, como por exemplo, o nome, género e características com as quais se identifica (APA 2023). Uma população socialmente vulnerabilizada, sobretudo devido a questões de autodeterminação, é a comunidade trans. Por constrangimentos legais ou de outro foro, as pessoas trans podem possuir um nome legal que não corresponde ao nome com o qual se autoidentificam e, neste caso, é crucial o tratamento pelo nome escolhido. Sobre este tópico, estudos recentes corroboram o efeito positivo do tratamento destas pessoas pelo respetivo nome social escolhido nos outcomes de sintomatologia depressiva, ansiosa e na ideação e comportamento suicida desta população (e.g., Russell et al. 2018). As questões da utilização de linguagem capacitista seguem na mesma direção: por exemplo, utilizar o termo “pessoa com deficiência” é considerada uma forma inclusiva de abordar a questão, pois a tónica é colocada na pessoa e não na sua condição de saúde, como se toda a sua identidade se reduzisse a isso (Baierle e Karnopp 2023). Aliás, o termo capacitismo assume uma configuração ainda mais abrangente: além de estereotipar as pessoas com deficiência, perspetiva-as em oposição ao que se espera como “normal”, subestimando a capacidade dessas pessoas, ao mesmo tempo que veicula esta perspetiva através de expressões que o sujeito emissor até pode considerar positivas (e.g., “Aquela pessoa nem parece que tem deficiência”).
Deste modo, a literatura científica parece corroborar que o investimento em formas de comunicação inclusiva permite incitar a diversidade e, ao mesmo tempo, combater o estigma e a discriminação, favorecendo a mudança de atitudes, perceções e comportamentos, contribuindo para a concretização dos princípios da igualdade e da não-discriminação (Pérez e Tavits 2019; Koster 2020). É no sentido de contribuir para estas reflexões e apontar algumas direções futuras, que este trabalho se desenha como, ao mesmo tempo, uma revisão do estado da arte e das múltiplas contribuições sobre este tópico em Portugal, e uma posição crítica e prática sobre as mesmas.
Linguagem e género: de uma preocupação geral a uma perspetiva afirmativa
Se a pertinência da utilização de linguagem inclusiva não parece já ser um tema de debate - pela sua indiscutível importância na identidade, saúde mental e visibilidade das identidades (Mikić, Mrčela e Golob 2018; Russell et al. 2018; APA 2023) - a discussão parece agora cair sobre as formas de criar uma linguagem efetivamente inclusiva e capaz de abraçar a maior diversidade possível. Sobre isto, a linguagem pode ser então um mecanismo afirmativo da identidade, pelo facto de a pessoa ou grupo se sentir visível e representado (APA 2023). Assim sendo, e pensando em diferentes órgãos e instituições nacionais e internacionais com ascendência sobre estas dimensões (e.g. Abranches 2009; EIGE 2018; Parlamento Europeu 2018; Secretariado-Geral do Conselho da União Europeia 2018), vale a pena revisitar alguns dos avanços sobre esta temática.
Por exemplo, em 2018 o Parlamento Europeu adotou várias diretrizes para assegurar a utilização de linguagem neutra e sensível à diversidade de género, privilegiando, além da neutralidade, a utilização de formas gramaticais passivas. Da mesma forma, associações profissionais internacionais, como a American Psychological Association (APA 2023) têm promovido linhas orientadoras para a utilização de linguagem inclusiva na ciência. Aqui, a APA reforça o respeito pela autodeterminação de género, a neutralidade quando não há conhecimento efetivo da categoria de autoidentificação e a não utilização de categorias de identidade como adjetivação. Contudo, não só as ciências sociais têm investido na preocupação com a utilização de linguagem inclusiva: nas áreas de STEM [science, technology, engineering and mathematics] e na utilização da inteligência artificial [IA] têm-se feito diferentes esforços. Por exemplo, a utilização de softwares de escrita que, eles próprios, possam reconhecer e apresentar alternativas mais inclusivas a quem os utiliza (Sullivan 2019), ou a concetualização de anúncios de recrutamento ou adjacentes a práticas profissionais não-genderizados (Faulkner 2008).
Também em Portugal, ao longo do tempo, diferentes ferramentas têm sido utilizadas neste âmbito. Pela perceção da categoria de género enquanto binária, algumas destas estratégias foram baseadas nessa premissa, como é exemplo o Guia para uma linguagem promotora da igualdade entre mulheres e homens na Administração Pública (Abranches 2009). Na academia, meio privilegiado para a promoção de estratégias de igualdade de género e não-discriminação, criaram-se vários documentos em diferentes instituições, de que são exemplo o guia para a promoção de linguagem inclusiva na Universidade do Porto (Leal et al. 2023), o guia para a promoção da comunicação inclusiva no Técnico de Lisboa (2021), ou o guia para uma comunicação inclusiva do Instituto Politécnico do Porto (Serrão, Martins e Rocha 2020). Esta preocupação partilhada reforça a importância de políticas promotoras da igualdade e diversidade de género, onde as questões socioculturais necessitam de especial atenção de modo a serem devidamente enquadradas nesta utilização de linguagem inclusiva (Cavanaugh 2020). As ações empreendidas neste sentido apresentam um caráter afirmativo, pela emancipação social que podem representar para os grupos envolvidos (Nogueira 2013; 2017; Trujillo 2015). Contudo, sobretudo por se apresentarem como estratégias mais associadas à governação local do que a medidas centralizadas e academicamente reforçadas, é importante abrir o debate e analisar as resistências e caminhos futuros (Erdocia 2022). De facto, pelo mundo, têm-se levantado resistências sociopolíticas à promoção da utilização de linguagem inclusiva que importa serem, além de referidas, analisadas através dos mecanismos psicológicos e sociais que as sustentam e, por isso, as fazem prevalecer no tempo.
Mecanismos psicossociais na construção de uma linguagem (mais) inclusiva
Primeiramente, vale revisitar o conceito de estereótipo e as dimensões que acarreta para quem é visado. Por estereótipo entende-se um conjunto de conceitos pré-concebidos, padronizados e sem fundamento científico sobre determinadas pessoas ou grupos, que enfatizam determinadas características com conotação socialmente negativa em detrimento da realidade e individualidade das pessoas visadas (Straub e Niebel 2021). Os estereótipos constituem então assunções que informam a nossa leitura da realidade e a leitura dos grupos a que pertencemos, influenciando o nosso processamento de informação e polarizando-o facilmente, como se de uma luta binária de género se tratasse (Ellemers 2018). Assim, a expectativa social em relação a pessoas de diferentes géneros não é, de todo, neutra e espelha-se na comunicação dirigida a cada um desses grupos, resultando na desvantagem, por exemplo, de mulheres no acesso a lugares de liderança (Ellemers 2018; Peixoto-Freitas et al. 2023). Efetivamente, em qualquer contexto, pela dimensão sociológica envolvida, as categorias de género baseiam-se em estereótipos que alimentam a desigualdade social. A linguagem tem então um papel fulcral na redução destas desigualdades (Scharrón-del Río e Aja 2020). Com o seu papel organizador de significados sociais, a linguagem é mutável e, com alterações reflexivas, pode contribuir para a desconstrução da vulnerabilidade e desvantagem de determinados grupos sociais (Pereira et al. 2022; APA 2023).
Note-se ainda que os estereótipos não estão circunscritos ao género, mas a outras características como, por exemplo, a idade, orientação sexual, etnia, estatuto socioeconómico ou condição de saúde. Emerge então o conceito de interseccionalidade que procura compreender como o cruzamento e a articulação das diferentes categorias de pertença social supracitadas influenciam a vida das pessoas e as torna mais vulneráveis a situações reprodutoras de desigualdades. A discriminação sofrida em função da interseccionalidade das categorias identitárias cria e reproduz hierarquias de poder socialmente rigidificadas que contribuem para a criação e manutenção de representações estereotipadas que vão, também elas, manter as relações assimétricas de poder social (Crenshaw 1989; 1991; Bowleg 2008; Davis 2008; Bose 2012; Nogueira 2013; 2017; Magalhães 2016). A conotação negativa implícita nos estereótipos socialmente criados pode ser internalizada pelas pessoas alvo dos mesmos (Puckett e Levitt 2016). Imaginemos uma mulher que internaliza o estereótipo de que não deve, ou deve evitar, manifestar a sua opinião pessoal em contextos sociais: esta pessoa pode ter mais dificuldade em ter comportamentos assertivos. Nos processos associados à liderança, por exemplo, é comum encontrarem-se dificuldades nos grupos de mulheres em perspetivar-se nestas posições, por acreditarem não possuir naturalmente esse perfil (Ellemers 2018).
Os estereótipos contribuem para a criação de esquemas cognitivos que, por sua vez, influenciam a perceção individual sobre nós e sobre as outras pessoas. Uma das consequências destes esquemas é o desenvolvimento de profecias autorrealizadas (Merton 1968): algo que não corresponde à verdade sobre uma situação, mas que, ao tornar-se uma crença, pode suscitar na pessoa um novo comportamento que contribui para que a conceção inicial se torne verdadeira. Sobre isto, o conceito de profecia autorrealizada está intimamente ligado ao “efeito Pigmaleão” (Rosenthal 1987). Falamos da expectativa atribuída ao desempenho de determinada pessoa ou situação que vai influenciar em larga medida o desempenho e resultado da mesma. Se pensarmos em situações relacionadas com as categorias de género, facilmente ilustramos este efeito. Imaginemos uma situação de desempenho em que atribuímos o sucesso a uma causa instável, como a sorte ou o esforço, por contraste com uma causa estável, como aptidão ou competência; esta explicação autoatribuída ou atribuída pelos outros terá implicações na forma como as pessoas abordarão nova situação de desempenho. Ora sabemos que o desempenho bem-sucedido das mulheres em tarefas que são estereotipicamente masculinas é alvo de mais avaliações relativas a causas instáveis, enquanto o dos homens é atribuído a causas estáveis (Swim e Sanna 1996). Parece então mais provável que em situações futuras semelhantes os homens continuem a manter um melhor rendimento por o atribuírem a características disposicionais (internas e estáveis) e as mulheres apresentem mais ansiedade de desempenho, por acreditarem estar dependentes de características contextuais (externas e instáveis), o que pode resultar num desempenho de menor qualidade. Estas expectativas sociais possuem também um cunho interseccional e a sua influência no desempenho dos indivíduos vem sendo estudada ao longo do tempo, reforçando o efeito dos estereótipos e esquemas cognitivos no desempenho e autoconceito de pessoas pertencentes a grupos socialmente estigmatizados (Swim e Sanna 1996).
Considerando todos os processos anteriormente apresentados, deve compreender-se a transversalidade dos mesmos: nenhuma pessoa, independentemente da sua identidade, contexto educacional e cultural, é imune a estas estruturas e representações que, ainda que inconscientemente, representam um viés de género. Falamos então sobre uma interpretação ou representação consciente ou inconsciente de um fenómeno, favorecendo de forma recorrente um ponto de vista ou categoria específica em detrimento de outra (Chandler e Munday 2020). Uma das maiores barreiras à desconstrução do viés de género relaciona-se com ser, tantas vezes, inconsciente e até invisível, sobretudo para os grupos que possam ser, aparentemente, beneficiados por este processo. Por atravessar dimensões sociais, familiares, políticas, individuais e culturais parece haver, de facto, desafios vários para encontrar soluções capazes de diminuir estas desigualdades (Chichilnisky 2008).
Considerando todas estas questões, é evidente a existência de resistências várias a mudanças linguísticas que tornem a linguagem, não só mais inclusiva, mas mais representativa, ainda que determinadas posições na própria linguística procurem argumentar o género gramatical como um fenómeno exclusivamente linguístico, despido de qualquer associação às construções sociais de género (Roca 2005). É relevante, por isso, revisitar na próxima secção algumas referências sobre este tópico, ao mesmo tempo que as problematizamos no sentido de contribuir para a reflexão académica, ativista e inclusiva da questão com uma perspetiva construtiva destas adaptações.
A linguagem e a interseccionalidade: resistências, direções futuras e contributos para a reflexão
Um considerável número de línguas, onde se inclui o português, apresenta um sistema de género binário. Quando falamos, por exemplo, da língua inglesa, percebemos uma maior facilidade na utilização de género neutro, adotando-se recentemente a possibilidade da utilização do pronome they/them para o representar na escrita científica (APA 2023). Assim, na língua portuguesa, no sentido de contornar esta estrutura binária de género, parece necessária uma reestruturação mais pensada, de modo a eliminar a utilização do masculino genérico que parece afetar não só o bem-estar, mas o próprio desempenho das mulheres (Cohen et al. 2023). A este nível, até pelo envolvimento próximo do ativismo, várias foram as tentativas realizadas, não só na língua portuguesa, mas noutras línguas de origem latina, como por exemplo, o espanhol (Erdocia 2022). A utilização de símbolos como o @, x, ou formas duplas de masculino-feminino (e vice-versa) vão sendo estratégias recorrentes. Contudo, estes mecanismos levantam dificuldades de utilização institucional e oficial, da mesma forma que dificultam o acesso à informação para pessoas que se encontram em outras situações socialmente vulnerabilizadas (e.g., com perturbações da aprendizagem, algum tipo de incapacidade que afete o acesso à descodificação de informação) (Leal et al. 2023).
Estes obstáculos refletem a necessidade de encarar o processo de linguagem inclusiva como interseccional (Crenshaw 1989, 1991; Bowleg 2008; Davis 2008; Bose 2012; Nogueira 2013; 2017; Magalhães 2016), sendo uma das argumentações nesse sentido a procura de expressões ou palavras mais neutras em termos de género (e.g., estudantes e não alunos/as). Até porque, de uma perspetiva mais conservadora das estruturas linguísticas, a neutralidade de género utilizando os recursos linguísticos comuns não exige mudanças fonéticas ou de grafia profundas. Note-se que as reivindicações relativas à neutralidade da linguagem no sentido de desconstrução do sistema patriarcal remontam às décadas de 1970 e 1980 (Pauwels 2003) e têm-se revelado cada vez mais fulcrais e emergentes. É exatamente devido a esta necessidade que se assiste à criação de alguns instrumentos de apoio à utilização de uma linguagem mais inclusiva, neutra e representativa (e.g., Serrão, Martins e Rocha 2020; Conselho Económico e Social 2021; Leal et al. 2023). Portanto, a opção pela utilização da linguagem neutra de género inclui, à partida, todas as pessoas. No entanto, levantam-se resistências sobre este tópico, com diversos argumentos a si associados: por exemplo, a ideia de a linguagem neutra poder invisibilizar o género feminino, de as alterações linguísticas comprometerem a qualidade da comunicação e até de a linguagem neutra poder ser uma ameaça a entidades mais normativas (Erdocia 2022; Vergoossen et al. 2020). Naturalmente que todos estes argumentos devem ser alvo de debate continuado, entre diferentes agentes, não apenas políticos, mas científicos e de participação das principais populações visadas nesta discussão (e.g., mulheres, pessoas de género diverso) (Erdocia 2022).
Note-se, no entanto, que antes da discussão sobre as possibilidades de construção de uma linguagem mais inclusiva, estão resistências políticas e sociais à sua utilização que chegam a rejeitar, sequer, a possibilidade desta concetualização e debate. Não surpreendentemente, estas resistências parecem estar intimamente relacionadas com crenças e perceções sexistas (Sarrasin, Gabriel e Gygax 2012). Para facilitar a implementação, e até a discussão pública consciente e construtiva, da linguagem inclusiva é então necessária uma posição governamental, não só nacional, mas local, que facilite este processo, mas que aconteça com uma configuração participativa e cientificamente informada (Erdocia 2022). Em Portugal, apesar de várias recomendações da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) e outras da Comissão Europeia, não há uma obrigação legal relativamente à utilização de linguagem inclusiva. Recentemente, devido à formalização do direito à autodeterminação (Lei sobre identidade de género)1, que abriu a possibilidade de alteração de nome legal e do género nos documentos legais de identificação, as escolas têm de garantir o direito de crianças e jovens expressarem a sua autodeterminação de género, com a criação de mecanismos de “canais de comunicação e deteção” que passam pela utilização do nome social, ainda que seguido das iniciais do nome registado no documento legal. De forma também pioneira em Portugal, o Projeto lei nº 762/XV (CACDLG 2023), aprovado na reunião plenária nº 130, mas vetado num primeiro momento pelo Presidente da República, apresentava a possibilidade de adoção de nomes neutros em termos de género, um passo de maior importância para as identidades não-binárias.
Ainda que de grande importância, estes passos legais e recomendações institucionais sobre a utilização de linguagem inclusiva e de outras medidas de inclusão adjacentes não estabelecem obrigatoriedade na utilização de linguagem inclusiva (seja neutra ou baseada em formas duplas de género). De facto, a promoção da sua utilização vai acontecendo por diversas vias, mas as posições de resistência e oposição parecem nem sempre ser incluídas em debate, o que torna esta questão uma matéria, sobretudo, de tensão política. Pelo afastamento entre este debate alargado e a politização da utilização de linguagem inclusiva, podemos até assistir a um processo contraproducente de implementação desta forma de inclusão (Erdocia 2022).
Conclusão
Sobre as direções futuras da utilização de linguagem inclusiva - ou pelo menos, mais inclusiva, encarando este processo como uma contínua discussão participativa (Erdocia 2022) - é de maior relevância considerar o tempo necessário para enquadrar estas mudanças e refleti-las como decisivas no bem-estar psicossocial de várias populações vulnerabilizadas (Anthony e Cook 2012; APA 2023; Erdocia 2022; Hord 2016; Kabba 2011; Sarrasin, Gabriel e Gygax 2012). Posto isto, é necessária uma janela temporal adequada para que a evolução possa existir, convidando ao conhecimento das recomendações nacionais e internacionais existentes. Este processo pode e deve ser acompanhado de perto pelas estruturas governativas, podendo enquadrar as questões da linguagem inclusiva noutras dimensões relacionadas com a igualdade e a diversidade (e.g., Planos para a Igualdade de Género e Não-Discriminação) (Erdocia, Nocchi, e Ruane 2020; Erdocia 2022). Vale aqui refletir sobre quem deve ocupar os pontos centrais de discussão. Aqui, falamos do lugar de fala (Ribeiro 2017), ou seja, das pessoas que, devido às condições associadas à não-utilização de linguagem inclusiva, são diretamente prejudicadas por isso, sobretudo, no exercício da sua cidadania. Afinal, as resistências são sempre esperadas em processos de mudança social, o que não significa que devam condicioná-los, sobretudo em questões como a utilização de linguagem inclusiva que parecem, claramente, assentes em preconceitos e estereótipos estruturais reprodutores de desigualdades e mal-estar psicológico (Sczesny, Moser e Wood 2015).
Desta perspetiva, as pessoas autoras deste trabalho alinham-se com a literatura que aponta a formação e informação sobre a temática como um meio fulcral para quebrar mitos ideológicos associados à mesma e ressaltar o papel de cada agente social, profissional e legal na promoção de uma sociedade mais equitativa e inclusiva (Sarrasin, Gabriel e Gygax 2012). Esta formação e estruturação não pode ser ainda dissociada do aconselhamento linguístico profissional (Erdocia 2022), garantindo que a universalidade das mudanças realizadas são um mote para relações sociais mais equitativas e imbuídas de significado (Kabba 2011). Espera-se, portanto, que este breve debate possa ser informativo no sentido de, ao revisitar os avanços existentes e questionar os caminhos que parecem continuar inexplorados, se suscite interesse científico e político que inclua diferentes posicionamentos epistemológicos, reflexivos, críticos e políticos sobre a utilização da linguagem inclusiva e da sua construção, não afastando do debate e da implementação os grupos que no campo do ativismo pela sua afirmação identitária desbravam caminhos e impulsionam reflexões (Erdocia 2022; Vergoossen et al. 2020).