1. Introdução
À data da submissão do presente trabalho encontra-se a sociedade portuguesa às portas da comemoração dos cinquenta anos da Revolução de 25 de Abril de 1974, responsável por instituir um novo regime político e democrático na sociedade portuguesa (Assembleia da República 2019). Essa efeméride, embora possa ser perspetivada por diferentes ângulos, constitui um marco importante no desenvolvimento dos direitos das mulheres em Portugal, pois muito embora se possa considerar que as conceções vigentes nas vanguardas da época lateralizaram o movimento feminista (Tavares 2008, 258), a introdução de um sistema democrático iniciou um caminho em direção à participação livre e à tomada de palavra por parte de um grupo - as mulheres - que até então não assumia politicamente (e, talvez, conceptualmente) um lugar na sociedade portuguesa (Tavares 2008, 256-259).
A construção desse novo regime de organização democrática teve por base uma mudança primordial: a introdução do sufrágio universal. É sobre esse assunto, mais concretamente sobre o direito ao voto por parte das mulheres em Portugal, que versará o presente trabalho. Nas próximas páginas procuraremos analisar, do ponto de vista linguístico, os discursos que legitimam a (in)capacidade eleitoral das/os cidadãs/ãos. Fá-lo-emos por entendermos que, sob a luz do interacionismo social e sociodiscursivo (Coutinho 2021), a análise de discursos de cariz político e sociocultural nos dará pistas sobre a interação que a linguagem estabelece com os fatores praxiológicos e histórico-sociais que a envolvem. Com efeito, a relação entre o texto jurídico e as mulheres e, mesmo, a evolução do direito ao voto das mulheres são temas que têm sido estudados nas mais diversas áreas de investigação ao longo dos anos (Guimarães 1986; Esteves 1998; Lousada 2015; Almeida 2016). Todavia, entendemos ser pertinente perguntar de que forma a linguagem se relaciona e acompanha esses mesmos fenómenos, uma vez que assumimos que as práticas sociais (no caso, as práticas de atribuição de direitos de voto) estarão interrelacionadas com as representações textuais dessas mesmas práticas (a saber, as leis eleitorais). O objetivo será, por isso, apresentar uma análise linguística da legislação referente ao sufrágio eleitoral nas diferentes constituições que vigora(ra)m em Portugal, assim expondo padrões de desigualdade e ideologia de género inscritos na e através da linguagem, ao mesmo tempo que contribuiremos para o conhecimento e a descrição dos géneros textuais jurídicos.
Em suma, pretendemos com a presente contribuição iluminar dinâmicas de poder inscritas na lei através do uso linguístico (Coutinho 2021), oferecendo simultaneamente uma modesta mas declarada homenagem a esse momento inicial da História moderna em que foi possível começar a caminhar em direção a uma igual valorização de homens e mulheres na sociedade.
2. Questões de investigação, procedimento metodológico e corpus reunido
O movimento sufragista pode ser considerado um assunto histórico não só se considerarmos as suas origens em Inglaterra no século XIX, como também se tivermos em conta a origem nacional do movimento em 1911 com a criação da Associação de Propaganda Feminista (Esteves 1998). Contudo, e contrariamente a outros temas e géneros textuais jurídicos (vd. por exemplo, Carapinha 2018), o género textual constitucional e, mais concretamente, a lei eleitoral não têm sido alvo (na medida do nosso conhecimento) de análises e estudos de âmbito linguístico. Assim, pretendemos abordar o tema, formulando para tal duas principais questões de investigação:
Como é que em termos históricos, bem como sincronicamente, aparecem retratadas as mulheres na lei eleitoral?
Como é que linguística e discursivamente se modifica a formulação relativa ao direito ao voto das mulheres?
Para responder às questões formuladas analisaremos um conjunto de discursos produzidos no âmbito da legislação eleitoral. Desse modo, o corpus foi constituído a partir de excertos dos seguintes documentos, consultados online através dos websites da Assembleia da República, Diário da República, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Biblioteca Nacional Digital e Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna1:
A seleção de certas leis eleitorais como as nomeadas ocorre quando, pela natureza do documento constitucional em causa, as informações legais relativas aos critérios de sufrágio se encontram nesses outros documentos.
A análise desencadeada focou-se em aspetos da interface Sintaxe-Semântica, tais como os tipos de oração e de quantificação introduzidos no discurso, bem como o uso do género gramatical.
3. Algumas premissas relevantes
Antes de avançarmos para a apresentação dos resultados da análise linguística do corpus selecionado será importante apresentar algumas premissas teóricas que fundamentam o presente trabalho.
3.1. O texto constitucional
Tendo por base o trabalho de Silva (2016), iremos considerar a Constituição um texto fundamental e hierarquicamente superior ao restante ordenamento jurídico, que alicerça a construção de uma estrutura jurídica assente na limitação de poder.
De acordo com a mesma fonte, o texto constitucional, i.e., o objeto linguístico que a autora designa por “constituição formal” consiste no “texto da lei”, que deverá refletir a “constituição material” (Silva 2016, 20), ou seja, o conjunto de princípios e valores que agregam os indivíduos de uma determinada comunidade.
Em resumo, o género textual constitucional pode ser caraterizado pelo facto de incluir uma soma de considerações de caráter moral e ético e, nesse sentido, poderá constituir um espelho da realidade político-socio-cultural de uma determinada comunidade (Silva 2016, 13).
3.2. A linguagem como filtro ideológico
Considerando o artigo de Ehrlich e King (1994), defenderemos que a linguagem pode servir como um filtro ideológico, muitas vezes androcêntrico, sobre o mundo, operando, como referem as autoras, como um instrumento político para a imposição (ou, pelo contrário, diluição) de certas ideias sobre o mundo. Nesse sentido, valores, atitudes, juízos e convicções podem atuar através do campo linguístico e a análise linguística (como, por exemplo, das unidades lexicais) possibilita a sua identificação.
Em sentido semelhante, Lazar (2005) advoga a favor de uma análise crítica e feminista do discurso que permitirá a revelação de estruturas patriarcais inscritas na prática linguística. Para a autora, todo o discurso é potencialmente um local de exercício de poder, onde simultaneamente podem ser operadas mudanças linguísticas transformadoras e criadoras de um novo paradigma social e político.
O artigo de Kukla (2014) oferece uma análise mais concreta das mesmas questões, aliando ideias clássicas de performatividade e força ilocutória (Austin 1962) a uma ideia de (in)justiça epistémica. Para a autora, o uso de certas construções discursivas relaciona-se com a perpetuação de desigualdades e opressões sociais. De acordo com Kukla (2014), a dimensão acional da linguagem é demasiado imperativa para que possa ser ignorada e, como tal, a autora propõe uma abordagem crítica que permita dar voz a realidades oprimidas como é caso de certas experiências femininas.
De uma forma geral, as três fontes referidas permitem justificar uma análise crítica e feminista sobre a linguagem que parte da assunção de que considerações sociopolíticas e estruturas de poder são impostas e desvendáveis através da análise de material linguístico.
3.3. A teoria da referenciação como suporte à reflexão
Contrariamente a propostas de índole estruturalista, que encaram a língua como um sistema gramatical fechado em si mesmo, evocaremos como particularmente relevantes para o presente trabalho perspetivas interacionistas que enfatizam pressupostos dinâmicos na interpretação dos enunciados (Coutinho 2021). Um desses casos é a teoria da referenciação (Koch e Marcuschi 1998; Leite e Martins 2013), que permite analisar não só o léxico e o discurso, mas também a estrutura interna do sistema gramatical (leia-se, morfologia) como uma construção intersubjetiva, assente na negociação entre distintas conceções e modelos do mundo. De forma sintética, poderemos afirmar que a teoria da referenciação permite olhar para a linguagem como uma atividade sociocognitiva, na qual interferem fatores de ordem sociocultural, assim como as próprias experiências da interação do(s) sujeito(s) com o mundo (Leite e Martins 2013).
Ao longo das próximas páginas, o nosso foco não estará na defesa de uma relação (mais ou menos estreita) entre palavras e coisas, seguindo uma tradição determinista que, culminada na hipótese de Sapir-Whorf, revela salientes traços de etno e androcentrismo (Moure 2022). Pelo contrário, centrar-nos-emos na revelação dos fatores de ordem histórica e sociocultural que se inscrevem no uso da linguagem e que condicionam as imposições que, do ponto de vista psicolinguístico, as/os falantes enfrentam no processamento do discurso (Matos 2020).
3.4. Considerações de caráter linguístico
Do ponto de vista linguístico, será importante referir que consideraremos a conexão entre as unidades linguísticas e as estruturas conceptuais que lhes estão associadas, entendendo assim os enunciados como redes interconectadas de significados que contribuem para o entendimento e a categorização do mundo.
De entre os tópicos linguísticos que serão abordados mais à frente importa, porém, referir um em concreto, na medida em que em línguas românicas como o português constitui uma porta de entrada para a consideração de fatores de inclusão social e linguística (Coutinho 2021): o género gramatical. Não pretendendo fazer uma descrição exaustiva sobre o assunto - que pode ser encontrada em Matos (2020) - importa afirmar que o género gramatical é uma propriedade morfossintática, de natureza flexional, que se aplica ao sintagma nominal mas que, por via da sua coocorrência com a classe dos nomes, muitas vezes se refere ao sexo biológico ou ao género social (Matos 2020).
Além disso, embora do ponto de vista linguístico o género seja uma propriedade gramatical, a própria regra de expansão da forma masculina para a formação do plural constitui, como afirma Lopes (1971, 68), um “privilégio linguístico com óbvias razões histórico-sociais”, mais concretamente na evidente integração linguística que, por via de processos de gramaticalização, se impõe a partir de modelos conceptuais androcêntricos e tipicamente patriarcais. Assim sendo, a consideração do género gramatical revela-se um aspeto crucial para a discussão em torno da importância de opções linguísticas que permitam incluir cognitivamente as mulheres no discurso (Braun, Sczesny e Stahlberg 2005).
4. Resultados da análise linguística do corpus
4.1. A Constituição de 1822, a Carta Constitucional de 1826 e a Constituição de 1838: a opção pela nominalização
Um primeiro ponto da análise diz respeito à forma como se intitulam as secções relativas à lei eleitoral na Constituição de 1822, na Carta Constitucional de 1826 e na Constituição de 1838 (vd. quadro 1). Nos três documentos, o tema da secção é invocado com recurso ao nome ‘eleição’ ou ‘eleições’, recorrendo-se de forma uniforme à nominalização, um recurso típico da linguagem jurídica por permitir enfatizar o caráter menos dinâmico de uma situação que, quando introduzida por um verbo (no caso, ‘eleger’) implicaria aspetualmente maior dinamismo no discurso e, por consequência, menor abrangência do assunto em questão (Tiersma 2008).
Constituição de 1822 | Carta Constitucional de 1826 | Constituição de 1838 |
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CAPÍTULO I Da eleição dos Deputados das Cortes ARTIGO 32º - A Nação Portuguesa é representada em Cortes (...) que a mesma Nação para esse fim elege com respeito à povoação de todo o território Português. |
CAPÍTULO V DAS ELEIÇÕES Art. 63º - As nomeações dos Deputados (...) serão feitas por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos activos (...) os Eleitores de Província, e estes os Representantes da Nação. |
CAPÍTULO QUINTO Das eleições ARTIGO 71º - A nomeação dos Senadores e Deputados é feita por eleição directa. |
Fonte: Compilação da autora.
Contudo, a designação dos indivíduos envolvidos no ato eleitoral exibe variação (‘a mesma nação’, ‘a massa dos Cidadãos activos’ ou a estrutura passiva ‘por eleição direta’), algo que - embora não seja objeto de análise neste trabalho - seria relevante investigar, no sentido de uma reflexão crítica sobre as intenções e consequências sociodiscursivas da diluição ou, pelo contrário, singularização da figura do sujeito-eleitor presentes nestes documentos.
4.2. A Constituição de 1822, a Carta Constitucional de 1826 e a Constituição de 1838: as opções sintático-semânticas e o uso do género gramatical masculino não genérico
Após o artigo introdutório de explicação da lei eleitoral (vd. quadro 1), são apresentados os requisitos que endossam os cidadãos de capacidade eleitoral. Neste ponto, os três textos constitucionais em análise nesta secção são semelhantes e, por esse motivo, iremos debruçar-nos exclusivamente sobre a Constituição de 1822, sendo que as ilações reunidas poderão ser generalizadas aos restantes documentos em causa. Assim, da leitura do artigo 33º da Constituição de 1822 (vd. quadro 2) poderemos argumentar em favor de três principais argumentos.
Constituição de 1822 (~ Carta Constitucional de 1826, ~ Constituição de 1838) |
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ARTIGO 33º - Na eleição dos Deputados têm voto os Portugueses, que estiverem no exercício dos direitos de cidadão (arts. 21º, 22º, 23º e 24º), tendo domicílio, ou pelo menos residência de um ano, em o concelho onde se fizer a eleição. O domicílio dos Militares da primeira linha e dos da armada se entende ser no concelho, onde têm quartel permanente os corpos a que pertencem. Da presente disposição se exceptuarão: I - Os menores de vinte e cinco anos; entre os quais contudo se não compreendem os casados que tiverem vinte anos; os oficiais militares da mesma idade; os bacharéis formados; e os clérigos de Ordens Sacras; II - Os filhos-famílias, que estiverem no poder e companhia de seus pais, salvo se servirem ofícios públicos; III - Os criados de servir, não se entendendo nesta denominação os feitores e abegões, que viverem em casa separada dos lavradores seus amos; IV - Os vadios, isto é, os que não têm emprego, ofício ou modo de vida conhecido; V - Os Regulares, entre os quais se não compreendem os das Ordens Militares, nem os secularizados; VI - Os que para o futuro, em chegando a idade de vinte e cinco anos completos, não souberem ler e escrever, se tiverem menos de dezassete quando se publicar a Constituição. |
Fonte: Compilação da autora.
Em primeiro lugar, a oração relativa presente na primeira frase desencadeia uma pressuposição relevante do ponto de vista sociopolítico: nem todos os portugueses estão no exercício dos direitos de cidadão, o que significará que o ato eleitoral não decorre de forma universal.
Em segundo lugar, uma análise da terminologia nominal presente nos pontos I-VI evidencia não só processos de categorização da sociedade da época, como também mecanismos de conotação (no caso, negativa, visto que o preenchimento da categoria impede o acesso ao voto) associados a essa mesma terminologia. Ainda em relação ao aspeto lexical, note-se que a introdução do conetor adversativo ‘contudo’ no ponto I serve a legitimação do estatuto de ‘casado’ como beneficiador de direito ao voto. Deste ponto de vista, torna-se possível argumentar que o léxico é ideologicamente selecionado como forma de salientar a valorização social do casamento como um modo de organização da esfera privada, evidenciando-se assim um dos principais pressupostos da teoria da referenciação: a discursivização dos modos de organização sociocognitiva do mundo (Leite e Martins 2013).
Por fim, será relevante analisar o uso do género gramatical masculino plural que, nestes contextos, não pode ser lido com uma interpretação genérica uma vez que, nas épocas em causa, as mulheres nunca poderiam votar (Almeida 2016). Este dado será particularmente relevante para a análise dos excertos que se seguem pois, como veremos, a defesa do caráter genérico do masculino plural conflitua com a impossibilidade que a análise histórica impõe a tal interpretação. Mais uma vez, isso justifica-se pela incorporação que o discurso faz de atitudes socioculturais patriarcais que acabam sendo gramaticalizadas, na medida em que a forma masculina plural que é não-genérica num momento da História de negação do direito ao voto às mulheres passa posteriormente a norma linguística que as inclui.
4.3. A Constituição de 1911: aspetos lexicais e a cabal utilização não genérica do masculino plural
A Constituição de 1911 distingue-se das anteriores por ordenar o tópico da lei eleitoral sob a designação de ‘poder legislativo’, o que permite deslocar o foco do ato de eleição política para o ato de exercício de poder. A própria legislação relativa à lei eleitoral é transposta para um documento externo à Constituição de 1911 servindo, tal como o título indica, uma eleição em concreto - a eleição de deputados à Assembleia Constituinte de 1911 (vd. quadro 3).
Constituição de 1911 | Lei eleitoral para servir na eleição de deputados à Assembleia Constituinte de 1911 | Lei eleitoral de 1913 |
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SECÇÃO I Do poder legislativo Artigo 8.º A Câmara dos Deputados e o Senado são eleitos pelo sufrágio directo dos cidadãos eleitores. § único. A organização dos colégios eleitorais das duas câmaras e o processo do eleição serão regulados por lei especial. |
CAPÍTULO II - DOS ELEITORES Art. 5.º São eleitores todos os portuguezes maiores de vinte e um annos, á data de 1 de maio do anno corrente, residentes em território nacional, comprehendidos em qualquer das seguintes categorias: 1.º Os que souberem ler e escrever; 2.º Os que forem chefes de família, entendendo-se como taes aquelles que, ha mais de um anno, á data do primeiro dia do recenseamento, viverem em commum com qualquer ascendente descendente, tio, irmão, ou sobrinho, ou com a sua mulher e proverem aos encargos de familia. Art. 6.° Não podem ser eleitores: 1° Os que receberem algum subsidio de beneficencia publica ou particular. 2.° Os pronunciados com transito em julgado; 3-° Os interdictos, por sentença, da administração de sua pessoa ou bens, os fallidos não rehabilitados e os incapazes de eleger por effeito de sentença penal; 4.° Os portuguezes por naturalização. |
(…) Artigo 1.º São eleitores de cargos legislativos e administrativos todos os cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores de 21 anos ou que completem essa idade até (...). |
Fonte: Compilação da autora.
É nessa lei eleitoral de 1911 que se encontram os dados mais relevantes à análise crítica que aqui propomos. Por um lado, o capítulo é introduzido por uma decisão lexical inovadora que coloca o foco nos sujeitos da ação. Ao serem nomeados os ‘eleitores’, enfatiza-se o papel que o indivíduo desempenha no ato de ‘eleger’. Porém, será essa decisão lexical a dar o mote para a caraterística mais preponderante do documento legal em causa: a ambiguidade do escopo da forma masculina plural. Tal como nos documentos anteriormente analisados (vd. secção 4.2.), a figura do sujeito-eleitor é introduzida pelo uso do masculino plural e é o aproveitamento da natureza potencialmente alargada do seu escopo que faz de Carolina Beatriz Ângelo a primeira mulher a exercer o direito ao voto em Portugal a 28 de maio de 1911. Reivindicando com sucesso o estatuto de chefe de família, esta faz uma interpretação genérica da forma masculina plural presente na legislação, podendo assim ser incluída no grupo de sujeitos com capacidade eleitoral (Tavares 2008, 100). Este caso legitima preponderantemente o caráter ambíguo de enunciados pluralizados através da norma masculina, ao mesmo tempo que enfatiza a dimensão acional da linguagem ao mostrar que, falar (no caso, interpretar) pode mesmo significar agir (Austin 1962; Kukla 2014).
Não obstante, tal como nos documentos legais anteriores (vd. secção 4.2.), todos os critérios delimitadores do direito ao voto na Constituição de 1911 pressupõem uma interpretação histórica específica: o escopo do sintagma nominal ‘os portuguezes’ introduzido no artigo 5º deve ser apenas o conjunto de cidadãos homens. O perigo de uma interpretação genérica causada pela ambiguidade semântica (e pela ação rebelde de Carolina Beatriz Ângelo) terá, por isso, de ser resolvido, uma vez que as mulheres não podem, à época, ser sociocognitivamente incluídas na expressão pluralizada. Assim, desfaz-se em 1913 essa ambiguidade por via de uma formulação explícita que introduz linguisticamente a discriminação de género através do modificador ‘do sexo masculino’ (vd. quadro 3).
A Constituição de 1911 revela-se, assim, um documento potencialmente relevante para uma atual discussão em torno das relações entre linguagem e sociedade e da necessidade de uma linguagem inclusiva, por evidenciar a diferença entre potencialidades semânticas de um enunciado e a interpretação imposta em termos sociopolíticos. Além do mais, esse documento é também prova da ambiguidade como parte estrutural da língua, quer por via da polissemia e intersubjetividade caraterísticas dos enunciados verbais (Leite e Martins 2013), quer por via de uma relação entre linguagem e mundo suscetível à subversão (Ehrlich e King 1994).
4.4. A Constituição de 1933: linguagem e ideologia
Tal como se pode ler em Almeida (2016), a Constituição de 1933 é um documento com pouca atenção à prática política, estando mais orientada para a criação de uma determinada e predefinida imagem ideológica de Estado. Nesse sentido, é necessário considerar documentos adjacentes a essa Constituição para encontrar a formulação linguística relativa ao direito ao voto. Destarte, optámos por analisar a lei eleitoral (provisória) de 1933, por ser o primeiro documento legal relativo à capacidade eleitoral, surgindo imediatamente após a entrada em vigor da Constituição em causa.
Constituição de 1933 | Lei eleitoral (provisória) de 1933 |
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TÍTULO III DA ASSEMBLEIA NACIONAL CAPÍTULO 1 DA CONSTITUIÇÃO DA ASSEMBLEIA NACIONAL ARTIGO 85.º A Assembleia Nacional é composta por noventa deputados eleitos por sufrágio directo dos cidadãos eleitores, durante o seu mandato quatro anos. §1.º - Em lei especial serão determinados os requisitos de elegibilidade dos deputados, a organização dos colégios eleitorais e o processo de eleição. (...) |
Artigo 1.º As juntas de freguesia são eleitas pelos cidadãos portugueses de um e outro sexo, com responsabilidade de chefes de família (…). § 1.º Têm responsabilidade de chefes de família para os efeitos do corpo deste artigo: 1.º Os cidadãos portugueses do sexo masculino com família legìtimamente constituída (…). 2.º As mulheres portuguesas, viúvas, divorciadas ou judicialmente separadas de pessoas e bens e as solteiras, maiores ou emancipadas, com família própria e reconhecida idoneidade moral, bem como as casadas cujos maridos estejam exercendo a sua actividade nas colónias ou no estrangeiro, umas e outras se não estiverem abrangidas na última parte do número anterior; Art. 2.º As câmaras municipais são eleitas na proporção a estabelecer no Código Eleitoral: (...) 3.º Pelos cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores ou emancipados, que saibam ler e escrever, (...). 4.º Pelos cidadãos portugueses do sexo masculino (...) que embora não saibam ler e escrever, paguem ao Estado e corpos administrativos (...) por algum ou alguns dos seguintes impostos (...). 5.º Pelos cidadãos portugueses do sexo feminino, maiores ou emancipados, com curso especial, secundário ou superior, comprovado pelo diploma respectivo, domiciliados no concelho há mais de seis meses ou nêle exercendo funções públicas no dia 2 de Janeiro anterior à eleição. |
Fonte: Compilação da autora.
Um primeiro aspeto a apontar é o facto de, pela primeira vez, as mulheres serem conceptualmente inscritas na lei eleitoral por via de uma formulação linguística explícita (vd. no quadro 4, o segundo ponto do primeiro parágrafo do artigo 1º da lei eleitoral), o que consequentemente permite, pela primeira vez, uma interpretação genérica do masculino plural presente na Constituição (vd. primeira coluna do quadro 4). No entanto, como explica Tavares (2008), a realidade histórico-política da época justifica a incorporação das mulheres no conjunto de sujeitos-eleitores, não por tal constituir um direito até então interdito, mas porque, num quadro ideológico de controlo e manipulação, a construção de uma identidade feminina servil era indispensável ao sucesso do regime.
Do ponto de vista linguístico, alguns aspetos devem ser elucidados. Em primeiro lugar, o uso da coordenação copulativa na estrutura de quantificação ‘um e outro sexo’ (vd. quadro 4) estipula um fechamento da sociedade em duas opções restritas ao sexo biológico dos indivíduos, criando assim duas classes descontínuas à qual os cidadãos deverão invariavelmente pertencer. Essa conceptualização predeterminada do género volta a inscrever-se na forma linguística, mais à frente, quando são enumeradas as condições que permitem o acesso ao voto. Retomando Tiersma (2008), as enumerações na linguagem jurídica constituem tentativas de abranger na maior extensão possível um determinado fenómeno, abrindo-se assim uma janela para a observação do que seriam, na época, estatutos sociais moralmente valorizados.
A introdução de uma vincada ideologia de género no e por via do discurso culmina com a introdução da expressão de avaliação subjetiva (‘reconhecida idoneidade moral’) que exemplifica a relação entre léxico e conceptualização do mundo, evidenciando-se assim que as escolhas lexicais podem revelar diretamente formas de categorização do mundo. Simultaneamente, esse mesmo enunciado revela também a influência que a organização e os comportamentos sociais exercem na construção discursiva, numa relação interacionista entre linguagem e mundo (Leite e Martins 2013).
Adicionalmente, o artigo 2º da lei eleitoral de 1933 vai ao encontro das ideias defendidas por Tavares (2008) na medida em que, sendo conhecida a realidade sociocultural da época, se verifica um desfasamento entre os direitos preconizados no documento legal e a verificação na prática dos requisitos para acesso ao voto por parte dos sujeitos da sociedade portuguesa de então.
Para além disso, a questão do género gramatical volta a ser relevante pois, no ponto 5º do artigo 2º da lei eleitoral de 1933 (vd. quadro 4), o uso do masculino plural ocorre em sobreutilização, visto que o sintagma preposicional em causa poderia ter sido flexionado no feminino. Essa opção flexional conduz-nos à hipótese de que o uso do masculino plural constitua o padrão flexional não marcado mesmo quando conceptualmente o grupo plural é composto exclusivamente por elementos (gramatical e socialmente) femininos, o que comprova a persistência de um padrão conceptual androcêntrico que se reflete no uso linguístico.
4.5. A Constituição de 1976: a vitória da interpretação genérica do masculino plural
Com a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a introdução de um novo regime político em Portugal, surge de imediato uma nova lei eleitoral que passa a considerar a temática sob a designação de ‘capacidade eleitoral activa’ (vd. quadro 5), no que podemos considerar uma designação mais orientada para o conjunto de poderes de que serão dotadas as cidadãs e os cidadãos no exercício do seu direito ao voto.
Lei eleitoral de 1974 | Constituição de 1976 | Lei eleitoral de 1979 |
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ARTIGO 1.º (capacidade eleitoral activa) 1 - São eleitores da Assembleia Constituinte os cidadãos portugueses de ambos os sexos, maiores de 18 anos (...). |
CAPÍTULO I Estatuto e eleição (...) ARTIGO 124.º (Eleição) 1. O Presidente da República é eleito por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos portugueses eleitores, recenseados no território nacional. (...) |
Artigo 1.º Capacidade eleitoral activa 1 - Gozam de capacidade eleitoral activa os cidadãos portugueses maiores de 18 anos. 2 - Os portugueses havidos também como cidadãos de outro Estado não perdem por esse facto a capacidade eleitoral activa. |
Fonte: Compilação da autora.
Note-se, porém, que na lei eleitoral de 1974 (vd. quadro 5), onde se decreta um sufrágio universal, mantém-se uma quantificação binária exata (‘ambos os sexos’) que expõe a conceção que, à data, seria feita da sociedade relativamente ao sexo, revelando simultaneamente a preponderância que esse fator teria ao ser escolhido para uma formulação exaustiva do direito ao voto.
Repare-se também que, a partir deste momento e, sobretudo, na formulação adotada a partir da Constituição de 1976, há uma mudança linguística significativa: o uso da forma morfológica masculina plural passa a ter uma interpretação genérica obrigatória (i.e., em nenhuma interpretação do sintagma ‘os portugueses’ se pode considerar que o conjunto plural de átomos se refere apenas a indivíduos do sexo masculino).
Além disso, podemos afirmar que uma formulação mais curta (em termos de extensão) aparece agora como sinónimo de menos restrições na atribuição de direito ao voto, abdicando-se de considerações ideológicas sobre o género social e o papel das mulheres na sociedade e ficando o direito ao voto apenas ligado a critérios de idade e cidadania (vd. terceira coluna do quadro 5).
Não obstante, as alterações à lei eleitoral que os documentos presentes no quadro 5 introduzem mantêm um traço comum aos primeiros documentos analisados (vd. quadro 1): a designação dos sujeitos-eleitores através de um sintagma nominal flexionado no masculino plural (‘os portugueses’), que passa agora de uma interpretação especificamente masculina para uma interpretação genérica que pressupõe necessariamente um conjunto alargado de homens e mulheres.
5. Considerações finais
De acordo com Almeida (2016, 4), o constitucionalismo português tem três fases. A primeira (1822-1933) é intitulada de constitucionalismo liberal por se focar na consagração do princípio da separação de poderes e nos direitos individuais. A segunda fase (1933-1974) é designada de constitucionalismo autoritário por ter originado uma anulação dos direitos políticos, das instituições representativas e do Estado de Direito. Por fim, a partir de 1974 inicia-se a fase do constitucionalismo democrático, que tem como caraterística fundamental a consagração de um sufrágio universal.
Respondendo às questões de investigação formuladas (como é que linguística e discursivamente se modifica a formulação relativa ao direito ao voto das mulheres e como é que estas são retratadas na lei eleitoral), evocaremos essa categorização histórico-jurídica para propor quatro fases na formulação linguística do direito ao voto das mulheres em Portugal.
Entre 1822 e 1913, as mulheres são invisíveis na lei eleitoral e inexistentes enquanto sujeito jurídico, sendo que nesses casos o uso da flexão no masculino plural assume uma interpretação preferencialmente específica e não genérica.
Uma segunda e curta fase encontra-se entre 1913 e 1933, quando a legislação eleitoral assume uma posição explicitamente patriarcal, inscrevendo linguisticamente a negação do direito das mulheres ao voto no texto jurídico. Esta fase é particularmente relevante do ponto de vista linguístico na medida em que, como vimos, foi motivada pelo aproveitamento que Carolina Beatriz Ângelo fez da ambiguidade semântica do escopo da forma plural, nomeadamente pela interpretação genérica da forma morfológica do masculino plural na Constituição de 1911 que lhe concedeu direito a votar. Como consequência, é publicada uma lei eleitoral em 1913 que explicitamente restringe a interpretação do forma masculina plural a um conjunto especificamente masculino de indivíduos.
Posteriormente, a terceira fase ocorre entre 1933 e 1974, num período em que o texto jurídico é caraterizado por opções lexicais e construções enunciativas fortemente ideológicas no que ao género e ao papel das mulheres diz respeito.
A partir de 1974 inicia-se o que consideramos ser a quarta fase da formulação linguístico-discursiva do direito ao voto das mulheres, caraterizada por um texto curto e não restritivo, mas que, ainda assim, mantém uma opção pela formulação genérica através do uso do masculino plural.
A extensão textual parece colocar-se em estrita oposição com a criação de um texto generalista e não restritivo, i.e., quanto mais curta a formulação linguística relativa ao direito ao voto, mais abrangente parece ser o sufrágio.
A construção linguística no género textual Constituição revela níveis de enviesamento e uma ideologia de género provavelmente refratoras de determinadas realidades sociais, pois verifica-se uma interação entre uso linguístico e conceções extralinguísticas.
Por fim, o uso da flexão masculina plural como opção única é também revelador de um percurso que parte de uma interpretação necessariamente específica para uma atual interpretação genérica. Assim, poderemos afirmar que os mecanismos linguísticos começam por excluir a mulher da lei eleitoral, passando depois a restringi-la declaradamente e, mais tarde, aceitando a sua entrada no paradigma (linguístico) vigente.
Tal como defende Tavares (2008), a história das mulheres insere-se na história da humanidade e, desse modo, um estudo da intersecção entre género e linguagem é também um passo em direção ao conhecimento das formas de organização social humana. Como argumentámos ao longo das páginas anteriores, a linguagem como produto sociocultural e ferramenta para a interação social não deve ser isentada de uma análise em função do papel que desempenha enquanto complexa estrutura legitimadora de poder e conceções dominantes. Esperamos, por isso, ter contribuído para um melhor entendimento dessas intrincadas relações, apelando à continuação do estudo iniciado, nomeadamente na análise de outras sequências do texto constitucional.