1. Introdução
Este artigo analisa sob a lente de género o panorama mediático contemporâneo de crescente digitalização como um ambiente capaz de fomentar a produção de agência e subjetividades, tendo como foco particular jovens adultos/as. As aplicações móveis devem ser entendidas como ferramentas tecnológicas concretas, mas também como manifestações simbólicas (Fotopoulou e O’Riordan 2017) que contribuem para a construção de imaginários. O reconhecimento do papel das apps na interação social, partilha de informação, jogos, encontros e melhoria da saúde e da aptidão física requer um duplo esforço analítico: sobre a sua natureza simbólica, como ambientes de comunicação digital, e sobre a sua dimensão experiencial, como ferramentas tecnológicas (Simões e Amaral 2022). Daqui decorre a interpretação das apps como tecnologias do corpo (Fotopoulou e O’Riordan 2017).
Variados estudos sobre usos e gratificações no panorama mediático digital têm revelado nuances de género na utilização destas tecnologias que não podem ser dissociadas de estereótipos de género, considerados reflexos de relações desequilibradas de poder (e.g. Zhang et al. 2014; Klenk, Reifegerste e Renatus 2017). Apesar dos progressos alcançados nos últimos anos, as assimetrias de género parecem manter-se nas plataformas digitais, onde as mulheres sofrem de forma reiterada práticas de violência online (e.g. Plan International 2020; Simões et al. 2022), forçando a olhar para as tecnologias como redes de poder e de desigualdades.
Os média e as tecnologias digitais tornaram-se importantes recursos, particularmente para jovens adultos/as, que procuram de forma regular conectar-se com outras pessoas (Yee, Bailenson e Ducheneaut 2009; Zhang et al. 2018). É para uma compreensão mais profunda das suas práticas que este artigo pretende contribuir, recorrendo para isso aos estudos feministas e de género sobre tecnologia.
Empiricamente, o estudo foca-se em jovens em idade adulta entre os 18 e os 30 anos, grupo etário que ainda carece, em Portugal, de investigação sistemática dirigida à sua relação com as tecnologias digitais dos média, em especial à luz de uma perspetiva de género. São as suas práticas digitais que pretendemos caracterizar, identificando utilizações genderizadas. São investigados, em particular, os usos de aplicações que conceptualizamos como de auto-rastreio, utilizadas, nomeadamente, para o registo pessoal da atividade física (O’Loughlin et al. 2022), atividade sexual (Danaher, Nyholm e Earp 2018) ou, ainda, de medição da fertilidade (Gambier-Ross, McLernon e Morgan 2018; Hamper 2020). Ao promover o registo voluntário de dados de práticas pessoais, estas apps poderão favorecer formas específicas de estruturar as identidades e as subjetividades, pelo que procuramos perceber em que medida estão a reconfigurar as relações de género, ou até de que forma se interligam a outros denominadores sociodemográficos.
Aqui se utiliza como base empírica o rastreio (tracking) da utilização de smartphones de 342 jovens adultos/as em Portugal, durante um período de 90 dias. Os dados foram explorados, de um ponto de vista metodológico quantitativo exploratório, sob procedimentos estatísticos descritivos. Embora limitados, os resultados alcançados sugerem que a utilização de aplicações móveis de auto-rastreio pode apenas, de forma marginal, situar-se no quadro de dinâmicas disruptivas com a normatividade prevalecente. Essencialmente, as práticas rastreadas traduzem regimes genderizados de autovigilância e quantificação que, para as mulheres, representam o imperativo cultural de assegurar o controlo do corpo reduzido à sua função sexual e reprodutiva.
1.1 Auto-rastreio, apps e género
A investigação feminista que se debruça sobre os média tem mostrado que o espaço mediático digital reflete as relações de poder vividas no mundo offline, perpetuando hegemonias como desequilíbrios de género (e.g. Ging e Siapera 2018, 2019; Vickery e Everbach 2018; Amaral e Simões 2021; Simões, Baeta e Costa 2023). Tal como originalmente prognosticado, o vasto potencial contra-hegemónico das plataformas digitais pode ser apropriado por movimentos feministas (e.g. Mendes, Ringrose e Keller 2018; Miguel, Marx e Arndt 2020). Contudo, as tecnologias digitais, entre elas as apps móveis de autocontrolo das funções reprodutivas e da atividade sexual, incluindo das performances sexuais, estão imersas em relações sociais de poder (Lupton 2016).
No alargado contexto do espaço mediático digital há claras diferenças sociodemográficas e identitárias de utilização (Amaral, Flores e Antunes 2022). Algumas autoras e autores (e.g. Leménager et al. 2021) salientam, na conjuntura da pandemia de Covid-19, o aumento do consumo de aplicações de streaming, informação e redes sociais e mensageiros pelas mulheres, face ao crescimento do consumo de jogos e conteúdo pornográfico, por parte dos homens. Já Seneviratne e a sua equipa (2014) afirmavam que é possível prever o género de uma pessoa, com uma eficácia de perto de 70%, ao analisar que aplicações móveis é que uma pessoa tem instalada no seu smartphone. Em ambos os casos, também nas aplicações há lógicas estereotipadas enraizadas em sociedades patriarcais, com construções específicas sobre o que implica ser mulher ou ser homem.
Os média, e em particular o espaço mediático digital, são frequentemente considerados como perpetuadores de assimetrias simbólicas, em particular de género (Cerqueira e Magalhães 2017), salientando-se o espaço importante que as apps assumem nessas assimetrias (Miller 2020). A vigilância digital, ideia inserida na lógica de Self-tracking (Lupton 2016), tem sido criticada por permitir a dataficação (Gilbert 2018) e a colonização de dados pessoais (Couldry e Mejias 2019), quantificando-se e registando-se detalhes da vida. Lupton (2016) aponta o Self-tracking como um fenómeno sociocultural que engloba não só o registo voluntário e pessoal, como o encorajamento ou a imposição que pode traduzir-se numa forma de autovigilância que reifica desigualdades. Com efeito, há plataformas digitais pensadas para quantificar e armazenar um largo conjunto de informações sobre as pessoas com o seu consentimento. Segundo Sanders (2017), o Self-tracking digital facilita níveis de vigilância sem precedentes, ao mesmo tempo que expande a capacidade das pessoas se conhecerem melhor a si mesmas e estarem vigilantes do que as preocupa em si.
Neste sentido, compreendemos o conceito de auto-rastreio como não dizendo meramente respeito a uma tipologia de apps, mas antes como um comportamento ativo de automonitorização de diferentes arenas do quotidiano, possibilitado e potencializado por meio das plataformas digitais. Wissinger (2017) inclui essas aplicações num conjunto de tecnologias que esbatem as linhas entre a tecnologia e os corpos humanos, que estão intimamente relacionadas com os objetivos autoimpostos da preocupação com a máxima e melhor saúde e com o desenvolvimento e fortalecimento humanos. Estes objetivos estão, por sua vez, associados à ideia do autocuidado, que é, tendencial e estereotipicamente, visto como uma preocupação feminina. Aliás, o corpo tipicamente feminino tem sido o foco da ideia de medição e rastreio - entre a quantificação, vigilância e dataficação das vidas e dos corpos -, numa busca por um corpo ideal (Crawford, Lingel e Karppi 2015), de tal forma que a popularidade do auto-rastreio é significativa. É particularmente significativa no caso das aplicações centradas na fertilidade e nos ciclos menstruais (Gambier-Ross, McLernon e Morgan 2018; Hamper 2020).
A conceptualização de aplicações de Self-tracking engloba instrumentos tecnológicos que têm objetivos bastante diversificados, sobretudo relacionados com a melhoria da saúde ou da capacidade física. Grosso modo, contudo, replicam estruturas de desigualdades através de processos que têm vindo a ser estudados a partir da lente de género (Simões e Amaral 2022), assim como de classe e idade (Findeis et al. 2021). Há, contudo, razões para abandonar a utilização destas apps, que estão sobretudo centradas no ónus de registar dados com regularidade, tal como no desconforto e pressão sentida em partilhar informação, e consequente frustração com o incumprimento, em alguma medida, dos objetivos da utilização dessas mesmas aplicações (Epstein et al. 2016; Findeis et al. 2021).
Este trabalho parte da consciência de que a utilização de apps como as destinadas ao auto-rastreio é mais bem entendida quando se observa essa utilização sob múltiplas formas e dados. Se abordarmos o conceito de dataficação, conforme descrito por van Dijck (2014), torna-se evidente que é possível mensurar uma variedade de elementos do quotidiano via digital. O que antes nunca tinha sido sujeito a quantificação - como amizades, interesses, conversas informais, pesquisas de informação, expressões de preferências e respostas emocionais - é agora passível de cálculo e de previsão de comportamentos. As variáveis sociodemográficas permitem outro grau de detalhe nos entendimentos dessas expressões digitais, destacando-se, em particular, com centralidade neste trabalho, a perspetiva de género.
2. Metodologia
Este trabalho explora as utilizações de aplicações móveis por parte de jovens em idade adulta, sob a lente de género, assumindo uma metodologia quantitativa exploratória, com base empírica no rastreio (tracking) de uso detalhado dos smartphones de 342 jovens adultos/as (com idades compreendidas entre os 18 e 30 anos), através de uma entidade externa1 contratada para esse efeito. Durante um período total de 90 dias, esta entidade externa registou as nuances comportamentais da utilização do smartphone de 342 painelistas jovens adultos/as que vivem em Portugal, permitindo quantificações tais como número de cliques, de visitas, de minutos, de utilizações diárias ou totais. A recolha de dados foi dividida em três diferentes fases temporais, entre 2020 e 2021, a fim de obter retratos de usos rotineiros, ainda que no quadro de um quotidiano marcado pela pandemia.
Os dados oficiais estatísticos dos censos portugueses (Carrilho 2015; INE 2023) não abordam a juventude adulta como uma geração entre os 18 e os 30 anos, por isso não disponibilizam dados sobre quantas pessoas existem em Portugal com estas idades. De todo o modo, os censos de 2021 (INE 2023) permitem saber que, nesse ano, o número de jovens entre os 20 e os 29 anos era de 1.101.758 habitantes. Para estimar os/as restantes jovens da população a que diz respeito este estudo, consultaram-se os dados dos censos de 2011 (Carrilho 2015), que identificam 232.641 jovens com 18 ou 19 anos em 2011. Agregaram-se estes dois números, chegando à estimativa da existência de cerca de 1.335.000 jovens em idade adulta em Portugal face ao período deste estudo. A amostra é constituída por 342 jovens adultos/as do painel disponível para estudos da entidade externa contratada. Assim, esta é uma amostra por conveniência, que encaminha este trabalho para o seu sentido metodológico exploratório e consequentemente não permite generalizações dos resultados com total precisão estatística. A utilização de amostragens por conveniência tem limitações na interpretação dos resultados. Porém, a amostra tem já algum nível de relevância quantitativa, podendo indicar tendências iniciais a serem exploradas. Uma amostra de 342 painelistas, face à população em questão, permite uma margem de erro de ±5% perante um nível de confiança de 95% (z-score de 1,96).
Foram quatro as questões que orientaram o estudo. Q1: Que usos fazem as e os jovens em idade adulta das aplicações móveis? Q2: Qual a expressão dos usos de aplicações de auto-rastreio nesse retrato? Q3: Em que medida diferem esses usos de aplicações de auto-rastreio consoante diferentes variáveis sociodemográficas (idade, região de Portugal e classe socioeconómica)? Q4: Estarão esses usos a reproduzir ou a desafiar estereótipos de género?
Os dados foram explorados, de um ponto de vista metodológico quantitativo exploratório, sobre procedimentos estatísticos descritivos. Este trabalho pressupõe a análise crítica desses dados através de uma perspetiva feminista, preocupada com desigualdades de género na própria utilização de aplicações móveis. Coloca-se como aspeto central da análise deste trabalho a utilização de apps que impliquem o auto-rastreio, e a possibilidade de essa utilização estar ou não inserida em contextos culturais e sociais marcados por papéis de género.
A amostra permite cruzar os dados de utilização de aplicações móveis com dados sociodemográficos do painel de 342 jovens adultos/as, tais como a classe socioeconómica, a região portuguesa, o género e a idade. Em relação à determinação da classe socioeconómica, os/as painelistas foram inicialmente inquiridos/as em relação aos rendimentos mensais individuais e do seu agregado familiar. De seguida, a entidade externa dividiu os/as painelistas segundo uma adaptação da escala socioeconómica de Nielsen, que originalmente categoriza 8 classes socioeconómicas.
O registo de utilização dos smartphones por esta entidade externa pressupõe a divisão das apps nas seguintes seis categorias: “Fitness”; “Jogos”; “Namoro e Encontros”; “Redes Sociais e Mensageiros”; “Saúde e Bem-estar” e “Self-tracking”. No total, foram rastreadas as utilizações de 40 aplicações, que se dividem em 7 apps de Fitness, 5 de Jogos, 5 de Namoro e Encontros, 10 de Redes Sociais e Mensageiros, 8 de Saúde e Bem-estar e 5 de Self-tracking, conforme apresentado na Tabela 1.
Categoria | Aplicação | Número de aplicações por categoria |
---|---|---|
Fitness | BetterMe | 7 |
BodyFast | ||
Exercícios em casa | ||
FitCoach | ||
Freeletics | ||
Strava: GPS ciclismo | ||
Xiaomi Wear | ||
Jogos | Among Us! | 5 |
Candy Crush Saga | ||
FarmVille 3 Animals | ||
The Sims Mobile | ||
Twitch | ||
Namoro e Encontros | Badoo | 5 |
Bumble | ||
Grindr | ||
Happn | ||
Tinder | ||
Redes Sociais e Mensageiros | Discord | 10 |
Messenger | ||
Telegram | ||
TikTok | ||
Viber | ||
YouTube | ||
Saúde e Bem-Estar | Calm | 8 |
Clue | ||
Fabulous | ||
Fastic | ||
Huawei Health | ||
Jejum Intermitente - Rastreador em Jejum Zero-Cal | ||
Passe Covid | ||
SNS24 | ||
Self-tracking | Calendário Menstrual, Ovulação | 5 |
Fit: Monitoriz. de atividades | ||
Meu calendário menstrual Flo | ||
Mi Fit | ||
Pedómetro | ||
TOTAL DE APLICAÇÕES | 40 |
Fonte: Elaboração própria.
A amostra de 342 painelistas é constituída, de acordo com a Tabela 2, por 201 mulheres (58,77%) e 141 homens (41,23%), sendo que 105 (30,70%) são jovens adultos/as com idades entre os 18 e os 24 anos e os/as restantes 237 (69,30%) têm idades entre os 25 e os 30. As três regiões mais preponderantes na amostra são o Norte (107 painelistas, 31,29% da amostra), o Centro (95 jovens adultos/as, 27,78%) e a região de Lisboa (83 painelistas, 24,27%). Nenhuma das restantes regiões do território português representa mais do que 9% da amostra. No que concerne à classe socioeconómica, dividida numa escala de quatro possibilidades, a amostra é sobretudo constituída por jovens adultos/as de classe média, isto é, C1, com 163 painelistas (47,66% da amostra) e ainda por membros das classes alta e média alta, isto é, AB, com 130 jovens adultos/as (38,01%).
N | % | ||
---|---|---|---|
Género | Mulher | 201 | 58,77% |
Homem | 141 | 41,23% | |
Idade | 18-24 | 105 | 30,70% |
25-30 | 237 | 69,30% | |
Região | Açores | 1 | 0,29% |
Alentejo | 24 | 7,02% | |
Algarve | 28 | 8,19% | |
Centro | 95 | 27,78% | |
Lisboa | 83 | 24,27% | |
Madeira | 4 | 1,17% | |
Norte | 107 | 31,29% | |
Classe socioeconómica | AB (classe alta e média alta) | 130 | 38,01% |
C1 (classe média) | 163 | 47,66% | |
C2 (classe média baixa) | 38 | 11,11% | |
D (classe baixa) | 11 | 3,22% | |
TOTAL | 342 | 100,00% |
Fonte: Elaboração própria.
3. Resultados
Os resultados do rastreio (tracking) de três meses da utilização de smartphones por parte do painel de 342 jovens adultos/as, dividida em seis categorias de aplicações móveis, revelam importantes nuances na utilização de apps e permitem que se observem detalhes no tipo de utilização efetuada.
Os dados apresentados na Tabela 3 reforçam a preponderância das aplicações de Redes Sociais e Mensageiros, já que o total de 342 painelistas utilizou esse tipo de aplicações durante algum momento dos três meses da amostra. Esta categoria de apps também se destaca significativamente nas restantes métricas, com valores que sugerem a sua utilização frequente. Esta é a única categoria em que a média de minutos por dia por utilizador/a é superior a 60. As Redes Sociais e Mensageiros registaram ainda 177.335 visitas durante os 3 meses, resultando numa média de 519 visitas por utilizador/a. Por sua vez, esta categoria de apps teve uma média de visualizações de página por utilizador/a de 2840.
As restantes categorias de aplicações não atingem resultados de equiparável utilização. No número total de utilizadores/as, surge em segundo lugar a categoria das apps de Saúde e Bem-Estar, com 91 pessoas (26,61% da amostra). Porém, esta categoria é também a que regista menor média de visitas por utilizador/a (7), menor média de visualizações de páginas por utilizador/a (15) e menor média de minutos por dia por utilizador/a (0,12).
No número total de visitas e, consequentemente, na média de visitas por utilizador/a, mas também na média de visualizações de páginas por utilizador/a, surge como segunda categoria de app mais utilizada a de Namoro e Encontros (3522 visitas totais, 519 visitas em média por utilizador/a e 364 visualizações de páginas em média por utilizador/a). As apps de Namoro e Encontros e de Jogos são as restantes categorias, além de Redes Sociais e Mensageiros, cujas médias por dia por utilizador/a ultrapassam um minuto de utilização.
Tipo de Apps | Total de Utilizadores/as (N/% do Total) |
Total de Visitas | Média de Visitas por Utilizadores/as | Média de Visualizações de Páginas por Utilizadores/as | Média de Minutos por Dia por Utilizadores/as |
---|---|---|---|---|---|
Fitness | 30 (8,77%) | 457 | 15 | 47 | 0,67 |
Jogos | 70 (20,47%) | 2004 | 29 | 132 | 6,74 |
Namoro e Encontros | 42 (12,28%) | 3522 | 84 | 365 | 5,98 |
Redes Sociais e Mensageiros | 342 (100,00%) | 177335 | 519 | 2840 | 65,18 |
Saúde e Bem-Estar | 91 (26,61%) | 657 | 7 | 15 | 0,12 |
Self-tracking | 36 (10,53%) | 364 | 10 | 21 | 0,19 |
Fonte: Elaboração própria.
A Tabela 4 sistematiza os resultados da utilização da união das categorias Saúde e Bem-estar, Fitness e Self-tracking, apresentando-se os dados da utilização de aplicações de auto-rastreio cruzados com o género, a idade, o momento do dia da utilização, a região de residência e a classe socioeconómica dos/as painelistas. Ao contrário do exposto na Tabela 3, os resultados face à média de minutos por utilizador/a não são apresentados na Tabela 4, pois, em qualquer variável sociodemográfica, os valores são muito semelhantes, situando-se entre 0 e 1 minuto.
No que toca à idade, as frequências relativas de utilizadores/as são relativamente equilibradas entre os subgrupos de idades dos 18 aos 24 anos (55 pessoas, 52,38%) e dos 25 aos 30 anos (102 painelistas, 43,04%). Tendo em conta que as frequências relativas apresentam uma diferença ligeiramente inferior a 10% (isto é, duas vezes a margem de erro), não se sugerem percentagens significativamente diferentes a um nível de confiança de 95%. Existe, sim, uma grande discrepância no total de visitas; porém, quando se analisam as visitas em valores médios que têm em conta o número de utilizadores/as desse subgrupo, os valores são idênticos. Veja-se que é apenas na média de visualizações de página por utilizador/a que os resultados apontam para algumas diferenças, apesar de reduzidas, com 26 visualizações de página por utilizador/a entre os 18 e os 24 anos, enquanto a média é de 20 no grupo dos 25 aos 30 anos.
Em relação à região, os resultados indicam mais discrepâncias. Apesar de a Tabela 4 apresentar os resultados para os Açores e a Madeira, não se devem valorizar os casos isolados de 1 e 2 painelistas, respetivamente. Face às restantes regiões do país, o Algarve (16 utilizadores/as, 57,14%) e o Alentejo (13 painelistas, 54,17%) destacam-se como as regiões com maiores frequências relativas de utilizadores/as. Tendo em conta uma possível dispersão de resultados num intervalo de 10%, podem encontrar-se as frequências relativas do Algarve e do Alentejo, mas também do Centro (47 utilizadores/as, 49,47%). Existe ainda outro conjunto de três regiões cujas frequências relativas se encontram num intervalo de 10%, incluindo o Centro, o Norte (45 pessoas, 42,06%) e a região de Lisboa (33 utilizadores/as, 39,76%). Assim, as frequências relativas sugerem diferenças significativas entre regiões como Algarve e Alentejo, em comparação com as regiões do Norte e de Lisboa. Apesar de a região do Algarve ser a que apresenta a maior frequência relativa de utilizadores/as, é aqui que se encontra a menor média de visitas por painelista (5), enquanto as maiores médias de visitas por utilizador/a se encontram nas regiões do Alentejo e de Lisboa, com uma média de 12 visitas. No mesmo sentido, são também as regiões de Alentejo e de Lisboa as que se destacam nas médias de visualizações de página por utilizador/a (29 em Lisboa, 26 no Alentejo), tendo, mais uma vez, a região do Algarve a menor média (12).
Face à classe socioeconómica, registaram-se apenas 6 utilizadores/as de classe D das apps de auto-rastreio. Deste modo, os resultados da classe D não deverão ser objeto de ênfase analítico-estatística. Veja-se que as frequências relativas entre as classes C1 e C2 são bastante semelhantes (47,85% na classe C1, correspondente a 78 utilizadores/as; 47,37% na classe C2, correspondente a 18 utilizadores/as). De todo o modo, as frequências relativas das classes C1 e C2 não se distanciam mais de 10% da frequência relativa registada na classe AB (55 utilizadores/as, 42,31%), não sugerindo diferenças significativas neste parâmetro. Já analisando as restantes métricas, e apesar de os totais de visitas serem bastante diferentes, é interessante observar que as classes socioeconómicas mais altas (AB e C1) apresentam resultados muito semelhantes quer na média de visitas por utilizador/a (10 visitas em média), quer na média de visualizações de página por utilizador/a (26 na classe AB, 25 na classe C1). Já a classe C2 distancia-se destes resultados, com 5 visitas em média por painelista e 7 visualizações de página em média por utilizador/a.
Ainda relativamente aos dados apresentados na Tabela 4, os resultados da utilização face ao momento do dia devem ser interpretados de forma ligeiramente diferente, já que as mesmas pessoas poderão utilizar as aplicações na totalidade das cinco opções disponíveis. De qualquer modo, há um equilíbrio generalizado na utilização destas apps no que toca às manhãs, tardes e noites. Por sua vez, os resultados diferem mais entre a utilização durante dias de semana ou durante fins de semana, sobretudo ao nível das frequências relativas de utilizadores/as. Nos dias de semana, registaram-se 143 utilizadores/as (41,81%), o que é significativamente superior à frequência de utilizadores/as aos fins de semana (94 pessoas, 27,49%). Apesar de existirem diferenças robustas no total de visitas, quando se analisa a média destas por utilizador/a, os resultados aproximam-se. Mesmo na média de visualizações de página por utilizador/a não existem discrepâncias que sugiram nuances relativamente distintas, até porque, ao contrário das restantes variáveis sociodemográficas, a utilização num determinado momento do dia não invalida a sua utilização também noutro momento do dia. De todo o modo, a maior média de visualizações de página por utilizador/a registou-se durante os dias de semana (17), enquanto a menor média registou-se nas manhãs (9).
Apesar de a amostra ter mais mulheres do que homens, os resultados da Tabela 4 sugerem diferentes utilizações destas apps face ao género. Mesmo tendo em conta a margem de erro de ±5% da amostra, os intervalos de resultados possíveis de frequências relativas de utilizadores/as distanciam-se acima dos 10%, já que as 107 mulheres que utilizaram estas apps representam 53,23% do total de mulheres na amostra, enquanto os 50 homens que utilizaram estas apps são apenas 35,46%. À semelhança do que acontece com os dois subgrupos etários, e apesar de grandes disparidades nos números totais de visitas, as restantes variáveis apresentadas na Tabela 4 não sugerem particulares diferenças genderizadas na utilização de aplicações de auto-rastreio, sobretudo no sentido de mais e maiores utilizações por parte de mulheres. Aliás, a média de visualizações de página por utilizador/a sugere um resultado maior nos homens (29) do que nas mulheres (20).
Total de Utilizadores/as (N/% do Total) |
Total de Visitas | Média de Visitas por Utilizador/a | Média de Visualizações de Páginas por Utilizadores/as | ||
---|---|---|---|---|---|
Género | Mulher | 107 (53,23%) | 1015 | 10 | 20 |
Homem | 50 (35,46%) | 463 | 9 | 29 | |
Idade | 18-24 | 55 (52,38%) | 450 | 8 | 26 |
25-30 | 102 (43,04%) | 1028 | 10 | 20 | |
Momento do dia | Manhã | 83 (24,27%) | 389 | 5 | 9 |
Tarde | 110 (32,16%) | 615 | 6 | 15 | |
Noite | 102 (29,82%) | 498 | 5 | 12 | |
Dia de semana | 143 (41,81%) | 1058 | 7 | 17 | |
Fim de semana | 94 (27,49%) | 421 | 4 | 11 | |
Região | Açores | 1 (100,00%) | 111 | 111 | 203 |
Alentejo | 13 (54,17%) | 160 | 12 | 26 | |
Algarve | 16 (57,14%) | 72 | 5 | 12 | |
Centro | 47 (49,47%) | 375 | 8 | 19 | |
Lisboa | 33 (39,76%) | 403 | 12 | 29 | |
Madeira | 2 (50,00%) | 5 | 3 | 3 | |
Norte | 45 (42,06%) | 352 | 8 | 21 | |
Classe socioeconómica | AB (classe alta e média alta) | 55 (42,31%) | 566 | 10 | 26 |
C1 (classe média) | 78 (47,85%) | 805 | 10 | 25 | |
C2 (classe média baixa) | 18 (47,37%) | 81 | 5 | 7 | |
D (classe baixa) | 6 (54,55%) | 26 | 4 | 6 | |
TOTAL | 157 (45,91%) | 1478 | 9 | 22 |
Fonte: Elaboração própria.
4. Discussão
Os resultados apresentados permitem leituras detalhadas sobre as utilizações de aplicações móveis, que revelam usos massivos e generalizados das apps da categoria Redes Sociais e Mensageiros. Assim, de acordo com os dados da Tabela 3, é possível responder à primeira questão de investigação (Q1). A categoria de Redes Sociais e Mensageiros é de tal forma preponderante que todas as pessoas da amostra utilizaram esta categoria de apps, distanciando-se das demais categorias, inclusive na média de minutos por utilizador/a por dia, registando mais de 65 minutos por dia, enquanto a categoria com a segunda maior média de minutos por utilizador/a por dia (Jogos) não chega aos 7 minutos. Apesar da popularidade das apps de Redes Sociais e Mensageiros ser relativamente constante, o período de recolha da amostra deste estudo coincidiu com alterações sociais e comportamentais resultantes dos diversos confinamentos e demais restrições da pandemia da Covid-19, o que aumentou a utilização geral dessa categoria no contexto português e também internacional (Leménager et al. 2021; Simões et al. 2022; Amaral, Antunes e Flores 2023). As restantes cinco categorias revelam padrões de utilização mais semelhantes entre si, que sugerem menor centralidade na vida dos/as 342 jovens adultos/as. A nível de frequências absolutas e relativas, destaca-se o facto de as apps inicialmente categorizadas como de Namoro e Encontros (42 utilizadores/as, 12,28%), Self-tracking (36 pessoas, 10,53%) e Fitness (30 painelistas, 8,77%) serem das menos utilizadas. Porém, quando se observam as restantes métricas, os resultados apontam para utilizações mais intensivas das apps de Namoro e Encontros por comparação com as de Self-tracking e de Fitness. Mais do que comparar as médias de visitas, poderá auxiliar a compreensão deste facto observar as diferenças nas médias de visualizações de página por painelista (365 nas apps de Namoro e Encontros, por comparação com 41 nas de Fitness e 21 nas de Self-tracking), já que esta métrica se associa ao swiping característico dessas apps. Também na média de minutos por dia por utilizador/a as apps de Namoro e Encontros se distanciam (5,98 minutos), o que poderá ser contextualizado, no caso português, pela positiva recetividade a tecnologias com este fim (Sepúlveda e Vieira 2020). As categorias de Self-tracking e de Fitness reúnem médias de minutos por dia por utilizador/a inferiores a 1 minuto (0,19 e 0,67, respetivamente). O mesmo acontece ainda nas aplicações de Saúde e Bem-estar (0,12 minutos). Tendo em conta que conceptualizamos o auto-rastreio como a junção das categorias de Self-tracking, Fitness e Saúde e Bem-estar, assim se poderá responder à segunda questão de investigação (Q2).
Neste artigo conceptualiza-se o auto-rastreio como a junção de categorias onde está presente a disciplina do corpo (Klenk, Reifergerste e Renatus 2017; Pelúcio 2022; Antunes, Alcaire e Amaral 2023). Esta ideia do auto-rastreio agrega diferentes tipos de apps que permitem monitorizar, medir e registar comportamentos, hábitos ou mesmo ideias e pensamentos. Entre a quantificação, a vigilância e a dataficação, o auto-rastreio deve ser analisado numa perspetiva crítica da disciplina do género e do corpo. Daí resulta a ideia da qualidade do autocuidado, hegemónica e estereotipicamente percebido (e representado) como um interesse meramente feminino, que encaixa nos papéis de género tradicionais, segundo os quais as mulheres estão associadas ao cuidado (não só de si próprias, como também de outros/as) e à reprodução.
A análise dos dados apresentados na Tabela 4 permite responder à Q3. Começando com o foco na região, indicador onde se encontram algumas discrepâncias, em termos de frequências relativas destacam-se o Algarve (16 utilizadores/as, 57,14%) e o Alentejo (13 painelistas, 54,17%). Porém, as restantes métricas utilizadas sugerem resultados diversificados que não corroboram, sobretudo, a grande utilização de apps de auto-rastreio no Algarve, o que dificulta a identificação de diferentes padrões de utilização face a características específicas de residentes em determinadas regiões portuguesas. O momento do dia também pode levar a diferentes níveis de popularidade na utilização destas aplicações. Os resultados sugerem que as apps de auto-rastreio são mais utilizadas durante a semana do que ao fim de semana, seja em termos de frequências relativas de utilizadores/as ou em médias como a de visualizações de página por painelista. Desta forma, os resultados poderão abrir espaço para uma leitura e análise futura sobre o auto-rastreio como mais uma tarefa simultânea à semana de estudo/trabalho, da qual se poderá descansar, pausar até, durante o fim de semana. Em relação aos subgrupos etários, as métricas tendem a apresentar valores semelhantes, sendo que as próprias frequências relativas se encontram num intervalo inferior a 10% (duas vezes a margem de erro), não se identificando particulares diferenças na utilização de apps de auto-rastreio entre jovens dos 18 aos 24 anos em comparação com jovens dos 25 aos 30, o que sugere a associação geral da juventude ao uso deste tipo de aplicações conforme apontado noutros estudos (e.g. Findeis et al. 2021).
Ainda sobre a Q3, poderá existir alguma associação entre classe socioeconómica e a utilização de apps de auto-cuidado, o que também corrobora o que foi apontado por Findeis e restantes colegas (2021), que afirmam que o movimento do registo do self poderá estar associado com classes socioeconómicas mais favorecidas. Aliás, tendo em conta as métricas além dos totais de utilizadores/as, salientam-se as classes socioeconómicas mais altas (AB e C1) com resultados muito semelhantes, quer na média de visitas (10 visitas em média), quer na média de visualizações de página por utilizador/a (26 na classe AB, 25 na classe C1), face aos resultados da classe C2 (em média, 5 visitas e 7 visualizações de página por painelista).
De modo a responder à Q4, partiu-se da ligação entre o papel tradicional da mulher como uma construção ligada ao auto-rastreio pelo cuidado, seja face a uma procura por um corpo ideal ou pelo auxílio tecnológico aos ciclos menstruais e às questões da fertilidade (Crawford, Lingel e Karppi 2015; Gambier-Ross, McLernon e Morgan 2018; Hamper 2020). A popularidade do nicho específico de apps focadas na fertilidade e nos ciclos menstruais, que estão particularmente inseridas no contexto das aplicações de Self-tracking, é identificável na lista de aplicações rastreadas, conforme demonstra a Tabela 1. A forte presença desse nicho específico de apps pode justificar, por si só, a presença de mais utilizadoras do que utilizadores, inclusive em frequências relativas, contribuindo para uma tendência genderizada na utilização de apps de auto-rastreio. Assim, os resultados revelam padrões tradicionais de género nessas utilizações, enfatizando-se um contexto de autovigilância e de automonitorização dos próprios corpos através da tecnologia, como aponta Lupton (2016), sobretudo com apps que reforçam a autovigilância e o autocontrolo do corpo feminino, reduzido à sua função sexual e reprodutiva.
Embora a amostra tenha mais mulheres do que homens, salientamos que, mesmo tendo em conta a margem de erro de ±5%, a possível dispersão de resultados da frequência relativa de utilizadoras (107 mulheres, 53,23%) distancia-se da frequência relativa de utilizadores (50 homens, 35,46%), já que as frequências relativas têm uma diferença superior a 10%. Apesar de estes resultados sugerirem a manutenção dos ideais estruturantes do cuidado próprio e com outros/as como algo massivamente feminino, as restantes métricas da Tabela 4 indicam que os homens que decidem utilizar este tipo de aplicações, apesar de em menor número, fazem utilizações semelhantes às mulheres, havendo até métricas onde os resultados podem ser maiores nos homens do que nas mulheres (como a média de visualizações de página por utilizador/a, que é 29 e 20, respetivamente). É, por isso, relevante entender que as apps de auto-rastreio possuem fins bastante diversificados. De todo o modo, daqui podem surgir leituras sobre a utilização geral destas aplicações por parte de homens jovens adultos, em contextos de novas masculinidades. Outros estudos poderão aprofundar se as apps de auto-rastreio podem ser pensadas como um pequeno espaço digital de emancipação do auto-cuidado masculino, sobretudo aliado ao exercício e à saúde física, contribuindo para uma certa desmistificação de construções socioculturais tradicionais e patriarcais.
5. Conclusão
A análise dos resultados deste artigo reforça a preponderância de Redes Sociais e Mensageiros junto de jovens em idade adulta em Portugal, sobretudo num contexto após o início da pandemia da Covid-19. O tracking da utilização de smartphones durante um total de 90 dias permite concluir que as apps com fins de auto-rastreio (Saúde e Bem-estar, Self-tracking e Fitness) são das menos utilizadas sob variadas métricas, sendo as únicas categorias com menos de 1 minuto, em média, por dia por utilizador/a, o que sugere que não fazem parte estruturante da vida comum da juventude adulta em Portugal. Outros estudos que explorem a utilização destas apps noutras gerações adultas poderão contribuir para a perceção da utilização de apps de auto-rastreio como algo associado à juventude e a classes socioeconómicas mais favorecidas (Findeis et al. 2021). Os dados deste estudo reforçam essa utilização por parte das classes socioeconómicas mais favorecidas.
Este artigo apresenta leituras genderizadas sobre os padrões de utilização que poderão não ser determinadamente conclusivas, sobretudo pelo caráter exploratório da metodologia quantitativa de amostra não representativa, apesar de sugerirem a reprodução de construções hegemónicas e patriarcais da feminilidade. Nesse sentido, estudos com amostras mais significativas e representativas poderão ser importantes para se aprofundar a ideia da continuidade dos padrões patriarcais de responsabilização da mulher pela sua capacidade reprodutiva, tal como serão importantes para se explorar se o auto-rastreio masculino se poderá limitar e circunscrever à autovigilância do exercício e da saúde física. Os resultados sugerem que as utilizações de apps de auto-rastreio por parte de jovens adultos/as em Portugal não antagonizam os padrões de género tradicionais (Simões e Amaral 2022), apesar de se reconhecer uma utilização semelhante da larga categoria de apps de auto-rastreio entre utilizadoras e utilizadores. Poderão ser interessantes estudos focados na identificação de padrões de utilização distintos, de modo a verificar as leituras aqui apresentadas, auxiliando a compreensão da genderização, em conjugação com a idade e ainda outros fatores sociodemográficos, da auto-vigilância e do autocuidado que as apps englobadas na lógica do auto-rastreio (sugerem e reforçam.