SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número49Marcação de terceiro género em espanhol: avaliação das opções atuais do ponto de vista da mudança linguísticaDOS DIREITOS AOS “PóS-DIREITOS”: A PLATAFORMIZAçãO JORNALíSTICA DOS DIREITOS DAS MULHERES índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.49 Lisboa jun. 2024  Epub 30-Jun-2024

https://doi.org/10.22355/exaequo.2024.49.10 

Estudos e ensaios

GéNERO E AUTO-RASTREIO: A UTILIZAçãO DE SMARTPHONES POR JOVENS EM IDADE ADULTA EM PORTUGAL

Gender and Tracking of the Self: Smartphone usage by young adults in Portugal

Género y auto-rastreo: la utilización de smartphones por jóvenes en edad adulta en Portugal

Eduardo Antunes, Conceptualização, análise formal, investigação, metodologia, validação, redação do rascunho original, revisão, edição

Investigador do projeto MyGender, doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade de Coimbra, onde concluiu o mestrado em Jornalismo e Comunicação. Locutor e autor de programas na RUC, tendo sido coordenador de programas em 2021/2022. Conta com uma passagem profissional de 3 meses no Cairo, Egito, por via de estágios internacionais da AIESEC. Entre a atenção dada à música, à comunicação e à investigação, procura desenvolver estudos sobre as dinâmicas do orientalismo e de género nos média.

* 
http://orcid.org/0000-0003-1372-8052

Rita Basílio de Simões, Conceptualização, investigação, metodologia, validação, redação do rascunho original, revisão, edição

Professora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Doutorada em Ciências da Comunicação, o seu trabalho tem cruzado a investigação do jornalismo e dos média digitais e os estudos feministas em comunicação. Investigadora integrada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), coordena, desde 2019, o Grupo de Trabalho em Género e Sexualidades da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação e a participação portuguesa no Global Media Monitoring Project.

** 
http://orcid.org/0000-0001-6356-6042

Inês Amaral, Conceptualização, metodologia, investigação, validação, revisão, edição

Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Doutorada em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho, é investigadora integrada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Tem investigado sobre sociabilidades nas redes sociais digitais, participação e média sociais, género e média, literacia mediática, tecnologias e envelhecimento ativo, e audiências na era digital.

*** 
http://orcid.org/0000-0003-4929-4866

Ana Marta M. Flores, Conceptualização, investigação, metodologia, validação, revisão, edição

Ana Marta M. Flores é doutora e mestre em jornalismo, pós-doutoranda na Universidade de Coimbra e pesquisadora integrada no ICNOVA. Também é pesquisadora colaboradora no Trends and Culture Management Lab (Universidade de Lisboa), Obi.Media - Observatório de Inovação nos Media e do Observatório do Populismo do século XXI. É também a communication officer da secção Digital Culture and Communication da ECREA.

**** 
http://orcid.org/0000-0002-5078-5534

*Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras (FLUC), 3004-530 Coimbra, Portugal. Endereço postal: Largo da Porta Férrea, 3004-530, Coimbra, Portugal

**Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras (FLUC), 3004-530 Coimbra, Portugal. Endereço postal: Largo da Porta Férrea, 3004-530, Coimbra, Portugal

***Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras (FLUC), 3004-530 Coimbra, Portugal. Endereço postal: Largo da Porta Férrea, 3004-530 Coimbra, Portugal

****Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras (FLUC), 3004-530 Coimbra, Portugal. Endereço postal: Largo da Porta Férrea, 3004-530, Coimbra, Portugal


Resumo

Este estudo exploratório apresenta os principais resultados da análise do rastreio (tracking) do uso de aplicações móveis por 342 jovens adultos/as (18-30 anos) em Portugal, considerando as relações de poder com base no género que podem ser refletidas nas suas utilizações. Os resultados indicam que as apps de Redes Sociais e Mensageiros são predominantes, sendo que as categorias de auto-rastreio (Saúde e Bem-estar, Fitness e Self-tracking) são as de menor uso (tendo maior peso em classes socioeconómicas favorecidas). Ainda que existam mais mulheres do que homens a utilizar essas apps, mantendo-se as estruturas genderizadas, estas plataformas digitais também poderão ser concebidas como espaços para o crescimento do auto-rastreio e do autocuidado masculino.

Palavras-chave: Auto-rastreio; jovens adultos/as; self-tracking; smartphones; aplicações móveis.

Abstract

This exploratory study presents the main results from the analysis of the tracking of mobile application use by 342 young adults (18-30 years old) in Portugal considering the gendered power relations that may be reflected in those uses. The results indicate that Social Media and Messaging apps are predominant, while the tracking of the self categories (Health and Well-being, Fitness and Self-tracking) are the least used (with greater weight in privileged socioeconomic classes). Although there are more women than men using these apps, thus preserving gendered structures, these digital platforms may also be conceived as venues for the growth of male self-tracking and self-care.

Keywords: Tracking; young adults; self-tracking; smartphones; mobile applications.

Resumen

Este estudio exploratorio presenta los principales resultados del análisis del rastreo del uso de aplicaciones móviles por 342 adultos jóvenes (18-30 años) en Portugal, considerando las relaciones de poder de género que pueden ser reflejadas en estos usos. Los resultados indican que las apps de Redes Sociales y Mensajes predominan, mientras que las categorías de auto-rastreo (Salud y Bienestar, Fitness y Self-tracking) son las menos utilizadas (teniendo mayor peso en las clases socioeconómicas favorecidas). Aunque el número de mujeres usuarias de estas apps es mayor que el de hombres, manteniéndose las estructuras de género, estas plataformas digitales también pueden concebirse como espacios para el crecimiento del auto-rastreo y autocuidado masculino.

Palabras clave: Auto-rastreo; jóvenes adultos/as; self-tracking; smartphones; aplicaciones móviles.

1. Introdução

Este artigo analisa sob a lente de género o panorama mediático contemporâneo de crescente digitalização como um ambiente capaz de fomentar a produção de agência e subjetividades, tendo como foco particular jovens adultos/as. As aplicações móveis devem ser entendidas como ferramentas tecnológicas concretas, mas também como manifestações simbólicas (Fotopoulou e O’Riordan 2017) que contribuem para a construção de imaginários. O reconhecimento do papel das apps na interação social, partilha de informação, jogos, encontros e melhoria da saúde e da aptidão física requer um duplo esforço analítico: sobre a sua natureza simbólica, como ambientes de comunicação digital, e sobre a sua dimensão experiencial, como ferramentas tecnológicas (Simões e Amaral 2022). Daqui decorre a interpretação das apps como tecnologias do corpo (Fotopoulou e O’Riordan 2017).

Variados estudos sobre usos e gratificações no panorama mediático digital têm revelado nuances de género na utilização destas tecnologias que não podem ser dissociadas de estereótipos de género, considerados reflexos de relações desequilibradas de poder (e.g. Zhang et al. 2014; Klenk, Reifegerste e Renatus 2017). Apesar dos progressos alcançados nos últimos anos, as assimetrias de género parecem manter-se nas plataformas digitais, onde as mulheres sofrem de forma reiterada práticas de violência online (e.g. Plan International 2020; Simões et al. 2022), forçando a olhar para as tecnologias como redes de poder e de desigualdades.

Os média e as tecnologias digitais tornaram-se importantes recursos, particularmente para jovens adultos/as, que procuram de forma regular conectar-se com outras pessoas (Yee, Bailenson e Ducheneaut 2009; Zhang et al. 2018). É para uma compreensão mais profunda das suas práticas que este artigo pretende contribuir, recorrendo para isso aos estudos feministas e de género sobre tecnologia.

Empiricamente, o estudo foca-se em jovens em idade adulta entre os 18 e os 30 anos, grupo etário que ainda carece, em Portugal, de investigação sistemática dirigida à sua relação com as tecnologias digitais dos média, em especial à luz de uma perspetiva de género. São as suas práticas digitais que pretendemos caracterizar, identificando utilizações genderizadas. São investigados, em particular, os usos de aplicações que conceptualizamos como de auto-rastreio, utilizadas, nomeadamente, para o registo pessoal da atividade física (O’Loughlin et al. 2022), atividade sexual (Danaher, Nyholm e Earp 2018) ou, ainda, de medição da fertilidade (Gambier-Ross, McLernon e Morgan 2018; Hamper 2020). Ao promover o registo voluntário de dados de práticas pessoais, estas apps poderão favorecer formas específicas de estruturar as identidades e as subjetividades, pelo que procuramos perceber em que medida estão a reconfigurar as relações de género, ou até de que forma se interligam a outros denominadores sociodemográficos.

Aqui se utiliza como base empírica o rastreio (tracking) da utilização de smartphones de 342 jovens adultos/as em Portugal, durante um período de 90 dias. Os dados foram explorados, de um ponto de vista metodológico quantitativo exploratório, sob procedimentos estatísticos descritivos. Embora limitados, os resultados alcançados sugerem que a utilização de aplicações móveis de auto-rastreio pode apenas, de forma marginal, situar-se no quadro de dinâmicas disruptivas com a normatividade prevalecente. Essencialmente, as práticas rastreadas traduzem regimes genderizados de autovigilância e quantificação que, para as mulheres, representam o imperativo cultural de assegurar o controlo do corpo reduzido à sua função sexual e reprodutiva.

1.1 Auto-rastreio, apps e género

A investigação feminista que se debruça sobre os média tem mostrado que o espaço mediático digital reflete as relações de poder vividas no mundo offline, perpetuando hegemonias como desequilíbrios de género (e.g. Ging e Siapera 2018, 2019; Vickery e Everbach 2018; Amaral e Simões 2021; Simões, Baeta e Costa 2023). Tal como originalmente prognosticado, o vasto potencial contra-hegemónico das plataformas digitais pode ser apropriado por movimentos feministas (e.g. Mendes, Ringrose e Keller 2018; Miguel, Marx e Arndt 2020). Contudo, as tecnologias digitais, entre elas as apps móveis de autocontrolo das funções reprodutivas e da atividade sexual, incluindo das performances sexuais, estão imersas em relações sociais de poder (Lupton 2016).

No alargado contexto do espaço mediático digital há claras diferenças sociodemográficas e identitárias de utilização (Amaral, Flores e Antunes 2022). Algumas autoras e autores (e.g. Leménager et al. 2021) salientam, na conjuntura da pandemia de Covid-19, o aumento do consumo de aplicações de streaming, informação e redes sociais e mensageiros pelas mulheres, face ao crescimento do consumo de jogos e conteúdo pornográfico, por parte dos homens. Já Seneviratne e a sua equipa (2014) afirmavam que é possível prever o género de uma pessoa, com uma eficácia de perto de 70%, ao analisar que aplicações móveis é que uma pessoa tem instalada no seu smartphone. Em ambos os casos, também nas aplicações há lógicas estereotipadas enraizadas em sociedades patriarcais, com construções específicas sobre o que implica ser mulher ou ser homem.

Os média, e em particular o espaço mediático digital, são frequentemente considerados como perpetuadores de assimetrias simbólicas, em particular de género (Cerqueira e Magalhães 2017), salientando-se o espaço importante que as apps assumem nessas assimetrias (Miller 2020). A vigilância digital, ideia inserida na lógica de Self-tracking (Lupton 2016), tem sido criticada por permitir a dataficação (Gilbert 2018) e a colonização de dados pessoais (Couldry e Mejias 2019), quantificando-se e registando-se detalhes da vida. Lupton (2016) aponta o Self-tracking como um fenómeno sociocultural que engloba não só o registo voluntário e pessoal, como o encorajamento ou a imposição que pode traduzir-se numa forma de autovigilância que reifica desigualdades. Com efeito, há plataformas digitais pensadas para quantificar e armazenar um largo conjunto de informações sobre as pessoas com o seu consentimento. Segundo Sanders (2017), o Self-tracking digital facilita níveis de vigilância sem precedentes, ao mesmo tempo que expande a capacidade das pessoas se conhecerem melhor a si mesmas e estarem vigilantes do que as preocupa em si.

Neste sentido, compreendemos o conceito de auto-rastreio como não dizendo meramente respeito a uma tipologia de apps, mas antes como um comportamento ativo de automonitorização de diferentes arenas do quotidiano, possibilitado e potencializado por meio das plataformas digitais. Wissinger (2017) inclui essas aplicações num conjunto de tecnologias que esbatem as linhas entre a tecnologia e os corpos humanos, que estão intimamente relacionadas com os objetivos autoimpostos da preocupação com a máxima e melhor saúde e com o desenvolvimento e fortalecimento humanos. Estes objetivos estão, por sua vez, associados à ideia do autocuidado, que é, tendencial e estereotipicamente, visto como uma preocupação feminina. Aliás, o corpo tipicamente feminino tem sido o foco da ideia de medição e rastreio - entre a quantificação, vigilância e dataficação das vidas e dos corpos -, numa busca por um corpo ideal (Crawford, Lingel e Karppi 2015), de tal forma que a popularidade do auto-rastreio é significativa. É particularmente significativa no caso das aplicações centradas na fertilidade e nos ciclos menstruais (Gambier-Ross, McLernon e Morgan 2018; Hamper 2020).

A conceptualização de aplicações de Self-tracking engloba instrumentos tecnológicos que têm objetivos bastante diversificados, sobretudo relacionados com a melhoria da saúde ou da capacidade física. Grosso modo, contudo, replicam estruturas de desigualdades através de processos que têm vindo a ser estudados a partir da lente de género (Simões e Amaral 2022), assim como de classe e idade (Findeis et al. 2021). Há, contudo, razões para abandonar a utilização destas apps, que estão sobretudo centradas no ónus de registar dados com regularidade, tal como no desconforto e pressão sentida em partilhar informação, e consequente frustração com o incumprimento, em alguma medida, dos objetivos da utilização dessas mesmas aplicações (Epstein et al. 2016; Findeis et al. 2021).

Este trabalho parte da consciência de que a utilização de apps como as destinadas ao auto-rastreio é mais bem entendida quando se observa essa utilização sob múltiplas formas e dados. Se abordarmos o conceito de dataficação, conforme descrito por van Dijck (2014), torna-se evidente que é possível mensurar uma variedade de elementos do quotidiano via digital. O que antes nunca tinha sido sujeito a quantificação - como amizades, interesses, conversas informais, pesquisas de informação, expressões de preferências e respostas emocionais - é agora passível de cálculo e de previsão de comportamentos. As variáveis sociodemográficas permitem outro grau de detalhe nos entendimentos dessas expressões digitais, destacando-se, em particular, com centralidade neste trabalho, a perspetiva de género.

2. Metodologia

Este trabalho explora as utilizações de aplicações móveis por parte de jovens em idade adulta, sob a lente de género, assumindo uma metodologia quantitativa exploratória, com base empírica no rastreio (tracking) de uso detalhado dos smartphones de 342 jovens adultos/as (com idades compreendidas entre os 18 e 30 anos), através de uma entidade externa1 contratada para esse efeito. Durante um período total de 90 dias, esta entidade externa registou as nuances comportamentais da utilização do smartphone de 342 painelistas jovens adultos/as que vivem em Portugal, permitindo quantificações tais como número de cliques, de visitas, de minutos, de utilizações diárias ou totais. A recolha de dados foi dividida em três diferentes fases temporais, entre 2020 e 2021, a fim de obter retratos de usos rotineiros, ainda que no quadro de um quotidiano marcado pela pandemia.

Os dados oficiais estatísticos dos censos portugueses (Carrilho 2015; INE 2023) não abordam a juventude adulta como uma geração entre os 18 e os 30 anos, por isso não disponibilizam dados sobre quantas pessoas existem em Portugal com estas idades. De todo o modo, os censos de 2021 (INE 2023) permitem saber que, nesse ano, o número de jovens entre os 20 e os 29 anos era de 1.101.758 habitantes. Para estimar os/as restantes jovens da população a que diz respeito este estudo, consultaram-se os dados dos censos de 2011 (Carrilho 2015), que identificam 232.641 jovens com 18 ou 19 anos em 2011. Agregaram-se estes dois números, chegando à estimativa da existência de cerca de 1.335.000 jovens em idade adulta em Portugal face ao período deste estudo. A amostra é constituída por 342 jovens adultos/as do painel disponível para estudos da entidade externa contratada. Assim, esta é uma amostra por conveniência, que encaminha este trabalho para o seu sentido metodológico exploratório e consequentemente não permite generalizações dos resultados com total precisão estatística. A utilização de amostragens por conveniência tem limitações na interpretação dos resultados. Porém, a amostra tem já algum nível de relevância quantitativa, podendo indicar tendências iniciais a serem exploradas. Uma amostra de 342 painelistas, face à população em questão, permite uma margem de erro de ±5% perante um nível de confiança de 95% (z-score de 1,96).

Foram quatro as questões que orientaram o estudo. Q1: Que usos fazem as e os jovens em idade adulta das aplicações móveis? Q2: Qual a expressão dos usos de aplicações de auto-rastreio nesse retrato? Q3: Em que medida diferem esses usos de aplicações de auto-rastreio consoante diferentes variáveis sociodemográficas (idade, região de Portugal e classe socioeconómica)? Q4: Estarão esses usos a reproduzir ou a desafiar estereótipos de género?

Os dados foram explorados, de um ponto de vista metodológico quantitativo exploratório, sobre procedimentos estatísticos descritivos. Este trabalho pressupõe a análise crítica desses dados através de uma perspetiva feminista, preocupada com desigualdades de género na própria utilização de aplicações móveis. Coloca-se como aspeto central da análise deste trabalho a utilização de apps que impliquem o auto-rastreio, e a possibilidade de essa utilização estar ou não inserida em contextos culturais e sociais marcados por papéis de género.

A amostra permite cruzar os dados de utilização de aplicações móveis com dados sociodemográficos do painel de 342 jovens adultos/as, tais como a classe socioeconómica, a região portuguesa, o género e a idade. Em relação à determinação da classe socioeconómica, os/as painelistas foram inicialmente inquiridos/as em relação aos rendimentos mensais individuais e do seu agregado familiar. De seguida, a entidade externa dividiu os/as painelistas segundo uma adaptação da escala socioeconómica de Nielsen, que originalmente categoriza 8 classes socioeconómicas.

O registo de utilização dos smartphones por esta entidade externa pressupõe a divisão das apps nas seguintes seis categorias: “Fitness”; “Jogos”; “Namoro e Encontros”; “Redes Sociais e Mensageiros”; “Saúde e Bem-estar” e “Self-tracking”. No total, foram rastreadas as utilizações de 40 aplicações, que se dividem em 7 apps de Fitness, 5 de Jogos, 5 de Namoro e Encontros, 10 de Redes Sociais e Mensageiros, 8 de Saúde e Bem-estar e 5 de Self-tracking, conforme apresentado na Tabela 1.

Tabela 1 Lista de categorias e consequentes aplicações rastreadas 

Categoria Aplicação Número de aplicações por categoria
Fitness BetterMe 7
BodyFast
Exercícios em casa
FitCoach
Freeletics
Strava: GPS ciclismo
Xiaomi Wear
Jogos Among Us! 5
Candy Crush Saga
FarmVille 3 Animals
The Sims Mobile
Twitch
Namoro e Encontros Badoo 5
Bumble
Grindr
Happn
Tinder
Redes Sociais e Mensageiros Discord 10
Facebook
Instagram
Messenger
Reddit
Telegram
TikTok
Viber
WhatsApp
YouTube
Saúde e Bem-Estar Calm 8
Clue
Fabulous
Fastic
Huawei Health
Jejum Intermitente - Rastreador em Jejum Zero-Cal
Passe Covid
SNS24
Self-tracking Calendário Menstrual, Ovulação 5
Fit: Monitoriz. de atividades
Meu calendário menstrual Flo
Mi Fit
Pedómetro
TOTAL DE APLICAÇÕES 40

Fonte: Elaboração própria.

A amostra de 342 painelistas é constituída, de acordo com a Tabela 2, por 201 mulheres (58,77%) e 141 homens (41,23%), sendo que 105 (30,70%) são jovens adultos/as com idades entre os 18 e os 24 anos e os/as restantes 237 (69,30%) têm idades entre os 25 e os 30. As três regiões mais preponderantes na amostra são o Norte (107 painelistas, 31,29% da amostra), o Centro (95 jovens adultos/as, 27,78%) e a região de Lisboa (83 painelistas, 24,27%). Nenhuma das restantes regiões do território português representa mais do que 9% da amostra. No que concerne à classe socioeconómica, dividida numa escala de quatro possibilidades, a amostra é sobretudo constituída por jovens adultos/as de classe média, isto é, C1, com 163 painelistas (47,66% da amostra) e ainda por membros das classes alta e média alta, isto é, AB, com 130 jovens adultos/as (38,01%).

Tabela 2 Distribuição de amostra 

N %
Género Mulher 201 58,77%
Homem 141 41,23%
Idade 18-24 105 30,70%
25-30 237 69,30%
Região Açores 1 0,29%
Alentejo 24 7,02%
Algarve 28 8,19%
Centro 95 27,78%
Lisboa 83 24,27%
Madeira 4 1,17%
Norte 107 31,29%
Classe socioeconómica AB (classe alta e média alta) 130 38,01%
C1 (classe média) 163 47,66%
C2 (classe média baixa) 38 11,11%
D (classe baixa) 11 3,22%
TOTAL 342 100,00%

Fonte: Elaboração própria.

3. Resultados

Os resultados do rastreio (tracking) de três meses da utilização de smartphones por parte do painel de 342 jovens adultos/as, dividida em seis categorias de aplicações móveis, revelam importantes nuances na utilização de apps e permitem que se observem detalhes no tipo de utilização efetuada.

Os dados apresentados na Tabela 3 reforçam a preponderância das aplicações de Redes Sociais e Mensageiros, já que o total de 342 painelistas utilizou esse tipo de aplicações durante algum momento dos três meses da amostra. Esta categoria de apps também se destaca significativamente nas restantes métricas, com valores que sugerem a sua utilização frequente. Esta é a única categoria em que a média de minutos por dia por utilizador/a é superior a 60. As Redes Sociais e Mensageiros registaram ainda 177.335 visitas durante os 3 meses, resultando numa média de 519 visitas por utilizador/a. Por sua vez, esta categoria de apps teve uma média de visualizações de página por utilizador/a de 2840.

As restantes categorias de aplicações não atingem resultados de equiparável utilização. No número total de utilizadores/as, surge em segundo lugar a categoria das apps de Saúde e Bem-Estar, com 91 pessoas (26,61% da amostra). Porém, esta categoria é também a que regista menor média de visitas por utilizador/a (7), menor média de visualizações de páginas por utilizador/a (15) e menor média de minutos por dia por utilizador/a (0,12).

No número total de visitas e, consequentemente, na média de visitas por utilizador/a, mas também na média de visualizações de páginas por utilizador/a, surge como segunda categoria de app mais utilizada a de Namoro e Encontros (3522 visitas totais, 519 visitas em média por utilizador/a e 364 visualizações de páginas em média por utilizador/a). As apps de Namoro e Encontros e de Jogos são as restantes categorias, além de Redes Sociais e Mensageiros, cujas médias por dia por utilizador/a ultrapassam um minuto de utilização.

Tabela 3 Tipo de aplicações e a sua utilização total e diária 

Tipo de Apps Total de Utilizadores/as
(N/% do Total)
Total de Visitas Média de Visitas por Utilizadores/as Média de Visualizações de Páginas por Utilizadores/as Média de Minutos por Dia por Utilizadores/as
Fitness 30 (8,77%) 457 15 47 0,67
Jogos 70 (20,47%) 2004 29 132 6,74
Namoro e Encontros 42 (12,28%) 3522 84 365 5,98
Redes Sociais e Mensageiros 342 (100,00%) 177335 519 2840 65,18
Saúde e Bem-Estar 91 (26,61%) 657 7 15 0,12
Self-tracking 36 (10,53%) 364 10 21 0,19

Fonte: Elaboração própria.

A Tabela 4 sistematiza os resultados da utilização da união das categorias Saúde e Bem-estar, Fitness e Self-tracking, apresentando-se os dados da utilização de aplicações de auto-rastreio cruzados com o género, a idade, o momento do dia da utilização, a região de residência e a classe socioeconómica dos/as painelistas. Ao contrário do exposto na Tabela 3, os resultados face à média de minutos por utilizador/a não são apresentados na Tabela 4, pois, em qualquer variável sociodemográfica, os valores são muito semelhantes, situando-se entre 0 e 1 minuto.

No que toca à idade, as frequências relativas de utilizadores/as são relativamente equilibradas entre os subgrupos de idades dos 18 aos 24 anos (55 pessoas, 52,38%) e dos 25 aos 30 anos (102 painelistas, 43,04%). Tendo em conta que as frequências relativas apresentam uma diferença ligeiramente inferior a 10% (isto é, duas vezes a margem de erro), não se sugerem percentagens significativamente diferentes a um nível de confiança de 95%. Existe, sim, uma grande discrepância no total de visitas; porém, quando se analisam as visitas em valores médios que têm em conta o número de utilizadores/as desse subgrupo, os valores são idênticos. Veja-se que é apenas na média de visualizações de página por utilizador/a que os resultados apontam para algumas diferenças, apesar de reduzidas, com 26 visualizações de página por utilizador/a entre os 18 e os 24 anos, enquanto a média é de 20 no grupo dos 25 aos 30 anos.

Em relação à região, os resultados indicam mais discrepâncias. Apesar de a Tabela 4 apresentar os resultados para os Açores e a Madeira, não se devem valorizar os casos isolados de 1 e 2 painelistas, respetivamente. Face às restantes regiões do país, o Algarve (16 utilizadores/as, 57,14%) e o Alentejo (13 painelistas, 54,17%) destacam-se como as regiões com maiores frequências relativas de utilizadores/as. Tendo em conta uma possível dispersão de resultados num intervalo de 10%, podem encontrar-se as frequências relativas do Algarve e do Alentejo, mas também do Centro (47 utilizadores/as, 49,47%). Existe ainda outro conjunto de três regiões cujas frequências relativas se encontram num intervalo de 10%, incluindo o Centro, o Norte (45 pessoas, 42,06%) e a região de Lisboa (33 utilizadores/as, 39,76%). Assim, as frequências relativas sugerem diferenças significativas entre regiões como Algarve e Alentejo, em comparação com as regiões do Norte e de Lisboa. Apesar de a região do Algarve ser a que apresenta a maior frequência relativa de utilizadores/as, é aqui que se encontra a menor média de visitas por painelista (5), enquanto as maiores médias de visitas por utilizador/a se encontram nas regiões do Alentejo e de Lisboa, com uma média de 12 visitas. No mesmo sentido, são também as regiões de Alentejo e de Lisboa as que se destacam nas médias de visualizações de página por utilizador/a (29 em Lisboa, 26 no Alentejo), tendo, mais uma vez, a região do Algarve a menor média (12).

Face à classe socioeconómica, registaram-se apenas 6 utilizadores/as de classe D das apps de auto-rastreio. Deste modo, os resultados da classe D não deverão ser objeto de ênfase analítico-estatística. Veja-se que as frequências relativas entre as classes C1 e C2 são bastante semelhantes (47,85% na classe C1, correspondente a 78 utilizadores/as; 47,37% na classe C2, correspondente a 18 utilizadores/as). De todo o modo, as frequências relativas das classes C1 e C2 não se distanciam mais de 10% da frequência relativa registada na classe AB (55 utilizadores/as, 42,31%), não sugerindo diferenças significativas neste parâmetro. Já analisando as restantes métricas, e apesar de os totais de visitas serem bastante diferentes, é interessante observar que as classes socioeconómicas mais altas (AB e C1) apresentam resultados muito semelhantes quer na média de visitas por utilizador/a (10 visitas em média), quer na média de visualizações de página por utilizador/a (26 na classe AB, 25 na classe C1). Já a classe C2 distancia-se destes resultados, com 5 visitas em média por painelista e 7 visualizações de página em média por utilizador/a.

Ainda relativamente aos dados apresentados na Tabela 4, os resultados da utilização face ao momento do dia devem ser interpretados de forma ligeiramente diferente, já que as mesmas pessoas poderão utilizar as aplicações na totalidade das cinco opções disponíveis. De qualquer modo, há um equilíbrio generalizado na utilização destas apps no que toca às manhãs, tardes e noites. Por sua vez, os resultados diferem mais entre a utilização durante dias de semana ou durante fins de semana, sobretudo ao nível das frequências relativas de utilizadores/as. Nos dias de semana, registaram-se 143 utilizadores/as (41,81%), o que é significativamente superior à frequência de utilizadores/as aos fins de semana (94 pessoas, 27,49%). Apesar de existirem diferenças robustas no total de visitas, quando se analisa a média destas por utilizador/a, os resultados aproximam-se. Mesmo na média de visualizações de página por utilizador/a não existem discrepâncias que sugiram nuances relativamente distintas, até porque, ao contrário das restantes variáveis sociodemográficas, a utilização num determinado momento do dia não invalida a sua utilização também noutro momento do dia. De todo o modo, a maior média de visualizações de página por utilizador/a registou-se durante os dias de semana (17), enquanto a menor média registou-se nas manhãs (9).

Apesar de a amostra ter mais mulheres do que homens, os resultados da Tabela 4 sugerem diferentes utilizações destas apps face ao género. Mesmo tendo em conta a margem de erro de ±5% da amostra, os intervalos de resultados possíveis de frequências relativas de utilizadores/as distanciam-se acima dos 10%, já que as 107 mulheres que utilizaram estas apps representam 53,23% do total de mulheres na amostra, enquanto os 50 homens que utilizaram estas apps são apenas 35,46%. À semelhança do que acontece com os dois subgrupos etários, e apesar de grandes disparidades nos números totais de visitas, as restantes variáveis apresentadas na Tabela 4 não sugerem particulares diferenças genderizadas na utilização de aplicações de auto-rastreio, sobretudo no sentido de mais e maiores utilizações por parte de mulheres. Aliás, a média de visualizações de página por utilizador/a sugere um resultado maior nos homens (29) do que nas mulheres (20).

Tabela 4 Utilização de aplicações de auto-rastreio (Fitness; Saúde e Bem-estar; Self-tracking) por género, idade, momento do dia, região e classe socioeconómica 

Total de Utilizadores/as
(N/% do Total)
Total de Visitas Média de Visitas por Utilizador/a Média de Visualizações de Páginas por Utilizadores/as
Género Mulher 107 (53,23%) 1015 10 20
Homem 50 (35,46%) 463 9 29
Idade 18-24 55 (52,38%) 450 8 26
25-30 102 (43,04%) 1028 10 20
Momento do dia Manhã 83 (24,27%) 389 5 9
Tarde 110 (32,16%) 615 6 15
Noite 102 (29,82%) 498 5 12
Dia de semana 143 (41,81%) 1058 7 17
Fim de semana 94 (27,49%) 421 4 11
Região Açores 1 (100,00%) 111 111 203
Alentejo 13 (54,17%) 160 12 26
Algarve 16 (57,14%) 72 5 12
Centro 47 (49,47%) 375 8 19
Lisboa 33 (39,76%) 403 12 29
Madeira 2 (50,00%) 5 3 3
Norte 45 (42,06%) 352 8 21
Classe socioeconómica AB (classe alta e média alta) 55 (42,31%) 566 10 26
C1 (classe média) 78 (47,85%) 805 10 25
C2 (classe média baixa) 18 (47,37%) 81 5 7
D (classe baixa) 6 (54,55%) 26 4 6
TOTAL 157 (45,91%) 1478 9 22

Fonte: Elaboração própria.

4. Discussão

Os resultados apresentados permitem leituras detalhadas sobre as utilizações de aplicações móveis, que revelam usos massivos e generalizados das apps da categoria Redes Sociais e Mensageiros. Assim, de acordo com os dados da Tabela 3, é possível responder à primeira questão de investigação (Q1). A categoria de Redes Sociais e Mensageiros é de tal forma preponderante que todas as pessoas da amostra utilizaram esta categoria de apps, distanciando-se das demais categorias, inclusive na média de minutos por utilizador/a por dia, registando mais de 65 minutos por dia, enquanto a categoria com a segunda maior média de minutos por utilizador/a por dia (Jogos) não chega aos 7 minutos. Apesar da popularidade das apps de Redes Sociais e Mensageiros ser relativamente constante, o período de recolha da amostra deste estudo coincidiu com alterações sociais e comportamentais resultantes dos diversos confinamentos e demais restrições da pandemia da Covid-19, o que aumentou a utilização geral dessa categoria no contexto português e também internacional (Leménager et al. 2021; Simões et al. 2022; Amaral, Antunes e Flores 2023). As restantes cinco categorias revelam padrões de utilização mais semelhantes entre si, que sugerem menor centralidade na vida dos/as 342 jovens adultos/as. A nível de frequências absolutas e relativas, destaca-se o facto de as apps inicialmente categorizadas como de Namoro e Encontros (42 utilizadores/as, 12,28%), Self-tracking (36 pessoas, 10,53%) e Fitness (30 painelistas, 8,77%) serem das menos utilizadas. Porém, quando se observam as restantes métricas, os resultados apontam para utilizações mais intensivas das apps de Namoro e Encontros por comparação com as de Self-tracking e de Fitness. Mais do que comparar as médias de visitas, poderá auxiliar a compreensão deste facto observar as diferenças nas médias de visualizações de página por painelista (365 nas apps de Namoro e Encontros, por comparação com 41 nas de Fitness e 21 nas de Self-tracking), já que esta métrica se associa ao swiping característico dessas apps. Também na média de minutos por dia por utilizador/a as apps de Namoro e Encontros se distanciam (5,98 minutos), o que poderá ser contextualizado, no caso português, pela positiva recetividade a tecnologias com este fim (Sepúlveda e Vieira 2020). As categorias de Self-tracking e de Fitness reúnem médias de minutos por dia por utilizador/a inferiores a 1 minuto (0,19 e 0,67, respetivamente). O mesmo acontece ainda nas aplicações de Saúde e Bem-estar (0,12 minutos). Tendo em conta que conceptualizamos o auto-rastreio como a junção das categorias de Self-tracking, Fitness e Saúde e Bem-estar, assim se poderá responder à segunda questão de investigação (Q2).

Neste artigo conceptualiza-se o auto-rastreio como a junção de categorias onde está presente a disciplina do corpo (Klenk, Reifergerste e Renatus 2017; Pelúcio 2022; Antunes, Alcaire e Amaral 2023). Esta ideia do auto-rastreio agrega diferentes tipos de apps que permitem monitorizar, medir e registar comportamentos, hábitos ou mesmo ideias e pensamentos. Entre a quantificação, a vigilância e a dataficação, o auto-rastreio deve ser analisado numa perspetiva crítica da disciplina do género e do corpo. Daí resulta a ideia da qualidade do autocuidado, hegemónica e estereotipicamente percebido (e representado) como um interesse meramente feminino, que encaixa nos papéis de género tradicionais, segundo os quais as mulheres estão associadas ao cuidado (não só de si próprias, como também de outros/as) e à reprodução.

A análise dos dados apresentados na Tabela 4 permite responder à Q3. Começando com o foco na região, indicador onde se encontram algumas discrepâncias, em termos de frequências relativas destacam-se o Algarve (16 utilizadores/as, 57,14%) e o Alentejo (13 painelistas, 54,17%). Porém, as restantes métricas utilizadas sugerem resultados diversificados que não corroboram, sobretudo, a grande utilização de apps de auto-rastreio no Algarve, o que dificulta a identificação de diferentes padrões de utilização face a características específicas de residentes em determinadas regiões portuguesas. O momento do dia também pode levar a diferentes níveis de popularidade na utilização destas aplicações. Os resultados sugerem que as apps de auto-rastreio são mais utilizadas durante a semana do que ao fim de semana, seja em termos de frequências relativas de utilizadores/as ou em médias como a de visualizações de página por painelista. Desta forma, os resultados poderão abrir espaço para uma leitura e análise futura sobre o auto-rastreio como mais uma tarefa simultânea à semana de estudo/trabalho, da qual se poderá descansar, pausar até, durante o fim de semana. Em relação aos subgrupos etários, as métricas tendem a apresentar valores semelhantes, sendo que as próprias frequências relativas se encontram num intervalo inferior a 10% (duas vezes a margem de erro), não se identificando particulares diferenças na utilização de apps de auto-rastreio entre jovens dos 18 aos 24 anos em comparação com jovens dos 25 aos 30, o que sugere a associação geral da juventude ao uso deste tipo de aplicações conforme apontado noutros estudos (e.g. Findeis et al. 2021).

Ainda sobre a Q3, poderá existir alguma associação entre classe socioeconómica e a utilização de apps de auto-cuidado, o que também corrobora o que foi apontado por Findeis e restantes colegas (2021), que afirmam que o movimento do registo do self poderá estar associado com classes socioeconómicas mais favorecidas. Aliás, tendo em conta as métricas além dos totais de utilizadores/as, salientam-se as classes socioeconómicas mais altas (AB e C1) com resultados muito semelhantes, quer na média de visitas (10 visitas em média), quer na média de visualizações de página por utilizador/a (26 na classe AB, 25 na classe C1), face aos resultados da classe C2 (em média, 5 visitas e 7 visualizações de página por painelista).

De modo a responder à Q4, partiu-se da ligação entre o papel tradicional da mulher como uma construção ligada ao auto-rastreio pelo cuidado, seja face a uma procura por um corpo ideal ou pelo auxílio tecnológico aos ciclos menstruais e às questões da fertilidade (Crawford, Lingel e Karppi 2015; Gambier-Ross, McLernon e Morgan 2018; Hamper 2020). A popularidade do nicho específico de apps focadas na fertilidade e nos ciclos menstruais, que estão particularmente inseridas no contexto das aplicações de Self-tracking, é identificável na lista de aplicações rastreadas, conforme demonstra a Tabela 1. A forte presença desse nicho específico de apps pode justificar, por si só, a presença de mais utilizadoras do que utilizadores, inclusive em frequências relativas, contribuindo para uma tendência genderizada na utilização de apps de auto-rastreio. Assim, os resultados revelam padrões tradicionais de género nessas utilizações, enfatizando-se um contexto de autovigilância e de automonitorização dos próprios corpos através da tecnologia, como aponta Lupton (2016), sobretudo com apps que reforçam a autovigilância e o autocontrolo do corpo feminino, reduzido à sua função sexual e reprodutiva.

Embora a amostra tenha mais mulheres do que homens, salientamos que, mesmo tendo em conta a margem de erro de ±5%, a possível dispersão de resultados da frequência relativa de utilizadoras (107 mulheres, 53,23%) distancia-se da frequência relativa de utilizadores (50 homens, 35,46%), já que as frequências relativas têm uma diferença superior a 10%. Apesar de estes resultados sugerirem a manutenção dos ideais estruturantes do cuidado próprio e com outros/as como algo massivamente feminino, as restantes métricas da Tabela 4 indicam que os homens que decidem utilizar este tipo de aplicações, apesar de em menor número, fazem utilizações semelhantes às mulheres, havendo até métricas onde os resultados podem ser maiores nos homens do que nas mulheres (como a média de visualizações de página por utilizador/a, que é 29 e 20, respetivamente). É, por isso, relevante entender que as apps de auto-rastreio possuem fins bastante diversificados. De todo o modo, daqui podem surgir leituras sobre a utilização geral destas aplicações por parte de homens jovens adultos, em contextos de novas masculinidades. Outros estudos poderão aprofundar se as apps de auto-rastreio podem ser pensadas como um pequeno espaço digital de emancipação do auto-cuidado masculino, sobretudo aliado ao exercício e à saúde física, contribuindo para uma certa desmistificação de construções socioculturais tradicionais e patriarcais.

5. Conclusão

A análise dos resultados deste artigo reforça a preponderância de Redes Sociais e Mensageiros junto de jovens em idade adulta em Portugal, sobretudo num contexto após o início da pandemia da Covid-19. O tracking da utilização de smartphones durante um total de 90 dias permite concluir que as apps com fins de auto-rastreio (Saúde e Bem-estar, Self-tracking e Fitness) são das menos utilizadas sob variadas métricas, sendo as únicas categorias com menos de 1 minuto, em média, por dia por utilizador/a, o que sugere que não fazem parte estruturante da vida comum da juventude adulta em Portugal. Outros estudos que explorem a utilização destas apps noutras gerações adultas poderão contribuir para a perceção da utilização de apps de auto-rastreio como algo associado à juventude e a classes socioeconómicas mais favorecidas (Findeis et al. 2021). Os dados deste estudo reforçam essa utilização por parte das classes socioeconómicas mais favorecidas.

Este artigo apresenta leituras genderizadas sobre os padrões de utilização que poderão não ser determinadamente conclusivas, sobretudo pelo caráter exploratório da metodologia quantitativa de amostra não representativa, apesar de sugerirem a reprodução de construções hegemónicas e patriarcais da feminilidade. Nesse sentido, estudos com amostras mais significativas e representativas poderão ser importantes para se aprofundar a ideia da continuidade dos padrões patriarcais de responsabilização da mulher pela sua capacidade reprodutiva, tal como serão importantes para se explorar se o auto-rastreio masculino se poderá limitar e circunscrever à autovigilância do exercício e da saúde física. Os resultados sugerem que as utilizações de apps de auto-rastreio por parte de jovens adultos/as em Portugal não antagonizam os padrões de género tradicionais (Simões e Amaral 2022), apesar de se reconhecer uma utilização semelhante da larga categoria de apps de auto-rastreio entre utilizadoras e utilizadores. Poderão ser interessantes estudos focados na identificação de padrões de utilização distintos, de modo a verificar as leituras aqui apresentadas, auxiliando a compreensão da genderização, em conjugação com a idade e ainda outros fatores sociodemográficos, da auto-vigilância e do autocuidado que as apps englobadas na lógica do auto-rastreio (sugerem e reforçam.

Como citar este artigo:

[Segundo a norma Chicago]:

Antunes, Eduardo, Rita Basílio de Simões, Inês Amaral, e Ana Marta M. Flores. 2024. “Género e auto-rastreio: a utilização de smartphones por jovens em idade adulta em Portugal.” ex æquo 49: 141-160: pp. DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2024.49.10

[Segundo a norma APA adaptada]:

Antunes, Eduardo, Simões, Rita Basílio de, Amaral, Inês, e Flores, Ana Marta M. (2024). Género e auto-rastreio: a utilização de smartphones por jovens em idade adulta em Portugal. ex æquo 49, 141-160. DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2024.49.10

Agradecimentos

Apoio financeiro de fundos nacionais através da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) no contexto do projeto MyGender - Práticas mediadas de jovens adultos: promover justiça de género nas e através de aplicações móveis (PTDC/COM-CSS/5947/2020).

Referências bibliográficas

Amaral, Inês, e Rita Basílio Simões. 2021. “Online abuse against women: towards an evidence-based approach.” Em Digital media. El papel de las redes sociales en el ecosistema educomunicativo en tiempos de Covid-19, coordenado por Joaquín Sotero González e Joaquín González García, 579-592. Madrid: McGraw-Hill. [ Links ]

Amaral, Inês, Ana Marta Flores, e Eduardo Antunes. 2022. “Desafiando imaginários: práticas mediadas de jovens adultos em aplicações móveis.” Revista Media & Jornalismo 22(41): 141-160. DOI: https://doi.org/10.14195/2183-5462_41_8Links ]

Amaral, Inês, Eduardo Antunes, e Ana Marta M. Flores. 2023. “How do Portuguese young adults engage and use m-apps in daily life? An online questionnaire survey.” Observatorio (OBS*) 17(2): 245-263. DOI: https://doi.org/10.15847/obsOBS17220232141Links ]

Antunes, Eduardo, Rita Alcaire, e Inês Amaral. 2023. “Wellbeing and (Mental) Health: A Quantitative Exploration of Portuguese Young Adults’ Uses of M-Apps from a Gender Perspective.” Social Sciences 12(3): 1-14. DOI: https://doi.org/10.3390/socsci12010003Links ]

Carrilho, Maria José. 2015. “Crianças e Adolescentes em Portugal.” Revista de Estudos Demográficos 55: 53-101. INE. Disponível em https://www.ine.pt/xurl/pub/224830908Links ]

Cerqueira, Carla, e Sara I. Magalhães. 2017. “Ensaio sobre Cegueiras: cruzamentos intersecionais e (in)visibilidades nos media.” ex ӕquo 35: 9-20. DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2017.35.01Links ]

Couldry, Nick, e Ulises A. Mejias. 2019. “Data Colonialism: Rethinking Big Data’s Relation to the Contemporary Subject.” Television & New Media 20(4): 336-349. DOI: https://doi.org/10.1177/1527476418796632Links ]

Crawford, Kate, Jessa Lingel, e Tero Karppi. 2015. “Our metrics, ourselves: A hundred years of self-tracking from the weight scale to the wrist wearable device.” European Journal of Cultural Studies 18(4-5): 479-496. DOI: https://doi.org/10.1177/1367549415584857Links ]

Danaher, John, Sven Nyholm, e Brian D. Earp. 2018. “The Quantified Relationship.” American Journal of Bioethics 18(2): 3-19. DOI: https://doi.org/10.1080/15265161.2017.1409823Links ]

Epstein, Daniel A., et al. 2016. “Beyond Abandonment to Next Steps: Understanding and Designing for Life after Personal Informatics Tool Use.” Proceedings of the 2016 CHI Conference on Human Factors in Computing Systems, 1109-13. DOI: https://doi.org/10.1145/2858036.2858045Links ]

Findeis, Charlotte, et al. 2021. “Quantifying self-quantification: A statistical study on individual characteristics and motivations for digital self-tracking in youngand middle-aged adults in Germany.” New Media & Society 25(9). DOI: https://doi.org/10.1177/14614448211039060Links ]

Fotopoulou, Aristea, e Kate O’Riordan. 2017. “Training to self-care: Fitness tracking, biopedagogy and the healthy consumer.” Health Sociology Review 26(1): 54-68. DOI: https://doi.org/10.1080/14461242.2016.1184582Links ]

Gambier-Ross, Katie, David J McLernon, e Heather M Morgan. 2018. “A mixed methods exploratory study of women’s relationships with and uses of fertility tracking apps.” Digital Health 4: 1-15. DOI: https://doi.org/10.1177/2055207618785077Links ]

Gilbert, Andrew Simon. 2018. “Algorithmic culture and the colonization of life-worlds.” Thesis Eleven 146(1): 87-96. DOI: https://doi.org/10.1177/0725513618776699Links ]

Ging, Debbie, e Eugenia Siapera. 2018. “Special issue on online misogyny.” Feminist Media Studies 18(4): 515-524. DOI: https://doi.org/10.1080/14680777.2018.1447345Links ]

Ging, Debbie, e Eugenia Siapera. 2019. Gender Hate Online: Understanding the New Anti-Feminism. Cham: Palgrave Macmillan. DOI: https://doi.org/10.1007/978-3-319-96226-9Links ]

Hamper, Josie. 2020. “‘Catching Ovulation’: Exploring Women’s Use of Fertility Tracking Apps as a Reproductive Technology.” Body & Society 26(3): 3-30. DOI: https://doi.org/10.1177/1357034X19898259Links ]

INE. 2023. População residente segundo os Censos: total e por grupo etário. Disponível em https://www.pordata.pt/portugal/populacao+residente+segundo+os+censos+total+e+por+grupo+etario-2Links ]

Klenk, Saskia, Doreen Reifegerste, e Rebecca Renatus. 2017. “Gender differences in gratifications from fitness app use and implications for health interventions.” Mobile Media & Communication 5(2): 178-193. DOI: https://doi.org/10.1177/2050157917691557Links ]

Leménager, Tagrid, et al. 2021. “Covid-19 Lockdown Restrictions and Online Media Consumption in Germany.” International Journal of Environmental Research and Public Health 18(1): 1-13. DOI: https://doi.org/10.3390/ijerph18010014Links ]

Lupton, Deborah. 2016. The Quantified Self. Cambridge: Polity Press. [ Links ]

Mendes, Kaitlynn, Jessica Ringrose, e Jessalynn Keller. 2018. “#MeToo and the promise and pitfalls of challenging rape culture through digital feminist activism.” European Journal of Women’s Studies 25(2): 236-246. DOI: https://doi.org/10.1177/1350506818765318Links ]

Miguel, Raquel de Barros Pinto, Djenifer Samantha Marx, e Gilmara Joanol Arndt. 2020. “Surfando na onda digital: Feminismos em rede no Brasil.” ex ӕquo 42: 119-134. DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.42.07Links ]

Miller, Vincent. 2020. Understanding Digital Culture. 2ª ed. London: SAGE. [ Links ]

O’Loughlin, Erin K., et al. 2022. “Associations among physical activity tracking, physical activity motivation and level of physical activity in young adults.” Journal of Health Psychology 27(8): 1833-1845. DOI: https://doi.org/10.1177/13591053211008209Links ]

Pelúcio, Larissa Maués. 2022. “O sangue na rede: mercado menstrual, menstruapps e tecnopolíticas de resistências.” Política & Sociedade 21(51): 95-118. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2022.e91483Links ]

Plan International. 2020. Free to be online? Girls’ and young women’s experiences of online harassment. Disponível em https://plan-international.org/publications/freetobeonlineLinks ]

Sanders, Rachel. 2017. “Self-tracking in the Digital Era: Biopower, Patriarchy, and the New Biometric Body Projects.” Body & Society 23(1): 36-63. DOI: https://doi.org/10.1177/1357034X16660366Links ]

Seneviratne, Suranga, et al. 2014. “Your installed apps reveal your gender and more!” SPME 2014 - Proceedings of the ACM MobiCom Workshop on Security and Privacy in Mobile Environments. DOI: https://doi.org/10.1145/2646584.2646587Links ]

Sepúlveda, Rita, e Jorge Vieira. 2020. “Motivações para o uso de aplicações de online dating no contexto português: a relevância dos turning points.” Análise Social 55(235): 300-330. DOI: https://doi.org/10.31447/as00032573.2020235.04Links ]

Simões, Rita Basílio, e Inês Amaral. 2022. “Sexuality and self-tracking apps: Reshaping gender relations and sexual and reproductive practices.” Em The Routledge Companion to Gender, Sexuality, and Culture, editado por Emma Rees, 413-423. London: Routledge. DOI: https://doi.org/10.4324/9780367822040-41Links ]

Simões, Rita Basílio, et al. 2022. “Violência Online Contra as Mulheres: Relatos a Partir da Experiência da Pandemia da COVID-19.” Comunicação e Sociedade 42: 179-203. DOI: https://doi.org/10.17231/comsoc.42(2022).3981Links ]

Simões, Rita Basílio, Agda Baeta, e Bruno Frutuoso Costa. 2023. “Mapping Feminist Politics on Tik Tok during the COVID-19 Pandemic: A Content Analysis of the Hashtags #Feminismo and #Antifeminismo.” Journalism and Media 4: 244-257. DOI: https://doi.org/10.3390/journalmedia4010017Links ]

van Dijck, José. 2014. “Datafication, dataism and dataveillance: Big data between scientific paradigm and ideology.” Surveillance & Society 12(2): 197-208. DOI: https://doi.org/10.24908/ss.v12i2.4776Links ]

Vickery, Jacqueline R., e Tracy Everbach. 2018. Mediating Misogyny: Gender, Technology, and Harassment. Cham: Palgrave Macmillan. [ Links ]

Wissinger, Elizabeth. 2017. “Wearable tech, bodies, and gender.” Sociology Compass 11(11): 1-14. DOI: https://doi.org/10.1111/soc4.12514Links ]

Yee, Nick, Jeremy N. Bailenson, e Nicolas Ducheneaut. 2009. “The Proteus effect: Implications of Transformed Digital Self-Representation on Online and Offline Behavior.” Communication Research 36(2): 285-312. DOI: https://doi.org/10.1177/0093650208330254Links ]

Zhang, Jingwen, et al. 2018. “Advantages and challenges in using mobile apps for field experiments: A systematic review and a case study.” Mobile Media & Communication 6(2): 179-196. DOI: https://doi.org/10.1177/2050157917725550Links ]

Zhang, Xiaofei, et al. 2014. “Understanding Gender Differences in m-Health Adoption: A Modified Theory of Reasoned Action Model.” Telemedicine and e-Health 20(1): 39-46. DOI: https://doi.org/10.1089/tmj.2013.0092Links ]

Recebido: 20 de Abril de 2023; Aceito: 20 de Outubro de 2023

Conflito de interesses

O autor e as autoras declaram não existir qualquer conflito de interesses.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.