1. Introdução: Dos direitos aos “pós-direitos” das mulheres
A reivindicação dos direitos humanos das mulheres e da igualdade entre as pessoas - independentemente de gênero, raça/etnia e classes sociais - é central ao feminismo. Pelo menos desde o século XVIII, podemos encontrar textos fundadores do movimento feminista que defendem a igualdade de direitos entre mulheres e homens, não sendo nunca demais recordar alguns deles, mesmo que brevemente. A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, publicada em 1791 por Olympe de Gouges e elaborada em resposta à Declaração dos Direitos do Homem aprovada em 1791 após a Revolução Francesa, constitui um marco fundamental na reivindicação feminista dos direitos das mulheres. Neste documento, Olympe de Gouges demonstrava sua indignação com a exclusão das mulheres dos direitos de cidadania concedidos aos homens e afirmava que era “bizarro, cego, impante de ciência e degenerado” querer-se “dominar como déspota um sexo que está na posse plena das suas faculdades mentais” (2002, 14).
Participante ativa dos movimentos revolucionários, de Gouges tinha a consciência de que mulheres e homens deveriam usufruir da igualdade de direitos. Por esta razão, no Artigo 1 da sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, ela defendia que “a mulher nasceu livre e é igual ao homem nos seus direitos” (2002, 15). A partir deste ponto fundamental, argumentava que as mulheres deveriam ter iguais direitos à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão. Além disso, defendia - no Artigo 6 - que as leis deveriam expressar os direitos de mulheres e homens e que
os cidadãos e cidadãs, sendo iguais aos olhos da lei, devem ser admitidos igualmente a todas as honras, posições e cargos públicos de acordo com a sua capacidade e sem outras distinções além de suas virtudes e talentos. (Gouges 2002, 16)
De Gouges reclamava também o direito à educação, à divisão igual das riquezas, à divisão dos bens em caso de separação, e propunha que o casamento fosse celebrado como um contrato entre a mulher e o homem, garantindo isonomia entre as partes. Fazia estas reivindicações sabendo de antemão que as reações da sociedade francesa não seriam receptivas, antecipando: “ao ler este estranho documento, vejo levantarem-se contra mim os hipócritas, os puritanos, o clero, e toda a sequência infernal” (Gouges 2002, 25). A violência destas reações, no entanto, levaria a que em 1793 ela fosse levada ao cadafalso e morta na forca.
A indignação de Olympe de Gouges era, no entanto, partilhada entre as mulheres de seu tempo. Em 1792, Mary Wollstonecraft publicou Reivindicação dos Direitos da Mulher, um texto que é igualmente apontado como influenciador dos movimentos feministas que surgiriam depois e que apresenta traços comuns à Declaração de Olympe de Gouges. Ambos, com efeito, eram respostas à Constituição Francesa e à Declaração dos Direitos do Homem. Além disso, ambas as autoras defendiam o acesso à educação e a universalidade de direitos para as mulheres, retirando-as da escravidão doméstica, e se apresentavam contra a escravidão dos povos negros e indígenas.
O direito à educação é, pois, central à defesa de Mary Wollstonecraft, para quem as desigualdades entre homens e mulheres deveriam ser combatidas, em primeiro lugar, por este meio. Apenas se as mulheres tivessem acesso a uma educação racional poderiam mostrar ser igualmente capazes de desempenhar papéis socialmente relevantes.
Inúmeros textos se seguiriam a estes escritos fundadores, influenciando de forma decisiva em vários contextos a reivindicação de direitos das mulheres. Com efeito, com o passar dos anos e à medida que a luta das mulheres foi avançando pelo mundo, os direitos fundamentais (educação, voto, propriedade, etc.) das mulheres foram sendo - paulatinamente - conquistados nos mais diversos contextos globais. Os movimentos feministas e de mulheres complexificaram também os seus olhares sobre a desigualdade e passaram a focar outros aspectos de suas vidas, como raça, classe ou sexualidade., questionando as múltiplas e interseccionais desigualdades vivenciadas entre mulheres e homens e entre as próprias mulheres.
Por outro lado, e ao tempo em que as mulheres foram avançando no reconhecimento dos seus direitos, cresceram também movimentos de questionamento sobre a necessidade de ainda existirem feministas e movimentos de reivindicação pelos direitos, com base na propagada ideia de que as mulheres já teriam conquistado o que teriam de direito. Ainda que não necessariamente os únicos responsáveis por esta ideia, os media foram, sem dúvida, o principal veículo de difusão desta mensagem.
Assim, a partir de uma lógica de articulação entre discursos mediáticos, impulsos ao consumo, valores neoliberais e reivindicações feministas, o feminismo passou a ser rotineiramente questionado e menosprezado, sobretudo a partir dos conteúdos mediáticos, num discurso que várias autoras viriam a caracterizar como “pós-feminista” (por exemplo, McRobbie 2004; 2009; Gill 2007; Gill e Scharff 2011). Nesta lógica, e como balizadores da cultura contemporânea, os conteúdos e produtos mediáticos/mediatizados passaram a ditar os novos códigos de conduta aceitáveis para as mulheres. Nas suas múltiplas linguagens, que vão desde a publicidade ao próprio jornalismo, os media crescentemente passaram a sugerir de forma hegemônica as maneiras como as mulheres devem ser e estar no mundo, estabelecendo os espaços circunscritos a elas e marcando os limites do seu universo e dos seus direitos.
Ao articular de maneira sutil e ardilosa os valores neoliberais e a emancipação das mulheres, o pós-feminismo estabeleceu, deste modo, novas ressignificações para o feminismo em que este, submetido ao capitalismo, poderia ser mantido, desde que a sua crítica estrutural das desigualdades fosse devidamente desvalorizada ou mesmo silenciada na esfera pública.
Para esta ambiguidade mediática do feminismo, Rosalind Gill propôs o termo “sensibilidade pós-feminista” para designar precisamente a forma como a cultura popular mediática, incluindo filmes, shows televisivos, publicidade e outros produtos mediáticos (Gill 2007, 148) se dirigem às mulheres como consumidoras self-made, sofisticadas e empoderadas. Gill identificou nestes processos de articulação entre cultura mediática no que às mulheres diz respeito e o neoliberalismo um conjunto de elementos que, no seu conjunto, definem, assim, uma “sensibilidade pós-feminista” que pode estar presente em diferentes dimensões das vidas das mulheres.
Uma das principais características da articulação desses elementos é, precisamente, o emaranhamento dos temas feministas e a sua rejeição simultânea, caracterizando a natureza contraditória e repleta de ambiguidades da cultura pós-feminista.
No que se segue, e dois séculos após as reivindicações das pioneiras que revimos brevemente, procuraremos discutir e analisar como as ambiguidades próprias do pós-feminismo têm vindo a colocar em disputa diferentes noções sobre os direitos das mulheres nos e a partir dos discursos presentes nas notícias publicadas em duas plataformas noticiosas dirigidas às mulheres: Delas e Universa.
Para isso, teremos em conta, por um lado, a histórica luta pelos direitos das mulheres, suas conquistas e retrocessos. Por outro lado, atentaremos às diferentes estratégias discursivas utilizadas pela indústria mediática para, através da instrumentalização do jornalismo de/para mulheres, promover a acumulação de capital para si e para seus anunciantes a partir da reformulação dos direitos das mulheres através dos valores neoliberais disseminados nas sociedades.
2. Abordagem metodológica: discurso e plataformização jornalística
Como já referido, adotamos como ponto de partida as bases da análise crítica do discurso (ACD) (Fairclough 2003; Fairclough e Melo 2012; Carvalho 2015) e as suas ligações aos estudos feministas (ACDF) (Lazar 2007; 2009) e ao realismo crítico (Fairclough, Jessop, e Sayer 2004). Nosso objetivo é compreender os diferentes mecanismos da engenharia discursiva das notícias que situam as mulheres na e a partir da sensibilidade pós-feminista presente no jornalismo de/para mulheres1. Partimos, portanto, da compreensão de que os textos são “produções sociais historicamente situadas que dizem muito a respeito de nossas crenças, práticas, ideologias, atividades, relações interpessoais e identidades” (Resende e Ramalho 2006).
Dessa maneira, analisando aos textos jornalísticos das duas plataformas2 já referidas, Delas e Universa, exploramos a ideia de que as ligações entre texto, práticas discursivas e práticas sociais possuem um caráter dialógico, pois, como referem Fairclough, Jessop e Sayer (2004, 3-4), os textos são “tanto socialmente estruturantes como socialmente estruturados”3. Com isto, assumimos que a análise não deve estar focada apenas nas diferentes maneiras em que os textos geram significado, mas também na forma como “a própria produção de significado é restringida por características emergentes e não semióticas da estrutura social” (ibid.).
Os textos jornalísticos selecionados fazem parte de uma investigação de maior fôlego4 que permitiu estruturar uma seleção de notícias dos meses de março de 2018, 2019, 2020 e 2021 das duas plataformas noticiosas dirigidas às mulheres a partir de critérios temáticos quantitativos5 que demonstraram a pertinência de estudar de forma qualitativa o foco sobre os direitos das mulheres.
Tendo em conta o objetivo geral da Análise Crítica do Discurso (ACD) que é “revelar o papel da prática discursiva na manutenção do mundo social, incluindo as relações sociais que envolvem relações desiguais de poder”6 (Jørgensen e Phillips 2002, 63) e os objetivos da Análise Crítica Feminista do Discurso (ACFD) relativos ao papel da linguagem na sustentação de uma estrutura desigual de gênero (Lazar 2007), olhamos, pois, para a forma como as relações de gênero, enquanto conjunto de práticas sociais, são construídas em peças jornalísticas que propõem representações ambivalentes que parcialmente sustentam a desigualdade, na forma de pós-feminismo. Mais especificamente, procuramos analisar como os textos jornalísticos das plataformas enquadram discursivamente as identidades propostas às leitoras num aspecto que é central à mudança social: os direitos das mulheres.
A partir de exemplos prototípicos da reconfiguração dos direitos em “pós-direitos”, publicados pelas plataformas digitais em estudo, iremos olhar para as diferentes maneiras em que a indústria mediática se apropria de elementos da sensibilidade pós-feminista (Gill 2007) para propor identidades às mulheres nos subuniversos informativos constituídos a partir de um jornalismo de/para mulheres. Para tal, faremos um percurso analítico transversal pelas notícias para demonstrar as estratégias discursivas que produzem um gênero jornalístico próprio que dialoga com a ordem do discurso político feminista, mas de uma forma que “enfraquece” este último, associando-o a uma ordem do discurso pós-feminista que é mobilizado por um jornalismo de/para mulheres plataformizado.
Mais especificamente, começamos por olhar para a forma como as reivindicações feministas são recontextualizadas pelas plataformas, produzindo um “hibridismo, uma mistura de diferentes discursos” que “implica uma transformação, de modo a adequar-se ao novo contexto e ao seu discurso”7 (Fairclough 2001, 133), que, neste caso, liga inexoravelmente o feminismo às lógicas pós-feministas e ao neoliberalismo, fazendo girar os direitos das mulheres apenas em torno do consumo e de um certo tipo de feminilidade.
Reforçamos a ideia de que, pelo seu carácter exploratório e qualitativo, não pretendemos que a análise tenha representatividade, mas pensamos que as notícias, publicadas em torno de uma data especialmente relevante na celebração dos direitos das mulheres - o 8 de Março -, nos oferecem pistas fundamentais para explorarmos como o discurso em causa impõe uma determinada ressignificação dos direitos das mulheres para a qual deveremos estar particularmente atentas.
3. O direito ao consumo e à feminilidade
A primeira notícia em análise, intitulada “Dia Internacional da Mulher: 20 ideias para olhar mais para si própria”8 e publicada no dia 05/03/2021, em Delas, é, na verdade, um caso exemplar da plataformização do discurso feminista na sua ligação às lógicas neoliberais. Vemos, desde logo no título, que a plataforma convoca suas leitoras a olharem mais para si próprias no Dia Internacional da Mulher. Ignorando as discussões e ações amplas e coletivas sobre a situação das mulheres portuguesas em 2021, o título convida, antes, ao olhar e à ação introspectiva, com um foco no trabalho que devem desempenhar sobre si mesmas para que sejam mais femininas.
A ideia do “trabalho sobre si mesma” constitui umas das principais características do pós-feminismo. Como dizem Rosalind Gill e Christina Scharff (2011, 4), essas características incluem “a noção de que a feminilidade é cada vez mais representada como uma propriedade corporal; uma mudança da objetificação para a subjetivação nas formas como (algumas) mulheres são representadas; ênfase na autovigilância, monitoramento e disciplina”; reforçam o foco no individualismo, escolha e capacitação, elementos inseridos no domínio de um “paradigma de transformação”9. Isso mesmo é reforçado no subtítulo da notícia:
Prometa a si própria momentos para estar consigo própria, longe do trabalho, das tarefas domésticas, dos cuidados com os outros. Deixamos sugestões solidárias, evocativas ou nem tanto para que possa assinalar o Dia Internacional da Mulher. (Excerto 1 - Delas; itálico nosso)
A reiteração lexical verificada em “a si própria” e “consigo própria” apresenta o individualismo como um valor, ou melhor, um compromisso que deve ser assumido pelas leitoras com elas próprias para celebrar um Dia que é coletivo, mas que, afinal, também pode não ter nenhuma dessas características coletivistas. Neste trecho, a expressão lexical “nem tanto” relativiza os aspectos solidários da data e afunila a ação precisamente no seu mínimo, tornando-a individual e hedonista. Mais uma vez, como refere Gill no seu texto clássico (2007, 153), “a gramática do individualismo sustenta todas essas noções - experiências como racismo, homofobia ou violência doméstica são enquadradas em termos exclusivamente pessoais, invertendo totalmente a ideia do pessoal como político”10.
Este ideal do individualismo está sustentado no trabalho que as mulheres devem desempenhar sobre si mesmas, ou seja, em atividades individuais de aprimoramento pessoal e que estão para além do trabalho remunerado, das tarefas domésticas e dos cuidados com os outros, que deverão continuar a desempenhar nos outros dias do ano. Isto fica evidente na expressão performativa “prometa”, a partir da qual Delas utiliza o imperativo para convocar as leitoras a um comprometimento pessoal/individual com aquilo que, para a plataforma, também é uma dimensão importante para as mulheres.
As mulheres são, então, impelidas a comprometerem-se, sobretudo, com a beleza (presente em 5 das 18 sugestões efetivamente publicadas), o consumo (5 sugestões), símbolos feministas embalados em forma de produtos (7 sugestões) e o sexo (1 sugestão), tematizados a partir das 18 ideias listadas na peça e apresentadas como “sugestões solidárias, evocativas ou nem tanto”. As sugestões solidárias mencionadas são, por exemplo, uma aplicação do IKEA que, segundo a plataforma, auxilia na distribuição de tarefas domésticas entre as pessoas da família, e a aquisição de arranjos florais que, ao serem adquiridos, contribuem com 1€ para a APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima). Monetiza-se, portanto, a solidariedade feminista e substituem-se as lutas políticas pelo consumo associado à tarefa doméstica.
Já as sugestões evocativas, que segundo o texto são aquelas que “evocam mulheres que se destacaram”, focam, por exemplo, em meias com o rosto ou frases de Frida Kahlo comercializadas pela Calzedonia ou um saco da Mango com uma frase da artista mexicana Ana Leovy, contratada pela marca para desenvolver estampas de mulheres para assinalar a coleção do Dia Internacional da Mulher. Na expressão “nem tanto” do subtítulo estão implícitas as sugestões de que as mulheres devem investir na beleza e no consumo de produtos, como, por exemplo, os mais diversos produtos de beleza para diferentes partes do corpo e a écharpe Amazônia, da marca Vista Alegre.
A partir deste catálogo de produtos, fica evidenciada a estratégia discursiva de promoção do individualismo, do consumo e da feminilidade como uma propriedade do corpo feminino. O foco da notícia está em propor identidades pós-feministas às leitoras no Dia Internacional da Mulher, distanciando-as das reivindicações feministas de igualdade e levando-as ao consumo de símbolos femininos e feministas descomprometidos com uma agência política. Isto nos faz evocar, de novo, as palavras de Rosalind Gill e Christina Scharff (2011, 7), quando enfatizam que o individualismo no pós-feminismo “substituiu quase inteiramente as noções do social ou político, ou qualquer ideia de indivíduos sujeitos a pressões, restrições ou influências externas”11.
Esta ideia é sintetizada na fotografia acima (Figura 1), proveniente de um banco de imagens e escolhida pela plataforma para abrir a peça. Nela, uma mulher jovem, branca, magra, maquiada e sorridente aparece deslizando pelo rosto um pincel de maquiagem e desfrutando daquilo que Delas chamou de “um momento para estar consigo própria”. A imagem é inequívoca sobre o que é entendido como belo e de como o trabalho investido em busca deste padrão de beleza pode, nesta perspectiva, trazer alegria às mulheres. O 8 de Março fica, assim, reduzido ao “direito a ser bela”, como refere Michelle Lazar (2011).
O texto (visual e verbal) da notícia funciona representacional, interacional e composicionalmente (Kress e Van Leeuwen 1996). Assim, a página da plataforma onde se encontra a notícia representa o mundo das mulheres, criando interações imaginadas entre a plataforma e as suas leitoras, constituindo um gênero reconhecível que é uma “notícia para mulheres” sobre o 8 de Março. As mulheres e as suas lutas são assim constituídas verbalmente e visualmente por meio do que Elaine Swan (2017) chama de “estilística pós-feminista” - um conjunto particular de expressões verbais e de design visual que constroem a leitora imaginada como se ela fosse branca, de classe média, jovem, que pode pagar para celebrar hedonística e individualmente o Dia Internacional das Mulheres. Diz o texto:
Não é só o creme facial que coloca no rosto, é o tempo que reserva para o fazer pedindo a todos em casa que respeitem esses minutos de descanso consigo própria, sem tarefas, nem perguntas. Não é apenas o momento em que compra um objeto que quer muito, mas o período que investe a imaginá-lo, a procurá-lo, não podendo ser interrompida.
O Dia Internacional da Mulher, 8 de março, está à porta e, entre as cada vez mais sérias reivindicações de igualdade - que a pandemia ameaça retardar em anos de conquista - é também tempo de olhar para si, de dividir as tarefas domésticas e os cuidados. Quem sabe se pode começar já a encurtar a hora e 13 minutos a mais por dia que já trabalha por dia face aos homens portugueses.
Veja abaixo algumas sugestões para se mimar a si própria - sem ignorar o prazer - mas também para encontrar o tempo para se dedicar a procurar algo de que gosta. (Excerto 2 - Delas; itálico nosso).
Vemos neste excerto que a plataforma tenta argumentar que “não é só o creme facial que coloca no rosto” ou não se trata apenas do “momento em que compra um objeto que quer muito”, mas de um sentimento hedonístico que entende o prazer como algo merecido pelas mulheres e que deve ser desfrutado em “minutos de descanso consigo própria”, sem qualquer interrupção. Esse prazer individual proposto pela plataforma reconfigura o trabalho sobre o próprio corpo (quando passa creme no rosto, por exemplo) e a pressão capitalista para o consumo em uma experiência não apenas material, mas com dimensões simbólicas. O tempo dedicado à feminilidade e ao consumo deve ser encarado como uma das “sérias reivindicações de igualdade”, pois, “é tempo de olhar para si” e para “se mimar a si própria”.
Com esta reiterada argumentação de que as mulheres devem “presentear-se” a si próprias com “autocuidado” e realização dos desejos individuais, Delas aciona duas outras questões: a primeira, que o Dia Internacional da Mulher é uma data festiva e deve ser comemorada com homenagens e presentes, incluindo os tradicionais ramos de flores oferecidos às mulheres neste dia; e que as mulheres devem estar sempre autovigilantes e disciplinadas com relação à sua aparência física, não podendo se descuidar do corpo e das suas vestes. Estão aqui bem patentes, portanto, as tônicas pós-feministas no hedonismo e no autocuidado (Negra 2009).
O prazer sexual também aparece aqui como mais um elemento do individualismo e do hedonismo celebrados nesta peça. A sugestão de um sugador de clitóris da marca Satisfyer sintetiza a ideia de prazer individual e, ainda, aponta para a sexualização da cultura pois, como refere Gill (2007), as mulheres devem se manter sujeitos sexuais desejados e ativos, com ou sem parceiros/as. Nesta “estilística pós-feminista”, as mulheres são conduzidas ao escrutínio e a um trabalho sobre si mesmas. Devem estar continuamente vigilantes e dispostas à transformação dos seus corpos e estilos de vida.
Em Universa, o pós-feminismo também se mostra subjacente aos discursos propostos às leitoras. A cooptação neoliberal dos símbolos e do léxico feminista está presente de maneira evidente na notícia “Garotinha que pediu tênis de basquete para meninas lança modelo ‘feminista’”12, publicada no dia 09/03/2019. Nesta publicação, a plataforma repercute postagens realizadas pela marca de materiais desportivos Under Armour, em seu perfil no Instagram, sobre a carta de uma menina norte-americana “lamentando a falta de uma versão feminina do tênis criado pelo jogador de basquete norte-americano Stephen Curry” (Excerto 3 - Universa; itálico nosso).
Segundo o texto, a fabricante Under Armour, em resposta à carta, convidou a menina de 9 anos para desenvolver a “versão feminina” dos tênis usados pelo basquetebolista estadunidense. Moernaut, Mast e Pauwels (2020, 487) recordam-nos que, numa leitura multimodal, “o visual muitas vezes adiciona destaque enquanto o verbal fornece estrutura, com toda a mensagem multimodal se beneficiando dos pontos fortes de ambos os modos”13. Com efeito, a versão feminina que referimos, anunciada por Universa como um “modelo feminista” no título, tem a cor roxa (cor historicamente utilizada pelos movimentos feministas) e “frases feministas” (como “poder feminino”, “jogue com seu coração” e “meninas também marcam pontos”) escritas na palmilha, como se pode ler no texto e ver na Figura 2.
Esta adaptação estética dos tênis para meninas tem como pressuposto a noção de que as meninas não usam o mesmo calçado que os meninos e, portanto, a marca poderia desenvolver um modelo que correspondesse aos estereótipos de gênero para que as meninas fossem, de alguma maneira, incluídas no desporto. Este exemplo dialoga com a ideia de que a reafirmação da diferença sexual deve ser visível e deve estar expressa nas roupas e sapatos usados por meninas e meninos. Como bem refere Gill (2007, 158), esta reafirmação da diferença sexual é uma das propriedades da sensibilidade pós-feminista, pois deve demonstrar que “homens e mulheres são fundamentalmente diferentes”14. Além disso, a diferença sexual é parte de uma estratégia que busca “esfriar” os lugares onde existe desigualdade, pois, se mulheres e homens ocupam espaços diferentes na sociedade, evita-se uma eventual disputa.
A estratégia discursiva adotada por Universa reforça estas noções a partir das ambivalências que mobiliza ao destacar que as meninas precisam de uma versão esteticamente feminina dos tênis para que tenham seu espaço no basquetebol, mas, também, por dar visibilidade a uma situação em que o pedido de uma menina foi atendido pelo mercado. Mais que isso, ou seja, mais que ouvir o apelo de uma consumidora para produzir uma versão feminina, a marca lançou um “modelo feminista”. Além de propor o reconhecimento de que empresas podem estar abertas para atender os pleitos das mulheres, Universa também lança mão da ideia de que um “feminismo não-zangado” e disposto a colaborar com o mercado pode render resultados, o que é outra característica marcante do pós-feminismo.
Nesta peça, estas ideias são reforçadas pela aproximação estratégica entre os ideais de feminilidade e símbolos/expressões feministas reconhecidos na sociedade. De uma só vez, Universa propõe discursos em prol da marca sugerindo que ela está atenta às demandas das mulheres e, por outro lado, apresenta uma versão atenuada do feminismo agenciado por uma criança branca e satisfeita com o resultado de sua iniciativa. Assim, o direito à feminilidade foi garantido “graças à sensibilidade” da fabricante de material desportivo.
A visibilidade alcançada a partir desta ação foi repercutida em outra peça publicada por Universa dois dias depois. Na notícia “Lembra do tênis feminista criado por uma garota de 9 anos? Chegou à NBA”15, Universa dá destaque ao fato de o atleta Stephen Curry ter usado os “tênis feministas” em partida realizada no Dia Internacional da Mulher, como podemos ver na imagem a seguir:
Esta apreciação está expressa no texto, como vemos no excerto: “Na sexta, quando Stephen entrou em quadra pelo Golden State Warriors contra o Denver Nuggets, quem brilhou foi o tênis feminista” (Excerto 4 - Universa; itálico nosso). Ao afirmar que “quem brilhou foi o tênis feminista”, Universa concentra no produto a importância e visibilidade antes dividida com a garota e com o atleta. Neste segundo texto, o tênis tornou-se uma entidade autônoma que chegou à NBA, brilhou na quadra e “ajudou” o time a ganhar a partida. Há aqui uma razão de metonímia, pois a parte (tênis) passa a representar o todo (o jogador), humanizando e concedendo protagonismo ao objeto de consumo.
4. Conclusão
Como vimos nas notícias analisadas, que integram investigação mais ampla e que foram trazidas para este artigo por serem exemplos prototípicos da (re)configuração dos direitos em “pós-direitos”, as mulheres que “habitam” os textos performam as suas identidades e os seus direitos a partir de sua “capacidade de escolha” e, principalmente, de consumo. Seja através dos tênis ou de outros objetos de desejo, o “empoderamento” feminino está, nestas notícias, diretamente relacionado às maneiras como os produtos podem ou não definir as identidades femininas idealizadas pela indústria do consumo.
Além de embalarem a feminilidade na forma de produtos de consumo, estes discursos subvertem a compreensão de que os direitos das mulheres são coletivos e dizem respeito ao amplo exercício de sua cidadania. Reconfiguradas como pós-direitos, as reivindicações são individualizadas e esvaziadas de sentido político, deixando as mulheres ainda mais sozinhas para agenciar a superação das assimetrias de gênero.
Deste modo, a plataformização noticiosa e discursiva dos direitos das mulheres demonstra a atualização para o meio digital de um processo histórico de sujeição feminina nos e a partir dos media. Na verdade, desde o desenvolvimento do jornalismo (como campo teórico e profissional) e da indústria mediática (como um espaço de negociação econômica e política), as mulheres vêm sendo excluídas, obliteradas e deslocadas na/da ampla esfera pública e dirigidas a subuniversos informativos em que a essencialização de suas vivências e de suas preocupações determinam como e sobre quais temas as mulheres serão informadas.
Reduzidas a um “Universo Delas”, as subjetividades propostas às leitoras decorrem de uma determinação sobre o feminino, a experiência feminina e, por consequência, a negação de tudo o que pode colocar em causa essa identidade feminina ideal negociada entre os media e seus anunciantes. Desse modo, as plataformas produzem uma ordem discursiva em que as mulheres são os sujeitos neoliberais ideais (Scharff 2016). Central a essa construção discursiva é a forma como o discurso feminista é recontextualizado pelas plataformas, produzindo um hibridismo (Fairclough 2001) que liga o discurso inexoravelmente às lógicas pós-feministas e ao neoliberalismo.
Por outro lado, é importante realçar que as jornalistas que produzem estes textos, embora autônomas e detentoras de agência, estão, também elas, a trabalhar numa indústria que opera por determinados cânones profissionais e por uma socialização profissional que é sedimentada a reproduzir estereótipos e valores que situam as leitoras como um outro, ou seja, como alguém que não corresponde ao leitor ideal do jornalismo mainstream generalista. Este jornalismo, no entanto, apesar de se dirigir às leitoras, fala às mulheres a partir de um olhar androcêntrico e essencialista sobre as vivências no feminino. Imersas em preocupações sobre o corpo, a feminilidade, o sucesso e a conciliação entre o trabalho remunerado e o não-remunerado (doméstico/familiar), as mulheres ficam mais distantes dos elementos políticos que constituem os seus direitos e limitam-se a almejar o reconhecimento de que são a corporificação de valores considerados positivos no mundo regido pelas lógicas neoliberais, a exemplo das ideias celebradas de empoderamento, resiliência e autodeterminação.
Encerramos este artigo, portanto, renovando nossas convicções de que é urgente uma ampla e profunda reforma dos cânones e valores que regem o jornalismo instrumentalizado pela indústria mediática para que haja justiça e igualdade entre mulheres e homens.